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Poder de polícia: uma nova abordagem

Poder de polícia: uma nova abordagem

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A atividade de polícia merece novo enfoque, conforme as exigências do Estado Social, sobretudo na concretização dos direitos fundamentais de terceira geração.

RESUMO: O presente trabalho foi realizado com o objetivo principal de mostrar uma nova forma de abordagem da atividade administrativa denominada poder de polícia, em razão do surgimento de críticas doutrinárias direcionadas principalmente ao significado da expressão que a identifica. A pesquisa foi desenvolvida através de consulta bibliográfica e interpretação de textos jurídicos e de outras ciências relacionadas ao tema, buscando também uma perspectiva histórica, sobretudo do conceito de Estado, o que permitiu concluir que independentemente da denominação utilizada, a atividade administrativa ora estudada merece ser entendida na atualidade sob um novo enfoque, que leve em consideração as exigências do Estado Social, sobretudo na concretização dos direitos fundamentais de terceira geração.

PALAVRAS-CHAVE: Poder de polícia. Estado Social. Direitos fundamentais.


INTRODUÇÃO

A atividade da Administração Pública que, dentro de parâmetros legais, impõe limites à liberdade e à propriedade dos indivíduos, em nome do interesse público, mais conhecida como poder de polícia, modificou-se ao longo do tempo acompanhando a evolução histórica do Estado.

Entretanto, talvez pela manutenção de uma visão equivocada do exercício do poder de polícia, vinculada a um determinado momento histórico, em que o Poder era exercido de forma absoluta, muitos continuam a entender essa atividade como um ato do Poder Público que pode ser exercido com arbitrariedade e com demonstração de força, ao arrepio de preceitos legais e constitucionais.

Nesse contexto, alguns autores da área do Direito Público passaram a defender um novo enfoque sobre o poder de polícia – havendo até os que sugerem a mudança de nomenclatura – que levasse em consideração uma sociedade organizada sob um Estado Democrático de Direito.

Desse modo, constata-se que é relevante repensar essa atividade estatal e adaptá-la aos novos tempos, em que a Administração Pública deve ir além da observância da legalidade de seus atos para respaldá-los, também, em princípios constitucionais, e, sobretudo, assumir um papel de respeito e de incentivo à efetivação dos direitos fundamentais.

O tema abordado no presente trabalho é de interesse dos estudiosos e operadores do Direito e também de toda sociedade, enquanto administrados.

Na realização da pesquisa que fundamenta o artigo foram utilizadas a compilação e a análise de texto, modalidades que mais se adaptaram aos objetivos pretendidos.

A compilação foi escolhida em razão de se pretender investigar opiniões dos estudiosos do ramo, assim como a evolução histórica da atividade e do conceito de Estado.

A opção pela análise de texto justifica-se em razão da discussão sobre a matéria ter sido travada com mais aprofundamento no campo doutrinário.


1 PODER DE POLÍCIA E ESTADO

A nova abordagem que vem sendo construída acerca do poder de polícia é fruto da atual configuração do Estado. Assim, para melhor elucidação do tema, é necessário fazer um breve relato da evolução histórica dessa instituição.

A partir do momento em que o homem fixou-se em um território e passou a desenvolver uma atividade econômica, surgiu a necessidade de estabelecimento de regras de convivência, visando evitar ou minimizar os conflitos que esse novo modelo de sociedade gerava.

Desse modo, ao longo do desenvolvimento histórico, surge o Estado como forma de organização social, que se mantém até hoje como elemento essencial da estrutura das sociedades modernas.

Dalmo Dallari (1995, p. 44) esclarece que para alguns estudiosos a idéia de Estado, significando uma sociedade política dotada de certas características muito bem definidas, como a soberania, só surge a partir do século XVII.

Note-se que durante o Absolutismo, o Estado, concentrado na figura do rei, era o detentor do poder de elaboração e aplicação das leis, um poder ilimitado, ao menos no plano terrestre, eis que sustentado numa vontade divina. A frase "O Estado sou eu", atribuída ao soberano francês Luís XIV, resume a forma como o poder político era exercido nesse período.

