RESUMO: Este trabalho aborda a possibilidade de construção de espaços públicos democráticos, ao discutir a viabilidade do Orçamento Participativo como uma alternativa disponível de mudança social em uma sociedade moderna globalizada. Neste sentido, discute-se a relação entre sociedade moderna globalizada e mudança social e a concepção de Orçamento Participativo em um Estado Democrático de Direito, como instrumento de consolidação de direitos fundamentais sociais e da democracia participativa. Por fim, analisam-se as condições necessárias para que o Orçamento Participativo seja considerado uma alternativa de mudança social no contexto de um mundo globalizado, destacando a interação e a comunicação na esfera pública política e o perfil dos atores sociais que a integram; e os limites dessa concepção na sociedade brasileira.
Palavras-chave: ORÇAMENTO. ORÇAMENTO PARTICIPATIVO. ESPAÇO-PÚBLICO DEMOCRÁTICO.
INTRODUÇÃO
Este trabalho analisa a construção de espaços públicos democráticos na atual sociedade brasileira, através da experiência do Orçamento Participativo (OP) e questiona a possibilidade do OP ser uma alternativa disponível de mudança social em um mundo globalizado.
Deste modo, discute-se a possibilidade de mudança social no contexto de uma sociedade moderna globalizada, como o caso da sociedade brasileira, destacando as características essenciais do sistema capitalista global e os malefícios socioambientais, econômicos e culturais causados, preferencialmente, nos países periféricos, e a necessidade de análise de experiências sociais locais que se contraponham à racionalidade ocidental hegemônica.
Posteriormente, aborda-se o OP no contexto jurídico-político do Estado brasileiro, ressaltando o seu surgimento e a sua concepção na vigente Constituição Federal de 1988, e o seu escopo de consolidação da democracia participativa e de direitos fundamentais sociais, com base no ideário do etnodesenvolvimento.
Por fim, questiona-se a hipótese levantada neste trabalho se o OP é uma alternativa disponível de mudança social no âmbito de uma sociedade moderna globalizada, dominada pela racionalidade ocidental hegemônica, detalhando algumas possíveis condições necessárias e os limites dessa compreensão na sociedade brasileira.
1 SOCIEDADE MODERNA GLOBALIZADA E MUDANÇA SOCIAL
Hodiernamente, início do Século XXI, vive-se em uma sociedade moderna, com a hegemonia do capitalismo global e do fenômeno do neoliberalismo, cujo cenário o Brasil, assim como toda América Latina, está inserido.
Em que pese alguns denominem o contexto atual como "pós-modernidade", a exemplo do autor Jean-François Lyotard, o qual popularizou essa expressão mediante a publicação da obra "The Post-Modern Condition" em 1985, acredita-se que a sociedade atual passa por um processo de intensificação da "modernidade".
A noção de pós-modernidade, a exemplo de Lytoard, está comumente vinculada ao pensamento evolucionista (espaço-tempo linear), característico da racionalidade ocidental hegemônica, o qual acredita e defende a ideia de que há um progresso planejado humanamente, como se o futuro fosse predizível; bem como implica uma ideia básica de que a sociedade está caminhando para um novo tipo de ordem social, com diferença específica em relação à modernidade. No entanto, o que se observa é que a sociedade hodierna não caminha para uma nova ordem social, mas para um processo de intensificação dos elementos da modernidade, apoiado pela racionalidade ocidental hegemônica (GIDDENS, 1991).
