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Não inclusão de precatórios na proposta orçamentária. Crime de responsabilidade. Teoria da impossibilidade material

Não inclusão de precatórios na proposta orçamentária. Crime de responsabilidade. Teoria da impossibilidade material

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Parecer da Procuradoria do Estado de Alagoas, elaborado na forma de orientação jurídica para atuação em processo de impeachment por crime de responsabilidade do governador pela não inclusão, na proposta orçamentária, de verba destinada ao pagamento de precatórios. O trabalho faz um estudo interessante a respeito dos aspectos legais e processuais sobre crime de responsabilidade.No mérito, dentre outros aspectos, justifica a desobediência à sentença transitada em julgado pela teoria da impossibilidade material de o Estado saldar os precatórios sem prejuízo das suas atividades administrativas. Na época, o subscritor da peça era procurador do Estado de Alagoas.

PARECER

EMENTA: Governador e Secretários de Estado. Crime de Responsabilidade. Processo e Definição. Não-inclusão no orçamento de verba necessária ao pagamento de precatórios judiciais. Não configuração. Exaustão orçamentária e teoria da impossibilidade material.

O Tribunal Regional do Trabalho da 19ª Região, por sua Excelentíssima Senhora Juíza-Presidente, ofereceu, junto à Assembléia Legislativa alagoana, REPRESENTAÇÃO contra o Excelentíssimo Governador do Estado de Alagoas, Ronaldo Lessa, bem como contra os Senhores Secretários Estaduais da Fazenda e do Planejamento, respectivamente Sérgio Roberto Uchôa Dória e Luís Abílio de Sousa Neto, através da qual requer, nos termos do artigo 77 da Lei nº 1.079/50, "seja por decisão da maioria absoluta da Assembléia Legislativa, determinada a imediata suspensão do Governador do Estado de Alagoas, de suas funções institucionais".

No corpo da referida representação (denúncia), alegou-se que, a despeito das diligências procedidas pelo Tribunal-representante, no sentido de determinar o pagamento dos precatórios trabalhistas devidos pelo Estado de Alagoas, vencidos até 1º de julho de 2000, que corresponderiam ao valor de R$ 131.578.580,00 (cento e trinta e um milhões, quinhentos e setenta e oito mil, quinhentos e oitenta reais), o Exmo. Sr. Governador não fez incluir, na Proposta Orçamentária Anual para 2.001, o montante equivalente ao pagamento dos referidos precatórios trabalhistas, consoante determina o comando constitucional vigente (art. 100, §1º, da CF/88). Assim, após reproduzir os textos normativos contidos no §1º, art. 100, da Constituição Federal/88, arts. 10 e 73, da Lei Complementar 101/2000, e, finalmente, art. 12, da Lei 1.079/50, sustentou o cometimento do crime de responsabilidade por parte das autoridades indicadas, razão pela qual pediu o processamento da Representação, na forma estabelecida pela Lei 1.079/50. (Interessante observar, desde já, que não foi requerida sanção alguma para os doutos Secretários de Estado).

Em razão da aludida representação, que, na verdade, é uma denúncia, conforme determina o art. 75, da Lei 1.079/50, foi-nos atribuída a incumbência de prolatar parecer, analisando as questões jurídicas que o caso comporta, precipuamente no que concerne à existência ou não da configuração do crime de responsabilidade, por parte das autoridades estaduais indicadas.

É, em síntese, o relatório. Passa-se ao parecer.


1. Esclarecimentos Iniciais

Inicialmente, é preciso esclarecer que a discussão que será desenvolvida está impregnada de valores políticos da mais alta importância para o Estado-membro. Não se trata de mera filigrana acadêmica, uma que está em jogo a destituição do detentor do mais elevado cargo político do Poder Executivo local, legitimamente eleito pela vontade popular. Da mesma forma e pelo mesmo motivo, está em xeque a própria soberania popular, manifestada através do sufrágio universal, e os princípios fundamentais que informam o Estado Democrático de Direito.

