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Obrigação de fazer: falta de leitos nos hospitais

Obrigação de fazer: falta de leitos nos hospitais

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Ação civil pública movida pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul, contra o Estado do MS e o Município de Campo Grande, relativa à falta de leitos nos hospitais do Estado, com pedido de obrigação de fazer consistente na ativação e reestruturação de casas de saúde. Infelizmente, o processo atualmente se encontra parado, ainda aguardando impugnação.

PROMOTORIAS DE JUSTIÇA ESPECILIZADAS
COMARCA DE CAMPO GRANDE – MS

Exmo. Sr. Juiz de Direito da _ Vara da Fazenda Pública da Comarca de Campo Grande - MS:

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL, representado pelos Promotores de Justiça infra-assinados, no uso de suas atribuições previstas nos A) artigos 1º; 24, parágrafo 2º, e 26, inciso IV, letra "a", da Lei Complementar nº 072, de 18/1/94, e no B) artigo 1º, "A-3", letras "a", "b" e "c"; da Resolução Normativa nº 004/PGJ/97, de 29/4/97, da Procuradoria-Geral de Justiça, publicada no D. J. nº 4519, de 6/maio/97, páginas 54-56, e com fundamento no C) artigo 129, incisos II e III, da Constituição Federal; D) artigo 132, incisos II e II, da Constituição Estadual; E) artigo 25, inciso IV, da Lei Federal nº 8.625, de 12/2/93; F) artigos 1º, inciso IV; 3º; 5º, 11 e 21, todos da Lei Federal nº 7.347, de 24/7/85; G) artigo 82, inciso I, da Lei Federal nº 8.078, de 11/setembro/90; e H) artigo 201, V, da Lei Federal 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), vem promover a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA com pedido liminar contra o Estado de Mato Grosso do Sul e o Município de Campo Grande - MS, nas pessoas de seus representantes legais, sediados nesta Capital, no Parque dos Poderes e na Avenida Afonso Pena, respectivamente, pelos motivos de fato e razões de direito a seguir expostos:



OS FATOS

Conforme se constata dos documentos agregados à inicial, constituídos de cópias integrais e autênticas dos autos do Procedimento Administrativo nº 15/96 (f. 02-580-PA), instaurado para apuração de irregularidades e deficiências no tocante à prestação dos serviços e ações relativos ao Sistema Único de Saúde - SUS - no âmbito do Município de Campo Grande, MS, especialmente com relação à Sociedade Beneficente de Campo Grande, MS, mantenedora do Hospital de Caridade Santa Casa, este, mediante contrato com o poder público, presta serviços na área da saúde pública, atendendo os usuários do Sistema Único de Saúde.

É de conhecimento público e notório - o que vem sendo objeto de constantes e freqüentes matérias jornalísticas da imprensa escrita e falada - que se instalou verdadeiro caos no setor da saúde pública local, porquanto, em virtude da insuficiência do teto financeiro estabelecido e fixado pelos ora requeridos para o pagamento dos serviços e ações relativos àqueles atendimentos do SUS, vem ocorrendo sérias e drásticas restrições quanto ao número de atendimentos a pacientes do referido sistema de saúde, razão pela qual, sob o argumento de que não vem recebendo dos requeridos os competentes e respectivos pagamentos daqueles atendimentos prestados à população usuária de tal sistema e que extrapolam o referido teto financeiro fixado, o mencionado Hospital de Caridade Santa Casa restringiu e continua a restringir drasticamente a prestação de tais serviços, atendendo somente a determinado número de pessoas, com o que o restante e a grande maioria da população está abandonada, destinada à própria sorte, não mais tendo o pleno, universal e igualitário acesso aos já tão precários atendimentos dos serviços e ações da saúde relativos ao mencionado SUS, verificando-se, efetivamente, o total comprometimento com a solução de continuidade de tais serviços e ações, estando, assim, caracterizado o colapso de tais serviços de atendimentos médico-hospitalares na rede pública.