Neste processo de modernização, a "secularização" é um dos componentes essenciais e se caracteriza pelos seguintes fatores: (i) mudança do tipo de ação social, da ação preceptiva à ação eletiva; o ator passa a ter um maior grau de eletividade ou liberdade individual, em substituição da prescrição de uma linha de conduta fixa; (ii) a transição da institucionalização da tradição à institucionalização da mudança, em que a mudança passa a ser constante e habitual; (iii) maior grau de diferenciação e especialização institucional, sendo tendência da sociedade a progressiva especialização das estruturas sociais; (iv) maior mobilidade da estratificação social, surgindo uma estrutura de classe supostamente aberta, limitada pela desigualdade de oportunidades e de acesso entre os atores sociais; (v) a laicização e a organização racional do Estado; (vi) a introdução da racionalidade na família, a exemplo do controle de natalidade; entre outros. Estas mudanças afetam a sociedade no nível psicossocial, modificando as atitudes e os comportamentos dos atores sociais; e no nível normativo, atingindo as instituições, os valores, as categorias sociais, as leis e outras normas (GERMANI, 1992).
Chama atenção na modernidade o ritmo frenético da mudança, a interconexão global que faz com que ocorra a transformação social virtual no mundo e a natureza intrínseca das instituições modernas, como o Estado-Nação e a cidade-moderna, que só se encontra nesse período. Giddens (1991) denomina esse conjunto de fatores de "descontinuidade da modernidade", a qual promove o desenvolvimento de mecanismos de desencaixe, em que a sociedade é obrigada a se reorganizar constantemente, retirando-se do contexto local para se adaptar ao contexto global, através de grandes distâncias de tempo-espaço; e, por conseguinte, exige também da sociedade uma apropriação reflexiva do conhecimento, pois a cada mudança social produz-se um novo conhecimento sistemático sobre a vida social.
O sistema capitalista global proporciona intensa e habitual mudança dos campos sociais (ciência, tecnologia, cultura etc.), atingindo os países e os domínios sociais interligados e impondo um ritmo frenético de descontinuidade, em que a sociedade se adapta às circunstâncias para manter a racionalidade hegemônica.
A sociedade moderna é fruto do pensamento ocidental hegemônico e do sistema capitalista global, este caracterizado pela economia de mercado livre que se funda no mito da soberania do consumidor, no qual os consumidores fazem suas escolhas livremente no mercado. Vige a ideia de que o mercado é o único mecanismo racional de afetação de recursos escassos a usos alternativos. Logo, são afastadas quaisquer motivações que não podem ser avaliadas mediante o padrão da medida da moeda, como a compaixão, a solidariedade ou a amizade (NUNES, 2003).
O capitalismo global surgiu (primeira onda) no século XV com as viagens oceânicas dos portugueses e depois ressurgiu (segunda onda) no século XIX com a segunda revolução industrial, promovendo a concorrência entre os capitalismos nacionais poderosos em busca de espaço vital, o que resultou nas duas guerras mundiais do século XX; e, atualmente, (terceira onda) é reinante no século XXI, mediante a quebra das barreiras entre as nações e um ritmo acelerado do crescimento econômico. É um fenômeno complexo que se traduz, essencialmente, na criação de um mercado mundial unificado, resultante do desenvolvimento da tecnologia dos meios de comunicação e de transporte. Determina-se pelo domínio do capital financeiro, o qual permite aos grandes conglomerados transnacionais investir em outros países, visando à maximização do lucro, e facilita o empréstimo de créditos financeiros, sendo fundamentais três características: a desintermediação, a descompartimentação e a desregulamentação.
É também um fenômeno cultural e ideológico, pois os países centrais, beneficiados pelo neoliberalismo, propagam no mundo uma ideologia de massificação dos padrões de consumo e de felicidade que se impõem à sociedade local, anulando-se a diversidade cultural e a identidade nacional. Conforme Arjun Appadurai (2002), no atual sistema capitalista há uma imposição da economia cultural global, a qual gera a propagação e a internalização da cultura americana em diversas nações, a japanização na Coreia, a indianização em Sri Lanka, a russianização no povo da Armênia soviética e da República Báltica etc.