Não se pode perder de vista, portanto, a realidade sócio-política subjacente à questão jurídica debatida. As normas aplicáveis ao caso hão de ser tratadas à luz da realidade fática, que lhe dá consistência e sentido. Ao tomar qualquer partido, deve-se ter sempre em mente a preocupação em torno das conseqüências decorrentes da solução adotada, máxime para a vida política do Estado.

As normas jurídicas fundamentais sobre as quais gravita a matéria estão no ponto mais elevado da pirâmide normativa, mais precisamente nos artigos iniciais da Constituição. A reflexão gira em torno dos princípios fundamentais da república, da federação, da democracia, da separação de poderes; princípios estes que constituem o berço das estruturas e das instituições jurídicas; e, como tais, devem ser tratados. Mutatis mutandis, vem bem a calhar a célebre afirmação de Montesquieu:

"É ridículo pretender decidir sobre direitos do reino, das nações e do universo, pelas mesmas máximas com as quais se decide entre particulares sobre o direito a uma calha de águas pluviais" (O Espírito das Leis. apud COMPARATO, Fábio Konder. Crime de Responsabilidade – Renúncia do Agente – Efeitos Processuais. Revista Trimestral de Direito público, nº 7, 1993, p. 82).

Não obstante os aspectos políticos que circundam o tema, torna-se fundamental proceder a uma correta abordagem jurídica, adequada aos ditames da Constituição Federal e das normas infraconstitucionais aplicáveis à espécie, a fim de que o ordenamento jurídico, que é a pedra de toque do Estado de Direito, não desmorone, deslegitimando qualquer juízo deliberativo em tão relevante assunto. Seria pernicioso à consciência ético-jurídica deixar-se contaminar por interesses meramente político-partidários, no afã de fazer prevalecer uma insólita vontade de poder.

Lembra-se, a propósito, que o próprio Supremo Tribunal Federal, em sucessivas oportunidades, já reconheceu que o exercício de qualquer poder é limitado pela ordem jurídica, o que torna possível o controle jurisdicional de atos do Poder Legislativo, praticados no processamento de impeachment, malgrado sua intensa carga política (MS 20.941 – DF; MS 21.564 – DF; MS 21.623 – DF; RP 96 – DF, entre outros). Logo, a fim de que se evitem transtornos futuros, prejudiciais ao regular andamento do procedimento, e a própria autonomia decisória do Poder Legislativo, a cláusula do devido processo legal, a todo momento, há de ser observada no processamento da representação, com todas as conseqüências que dela se irradiam (contraditório, ampla defesa, motivação, publicidade etc). A correta e justa interpretação e aplicação das normas jurídicas, sobretudo as constitucionais, jamais há de ser relegada a um segundo plano. Os interesses espúrios, nascidos de espíritos políticos de mera ocasião, frutos de desavenças de menor importância, não podem ocasionar a derrocada do Estado de Direito, que tem no princípio da legalidade e da supremacia da constituição o seu alicerce estrutural. Em suma: a impossibilidade de se obter uma solução estritamente técnico-jurídica, uma vez que as concepções políticas são inafastáveis, não minimiza a necessidade de se perseguir uma solução política, que, ao mesmo tempo, é aceita pelo o ordenamento jurídico. Fora do Direito não há decisão legítima.

Sem deixar de lado a dimensão política do caso, seja pela natureza dos interesses em jogo, seja pela importância dos cargos ocupados pelas pessoas envolvidas, passa-se, a seguir, ao debate jurídico dos argumentos expostos, inspirados no mais honesto sentimento de justiça e de imparcialidade.


2. Limites e Metodologia do Parecer

A discussão jurídica que será aqui desenvolvida girará em torno de aspectos formais (técnico-processuais) referentes ao procedimento nos crimes de responsabilidade contra Governador e Secretários de Estado e de aspectos materiais (de mérito), onde será analisada a procedência ou não da representação oferecida.