Saliente-se que o Hospital de Caridade Santa Casa local trata-se do único hospital de referência do estado, que atende a pessoas encaminhadas de todos os municípios de Mato Grosso do Sul e até mesmo de outras localidades do país, e que é expressão de serviço público de saúde, de extrema importância e necessidade, muito mais quando se constata a inexistência de um Hospital Municipal, ou de um Pronto Socorro Municipal, e até mesmo de um Hospital Regional, que atendam a totalidade de pacientes de Campo Grande, MS, bem como encaminhados de outros municípios, prestando-lhes adequada e eficiente assistência médica e hospitalar.

Diante desse quadro é que o Ministério Público Estadual ingressou em 16/4/97 com uma Ação Cautelar Inominada de Caráter Satisfativo contra os ora requeridos e a Sociedade Beneficente de Campo Grande-MS - Proc. nº 97.0006955-9 - 1ª Vara da Fazenda Pública -, objetivando assegurar a continuidade de tais atendimentos, com o necessário aumento daquele teto financeiro fixado em montante insuficiente para fazer frente à demanda, estando a referida ação, lamentavelmente, em grau de recurso de apelação, interposto pelo Ministério Público.

Ocorre porém que a atual situação apresenta-se insustentável, configurando irrefutável calamidade pública, já tendo extrapolado os limites do tolerável, posto que não mais se restringe apenas àquela noticiada e já atacada insuficiência do teto financeiro fixado pelos ora requeridos, o que já constitui objeto da referida ação cautelar anteriormente proposta.

Com efeito, agora, além da problemática da insuficiência do teto financeiro fixado para as despesas decorrentes de atendimentos relativos ao SUS, ocorre também a inexistência de espaço físico no mencionado Hospital de Caridade Santa Casa para se atender a demanda de pacientes oriundos do referido Sistema Único de Saúde, inexistindo também, no referido nosocômio número de leitos suficientes para todos os pacientes, ocorrendo superlotação que tem ensejado tanto internações em caráter precário e de manifestos riscos, estando pacientes instalados em macas e pelos corredores do hospital, como também a recusa de grande número de pacientes, que em decorrência da superlotação, não são atendidos e retornam para suas casas sem o necessário atendimento médico-hospitalar.

E o mais grave é que situação idêntica também já se reflete no Hospital Universitário, onde, de igual modo, a crise já se abateu, inexistindo leitos suficientes ao atendimento da crescente demanda de pacientes usuários do SUS, não existindo mais espaço físico para novas internações, onde, de igual modo, também estão sendo recusados pacientes pelo SUS, em decorrência do que inclusive já ocorreram mortes por falta do necessário atendimento médico-hospitalar, conforme amplamente noticiado pela imprensa local (doc. em anexo).

Diversamente daquela demanda anterior, este, portanto, o objeto da presente ação, qual seja, a insuficiência de leitos e de espaço físico para comportar os usuários do SUS, por falta de um Hospital Regional e/ou Municipal, bem como de um Pronto Socorro Municipal, tendo em vista que os dois únicos Hospitais existentes, a Santa Casa e o Universitário, não mais são suficientes para se atender a demanda de usuários oriundos do SUS.

Nestas circunstâncias, interessa no exame da matéria objeto da presente ação (diverso daquele configurador da pretensão deduzida na referida ação anteriormente proposta e ainda pendente de julgamento) que os requeridos não podem deixar à mercê da fortuna crianças, idosos e pessoas de toda sorte, carentes de atendimento ambulatorial ou de internação, numa conduta omissiva e criminosa, em detrimento de toda uma população usuária do Sistema Único de Saúde, sem se preocupar ao mesmo tempo e na mesma medida com a correspondente oferta de iguais e especializados serviços à comunidade usuária.

Ora, tanto a Santa Casa como o Hospital Universitário são de caráter terciário, referências não só no Município mas como em todo o Estado, inclusive recebendo pacientes de localidades diversas da Federação, que em decorrência da noticiada crise, estão sendo rejeitados e não atendidos.

Há, atualmente, em ambos os referidos nosocômios, em virtude da superlotação e inexistência de leitos, a impossibilidade de atendimentos médico-hospitalares, inclusive de realização de cirurgias e atendimentos de emergência, bem como de marcação de consultas e de retornos, gerando prejuízos e inevitáveis riscos aos pacientes que ali acodem.