A origem moderna do Estado é fundamentada no pensamento de Jean Jaques Rousseau (1712-1778), que explicava suas origens a partir de um contrato social, firmado entre os indivíduos de uma sociedade e o poder local, onde os primeiros, diante do reconhecimento de sua impotência para conter os conflitos, abdicam de uma parcela de sua liberdade individual em benefício de toda coletividade.

Os estudiosos afirmam que a teoria contratualista está hoje superada como forma de explicar a origem do Estado, mas serviu de base para as revoluções burguesas, tanto na Europa como nos Estados Unidos, responsáveis pela formação do Estado Contemporâneo.

A partir desse período foi construída a idéia de um Estado fundamentado na lei (nessa época surgem as primeiras constituições), um ente abstrato, que produz leis e as impõe aos indivíduos, mas que a elas também deve se submeter, denominado Estado de Direito.

Esta nova noção de Estado passou a exigir mudanças nas relações entre o Poder Público e os particulares, que deveriam estar assentadas na lei, entendida esta como vontade geral.

No processo de consolidação desse novo Estado também se desenvolveu a noção de separação dos poderes, ou seja, de repartição das funções do Estado (elaborar as leis, executá-las e aplicá-las na resolução de conflitos) entre órgãos independentes entre si, com a finalidade de evitar concentração de poder.

Essa repartição de funções permitiu algo que não existia na outras concepções de Estado: o controle dos atos estatais através do Poder Judiciário.

Outra idéia inerente ao Estado de Direito é o seu nascimento a partir de uma Constituição, lei fundamental que organiza o Estado politicamente.

A Constituição, portanto, segundo a teoria de Kelsen (1998), é a lei maior de um país, e, portanto, todas as demais normas a ela devem se submeter, sendo expurgadas do mundo jurídico quando conflitantes com o novo ordenamento constitucional.

Sundfeld (2007, p. 38-39) conceitua Estado de Direito como aquele:

(...) criado e regulado por uma Constituição (isto é, por norma jurídica superior às demais), onde o exercício do poder político seja dividido entre órgãos independentes e harmônicos, que controlem uns aos outros, de modo que a lei produzida por um deles tenha de ser necessariamente observada pelos demais e que os cidadãos, sendo titulares de direitos, possam opô-los ao próprio Estado.

A concepção de Estado ganhou novos contornos nesse século e hoje não é admissível um Estado simplesmente de Direito.

Em um primeiro momento, ampliou-se aquele conceito, estabelecendo que o mais correto seria falar de um Estado Democrático de Direito, aquele que, em resumo, admite a participação do povo no exercício do poder.

Alguns estudiosos vão mais além e afirmam que a concepção mais atual é de um Estado Social e Democrático de Direito, também chamado de Estado de Bem-Estar, e adotado hoje na maioria dos países, inclusive no Brasil.

Medauar (1992), em capítulo específico de sua obra Direito Administrativo em Evolução, faz um excelente relato das transformações referentes ao Estado nos últimos anos.

Lembra a doutrinadora que no Estado instalado no século XIX foram privilegiados direitos e garantias individuais, como liberdade e igualdade, embora nesse período já sejam estabelecidos limites em nome da segurança pública.

No final do século XX já se desenha uma nova figura de Estado, que reconhece leis de proteção social, conquistadas por influência das idéias e dos partidos socialistas e da pressão dos sindicatos, sendo também fatores que contribuíram para essas mudanças a crise do pós-guerra, as transformações urbanas geradas pelo êxodo rural, que originaram as metrópoles e a concentração urbana, os avanços tecnológicos e científicos que proporcionaram melhores condições de saúde, conforto pessoal e higiene à população.

O estabelecimento desse novo modelo de Estado trouxe como conseqüência o reconhecimento dos chamados direitos sociais (direito à educação, ao trabalho, ao meio ambiente, à previdência social, ao lazer) e sua inclusão em textos constitucionais diversos.

Na virada do século, por influência do neoliberalismo, o Estado ganha nova configuração e lhe é cobrada uma intervenção mínima na economia (Estado-mínimo), em detrimento de todas as conquistas sociais alcançadas no século anterior.