Destaca-se a propagação de um discurso de desenvolvimento pautado no economicismo, no eurocentrismo e no reducionismo, em que a racionalidade ocidental é o parâmetro para medir os países nas dicotomias ideologizantes progresso/atraso e desenvolvido/subdesenvolvido. O economicismo é visualizado na centralidade do discurso da teoria econômica neoclássica, a qual identifica o desenvolvimento como crescimento econômico e propagação da economia de escala como se fosse a única alternativa viável no mercado; isto leva a um reducionismo da concepção de desenvolvimento, haja vista que o compreende como um fenômeno identificável unicamente pelas variáveis quantitativas, ignorando a desigualdade social, a diversidade cultural etc., como bem assevera Viola Recasens (2000).
Deste modo, a fenômeno neoliberal põe em risco a identidade e o simbolismo do patrimônio cultural local, regional e nacional, em face da hegemonização cultural, impondo valores de uma cultura europeia e americana, compreendida como mundial. O acatamento desses valores virtuais e globais provoca a "morte da tradição" e o desenvolvimento de segregações e frustrações sociais, pois os desejos criados pela sociedade de consumo não são satisfeitos por todos, muito pelo contrário, apenas uma minoria é capaz de manter um padrão de consumo elevado, o que gera, inevitavelmente, conflitos sociais (RAMALHO FILHO, 1999).
A globalização implica, ainda, a redução do papel do Estado, tendo em vista que se desincentiva a sua intervenção na economia e incentiva a privatização de setores públicos, no intuito de assegurar a maior liberdade do mercado e da vida econômica. Exemplo clássico é o Consenso de Washington que influenciou a privatização de serviços públicos fundamentais à sociedade nos países da América Latina, como o Brasil, a Argentina e a Bolívia. Logo, são comuns medidas de reforma do Estado, responsabilização dos gastos públicos, flexibilização de direitos trabalhistas, redução ou isenção de impostos sobre exportações e importações etc., comprometendo a soberania da nação. Deste modo, o modelo ocidental vem de encontro com a reconstrução internacional da concepção de direitos humanos, sobretudo, os de segunda e terceira dimensões, os quais demandam uma conduta positiva do Estado de realização de políticas públicas sociais para garantia de uma vida digna aos seus cidadãos.
Tais elementos caracterizam o neoliberalismo como um fenômeno hegemônico na sociedade atual que promove mudanças a nível mundial na organização estatal, na economia, na informação, na cultura, na política, no meio ambiente, no direito etc. e apenas as regiões centrais são capazes de extrair as vantagens da globalização, em detrimento das regiões periféricas. Assim, intensifica a concentração de renda, a miséria, colabora na desigualdade regional e dificulta a promoção do desenvolvimento humano equitativo mundial. Os países, cada um na sua medida, sofrem com mazelas sociais, ecológicas, ambientais etc.
Na América Latina, inclusive no Brasil, o neoliberalismo atinge os segmentos social, econômico, ambiental, cultural e político, intensificando a desigualdade regional e a miséria. Chama-se atenção à fragilidade decorrente do comprometimento de parcela considerável de recursos que se destina ao pagamento dos juros e amortização de suas dívidas externa e interna, reduzindo a sua capacidade de indução ao desenvolvimento regional. Assim, desencadeiam-se processos de exclusão social, tais como, "os sem-classe, sem terra, sem informática, sem teto, sem comida, sem trabalho etc." (DUPAS, 2005), atingindo, sobretudo, a juventude; e movimentos sociais de resistência à globalização neoliberal, promovendo novos conflitos sociais, como o Movimento dos Sem Terra (MST) no Brasil (SANTOS, BAUMGARTEN, 2005).
No Brasil, também se considera o desequilíbrio fiscal marcado pela centralização do poder fiscal na União e o problema da guerra fiscal entre as entidades subnacionais pela busca de investimentos de multinacionais que, em regra, proporcionam a redução da carga fiscal destes, em face dos incentivos fiscais acordados, a flexibilização de salários e diversas mazelas socioambientais e ecológicas, diante da ausência da responsabilização das grandes empresas pelo custo social provocado na localidade (CARVALHO, 2005).