Esta situação, sob qualquer pretexto, é intolerável porque nada tem o poder de justificar a solução de continuidade do serviço público, notadamente o de caráter relevante e essencial, como o da saúde pública.

Lamentável, inacreditável e absurdamente está ocorrendo desrespeito ao mais precioso dos bens, que é o direito à vida e à saúde, e isto tudo debaixo dos olhos das autoridades que a tudo assistem passiva e indiferentemente, sem qualquer intervenção ou providência por parte de quem quer que seja, muito embora já se tenha alertado desde o início para a gravidade da situação, inclusive asseverando o perigo de ocorrência de mortes, as quais lamentável e efetivamente ocorreram.

Inadmissível que os requeridos deixem órfãos a população, que paga suas contribuições em dia e não tem culpa se existe a malversação do dinheiro público - inclusive na área da saúde, provocada pela sangria ainda constantes das fraudes contra a previdência - agravada ainda pela incompetência e falta de sensibilidade e de compromisso social por parte das autoridades e órgãos públicos.

Não obstante, tal realidade dramática perdura e persiste, em detrimento do acesso ao serviço público cujo asseguramento é de incumbência dos requeridos, por culpa dos quais atualmente os serviços e ações da saúde se acham em processo de desmanche, sendo manifesta e intoleravelmente insuficientes para atender a demanda tanto de tratamento ambulatorial como de internações, que restaram paralisadas e descontínuas, causando graves danos à população integrada a rede do SUS, precariedade que ocorre, tanto em decorrência da já falada insuficiência do teto financeiro, o que, como já se disse, constitui objeto da demanda anteriormente proposta, como também da inexistência de leitos suficientes para o atendimento de toda a população usuária do SUS, e isto por falta de uma política séria com relação à área da saúde, o que é agravado pela não construção de hospitais para atenderem à demanda.

Assim, não se discute aqui a já falada e atacada insuficiência do teto financeiro fixado para as despesas oriundas do SUS, fato que já constitui objeto de ação anterior e ainda pendente de julgamento, repita-se. O objeto desta ação decorre das limitações produzidas pelos requeridos pela total falta de investimentos na área da saúde, especificamente em proporcionarem número de nosocômios e leitos suficientes para os necessários atendimentos, fato que afeta os requisitos inerentes à prestação dos serviços, as quais (as limitações) são absolutamente lesivas à população usuária, tais como os limites impostos ao atendimento público de saúde oferecido (internações, cirurgias, atendimentos ambulatoriais, etc.), a redução dos recursos humanos competentes, a desativação de algumas especialidades. Preocupa-se tão somente com a delicada e grave situação gerada que implicou e está a implicar, com graves prejuízos, inadequação e descontinuidade dos serviços, sem que os requeridos até o presente momento, conforme comprovam a realidade pública e notória, também estampada pela imprensa, oferecessem meios iguais e proporcionais à satisfação dessas necessidades públicas, numa total omissão e descaso para com os direitos constitucionais dos cidadãos.

A saúde pública não pode, e nem deve, ser tratada dessa maneira, como se fosse indiferente a necessidade da prestação dos serviços correlatos, e pudessem ser paralisados da noite para o dia, sem causar aos usuários dano. Os males causados ao ser humano, notadamente aos mais biológicamente vulneráveis como as crianças, idosos, acidentados, e doentes em estado grave, são absolutamente imprevisíveis, e não comportam e nem se compatibilizam com limitações no tratamento ambulatorial e nas internações, emergenciais ou não.

Ora, ultrapassado o limite de usuários pré-fixado, em decorrência de falta de leitos e de insuficiência de espaço físico, os demais, seja por idade, seja pelo número, restaram e restam completamente desassistidos, com a agravante de que nem mesmo os tratamentos que já vinham sendo desenvolvidos poderão ter a devida continuidade. Cria a atitude estatal uma incômoda insegurança, uma desconfortável inadequação e uma intolerável descontinuidade no referido serviço público relevante e especializado, que passará, por essas causas, a ter um acesso parcial, desigualitário e individualizado, quando se exige seja universal, total e igualitário, como se fosse uma liquidação de uma grande casa comercial: quem chegar primeiro leva!