Ribas (2007, p. 95), tratando do tema, assevera que:

O Estado contemporâneo, resultado principalmente da globalização econômica, do neoliberalismo e de inúmeras privatizações, tem o seu perfil redefinido pela formação de blocos políticos e econômicos, pela perda de densidade do conceito de soberania e pela transferência de inúmeros serviços à iniciativa privada.

Entretanto, a não intervenção do Estado na vida econômica, conseqüência da política neoliberalista, permitiu os mais diversos tipos de abusos por parte da iniciativa privada – notadamente contra o meio ambiente e contra os consumidores –, ficando evidente a necessidade da atuação estatal na esfera privada a fim de resguardar os interesses da coletividade.

Sobre a importância do papel do Estado na sociedade atual Toscano (1999, p.147-148) enfatiza que:

É pacífico o princípio de que se faz necessária a presença do Estado como regulamentador e executor de todas as medidas capazes de assegurar ao povo – enquanto totalidade – a prioridade de seus direitos sobre os interesses mais fortes ou sobre o jogo dos grupos de pressão que representam aqueles interesses (...) Uma escola, um hospital, um centro de recreação, empresados pela iniciativa particular, sem a vigilância do poder público, tendem, não raro, a se transformar em casas comerciais, onde os interesses máximos do cidadão, como são a sua cultura e a sua saúde, são vistos como ‘mercadoria’ (...)

Isso significa que a força coercitiva do Estado é necessária para mantê-lo, garantindo a supremacia do interesse público, sem jamais afastar-se dos anseios da coletividade, sobretudo no que diz respeito à consolidação dos direitos fundamentais.

Compreende-se, assim, analisando o processo histórico, a importância da presença do Estado na vida em sociedade, assim como fica evidente que as atividades por ele desenvolvidas – como o poder de polícia – serão reflexos do modelo adotado em cada momento dessa trajetória.


2 PODER DE POLÍCIA: NOÇÕES BÁSICAS

O termo poder de polícia significa, em síntese, a atividade da Administração Pública de impor limitações à liberdade e à propriedade dos indivíduos, em prol de um interesse público e sempre de acordo com a lei.

Embora não configure atividade exercida exclusivamente na esfera tributária, encontra definição legal no art. 78 do Código Tributário Nacional:

Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

A Constituição Federal também faz menção a essa atividade, em seu art. 145, inciso II, que prevê a instituição de taxas "em razão do exercício do poder de polícia".

Sundfeld (2003) lembra que "os direitos são atingidos por duas espécies de atos estatais (...) de um lado os que condicionam o direito, de outro, os que sacrificam-no" afirmando que nisso consiste a atividade estatal denominada poder de polícia ou polícia administrativa.

Bandeira de Mello (2007, p. 792) conceitua poder de polícia como "a atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-as aos interesses coletivos".

O renomado professor acentua, entretanto, que há um sentido amplo e outro restrito para expressão. No sentido amplo abrangeria um conjunto de medidas advindas não só do Poder Executivo, mas também do Legislativo. No sentido mais fechado, estaria relacionado somente às intervenções do Poder Executivo, sejam elas gerais e abstratas, sejam específicas e concretas.

Gasparini (2005, p.123) entende o poder de polícia como a atribuição própria da Administração pública no sentido de "condicionar o uso, o gozo e a disposição da propriedade e restringir o exercício da liberdade dos administrados no interesse público ou social".

Lembra Pessoa (2003, p. 489/490) que a prestação de serviços públicos e o poder de polícia constituem as duas missões mais importantes da Administração Pública, e conceitua este último como "limitações administrativas à liberdade e propriedade. Ou seja, é uma atividade administrativa infralegal, expressa em atos normativos ou em provimentos concretos, pelos quais a Administração limita e condiciona o exercício de direitos e liberdades".

Di Pietro (2006) alerta para a diferença existente entre a conceituação do poder de polícia difundida no século XVIII e a que hoje é aceita. Ambos os conceitos o compreendem como atividade limitadora do exercício de direitos individuais, mas naquela época, a finalidade restringia-se à segurança, e atualmente visa assegurar interesses públicos em geral.