No tocante aos aspectos processuais do procedimento [1], serão abordadas e respondidas as seguintes indagações: 1. Quem possui a legitimidade ativa para iniciar o procedimento nos crimes de responsabilidade contra o Governador de Estado e seus Secretários? O Ministério Público, por força do inc. I, do art. 129, da Constituição Federal? Qualquer cidadão, na forma do art. 75, da Lei 1.079, de 10 de abril de 1950? Qualquer pessoa ou órgão? Como corolário direto e imediato desta indagação, será possível atribuir ao Tribunal Regional do Trabalho a legitimidade para deflagrar o referido procedimento? 2. Qual o rito a ser seguido? 3. Há necessidade de observância do princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório? 4. Qual o quorum parlamentar para a admissão (recebimento) da acusação? Maioria absoluta, como quer o autor da representação? Dois terços, como estabelecem as Constituições Federal e Estadual? 5. Qual o regime de votação (escrutínio secreto ou aberto)?

A análise desses problemas processuais demanda um raciocínio essencialmente técnico-jurídico. Trata-se, apenas, de identificar as normas jurídicas aplicáveis à espécie, confrontando-as com as decisões solidificadas na jurisprudência. Grande parte das matérias desmerece maiores discussões, em face de o Pretório Excelso já haver sobre elas manifestado. Dessa forma, não estamos desbravando floresta virgem, mas palmilhando os seguros caminhos pavimentados pela jurisprudência e pela doutrina.

Analisadas as questões formais, passar-se-á ao mérito da denúncia, onde será demonstrada, ao cabo da exposição desenvolvida, a sua impertinência, seja pela não configuração, no caso, do crime de responsabilidade, seja pela grave crise social, política e institucional que resultará de seu eventual recebimento e posterior processamento.

Seguindo essas linhas metodológicas, passa-se ao ponto seguinte, onde será feita uma sucinta exposição teórica acerca do crime de responsabilidade.

3. Breve Análise dos Aspectos Teóricos e Históricos do Crime de Responsabilidade

Conferir aos Governantes e demais autoridades que se encontram na alta cúpula do Governo a imunidade absoluta é algo completamente incompatível com o princípio republicano, que tem na responsabilização de toda e qualquer autoridade uma de suas notas essenciais. Daí a assertiva de CARRAZZA:

"Falar em República, pois, é falar em responsabilidade. A noção de República caminha de braços dados com a idéia de que todas as autoridades, por não estarem nem acima, nem fora do Direito, são responsáveis (...). A irresponsabilidade atrita abertamente com o regime republicano" (CARRAZZA. Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1991, p. 49/50).

Em face, portanto, de adotar o modelo republicano, nada mais natural do que o Estado brasileiro prever, no seu regime constitucional, formas de submeter os detentores do poder político ao crivo da responsabilidade perante a lei. Não há autoridade política acima do bem e do mal, isentos de qualquer espécie de responsabilidade pelos atos praticados no exercício de mandatos periódicos, originários, direta ou indiretamente, da vontade eleitoral do povo. Logo, a possibilidade de afastar de suas funções o Chefe de Estado - mesmo quando este foi, legitimamente, eleito pelo voto popular - é inerente à própria noção de República. Tanto é verdade que, antes da proclamação da República, a pessoa do Imperador era "inviolável e sagrada" [2]; após o ano de 1889, quando foi promulgada a primeira constituição republicana, todas as Cartas Magnas brasileiras, sem exceção, previram situações que implicariam a punição do Presidente da República por "crimes de responsabilidade". Relembre-se que o povo brasileiro, em plebiscito realizado na década passada, reafirmou sua opção pela forma republicana e o sistema presidencialista de governo, o que demonstra uma nítida preferência e tendência à manutenção do controle popular sobre o poder central.

Costuma-se denominar o processo de responsabilização do ocupante de cargo político de impeachment [3]. Trata-se de um anglicismo, definitivamente incorporado à linguagem popular brasileira, que acordou do "museu das antigüidades constitucionais", graças ao recente episódio histórico que culminou com a cassação do Ex-Presidente da República, Fernando Collor.