O DIREITO

A Constituição Federal confere ao Ministério Público a tarefa institucional de zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos por ela assegurados (art. 129, inciso II).

Isso significa que é dever impostergável do Ministério Público a defesa do povo, cabendo-lhe exigir dos poderes públicos o efetivo

respeito aos direitos constitucionalmente assegurados na prestação dos serviços públicos relevantes e essenciais.

O artigo 196 da Constituição Federal dispõe que "A saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação".

O artigo 197 do texto constitucional determina expressamente que as ações e serviços de saúde são de relevância pública.

O artigo 198 inciso II garante o atendimento integral, na esteira do que dispõe o artigo 194 inciso I, também da Carta Magna, de universalidade do atendimento público de saúde.

O artigo 173 da Constituição do Estado determina que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante " acesso universal e igualitário às ações e ao serviço de saúde, para sua promoção, proteção e recuperação", ressaltando no artigo 174 que "são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros, pessoa física ou jurídica de direito privado".

Prescreve ainda o inciso I, do artigo 175 da Constituição Estadual que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem o sistema único de saúde no nível estadual, e, dentre outros critérios, organizado de acordo com a municipalização dos recursos, dos serviços e das ações.

Em sentido idêntico as disposições constantes dos artigos 140, 141, 143, 144 e 146-152, todos da Lei Orgânica do Município de Campo Grande-MS.

Assim também o artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei Federal nº 8.080, de 19/9//90 (Lei Orgânica da Saúde), que estrutura o serviço único de saúde :

"O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação".

Seu artigo 7º estabelece como diretriz:

"I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;

II - integralidade de assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema;

(....)

IV- igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie".

Todavia, a situação produzida pela omissão dos requeridos é outra, bem distante desses preceitos porque os usuários ficam desprovidos da prestação do serviço, que de igualitário passou a desigualitário, de integral passou a parcial, de contínuo passou a descontínuo, de adequado passou a inadequado, circunstâncias que somente têm o escopo de agravar o risco de doença, pois o maior mal que a ciência médica ainda não debelou foi a falta de assistência médica.

A suspensão, a limitação, a restrição, e até mesmo a negação total como vem ocorrendo, da execução das ações e dos serviços de atendimento público de saúde em decorrência da grave falta de leitos priva a coletividade do exercício de seu direito constitucional de acesso à saúde.

O dever de prestação dos serviços de saúde pertence primariamente ao poder público, porquanto o Art. 6º do CDC prescreve "São direitos básicos do consumidor: (...); X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral."

Tratando-se de serviço essencial, resta incontroverso que a prestação desse serviço deve ser contínua, o que significa dizer que os requeridos não podem interrompê-la com suas condutas omissas (e até mesmo comissiva e criminosa no caso de fixação de teto financeiro sabida e flagrantemente insuficiente, o que já é objeto de anterior ação) ante a inexistência de leitos e de hospitais suficientes, devendo, para tanto, adotarem todas as medidas necessárias para garanti-la.

A respeito da obrigação da prestação de serviços essenciais, o artigo 22, da Lei Federal nº 8.078, de 11/9/90 (Código de Defesa do Consumidor) assim dispõe:

"Art. 22 - O órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único - Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código."

(grifamos)

Os serviços essenciais não podem, portanto, sofrer solução de continuidade. Assim, não podem deixar de ser ofertados aos usuários, vale dizer, prestados no interesse coletivo. Neste sentido confira-se o ensinamento de Zelmo Denari, in "Código Brasileiro de Defesa do Consumidor", comentado pelos Autores do Anteprojeto, Rio de janeiro, Ed. Forense Universitária, 1.995, p. 140.

Também devem respeitar o requisito da adequação, isto é, devem ser prestados na exata proporção competente a satisfação da demanda dos usuários.

É notório que o serviço de saúde prestado pelos requeridos, constitucionalmente definido como de relevância pública (CF, art. 197), é imprescindível para a população local, e até regional e nacional, uma vez que integrado a rede do SUS, sendo irrefutável o fato de que para cá vêm pacientes de todos os municípios do Estado e até mesmo de outros que são vizinhos.