Sob o título Atos coercitivos dos órgãos administrativos, Kelsen (1998, p. 398-399) escreveu em sua obra que:

De acordo com a maioria das ordens jurídicas e, sobretudo, de acordo com as ordens jurídicas que reconhecem o princípio da separação de poderes, os órgãos administrativos estão autorizados a interferir no patrimônio e na vida do indivíduo em um processo sumário, quando tal interferência é o único modo de prevenir com rapidez danos à segurança pública (...) Tais interferências no patrimônio ou na liberdade dos indivíduos não são sanções, mas seriam delitos caso não fossem estipulados por lei.

São exemplos do exercício do poder de polícia, citados por vários doutrinadores, a exigência de exibição de planta para licenciamento de construção, de porte de arma, de exame de habilitação para motorista, de colocação de equipamentos de incêndio nos prédios, a imposição de limitações administrativas à propriedade, interdição de hotel utilizado para exploração sexual de menores, a expedição de regulamento sobre o uso de fogos de artifício, autorização para explorar atividade perigosa, licença para funcionamento de casa comercial ou bancária, determinação de corte de árvores.

Geralmente o poder de polícia é entendido como uma atividade negativa, que impõe uma abstenção ao particular, com o intuito de evitar um dano geral. Como exemplo, as limitações ao direito de construir.

Há, porém, um caso peculiar de atuação do poder de polícia em que, na verdade, se exige uma conduta positiva do particular: quando atua no sentido de garantir o cumprimento da função social da propriedade.

Outro aspecto que deve ser realçado sobre o poder de polícia é que o mesmo manifesta-se através de atos normativos de caráter genérico ou de atos concretos.

Por vezes, a Administração necessita expedir normas para regular a atividade do particular (sobre venda de bebida alcoólica, por exemplo), em outras ocasiões, basta dar cumprimento à lei, agindo efetivamente na esfera da vida privada (apreensão de edição de revista que dissemine em seu conteúdo algum tipo de discriminação, o guinchamento de veículo estacionado irregularmente).

A atividade de polícia também pode ser executada de forma preventiva – fiscalização de restaurantes e da safra de açaí, vistoria de veículos –, quando então assume a primordial função de evitar "riscos e potenciais danos à coletividade" (Pessoa, 2003, p. 497).

A atividade de polícia pode ser discricionária ou vinculada. Exemplo clássico de ato discricionário é o da autorização, em que a Administração, ainda que seguindo parâmetros legais, decidirá pela concessão de acordo com a conveniência e a oportunidade, e de ato vinculado, o da licença, cuja concessão só dependerá do preenchimento pelo particular dos requisitos estabelecidos em lei.

Bandeira de Mello (2007, p. 813), afirma que "toda coação que exceda ao estritamente necessário à obtenção do efeito jurídico licitamente desejado pelo Poder Público é injurídica", por isso a Administração, na atividade de poder de polícia, deve sempre apreciar a proporcionalidade de suas medidas, para não restar configurado o exercício abusivo de poder.

São valores a serem protegidos pelo poder de polícia a segurança, a ordem pública, a tranqüilidade e a saúde públicas, o patrimônio artístico, histórico e paisagístico, as riquezas naturais, a moralidade pública, a economia popular, entre outros.

Note-se que em uma sociedade complexa como a atual, as funções do Estado são ampliadas e com isso a sua atuação através do poder de polícia terá um leque muito maior de valores para assegurar.


3 PODER DE POLÍCIA E PRINCÍPIOS

Os princípios jurídicos são normas, integram o ordenamento jurídico, aliás, são fundamentos deste e no caso específico do direito público, formado por regras esparsas, são de grande utilidade para os operadores do direito, adquirindo relevante papel para a adequação das leis à realidade fática, principalmente na busca de ações e decisões mais justas.(3)

O Poder Público, ao intervir na vida dos particulares, limitando-os a liberdade e a propriedade, no desempenho da atividade de polícia, constantemente terá que fazer uso de princípios jurídicos e sopesá-los em algumas hipóteses.

A legalidade é princípio fundamental do Direito Administrativo, que legitima e deve direcionar toda atividade administrativa.