Diante desse contexto, os debates nos diversos campos da ciência, sobretudo das ciências sociais, passam a se centrar na seguinte problemática: quais são as possibilidades de mudança social no contexto de um sistema capitalista global?
A crise social provocada pelo capitalismo e pela globalização neoliberal conduz o debate à busca de novos saberes e de alternativas disponíveis e possíveis a esse mundo globalizado, exigindo responsabilidade dos atores no sentido de propor alternativas às políticas neoliberais. Deste modo, passam a ser temas centrais da ciência e da filosofia: o fortalecimento das democracias a nível nacional, a solidariedade entre os países da periferia, alternativas de sustentabilidade do desenvolvimento, o etnodesenvolvimento, a consolidação dos direitos humanos, a economia solidária, o papel ativo dos movimentos sociais etc.
Recentemente, com o advento da crise mundial do capital financeiro, que atingiu, preferencialmente, os países desenvolvidos, e, indiretamente, os países periféricos, intensificando os problemas sociais e econômicos desses países, inclusive do Brasil, põe-se em cheque a legitimidade desse modelo capitalista global hegemônico e fortifica-se a investigação de um novo padrão de desenvolvimento e de alternativas de mudança social a esse sistema.
Neste sentido, é salutar a análise de experiências sociais locais que fujam da lógica da racionalidade ocidental, como vem fazendo Boaventura de Sousa Santos (2002). Isto porque, segundo ressalta o referido autor, a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera e está sendo desperdiçada, pois a racionalidade ocidental hegemônica, denominada de razão indolente, esconde-as ou não as considera.
Deste modo, faz-se mister a releitura do espaço-tempo, ampliando o presente, para reconhecer diferentes práticas e saberes sociais locais, chamadas de "alternativas disponíveis", e contraindo o "futuro", para analisar as expectativas sociais e detectar as "alternativas possíveis", nos termos da epistemologia de Boaventura.
Buscam-se alternativas disponíveis ou possíveis que demonstram a possibilidade de construção de um desenvolvimento que se afaste das perspectivas do economicismo, do eurocentrismo e do reducionismo, e siga a linha de concepção do etnodesenvolvimento, assim definido por Viola Recasens (2000) como:
"el ejercicio de la capacidad social de un pueblo para construir su futuro, aprovechando para ello las enseñanzas de su experiencia histórica y los recursos reales y potenciales de su cultura, de acuerdo con un proyecto que se defina según sus propios valores y aspiraciones".
A mudança social implica a investigação de saberes e práticas sociais locais que construam um modelo de desenvolvimento que assegure a preservação da cultura, da identidade e do meio ambiente local, regional e nacional, isto é, do seu patrimônio cultural, natural e social. Cumpre esclarecer que a noção de patrimônio não está vinculada apenas à proteção de bens tangíveis, tais como, sítios históricos, obras de arte, biodiversidade etc., mas, sobretudo, de bens intangíveis, como tradições, valores, saberes locais, consciência ecológica, conhecimentos tradicionais etc. Logo, trata-se de uma "construção social, reunindo indivíduos e grupos em torno de um sentimento de identidade, de uma entidade coletiva, abstrata, mas visível pelos bens e símbolos preservados e mesmo sacralizados por aqueles que aí se reconhecem" (RAMALHO FILHO, 1999).
Seguindo essa linha de pensamento, este trabalho objetiva analisar a experiência social denominada de Orçamento Participativo, no intuito de verificar (i) quais as condições necessárias para que se considere uma alternativa disponível de mudança social no mundo capitalista neoliberal; e (ii) quais os seus limites para alcançar tais objetivos.
2 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO E ORÇAMENTO PARTICIPATIVO
O Brasil, assim como outros países da América Latina, passou por quase duas décadas de autoritarismo, no período do regime militar, no qual os direitos constitucionais dos cidadãos foram desrespeitados, pondo em ineficácia a Carta Política da época.