Afetado acentuadamente esse serviço, prejudicada está, irremediavelmente, toda a população. A adequação e a continuidade do serviço público são requisitos essenciais ao serviço público relevante, de forma a não prejudicar o direito da comunidade usuária do serviço em questão e de toda a coletividade em geral.

A população é titular do interesse difuso à prestação contínua e adequada dos serviços públicos essenciais, tendo os prestadores o dever de executá-los. Não podem estes, por comodismo, indiferença ou sob qualquer pretexto, simplesmente deixarem comprometidas, paralisadas e reduzidas as atividades inerentes, bem como a capacidade hospitalar, sendo que os referidos hospitais são procurados pela população desprovida da possibilidade de se deslocarem para outros nosocômios da rede pública de saúde, à procura de leitos para as necessárias internações e atendimentos, uma vez que inexistentes, somente existindo vagas e leitos em hospitais da iniciativa privada.

Por outro lado está o fato de que, inexistindo na rede pública número de leitos e de hospitais suficientes ao atendimento da demanda relativa ao SUS, resta irrefutável a obrigação dos requeridos em providenciarem, mesmo que seja em caráter provisório, a contratação dos serviços da iniciativa privada, conforme expressamente previsto nos artigos 176, parágrafo 1º, da Constituição Estadual, e 144, parágrafo 1º, da Lei Orgânica do Município.

Neste ponto a mencionada Lei Federal nº 8.080/90 prescreve em seu artigo 24, caput e parágrafo único:

"Art. 24 - Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde - SUS poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada.

Parágrafo único - A participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público."

Tal contratação da iniciativa privada também é prevista na mesma Lei Federal nº 8.080/90 em seus artigos 4º, parágrafo 2º; 7º, "caput", e 8º.

Aliás a invocada Lei Orgânica do Município determina expressamente que O ATENDIMENTO DE URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS pelo Poder Público, SERÁ FEITO ATRAVÉS DE SERVIÇOS CONTRATADOS ou próprios (artigo 150).

E a obrigação dos requeridos decorre ainda, além dos dispositivos legais já declinados, do artigo 4º, inciso IV, da Lei Federal nº 8.142, de 28/12/90; dos artigos 7º, inciso XI, e 9º, ambos da Lei Federal nº 8.080/90, bem como dos artigos 146, inciso I; 151 e 152, todos da Lei Orgânica do Município.

Também de observância obrigatória as normas insculpidas nos artigos 4º, caput; 7º, inciso XI; 9º, caput, e incisos I, II e III; 15, caput, e incisos I e II; 17, incisos I, II, III e XI; 18, incisos I, II, V, VII, X e XII; 33, caput, e 43, todos da Lei Federal nº 8.080/90.

A par de tudo o que já foi dito, deve-se volver os olhos para um direito fundamental lesado, que é o da criança e do adolescente que está sendo, sem dúvida alguma, sumamente violentado. Sendo certo que tal situação é insustentável como prevê a Lei Federal n.º 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), em seus artigos 4o, 7o, 8o, 10, 11, 12, 14 e 208, VII.

Enfatiza o Artigo 4° desse código que é dever "do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde (....)".

Com a mesma ênfase, dispõe o Artigo 7o do ECA: "A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência."



DA NATUREZA DOS INTERESSES TUTELADOS

Pelo que se depreende do exposto, a presente demanda busca a defesa de interesses e direitos difusos dos cidadãos usuários dos serviços de saúde.

Iniludível que se está diante de interesses difusos diante dos fatos narrados, segundo a definição do artigo 8l, parágrafo único, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, in verbis:

"Art. 8l - (...)

Parágrafo único - (...)

I - Interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato".

A respeito do tema, tem-se o escorreito magistério de Marcelo Pimentel, verbis:

"A legitimação do direito individual coletivo pressupõe a não-ofensa a qualquer outro direito individual ou coletivo previsto em lei, Por isso, a doutrina criou a categoria dos interesses difusos, que são exatamente os interesses que se caracterizam pela conflitualidade social, isto é, interesses coletivos em oposição uns com os outros, de tal sorte que, se tornam geradores de conflito na própria sociedade. Ora, a greve pode muitas vezes envolver interesses difusos, porque a paralisação interessa a um grande grupo de trabalhadores, ao mesmo tempo em que pode chegar a um ponto (o prolongamento da greve ou a prática decorrentes dela) em que afete interesses maiores de toda a sociedade. Sábio, mesmo, seria que o constituinte ou a lei previsse uma intervenção da autoridade pública (o Poder Judiciário ou o próprio Legislativo) nestes casos de grave conflitualidade de interesses sociais, quando evidente a prevalência do interesse público na cessação da greve."