A concepção de um Estado fundado na lei, como visto anteriormente, surgiu no final do século XVIII, com as chamadas revoluções burguesas, pondo fim ao antigo regime, o chamado Estado Absolutista, onde prevalecia a vontade do soberano, absoluta e garantida pela vontade divina.

O Estado estabelecido sob uma ordem democrática só pode ser compreendido como aquele em que impera a vontade da lei e a ela todos devem se submeter, Administração Pública e administrados.

Cumpre esclarecer, no entanto, que o princípio da legalidade comporta interpretação diversa para o particular e para o Poder Público, sendo que para aquele, vale a regra disposta no art. 5º, II, da Constituição Federal ("ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei"), que permite fazer o que a lei autoriza e também o que não proíbe. Já para a Administração Pública o princípio deve ser interpretado de modo estrito, significando que suas atividades só terão validade se respaldadas na lei.

Ainda em relação ao assunto, há de se falar do poder regulamentar, que é o poder da Administração editar atos administrativos (art. 84, IV, da Lei Fundamental).

O Poder Público, no exercício do poder de polícia, fará uso de regulamentos para interferir na vida dos administrados, mas, nos termos da previsão constitucional, deverá agir dentro dos parâmetros legais, apenas de forma a garantir-lhe a execução, jamais inovando na ordem jurídica.

Dessa forma, infere-se que em um Estado de Direito, a Administração Pública deve estrita obediência à lei e o exercício do poder de polícia, uma das facetas da atividade administrativa, sempre deverá buscar apoio no ordenamento jurídico vigente. A lei é seu fundamento e sua limitação, no exercício do poder regulamentar ou de um ato discricionário.

É interessante notar, entretanto, que a lei nem sempre conseguirá prever de modo completo e satisfatório todas as situação em que a Administração deverá exercer a atividade de polícia e nesse sentido será de primordial importância o uso de outros princípios para sopesá-los, como o da legalidade.

Necessário se faz, pois, conferir-se valor normativo aos valores e princípios que adensam o princípio da legalidade, quais sejam, moralidade administrativa, boa-fé, boa-administração, razoabilidade, proporcionalidade, entre outros. Importa, contudo, que a invocação destes valores e princípios pela Administração, no intuito de restringir direitos e atividades, seja feita de forma motivada (Pessoa, 2003, p. 498)

Assim, princípio que jamais deve ser afastado da prática do poder de polícia é o da proporcionalidade, sobretudo no momento em que o administrador seleciona o meio que empregará para a defesa dos interesses públicos, que não poderá ser mais enérgico ou gravoso que o fim pretendido.

O princípio da moralidade administrativa também deverá ser observado, pois impõe à Administração Pública o dever de bem gerir, de bem administrar, de bem atender o interesse público.

Em suma, o administrador, no exercício do poder de polícia, sobretudo no momento que agir discricionariamente, deverá resguardar-se que seu ato tem previsão legal, e ir além, adequando-o também aos princípios vigentes em nossa ordem jurídica, de modo a atender concretamente à satisfação dos interesses coletivos.


4 UMA NOVA ABORDAGEM SOBRE O PODER DE POLÍCIA

Embora seja comum a associação da palavra polícia com a idéia de força, de poder repressivo do Estado, a origem do vocábulo remonta à antiguidade clássica, quando então designava todas as atividades da cidade-estado.

"A expressão, ligada etimologicamente ao vocábulo política, pois ambas vêm do grego polis (= cidade, Estado), indicou entre os antigos helênicos, a constituição do Estado, o bom ordenamento", ensina Cretella Júnior (1999, p. 521).

Durante a Idade Média, os soberanos exerciam o jus polititiae, relacionado à boa ordem da sociedade civil sob autoridade do Estado. Note-se, entretanto, que em tal período esse poder era ilimitado e o ordenamento da sociedade não raramente era concretizado de forma abusiva.

A locução poder de polícia (police power) foi utilizada pela primeira vez nos Estados Unidos, notabilizando-se após o julgamento do caso Brown x Maryland, em 1827, e designava "o poder dos Estados da federação norte-americana de editar leis limitadoras de direitos, em benefício da coletividade" (Pessoa, 2003).