Todavia, na década de 80 do século XX, após lutas sociais e a formação de um consenso na sociedade brasileira em prol do resgate de instituições democráticas e da dívida social, iniciou-se um processo de redemocratização, que resultou na composição de uma Assembleia Nacional Constituinte que tinha como compromissos primordiais (i) promover a descentralização política e financeira e (ii) consolidar a democracia, por meio do empoderamento das comunidades locais no processo decisório de políticas públicas (SOUZA, 2004).
Assim, surgiu a Constituição Federal brasileira de 1988, estabelecendo o Brasil como um Estado Democrático de Direito, garantindo variados instrumentos de concretização da democracia (representativa e participativa), um elevado grau de descentralização política, administrativa e fiscal, diversos direitos fundamentais civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e difusos, além de outras disposições (SOUZA, 2004; ABRUCIO, 1999; STRECK, 2004).
Neste parâmetro constitucional, o orçamento adquire aspecto instrumental e axiológico, isto porque passa a ser um instrumento dinâmico do Estado perante a sociedade, para consolidação da democracia e de direitos fundamentais sociais; sendo inconcebível a sua compreensão como um mero documento financeiro ou contábil, de caráter estático.
Os entes federativos (União, estados, distrito federal e municípios), através do orçamento, fixam os seus objetivos socioeconômicos e estipulam as suas ações governamentais preferenciais, mediante a participação do Poder Executivo e do Poder Legislativo.
A ordem jurídica vigente configura a concepção de "orçamento-programa" (SILVA, 2000), isto é, o orçamento passa a ser compreendido como um "sistema de planejamento estrutural", o qual integra a política socioeconômica e a política fiscal. A Constituição da República, nos arts. 70 a 75 e 165 a 169, estabelece verdadeiro "Estado Orçamentário" (TORRES, 2004) que envolve o planejamento, a programação e o orçamento em sentido estrito, introduzidos, respectivamente, através dos veículos introdutores Lei do Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA).
O Plano Plurianual é o projeto de ação governamental elaborado no primeiro ano de governo que deve estabelecer de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital (investimentos, inversões financeiras e transferências de capital) e outras delas decorrentes e para as relativas dos programas de duração continuada (obras, planos e ações que ultrapassam o prazo de 01 ano), obtendo vigência de 04 anos.
A Lei de Diretrizes Orçamentárias, por sua vez, define a política de aplicação dos recursos públicos. Compreende as metas e prioridades da administração, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orienta a elaboração da lei orçamentária anual, dispõe sobre as alterações na legislação tributária e estabelece a política de aplicação das agências financeiras de fomento. Deve ser o elo entre o plano plurianual e a lei do orçamento anual.
Já a Lei Orçamentária anual é o veículo em que são, efetivamente, alocados os recursos orçamentários para sua realização. É mediante a Lei Orçamentária anual que o Executivo e o Legislativo definem, efetivamente, a política socioeconômica e fiscal, ao detalhar e especificar a aplicação da receita pública, elegendo os direitos sociais a serem concretizados preferencialmente.
As Leis Orçamentárias são, portanto, normas de conduta e de organização que delimitam os direitos fundamentais sociais preferenciais e as políticas sociais a serem executadas na sociedade brasileira, e, por tal motivo, constituem-se em instrumentos basilares para a concretização do Estado Democrático de Direito.
O orçamento-programa surge na Constituição Federal de 1988, no intuito de consagrar a democracia, desta forma, o PPA, a LDO e a LOA são apresentadas pelo Executivo e apreciadas pelo Legislativo e podem ter a participação direta do povo.