(grifo nosso) ("Abuso do Direito de Greve", in Revista Ltr, vol. 54, nº 12, dezembro de 1.990, p. 1.441).

Realmente, constata-se, de pronto, que o interesse e direito da comunidade usuária e do consumidor é referente à continuidade e adequação do serviço público.

O interesse é indivisível porque diz respeito a todos aqueles que, ligados por circunstâncias exclusivamente fáticas, ficaram e estão expostos a sofreram danos, o que realmente está ocorrendo, ante a falta do serviço essencial ao atendimento de suas atividades inadiáveis, pessoas estas indeterminadas.

A propósito da sobredita "indivisibilidade", José Carlos Barbosa Moreira preleciona:

"um bem (latíssimo senso) indivisível, no sentido de insuscetível de divisão (mesmo ideal) em quotas atribuíveis individualmente a cada um dos interessados. Estes se põem numa espécie de comunhão tipificada pelo fato de que a satisfação de todos, assim como a lesão de um só, constitui, ipso facto, lesão da inteira coletividade".


(in "Legitimação para a defesa dos Interesses difusos no direito brasileiro", Revista AJURIS/RS nº 32/82).

Nesse mesmo sentido pode-se citar lição de Ada Pellegrine Grinover, segundo a qual

"O objeto dos interesses difusos (no sentido amplo, que também engloba os coletivos) é sempre um bem coletivo insuscetível de divisão, sendo que a satisfação de um interessado implica, necessariamente, a satisfação de todos, ao mesmo tempo em que a lesão de um indica a lesão de toda a coletividade."


(A problemática dos interesses Difusos, in "A Tutela dos Interesses Difusos", Ed. Max Limonad - l984, p. 3l).



DA LEGITIMIDADE AD CAUSAM DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Nesses termos, a presente ação civil pública colima assegurar e defender direitos difusos dos usuários dos serviços públicos de saúde, os quais foram e estão sendo franca e impunemente violados.

Objetiva manter a continuidade e a adequação do serviço público, como lhe possibilitam os artigos 129, inciso II, da Constituição Federal e 6º, inciso X, e 22, parágrafo único, da Lei Federal nº 8.078/90.

A Constituição Federal, no seu artigo l29, incisos II e III, confere legitimidade ao Ministério Público para:

"Art. 129 - ...

(...)

II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;

III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos."

Na esteira desse dispositivo constitucional, o artigo 26, inciso IV, letra "a", da Lei Complementar Estadual nº 072, de 18.0l.94, assim dispõe:

"Art. 26 - Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público:

(...)

V - promover o inquérito civil e ação civil pública, na forma da lei: a) para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos".

Ademais, a Lei Federal nº 7.347/85 atribui legitimidade ao Ministério Público para ajuizamento de ação civil pública para prevenção ou reparação dos danos causados a comunidade usuária dos serviços públicos, em decorrência de violação de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos (artigos lº, 3º, 5º e 21).

Por derradeiro, a Lei Federal nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) concede ao Ministério Público legitimidade para a defesa coletiva dos interesses e direitos difusos e individuais homogêneos do Consumidor (artigo 82, inciso I) e, no artigo 91, prescreve que "os legitimados de que trata o artigo 82, poderão propor, em nome próprio ou no interesse das vítimas ou seus sucessores, ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos individualmente sofridos, na forma dos artigos seguintes.

A legitimidade processual do Ministério Público para a promoção de ação civil pública é considerada originária, visto que advém de preceito insculpido nos artigos 127 e 129, inciso III, da Carta Magna. Diversos autores, seguidores da dogmática processual clássica ou tradicional, afirmam que a legitimidade do Ministério Público para as ações coletivas é hipótese de legitimação extraordinária.