Apesar de a consciência nacional haver percebido somente na década passada a importância do impeachment, a sua origem história é bastante remota. Desde a Idade Média, na Inglaterra, já existiam mecanismos precários de destituição das autoridades. Com o passar do tempo, o conceito evoluiu, galgando uma conotação peculiar em cada sistema que o adota. No Brasil, a introdução do impeachment sofreu grande influência do sistema norte-americano, embora, obviamente, tenha adquirido algumas particularidades.

Para não se deter em considerações ociosas, é suficiente analisar as normas constitucionais que regeram o instituto a partir da Constituição de 1946, uma vez que a vigente lei sobre a matéria (Lei 1.079/50) foi elaborada sob a égide desta Constituição.

Inicialmente, assinale-se que a Carta Fundamental de 46, assim como todas as constituições republicanas anteriores e posteriores, não previam expressamente a possibilidade de punição dos Governadores ou Secretários de Estado por crime de responsabilidade. Assim, será tomado como paradigma o processo de julgamento do Presidente da República e dos Ministros de Estado, que, por força do princípio federativo (simetria), deve ser observado no processamento e julgamento das autoridades executivas estaduais, naquilo em que for compatível [4].

A Constituição de 18 de setembro de 1946 ("Constituição dos Estados Unidos do Brasil"), em seção própria, tratava da responsabilidade do Presidente da República, informando que o Chefe do Executivo, "depois que a Câmara dos Deputados, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, declarar procedente a acusação, será submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal nos crimes comuns, ou perante o Senado Federal nos de responsabilidade" (art. 88). "Declarada a procedência da acusação, ficará o Presidente da República suspenso das suas funções" (parágrafo único, do art. 88). Assim, competiria privativamente ao Senado Federal, julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade e os Ministros de Estado nos crimes da mesma natureza conexos com os daquele (art. 62, inc. I).

Percebe-se que o processo dos crimes cometidos pelo Presidente da República possuía duas fases que em muito se assemelhavam ao sistema processual do júri. Primeiro, a Câmara dos Deputados, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, declarava procedente a acusação, como uma espécie de "sentença de pronúncia". Após, ultrapassada a fase do "juízo de procedência" da Câmara, o Senado Federal, nos casos de crimes funcionais, ou o Supremo Tribunal Federal, nos crimes comuns, julgaria o Presidente da República. Dessa forma, nos crimes de responsabilidade do Presidente, a Câmara dos Deputados funcionaria como tribunal de pronúncia e o Senado Federal, tribunal de julgamento.

No art. 89, havia a enumeração dos casos passíveis de enquadramento nos crimes de responsabilidade, a saber:

"art 89 - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição federal e, especialmente, contra:

I - a existência da União;

II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos Poderes constitucionais dos Estados;

III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;

IV - a segurança interna do País;

V - a probidade na administração;

VI - a lei orçamentária;

VII - a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos;

VIII - o cumprimento das decisões judiciárias".

Seguindo a tradição anterior, o parágrafo único do mesmo dispositivo determinava que esses crimes seriam definidos em lei especial, a qual estabeleceria as normas de processo e julgamento. Estariam, por isso, os crimes de responsabilidade e seu respectivo processo e julgamento submetidos à reserva de lei formal [5].

A Lei 1.079, de 10 de abril de 1950, cumprindo o preceito constitucional, definiu os crimes de responsabilidade e regulou o seu respectivo processo de julgamento. As autoridades abrangidas por esta lei foram as seguintes: Presidente da República e Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Procurador-Geral da República, Governadores e Secretários de Estado [6].

Com a promulgação da Emenda Constitucional n.º 4, de 2 de setembro de 1961, que instituiu o sistema parlamentar de governo, reduzindo sobremaneira as atribuições do Presidente da República, a disciplina dos crimes de responsabilidade cometidos por esta autoridade sofreu profunda alteração, conforme se pode observar pela leitura do seu art. 5º:

"Art 5º São crimes funcionais os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

I - a existência da União;

II - o livre exercício de qualquer dos poderes constitucionais da União ou dos Estados;

III – o exercício dos poderes políticos, individuais e sociais;

IV - a segurança interna do País".

