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Orçamento participativo: alternativa disponível de mudança social no contexto de uma sociedade moderna globalizada

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24/02/2010 às 00:00
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3 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO COMO ALTERNATIVA DISPONÍVEL DE MUDANÇA SOCIAL: CONDIÇÕES NECESSÁRIAS E LIMITES

A racionalidade empregada no OP pelo ente local é fundamental na garantia da legitimidade das decisões comunitárias, a qual deve se opor à racionalidade ocidental hegemônica, para que seja considerada uma alternativa de mudança social.

Na linha da racionalidade da ação comunicativa habermasiana, vislumbra-se que o OP deve ser um espaço público de agir comunicativo entre a sociedade civil e a Administração Pública, na busca de um consenso a respeito da alocação de recursos para despesas referentes às políticas públicas a serem executadas na localidade. [03]

Deste modo, esta experiência envolve alguns elementos intrínsecos, interdependentes e autônomos, quais sejam: (i) espaço público, (ii) ação e (iii) atores (individuais e coletivos); em que o espaço público consiste em uma estrutura comunicacional do agir, consubstanciada em assembleias, reuniões, Conselhos e Fórum, nas quais as demandas sociais são apresentadas e problematizadas pelos atores e decididas, no intuito de integrarem ao sistema político; a ação é consubstanciada no agir comunicativo, livre e igualitário, entre os atores e na tomada de opiniões e decisões, no sentido de alcançar um entendimento; e os atores são todos os indivíduos ou grupos sociais, tais como, dirigentes comunitários, representantes de quaisquer segmentos sociais, lideranças das diversas entidades desenvolvidas políticas e sociais, integrantes dos Conselhos etc. que participam do debate e da tomada de decisão das políticas públicas.

Neste sentido, é salutar estabelecer algumas condições concernentes ao espaço público, à ação e aos atores, as quais são fundamentais para que o OP possua o viés democrático. Ressalta-se que o presente trabalho não tem a ousadia de identificar todas as condições necessárias ao ideal democrático, mas destacar algumas condições consideradas primordiais.

No aspecto do espaço público, destaca-se o nível de organização da própria esfera pública. A Administração Pública deve manter uma estrutura administrativa específica para a organização do OP, assim como ocorre na experiência de Porto Alegre que envolve a Coordenadoria de Relações com a Comunidade, a Coordenadoria de Planejamento Estratégico e Investimentos e a Coordenadoria de Orçamento; fazer uma relevante mobilização da sociedade civil para participar do debate; ofertar um espaço físico adequado para o debate; proporcionar condições materiais para a participação popular, garantindo locomoção, alimentação, instrução técnica etc.

Ressalta-se que a sociedade possui dificuldade em compreender as disposições orçamentárias em face do desconhecimento da linguagem técnica, da falta de clareza e informatização dos dados e da ausência de instrução técnica por parte da Administração Pública. Logo, é essencial que a Administração Pública utilize dentro do espaço público uma linguagem popular, no intuito de assegurar o agir comunicativo livre e igualitário entre os atores sociais, bem como instrumentos capazes de facilitar a compreensão das informações orçamentárias e o aspecto social destas, a título exemplificativo, cita-se a proposta de Ana Pellini (2004) de incluir indicadores sociais ao lado dos dados financeiros para melhor orientar as decisões quanto à aplicação dos recursos públicos.

A esfera pública do OP deve gozar de instrumentos que facilitem e incentivem o amplo debate das demandas sociais, no intuito de que no momento da escolha das prioridades das ações governamentais, todos os atores envolvidos tenham clareza e discernimento dos efeitos socioambientais desta preferência.

As condições socioeconômicas e demográficas, a situação financeira e a capacidade técnica e gerencial dos entes locais são essenciais para a consolidação do cunho democrático do OP. Tanto é verdade que a difusão dessa experiência na esfera governamental local se deu logo após a descentralização financeira e política do Estado brasileiro, beneficiando, sobretudo, os municípios, os quais passaram a ter mais poder político e recursos financeiros para inovar em novas formas de gestão democrática, como a experiência do OP (SOUZA, 2001).