Todavia, a Teoria Processual Contemporânea, calcada em estudos de autores alemães, informa que essa legitimidade é a denominada "legitimação autônoma para a condução do processo", e isso se dá nas ações coletivas para defesa de direitos difusos e coletivos (cf. Nelson Nery Junior, "Código de Processo Civil Comentado", in anotações ao artigo 82, do CDC, Ed. RT, 1.994, p. 1.234).

Nesse sentido é a lição do Professor Alfredo Buzaid, in verbis:

"Coube aos autores alemães o mérito de haverem definido a substituição processual como instituto autônomo, denominando-o KOHLER PROZESSSTANDRECHT, isto é, o direito de conduzir o processo em seu próprio nome como parte, discutindo relações jurídicas alheias; ele é parte e intervém como tal. O que caracteriza a substituição processual é a cisão entre a titularidade do direito subjetivo e o exercício da ação judicial. Nos casos ordinários fundem-se numa mesma pessoa o titular do direito e o titular da ação, ou, em outras palavras, quem move a ação é geralmente o titular da relação jurídica de direito material. Esta coincidência denota a legitimidade normal. Quando, porém, a lei autoriza que pessoa alheia à relação de direito material possa ajuizar a ação que competiria em princípio àquele, temos uma legitimação anômala, que recebe o nome de substituição processual"


(cf. "Considerações sobre o mandado de segurança coletivo", São Paulo, Saraiva, 1992, págs. 63/64).



DO CABIMENTO E NECESSIDADE DA CONCESSÃO DA MEDIDA CAUTELAR

A medida cautelar se impõe desde já porque o provimento da pretensão a final poderá ser inócuo para prevenir a perpetuidade do dano ao serviço público e a própria saúde pública, uma vez que a população encontra-se completamente desassistida, sendo bastante relevante o fundamento da lide, à vista da presença dos indissociáveis requisitos do fumus boni juris e do periculum in mora, nos termos do artigo 12 da Lei Federal nº 7.347/85 e do artigo 460, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil, ou subsidiariamente antecipando a tutela pretendida nos termos do artigo 273, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil, face a presença dos requisitos de seus incisos I e II.

Presentes a aparência do direito e o perigo da demora. Conforme já foi exaustivamente ressaltado, a prestação do serviço de saúde é serviço de relevância pública, e por isto os requeridos não podem paralisá-lo, suspendê-lo, restringi-lo ou limitá-lo no universo de usuários e nas várias especialidades da medicina como vem ocorrendo em decorrência de falta de leitos suficientes. A obrigação da prestação desse serviço essencial é princípio que deve ser cumprido sem solução de continuidade e da maneira adequada à plenamente satisfazer a demanda. Neste sentido o artigo 22, da Lei Federal nº 8.078/90, segundo o qual "Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. Parágrafo Único - Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código." (grifamos)

O perigo da demora também está suficientemente ressaltado nesta petição inicial. Existe justificado receio de ineficácia do provimento final, razão pela qual é preciso que seja concedida liminarmente a tutela pleiteada.

Neste ponto saliente-se que já ocorreram mortes, conforme vem sendo ampla e freqüentemente noticiado e denunciado pela imprensa, devendo posteriormente ser apuradas as responsabilidades dos agentes dos vários órgãos públicos e esferas de poder envolvidos, que, ao contrário do que era de se esperar, não acudiram prontamente às necessidades e reclamos da população.



DO PEDIDO

Em face de tudo quanto acima foi exposto, o Ministério Público requer:

1. seja determinada a citação dos requeridos, nas pessoas de seus representantes legais ou substitutos legais, utilizando-se da faculdade conferida pelo parágrafo 2º, do artigo 172, do Código de Processo Civil, a fim de que, advertidos da sujeição aos efeitos da revelia, consoante o disposto no artigo 285, última parte, do Código de Processo Civil, e, se desejarem, apresentem resposta ao pedido ora formulado, no prazo de quinze (15) dias;