Tendo por base o parâmetro do Estado Democrático de Direito, o orçamento deve ser um canal democrático, já que necessita retratar os compromissos políticos e o sentimento de cidadania (SUSTEIN, 1994). É o povo, direta ou representativamente, que deve deliberar quais são os direitos fundamentais sociais e as políticas sociais a serem priorizados, segundo as necessidades públicas prementes. Esse viés democrático do orçamento fornece dimensão valorativa às prestações positivas do Estado brasileiro.
Neste sentido, as políticas públicas determinadas nas leis orçamentárias passam a ser vinculantes à Administração Pública; são elas argumentos de política convertidos em princípios (DWORKIN, 2002). Não executá-las promove violação à Constituição da República e ao Estado Democrático de Direito. [01]
A democracia brasileira hodierna, além de representativa, é participativa, de tal modo que o povo, mediante associações e demais órgãos da comunidade, pode participar na elaboração do orçamento (planejamento e orçamento participativo) e até mesmo no controle de sua execução.
A Carta Política de 1988 foi muito além de estabelecer princípios democráticos, pois regulamentou diversos institutos participativos na Administração Pública, por exemplo: (i) Art. 14, incisos I a III – estabelece o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular para apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados; (ii) Art. 29, X - prevê a cooperação das associações representativas no planejamento municipal; (iii) Art. 37, §3°. - disciplina a participação popular na administração pública direta e indireta, através de reclamações, representações e acesso a registros e informações administrativas; (iv) Art. 74, §2° - estabelece que qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União; (v) Art. 187 – determina que a atividade administrativa de planejamento de política agrícola será executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais e os setores de comercialização, armazenamento e transportes; etc.
Além das disposições constitucionais, percebe-se, na atualidade, que cada vez mais cresce o número de leis infraconstitucionais brasileiras regulando espaços públicos de discurso entre a sociedade e a Administração Pública, compartilhando a tomada de decisões políticas dos entes federativos, objetivando o fortalecimento da democracia brasileira (PEREZ, 2006).
O Orçamento Participativo consiste em um desses mecanismos de participação direta dos cidadãos na decisão da escolha das políticas públicas locais. Este instrumento surgiu no Brasil por iniciativa dos governos locais, não sendo induzido por legislação federal ou organismos multilaterais. Após a redemocratização do Brasil, os municípios passaram a ter mais recursos financeiros e poder político diante da descentralização financeira e política delimitada na Carta Política de 1988, promovendo um cenário propício para experiências democráticas locais (SOUZA, 2001).
A experiência pioneira foi realizada em Lages em Santa Catarina, no final dos anos 70, e se propagou após a redemocratização brasileira nos demais municípios do Estado brasileiro: (i) 1986-1988 - 02 cidades; (ii) 1989-92 - 12 cidades; (iii) 1993-96 - 36 cidades; (iv) 2000 - 140 cidades (FNPP, 2002; SOUZA, 2004).
A difusão dessa experiência deve-se, sobretudo, à divulgação do OP executado em Porto Alegre - Rio Grande do Sul, sob a administração municipal do Partido dos Trabalhadores; considerada como uma das melhores experiências democráticas no Brasil.
As experiências existentes nos municípios brasileiros de OP são, em regra, uma iniciativa de governos locais do Partido dos Trabalhadores, pautada na ideologia de fortalecimento da democracia, buscando o aumento da eficiência da Administração, no sentido de alcançar as necessidades reais da sociedade civil. [02]
Deste modo, o OP é reflexo de uma experiência da democracia participativa e também de um ideal de democracia deliberativa, em que os atores, os grupos sociais e a coletividade, livres e iguais, discutem racionalmente as ações governamentais preferenciais (AVRITZER, 2008; GOULART, 2006).
Busca-se um "espaço público", em que há uma estrutura organizacional do agir orientado pelo entendimento, isto é, uma rede de comunicação de conteúdos, com tomadas de posições e opiniões, onde a sociedade civil e a Administração Pública decidem quais as ações governamentais que serão executadas na localidade (HABERMAS, 2003:96).