As figuras discriminadas nos quatros últimos incisos do art. 89 da Constituição de 46 foram suprimidas pela nova regulamentação constitucional, deixando de ser contemplados no elenco dos crimes de responsabilidade os atentados contra "a probidade na administração", "a lei orçamentária", "a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos" e o "cumprimento de suas decisões judiciárias".

Logo a seguir, o sistema parlamentarista de governo, após consulta popular, foi revogado pela Emenda Constitucional nº 6, de 23 de janeiro de 1963, nos termos seguintes:

"Art 1º Fica revogada a Emenda Constitucional nº 4 e restabelecido o sistema presidencial de governo instituído pela Constituição Federal de 1946, salvo o disposto no seu art. 61".

Posteriormente, com a promulgação da Constituição de 24 de janeiro de 1967, no seu art. 84, sendo seguida pela Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1967 (art. 82), operou-se uma pequena alteração dos dispositivos da Constituição de 46 disciplinadores da matéria, sendo excluída da capitulação dos crimes de responsabilidade do Presidente da República "a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos", anteriormente prevista no inciso VII, do art. 89, da Constituição de 46 [7].

Dois pontos devem ser assinalados. Primeiro: a matéria sempre esteve submetida à reserva de lei especial. Segundo: o processamento e julgamento do Presidente da República por crimes de responsabilidade e dos Ministros de Estado, em crimes da mesma natureza conexos com os daquele, não sofreu qualquer alteração, salvo quanto ao quorum para que a Câmara dos Deputados declarasse a procedência da acusação, que passou a ser de dois terços [8] (anteriormente, o quorum era de maioria absoluta).

A Constituição de 5 de outubro de 1988 cuidou do processo e julgamento dos crimes cometidos pelo Presidente da República de modo um tanto diferente. A Câmara dos Deputados, que antes era verdadeiro "tribunal de pronúncia", a quem competia declarar a procedência ou não da acusação, passou a exercer apenas um juízo inicial de admissibilidade. O processo e o julgamento propriamente dito, nos crimes de responsabilidade, competem, doravante, ao Senado Federal. Nos crimes comuns, a competência para o processo e julgamento é do Supremo Tribunal Federal.

Eis como se encontram positivadas, na Constituição de 1988, as regras de procedimento visando a condenação do Presidente da República por crimes comuns ou de responsabilidade:

"Art. 52 - Compete privativamente ao Senado Federal:

I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles [9];

(...)

Art. 85 - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

I - a existência da União;

II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;

III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;

IV - a segurança interna do País;

V - a probidade na administração;

VI - a lei orçamentária;

VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

Parágrafo único - Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.

Art. 86 - Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.

§ 1º - O Presidente ficará suspenso de suas funções:

I - nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal;

II - nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal.

§ 2º - Se, decorrido o prazo de cento e oitenta dias, o julgamento não estiver concluído, cessará o afastamento do Presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo.

§ 3º - Enquanto não sobrevier sentença condenatória, nas infrações comuns, o Presidente da República não estará sujeito a prisão.

§ 4º - O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções".

Veja-se a diferença entre o sistema anterior e o atual: antes, as atribuições da Câmara dos Deputados eram bem maiores, pois a ela competia, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros (após a CF/67, por dois terços), declarar a procedência ou não a acusação, sendo o Presidente, em seguida, submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal nos crimes comuns, ou perante o Senado Federal nos de responsabilidade. No que se refere à capitulação dos crimes de responsabilidade, a disciplina ficou praticamente idêntica à da Constituição de 1967/69.

Tomando como base essas linhas históricas das normas constitucionais referentes à responsabilidade do Presidente da República, algumas questões acerca da aplicação da lei no tempo podem vir à tona.