Além disso, também é condição de eficácia do OP a ideologia do partido político que o implementa. Como dito, o orçamento participativo deve ser um instrumento que tem como objetivo colher as demandas sociais prioritárias da comunidade local a partir da participação do povo no debate e na tomada de decisão, logo, a ideologia da Administração Pública que conduz o espaço público passa a ser determinante na forma que se dará a sua implementação. Essa experiência somente pode ser considerada uma alternativa de mudança se a ideologia/racionalidade empregada contrapor à ideologia/racionalidade ocidental hegemônica. Deste modo, é essencial evitar o clientelismo e o elitismo nesse espaço público, sendo criados instrumentos que assegurem a participação, livre e igualitária, de qualquer cidadão.

Acrescenta-se, ainda, que o compromisso governamental é outra condição para que o OP realmente consolide a democracia. Compreende-se como compromisso governamental "a existência de um comprometimento efetivo de forças políticas ocupantes do governo em respeitar e atender as deliberações resultantes dos processos participativos" (MOURA, 2007). Observa-se, muitas vezes, que as demandas absorvidas pelo sistema político acabam não sendo executadas ao longo do governo, gerando dúvidas sobre a credibilidade do OP. Outro exemplo que demonstra a falta de compromisso governamental é o baixo investimento público nas demandas resultantes do OP, o que torna ineficaz todo o processo desenvolvido. [04]

Assim como acontece em outras esferas públicas, tem-se que ter cuidado com a manipulação do debate e da deliberação do orçamento participativo pela Administração Pública, no intuito de atender interesses da elite dominante. Isto porque é cediço que as deliberações resultantes de um suposto processo participativo do povo produz um peso democrático demasiado influente dentro do Poder Legislativo, o que tende a ser acolhido por este sistema político.

Logo, outra condição essencial para o procedimento do orçamento participativo consiste no método adotado para estabelecer a relação entre governo e comunidade, sendo fundamental a forma de escolha dos delegados e seu perfil socioeconômico, a organização administrativa responsável pela execução do espaço público, a forma de apresentação e escolha das demandas, o papel dos delegados etc.

Deste modo, adentra-se nos aspectos da ação (agir comunicativo) e dos atores da experiência do OP, merecendo atenção a forma que se dará a discussão e a condução do agir comunicativo em prol de um entendimento e o perfil dos atores envolvidos, para consolidação da democracia participativa.

Em relação ao agir comunicativo, este deve integrar instrumentos que assegurem a liberdade e a igualdade de participação dos atores sociais, tais como, uma linguagem adequada, a transparência e a clareza dos dados orçamentários e dos critérios do debate, a problematização das demandas sociais, ressaltando as consequências socioeconômicas e ambientais das escolhas das prioridades, como já demonstrado acima.

Enquanto no que pertine aos atores, entende-se que apenas um quórum elevado de atores nas reuniões ou assembleias do OP não é suficiente para alcançar a legitimidade das decisões comunitárias, sendo essencial o nível de representatividade social desses atores, no intuito de alcançar uma legitimidade democrática. O ideal democrático seria que todos os segmentos sociais fossem representados, mas diante da dificuldade de se alcançar esse objetivo até mesmo em países desenvolvidos, deve-se buscar no orçamento participativo a participação do maior número possível de segmentos sociais.

Tal fator está estritamente vinculado ao nível político da sociedade, visto que quanto mais politizada for a sociedade, maior a participação popular nesses tipos de espaços públicos. Logo, o sucesso do orçamento participativo, como alternativa de mudança social, depende do nível de politização da sociedade ou de emancipação social e, por consequência, depende também do nível de educação da sociedade.

A emancipação social e autonomia dos atores sociais nas esferas públicas são condições essenciais para o sucesso democrático do OP e, ao mesmo tempo, limites à concretização democrática desse instrumento, sobretudo, se o objeto em análise se situa em países periféricos, cujas condições socioeconômicas e, em especial o nível de educação, são baixos.