Em razão dessa variação de significado que o termo sofreu historicamente e por ter prevalecido a associação do mesmo a um Estado opressor e antidemocrático, alguns doutrinadores iniciam a discussão acerca da nova postura estatal, quando do exercício da atividade administrativa denominada poder de polícia, defendendo a mudança de terminologia, por entenderem inadequada aos novos tempos.

Verifica-se na obras recentes sobre a matéria denominações como poder ordenador, poder regulador e atividade interventora.

Sundfeld (2003, p. 20) sugere a expressão administração ordenadora, que conceitua como "a parcela da função administrativa, desenvolvida com o uso do poder de autoridade, para disciplinar, nos termos e para os fins da lei, os comportamentos dos particulares no campo de atividades que lhes é próprio".

Para o autor, a locução poder de polícia comporta uma carga negativa, que ultrapassa o real sentido do termo que consiste em aplicar as leis reguladoras dos direitos.

Bandeira de Melo (2007, p. 791) também não concorda com o termo, em razão de englobar "sob um único nome, coisas radicalmente distintas, submetidas a regimes de inconciliável diversidade: leis e atos administrativos", embora reconheça que continuará a usá-lo em sua obra, quando relacionado ao seu significado mais abrangente (ao sentido estrito prefere referir-se como polícia administrativa).

Resta evidente que a expressão poder de polícia remonta ao tempo do Estado Autoritário, período em que tal atividade confundia-se com o poder do soberano, e que "significava não só um poder ilimitado, mas resumia o conjunto da atuação do Estado" (Pessoa, 2003, p. 491).

A expressão também pode conduzir o leigo a associá-la com a atividade da polícia judiciária, que se diferencia daquela por atuar na esfera do direito processual penal.

Cumpre salientar, entretanto, que mais importante do que a questão terminológica é a nova abordagem que se deve dar ao tema.

A atividade da Administração Pública de restringir direitos individuais, impondo atuações negativas ou positivas aos cidadãos, deve ser discutida em face da nova configuração do Estado contemporâneo.

Conforme já relatado, o Estado atual ampliou suas funções, abarcando um número considerável de direitos a proteger, sobretudo após o advento do chamado Estado Democrático e Social de Direito.

As idéias neoliberais fizeram renascer um modelo de Estado em que prevalecia a proteção dos interesses econômicos em detrimento do interesse social, um Estado que devia intervir o mínimo possível na vida privada, favorecendo assim a atividade capitalista.

Em contraposição à política neoliberal, surgiu nos países desenvolvidos – e hoje é o modelo que se busca alcançar nas sociedades modernas – o chamado Estado do Bem Estar Social ou simplesmente Estado Social, que adotou uma nova postura em relação à proteção dos interesses sociais.

Moraes (2002, p. 117), ressalta que o Banco Mundial, um dos organismos que mais contribuiu para a implantação daquele modelo neoliberal, sobretudo nos países em desenvolvimento, em seu Relatório do ano de 1997, já se posicionava no sentido de rever essa atuação voltada para os interesses do mercado e do capital, senão vejamos:

Este relatório mostra que o fator determinante por trás desses acontecimentos é a eficiência do Estado. Um Estado eficiente é vital para as provisões dos bens e serviços – bem como das normas e instituições – que permitem que os Estados floresçam e que as pessoas tenham uma vida mais saudável e feliz (...) A nova mensagem é um pouco diferente: o Estado é essencial para o desenvolvimento econômico e social, não como promotor direto do crescimento, mas como parceiro, catalisador e facilitador.

Esse novo Estado, portanto, tem a perspectiva de valorizar o interesse de toda sociedade em detrimento de direitos isolados, e está comprometido com a efetivação dos direitos fundamentais (com destaque para direitos difusos e coletivos, também chamados de terceira geração), passando a atuar de forma positiva, e não somente abstendo-se de agir, para a concretização de tais fins.