Em primeiro lugar, pergunta-se: considerando que a Emenda Constitucional nº 4, de 1961, que instituiu o sistema parlamentarista de governo, não considerou como crime de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentassem contra "a probidade na administração", "a lei orçamentária", "a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos" e o "cumprimento de suas decisões judiciárias", pode-se afirmar que a Lei 1.079/50, nesse ponto, não foi recepcionada e, portanto, está, desde aquela época, revogada? Considerando mais que a Emenda Constitucional nº 6, de 1963, restabeleceu o sistema presidencial de governo, é possível afirmar que a legislação infraconstitucional relativa aos crimes de responsabilidade praticados pelo Presidente da República foi, de alguma forma, repristinada (voltou a viger)? Em suma: a Lei 1.079/50, na parte em que elenca como crimes de responsabilidade os praticados contra "a probidade na administração", "a lei orçamentária", "a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos" e o "cumprimento de suas decisões judiciárias" ainda está em vigor?

A par disso, o fato de as Constituições Federais jamais haverem previsto a responsabilização dos Governadores e Secretários de Estado por crimes de responsabilidade pode significar a impossibilidade de punição dessas autoridades por delitos dessa natureza? A Lei Federal 1.079/50, no ponto em que prevê a possibilidade de punição de Governadores e Secretários de Estado pelo cometimento de crimes de responsabilidade, é constitucional? Caso se admita a responsabilização por delitos político-funcionais dos Governadores e Secretários de Estado, a quem compete (União ou Estado) definir os crimes de responsabilidade de tais autoridades? E o procedimento de responsabilização funcional seguiria o mesmo modelo previsto para o processo contra o Presidente da República e os Ministros de Estado ou será que norma infraconstitucional pode estabelecer modelo diverso?

Essas e outras questões serão analisadas no tópico seguinte.

4. A Legislação Aplicável à Espécie: Constituição Federal, Constituição Estadual, Lei Complementar 101/1000 e Lei 1.079/50

A Lei 1.079/50, há meio século, vem regulamentando o processo e julgamento dos crimes de responsabilidade. Nesse ínterim, como foi visto, houve diversas mutações nos textos constitucionais que tratavam do tema. É preciso saber, pois, em que essas alterações dos enunciados constitucionais atingiram as capitulações da Lei 1.079/50.

A primeira questão é analisar se os atos do Presidente da República que atentassem contra "a probidade na administração", "a lei orçamentária", "a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos" e o "cumprimento de suas decisões judiciárias" ainda constituiriam crimes de responsabilidade, tendo em vista que a Emenda Constitucional nº 4, de 1961, que instituiu o sistema parlamentarista de governo, não contemplou essas situações como crimes funcionais. É dizer: operou-se o fenômeno da não-recepção?

A resposta a essa indagação há de ser taxativa: a Lei 1.079/50, nesse ponto, não foi em nada alterada. A uma, porque os crimes de responsabilidade enumerados pela Constituição são meramente exemplificativos (não taxativos). A duas, porque a Emenda Constitucional nº 6, de 1963, ao restabelecer o sistema presidencial de governo, repristinou a legislação infraconstitucional anterior à Emenda Constitucional nº 4, de 1961. Assim, se houve revogação (não-recepcção) da Lei 1.079/50 pela EC nº 4/61, tal revogação foi meramente temporária, perdurando até o termo final do sistema parlamentarista.

Nesse idêntico sentido, o voto do Ministro Otávio Gallotti, no Mandado de Segurança nº 21.564 – DF, é bem elucidativo ao defender que está em pleno vigor, na sua parte substantiva, a Lei nº 1.079/50:

"a Lei nº 1.079, de 1959, revogada, em parte de sua provisão substantiva, pela Emenda Constitucional nº 4, de 1961, que instituiu o regime parlamentarista de governo e, no art. 5º, enumerou os crimes funcionais do Presidente da República, como omissão aos atos que atentassem contra a probidade na administração, a lei orçamentária e o cumprimento das decisões judiciárias.

A enumeração é, porém, não mais que exemplificativa (confirmam-no a conjunção e o advérbio ‘e especialmente’). Mesmo porque, ao comando constitucional, cabe, no caso, apenas traçar a moldura para a tipificação dos crimes, a cargo da legislação ordinária. Não tipificá-los, ela própria.