Segundo Olinda Malato (2006), pautada nos ensinamentos de Hobsbawm, o investimento e a socialização da educação colaboram na capacidade reflexiva da sociedade e, por conseguinte, amplia o espaço político com a presença de novos segmentos sociais, a exemplo da presença de mulheres na esfera política, cuja predominância é de homens.

Isto vislumbra a importância da análise antropológica dos atores sociais, sendo relevante a identificação da etnia, gênero e condição socioeconômica, no intuito de abarcar as mais variadas demandas dentro de uma sociedade heterogênea e multicultural, como a sociedade brasileira, alcançando os interesses dos movimentos de mulheres, dos índios que vivem na zona urbana, dos negros, dos seringueiros, dos pescadores, dos quilombolas etc.

Neste sentido, considera-se essencial a análise antropológica dos atores do espaço público, pois será determinante na qualidade e legitimidade da escolha das políticas públicas e, por conseguinte, no modelo de desenvolvimento a ser implantado.

Em contraposição ao modelo de desenvolvimento, denominado de desenvolvimentista, dominante no sistema capitalista, o qual privilegia o crescimento econômico em detrimento dos demais setores sociais, entende-se ideal que no espaço público de construção do orçamento participativo participem diversos tipos de atores, seja no aspecto de etnia, cor, gênero etc., no intuito de compor uma esfera pública heterogênea e multicultural, legitimando os anseios dos diversos segmentos sociais e garantindo a construção de um desenvolvimento que preserve o patrimônio cultural, social e natural de específica sociedade (RAMALHO FILHO, 1999).

Neste espaço público o mundo de vida dos atores deve adentrar através de suas demandas, garantindo um resultado democrático nas deliberações das políticas públicas, capaz de garantir um etnodesenvolvimento, ou seja, a construção do futuro pela manifestação dos diversos segmentos sociais, aproveitando os ensinamentos decorrentes de sua experiência histórica, os seus recursos naturais e as suas potências culturais, segundo seus próprios valores e aspirações, resgatando a sua identidade e cultura e preservando o seu meio-ambiente (RECASENS, 2000).

O OP pode ser um espaço público para conhecer os diversos interesses e necessidades de uma determinada sociedade multicultural e heterogênea, identificando até mesmo, segundo as necessidades e as demandas da população, as potencialidades de um desenvolvimento endógeno, averiguando a aptidão econômica local, de acordo com a especificidade do território, formado pelos conhecimentos tácitos, culturais e históricos próprios, gerando a melhoria da qualidade de vida da população (BARQUERO, 2002).

É essencial nesse espaço público o respeito ao conhecimento tácito dos diversos segmentos sociais, no intuito de orientar decisões por políticas públicas que respeitem os patrimônios social, cultural e natural de determinada localidade, visando o alcance de um etnodesenvolvimento. O conhecimento tácito é compreendido como uma ciência concreta, moldes da concepção defendida por Lévi-Strauss (1976), que possui a mesma legitimidade que o conhecimento científico, bem como colabora na construção de um desenvolvimento que preserva a identidade e a cultura local.

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É muito comum nos espaços públicos a preferência por políticas e ações governamentais que não respeitam os interesses e a identidade cultural e natural local, em detrimento de um modelo de desenvolvimento capitalista, a exemplo, da implantação de hidroelétricas, a exploração de minerais, a criação de gados, a extração de madeira etc., muito comuns na Amazônia, os quais causam diversos problemas socioambientais, como mudanças climáticas, perda de parcela da biodiversidade, o remanejamento de populações tradicionais ou até mesmo o seu aniquilamento, em prol da lucratividade do fator produtivo (SIMONIAN, 2007).

Deste modo, o OP pode ser uma alternativa de espaço público que pode garantir o estabelecimento de políticas e ações governamentais que atendam aos interesses dos diversos segmentos locais, em contraposição à política que predomina nos espaços públicos tradicionais, pautado, em regra, na lógica desenvolvimentista.