Desse modo, a Administração Pública moderna, no exercício de toda e qualquer atividade, seja na prestação de serviços públicos ou no exercício do poder de polícia, deve se pautar nas diretrizes desse modelo estatal desejado, respeitando direitos e garantias fundamentais.(4)

Assim, é notório que:

A função de garantia do Estado contemporâneo emerge de sua consolidada obrigação constitucional de protagonizar a efetivação de um extenso catálogo de direitos fundamentais (...). Nesse cenário emerge ''o direito fundamental a uma boa administração'', previsto no art. 41 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia (Oliveira; Schwanka, 2008).

Sob essa nova ótica, a atividade de polícia administrativa, deveria adquirir certo destaque uma vez que consiste justamente na intervenção estatal na esfera particular, privando o indivíduo de exercer certos direitos, em prol do interesse público, ordenando, assim o cotidiano da cidade, de modo a garantir a satisfação geral.

Nesse aspecto, deve-se destacar que nas sociedades contemporâneas predomina o modo de vida concentrado nas grandes cidades – conseqüência do modelo capitalista de desenvolvimento –, que vem crescendo desenfreadamente, causando problemas que estão deteriorando a qualidade de vida da população, como a degradação do meio ambiente, a violência, a falta de civilidade nas relações pessoais.

Diante de tais fatos, a Administração cada dia com mais freqüência deverá resolver questões que envolvem o direito individual de um lado e o interesse coletivo de outro, como por exemplo, o direito de propriedade e a função social da propriedade, o direito à liberdade de manifestação e o direito ao sossego e à tranqüilidade, o direito de explorar livremente uma atividade econômica e o direito de ter uma paisagem preservada.

E a atividade de polícia, cumprindo a sua função de manter a ordem pública, deverá buscar atuar de forma mais eficiente e tendo em vista os anseios dessa sociedade que clama por soluções que viabilizem uma convivência mais justa, tranqüila e digna entre seus indivíduos.

Sundfeld (2003, p. 57) encontra mais um motivo para rever a atividade poder de polícia:

Hoje em dia se exige do titular de direito subjetivo que, usando da posição que este lhe assegura, colabore com a construção de uma nova realidade. Em uma frase, à administração ordenadora não basta que este indivíduo não perturbe, é mister que este indivíduo ajude, na medida das possibilidades propiciadas pelo exercício de seu direito"

O exemplo que melhor se adapta a essa nova visão do poder de polícia, proposta pelo autor, é o da função social da propriedade, prevista no art. 5º, XXIII, da Constituição Federal, uma vez que ao proprietário será imposta, pela Administração, uma obrigação positiva, de atuar conforme a previsão constitucional (arts. 182, § 2º e 186, CF), em prol do interesse coletivo, caso pretenda manter-se no exercício do direito.

Vê-se, então, que a atividade da Administração Pública no sentido de impor condições ao exercício de direitos individuais – seja estabelecendo limites (obrigação de não fazer), encargos (obrigação de fazer) ou sujeições (obrigação de suportar) –, constitucionalmente protegidos, persegue (ou deveria perseguir, para ser legítima) um interesse que é de todos: garantir, em última análise, a paz e a harmonia da vida em sociedade.

Embora ao longo do processo histórico esses objetivos tenham sido desvirtuados, em razão do modelo estatal que então predominava, hoje, diante da tentativa de consolidação de um Estado Social, a Administração só tem esse caminho a trilhar, ou seja, exercer o poder de polícia dentro de tais parâmetros.

Por derradeiro, faz-se mister ressaltar que o exercício do poder de polícia, sob esse novo enfoque, jamais poderá afastar-se da observância dos princípios constitucionais, devendo o administrador estar atento sobretudo para não exceder os limites de tal atividade, respaldando-se sobretudo na legalidade, proporcionalidade e razoabilidade.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Evidentemente o termo poder de polícia não é o mais adequado para designar a atividade da Administração Pública de agir sobre os interesses individuais, por conduzir a idéias de autoritarismo e arbitrariedade, sobretudo em um país como o Brasil que em tempos recentes passou pela experiência de uma ditadura militar.

A proposta de um novo enfoque para o tema, levantada por alguns doutrinadores, tem fundamento e deve continuar a ser debatida no meio jurídico, em razão das mudanças ocorridas e exigidas a partir da instalação do Estado Social.