Segundo Habermas (2003:107-108), em sociedades complexas a esfera pública é uma estrutura intermediária entre o sistema político e os setores privados do mundo da vida. Deste modo, no âmbito do debate, o mundo da vida, isto é, o conjunto de tradições (sistema cultural), conteúdos compartilhados por um grupo social e processos de socialização, interação e aprendizagem, é considerado pelos atores na construção de seus argumentos, os quais, sintetizados e enfeixados em temas específicos, podem ser compreendidos como opiniões públicas e integrados pelo sistema político.
É importante a internalização do mundo da vida dos atores no debate dentro do espaço público, no intuito de alcançar os diversos interesses de uma sociedade heterogênea e multicultural, como a brasileira; sobretudo, quando se pretende, através do instrumento OP, alcançar um modelo de desenvolvimento que assegure o patrimônio cultural, social e natural de determinada sociedade.
Com base nesse ideário, o Orçamento Participativo pode ser compreendido como um espaço público de grande relevância, pois oferece a oportunidade do povo participar diretamente no debate e na tomada de decisão sobre as políticas públicas a serem executadas pela Administração Pública. O que é algo novo, pois é comum nos espaços públicos o domínio do debate pelas elites locais, as quais possuem influência de tornar os seus interesses em opiniões públicas e daí serem acolhidas pelo sistema político. Em regra, os atores com pouca influência na sociedade, tais como, movimentos sociais, entidades da sociedade civil, não conseguem participar desses espaços públicos e transformar suas demandas sociais em opiniões públicas e, por conseguinte, serem atendidas pela Administração Pública.
Diante desse panorama, entende-se que o OP, por ser um instrumento que garante no seu espaço público a participação popular, promove a ampliação da política e contraria a lógica das outras esferas públicas, em que a participação predominante é da burguesia ou elites hegemônicas, prevalecendo os seus interesses e colaborando na perpetuação de seu poder. Em outras palavras, o OP vai de encontro à racionalidade sustentada por uma sociedade capitalista global, marcada pelo individualismo, pelo clientelismo e pelo elitismo (SOUZA, 2001).
Acredita-se que a abertura do debate ao povo, através de representantes de bairros, comunidades sociais, movimentos sociais ou políticos, dando oportunidade a todo e qualquer cidadão pobre ou rico, reduz a ingerência dos atores da burguesia ou elites dominantes na deliberação e na formação das opiniões públicas, garantindo uma maior horizontalidade no agir comunicativo e no entendimento, bem como seja propício para o resgate do patrimônio cultural, social e natural de específica sociedade.
Deste modo, acredita-se que a participação popular é uma medida disponível de resistência ao sistema capitalista global nos espaços públicos de tomada de decisões políticas, na medida em que pode promover um debate mais horizontal dentro da esfera pública, bem como pode ser um instrumento para construção de um etnodesenvolvimento.
No entanto, para que o OP se torne realmente democrático e seja considerado uma medida de resistência à racionalidade ocidental hegemônica não basta apenas a garantia formal da participação popular na esfera pública, é fundamental o emprego de uma racionalidade que se oponha à racionalidade ocidental hegemônica e, por conseguinte, um conjunto de condições, tais como, a garantia de liberdade e igualdade entre os atores, o grau de representatividade dos atores, a metodologia utilizada na construção do debate, o compromisso governamental etc., essenciais para que se alcance o objetivo democrático.
Além disso, devem ser consideradas as condições socioambientais e econômicas de cada realidade em que está sendo implementada a experiência do OP, as quais podem ser tornar facilitadores ou barreiras inevitáveis à concretização da democracia participativa.
Portanto, acredita-se que o OP pode ser uma medida de resistência ao sistema capitalista global, ou melhor, uma alternativa disponível de mudança social, todavia tal hipótese demanda a análise das condições necessárias para que o orçamento participativo seja assim considerado, bem como a delimitação dos seus limites em uma sociedade brasileira.