Estas são apenas algumas condições vislumbradas como essenciais para que haja legitimidade das decisões do OP e, portanto, promova a consolidação da democracia participativa, fator precípuo para que este instrumento seja considerado uma alternativa disponível de mudança social em uma sociedade moderna globalizada.

Ademais, cumpre destacar os limites ao sucesso do orçamento participativo como uma alternativa de mudança social. Neste sentido, o padrão de desigualdades econômicas e sociais dos entes federativos pode causar algumas barreiras inevitáveis à concretização da democracia participativa. Weffort (Apud DUPAS, 2005) já afirmava na década de 90 do século XX que "a consolidação da democracia dependerá também da sua eficácia para resolver problemas econômicos e sociais".

Deste modo, o grau de concretização do viés democrático do OP e, por conseguinte, de resistência ao sistema capitalista global vai depender das condições socioeconômicas e políticas do país e da localidade, como o nível de educação, de politização e emancipação da sociedade, e de capacidade financeira para investir nessa experiência.

Assim, o OP na realidade brasileira possui limites decorrentes do fato de a sociedade ser caracterizada por uma alta concentração de renda, uma elevada desigualdade regional, uma ampla parcela da população na escala de pobreza e miséria, baixo nível de educação e de emancipação social. Apenas para se ter uma ideia, o Estado brasileiro possui um baixo índice de desenvolvimento humano, ocupando a 70ª posição em uma lista de 177 países no Índice de Desenvolvimento Humano, indicador pautado em três fatores – PIB per capita, longevidade e educação, criado pelo economista indiano Amartya Sem (RELATÓRIO PNUD, 2007).

Diante desse contexto social e considerando, ainda, que o Brasil é um país que passou recentemente por um processo de redemocratização, vislumbra-se que o desafio para eficácia do OP é bem maior no Brasil do que em relação aos países desenvolvidos.

Chama-se atenção, ainda, que o Brasil, por ser um país que possui, historicamente, elevado grau de desigualdade regional, gerando dicotomias de regiões centrais e periféricas entre Norte/Nordeste x Sul/Sudeste, a implementação da experiência do OP entre entes federativos locais, varia muito. O aspecto cultural e o político de cada município também colabora na diversidade de experiências do OP na realidade brasileira, pois há regiões que resguardam a sua identidade cultural mais do que outras, e há municípios que têm uma história forte de luta social e, por conseguinte, possuem movimentos sociais e políticos mais consolidados do que nos demais entes políticos.

Logo, cada experiência do OP deve ser analisada de acordo com as peculiaridades sociais, econômicas, culturais, políticas e ambientais de cada ente federativo (AVRITZER, 2008).

Portanto, a hipótese levantada de que o Orçamento Participativo pode ser uma medida de resistência ao sistema capitalista global, ou melhor, uma alternativa disponível de mudança social, vai depender concretamente da análise das experiências locais, de acordo com as suas circunstâncias peculiares; no entanto, acredita-se que existe a potencialidade. Tanto é verdade que o OP é o instrumento de participação popular de maior referência para o mundo. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU, 2008) a experiência é uma das 40 melhores práticas de gestão pública urbana no mundo. Trata-se de um canal democrático que, ainda que não consiga alcançar o ideal da democracia participativa e deliberativa, é capaz de transferir algumas demandas sociais de atores pouco influentes na sociedade para o sistema político.

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Sobre a autora
Karla Marques Pamplona

Assessora da Casa Civil da governadoria do Estado do Pará. mestra em direitos fundamentais e relações sociais e doutoranda no programa de desenvolvimento do trópico úmido do núcleo de altos estudos da Amazônia da Universidade Federal do Pará

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAMPLONA, Karla Marques. Orçamento participativo: alternativa disponível de mudança social no contexto de uma sociedade moderna globalizada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2429, 24 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14398. Acesso em: 25 dez. 2024.

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