Contudo, não será a mera troca de expressão que realmente importará nesse novo contexto social, mas o compromisso com novas atitudes, tanto da Administração Pública como da sociedade em geral.

A vida nas grandes cidades há algum tempo vem tornando-se insuportável em razão de problemas relacionados ao trânsito, à poluição sonora e visual, às agressões ambientais, à falta ou péssimas condições de moradia, enfim, a questões que afetam o cotidiano de seus habitantes.

O poder de polícia tem importante função nesse aspecto, pois através dessa atividade o Poder Público vai estabelecer limites aos direitos individuais e de propriedade que estejam causando prejuízo à coletividade.

Agirá nesse sentido ao conter a construção desenfreada de grandes edifícios em cidades já sufocadas pelo calor e pela poluição, ao manter livres as calçadas públicas para a locomoção dos transeuntes, ao organizar as paradas de táxis e ônibus da cidade, ao impedir a realização de festas ou qualquer outra manifestação que incomode a vizinhança com o alto volume do som, entre outros.

A omissão do Estado na resolução de questões como essas, que parecem de pouca importância, causa o caos urbano, a desorganização do trânsito e da cidade como um todo, permite o abuso do exercício de direitos pelo particular, gera sensação de impunidade, impede o exercício pleno da cidadania e a manutenção da paz social.

Assim, o poder conferido à Administração Pública de organizar a vida em sociedade, o cotidiano dos habitantes de uma cidade, intervindo quando necessário para manter a ordem e a estabilidade social, adquire uma importância cada vez maior nesses novos tempos, em que o Estado ampliou suas funções, passando a assumir um papel de garantidor dos direitos fundamentais (que engloba, também, a elaboração de políticas públicas e a prestação de serviços públicos voltados para esse fim).

Hoje, o Estado denominado Social deve estar compromissado não só com a tutela dos direitos individuais, como ocorreu durante o Estado Liberal – em que este deveria se abster de atuar para não invadir a esfera individual de direitos e liberdades – mas ir além, e garantir proteção também aos chamados direitos de segunda e terceira geração, que demandam do Poder Público uma atuação positiva.

É próprio da natureza humana o estabelecimento do conflito, da divergência, sobretudo nas sociedades modernas organizadas em grandes cidades, regidas pelos ditames do capitalismo e do individualismo, em que a busca da satisfação pessoal prevalece sobre a manutenção do bem estar coletivo. Nesse diapasão, fica evidente a importância da intervenção estatal na busca de soluções que visem a proteção do bem comum.

Parece contraditório falar que a Administração Pública estará tutelando direitos fundamentais durante o exercício do poder de polícia, uma vez que este consiste na imposição de limites à liberdade e à propriedade dos indivíduos, mas através dessa atividade o Poder Público, em detrimento de uns, protegerá direitos e interesses comuns a toda coletividade.

Cumpre salientar, por fim, que é na observância a certos princípios, principalmente da legalidade e da razoabilidade, que se fará a diferença entre uma prática administrativa justa e condizente com os direitos humanos e o exercício arbitrário e abusivo do poder.

São esses novos horizontes que a Administração deve vislumbrar e seguir, ao atuar na esfera da liberdade e da propriedade dos indivíduos.


NOTAS

(3) Sobre princípios, eis a lição de Barroso (2006, p. 29): "Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. De parte isto, serem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie (...)".

(4) Em interessante artigo que trata sobre o direito à cidade como direito fundamental, Saule Júnior (2005) esclarece que "para que haja cidades justas, humanas, saudáveis e democráticas, é preciso incorporar os direitos humanos no campo da governança das cidades, de modo que as formas de gestão e as políticas públicas tenham como resultados de impacto a eliminação das desigualdades sociais, das práticas de discriminação em todas as formas da segregação de indivíduos, grupos sociais e comunidades, em razão do tipo de moradia e da localização dos assentamentos em que vivam".


REFERÊNCIAS

BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: ______ (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.1-48.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

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MARTINS, Carla Blanco Rendeiro. Poder de polícia: uma nova abordagem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2466, 2 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14616. Acesso em: 24 abr. 2024.