2. ao final, a procedência dos pedidos, condenando-se os requeridos, além do pagamento das custas e demais despesas processuais, à obrigação de fazer consistente na prestação adequada e contínua dos serviços de saúde no âmbito do Município de Campo Grande-MS, determinando-se, para tanto, que os requeridos promovam imediatamente, nas esferas de suas respectivas atuações e obrigações legais já declinadas, dentro do prazo máximo de vinte (20) dias, o pleno funcionamento do nosocômio denominado "Hospital Regional de Mato Grosso do Sul Rosa Pedrossian, criado pela Lei nº 1.719, de 16/12/96, e denominado pela Lei nº 1.318, de 3/12/92, localizado neste Município de Campo Grande-MS, e até o presente momento ainda não ativado, oferecendo através do mesmo à população, atendimento integral, ilimitado, irrestrito, igualitário em todas as especialidades no tratamento ambulatorial (pronto-socorro, consultas, exames, etc.), nas internações e cirurgias, mantendo em operação e funcionamento todos os seus equipamentos e recintos e dispondo de recursos humanos capazes através da devida lotação do mesmo com número suficiente de profissionais, tudo nas devidas e necessárias proporções verificadas para o normal funcionamento dos serviços médico-hospitalar e demais ações da saúde relativos ao Sistema Único de Saúde, adquirindo-se, ainda, todos os equipamentos e aparelhos necessários e essenciais ao pleno funcionamento do referido nosocômio.

3. cominar no caso de descumprimento da atividade devida postulada, ao pagamento de multa diária, para cuja estimativa, ante a natureza e importância do direito em foco, sugere o valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), devida somente se, após o trânsito em julgado da sentença, houver o descumprimento da condenação, quantia sujeita a correção monetária, pelos índices oficiais, desde a distribuição da inicial até o efetivo adimplemento, destinada a recolhimento ao Fundo Estadual de Reparação de Interesses Difusos Lesados (Lei Estadual nº 1.721, de 18/12/96 - publicada no D.O. nº 4431, de 19/12/96);

4. conceder liminar, sem a oitiva das partes contrárias, compelindo os requeridos a que, desde já, tomem todas as medidas necessárias tendentes a dar continuidade e adequação à prestação dos serviços de saúde no Município de Campo Grande-MS, especialmente ordenando-se-lhes, para tanto, que desde já e imediatamente, até que seja efetivada em definitivo a medida pleiteada no item 2, promovam, em caráter provisório e complementar, a contratação dos serviços da iniciativa privada, para a garantia total dos serviços e ações relativos ao SUS, mediante competente contrato, garantindo, assim, as internações e os atendimentos necessários, eliminando-se, de conseqüência, todas as restrições e limitações de acesso aos serviços em decorrência da inexistência de leitos, de espaço físico e de hospitais públicos, necessários e que atendam a rede pública de saúde, sob pena da imposição de multa diária na hipótese de descumprimento, nos moldes e parâmetros acima deduzidos, sem prejuízo da prática de crime de desobediência.

Requer, mais:

  1. a produção de todas as provas admitidas em Direito, notadamente documentos, oitiva de testemunhas, laudos, realização de perícias, vistorias e inspeções judiciais;
  2. a dispensa do pagamento de custas, emolumentos e outros encargos, desde logo, à vista do disposto no art. 18 da Lei Federal nº 7.347/85, e no artigo 87, do Código de Defesa do Consumidor;
  3. a realização de suas intimações dos atos e termos processuais, na forma do artigo 236, § 2º, do Código de Processo Civil, na Rua Íria Loureiro Viana, nº 415, centro, nesta Capital.

Embora seja, a rigor, inestimável, dá-se à causa, simplesmente em atenção ao disposto no artigo 258, do CPC, o valor de R$ 1.000,00.

Termos em que
pedem deferimento.

Campo Grande, MS, 5 de agosto de 1997.

Amilton Plácido da Rosa
Promotor de Justiça do Consumidor

Paulo Alberto de Oliveira
Promotor de Justiça de Proteção do Patrimônio Público e Social

Maria do Socorro Hozano de Souza
Promotora de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão

Ariádne de Fátima Perondi
Promotora de Justiça da Infância e Adolescência



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Amilton Plácido da; OLIVEIRA, Paulo Alberto de et al. Obrigação de fazer: falta de leitos nos hospitais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16157. Acesso em: 4 maio 2024.