Além disso, a Emenda nº 6, de 1963, não viria a limitar-se a declarar revogada a Emenda de nº 4, de 1961, mas também, e expressamente, declarou ‘restabelecido o sistema presidencial de governo instituído pela Constituição de 1946, salvo o disposto no seu art. 61’.

Ora, precisamente dessa temporária abolição do regime presidencialista, é que havia resultado a mais acanhada exemplificação das figuras de ‘crimes funcionais’ (ou de responsabilidade), atribuíveis ao Presidente da República. Teria bastado, portanto, o restabelecimento do presidencialismo de 1946, ditado pela poder constituinte (Emenda nº 6), como solar repristinação da norma supostamente revogada, se necessário fosse recorrer ao argumento; pois revogação, como disse, não entendo que chegara a ocorrer" [10].

Portanto, segundo orientação do Pretório Excelso, que se adota neste parecer, os crimes definidos na Lei 1.079/50 continuam em vigor, inclusive – vale assinalar – o referente à "guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos", que não foi nem incluído no rol da Constituição de 1988 [11].

Solução diversa, porém, há de ser tomada com relação às regras processuais previstas na Lei 1.079/50. É que, como visto, ocorreram várias mudanças nos textos constitucionais, desde a Constituição de 1946 até a Constituição de 1988. Entre essas transformações, assinale-se:

1) com a Constituição de 1967, o quorum para que a Câmara dos Deputados admitisse a acusação aumentou para dois terços (antes era a maioria absoluta). A Constituição de 1988 manteve o quorum previsto na Carta de 1967;

2) caso o Senado Federal condene o Presidente da República, em definitivo, o prazo de inabilitação para que ele possa exercer qualquer outro cargo público eletivo aumentou de 5 (cinco) anos para 8 (oito) anos;

3) com a Constituição de 1988, a Câmara dos Deputados deixou de ser equivalente a um "tribunal de pronúncia". O Senado Federal, doravante, acumula a dupla e indisponível função de tribunal de pronúncia e tribunal de julgamento. À Câmara dos Deputados compete proferir tão-somente um juízo inicial de admissibilidade da acusação, onde aferirá, num análise preliminar, perfunctória e política, as questões formais da matéria, bem como a sua gravidade, hábil a justificar o afastamento temporário do Chefe do Executivo, e os indícios de autoria e materialidade dos fatos.

Assim, as regras processuais previstas na Lei 1.079/50 hão de ser consideradas à luz dessa nova disciplina constitucional.

Outro ponto a ser analisado é saber se é possível a condenação dos Governadores e Secretários de Estado por crimes de responsabilidade, em razão da omissão constitucional a respeito. De fato, a Carta Magna prevê a possibilidade de várias autoridades serem processadas e julgadas por crimes de responsabilidade, a saber: Presidente da República (arts. 51, inc. I; art. 52, inc. I; art. 85), Vice-Presidente da República (art. 51, inc. I; art. 52, inc. I), Ministros de Estado (art. 51, inc. I; art. 52, inc. I; art. 102, inc. I, c), Ministros do Supremo Tribunal Federal (art. 52, inc. II), Procurador-Geral da República (art. 52, inc. II), Advogado-Geral da União (art. 52, inc. II), os membros dos Tribunais Superiores (art. 102, inc. I, c), os membros dos Tribunais de Contas da União (art. 102, inc. I, c), os chefes de missão diplomática de caráter permanente (art. 102, inc. I, c), quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República (art. 50), os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica (art. 52, inc. I; art. 102, inc. I, c), juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público (art. 96, inc. III), os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais (art. 105, inc. I, a), os juízes federais, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho e os membros do Ministério Público da União (art. 108, inc. I, a). Por força da Emenda Constitucional nº 25, de 14 de fevereiro de 2000, há previsão expressa de possibilidade de os Prefeitos e Presidentes das Câmaras Municipais serem punidos por crime de responsabilidade (art. 29-A). Da mesma forma, em razão da Emenda Constitucional nº 30, os Presidentes dos Tribunais poderão ser responsabilizados por crimes de responsabilidade (art. 100, §5º).

Como se vê, a Carta Magna Federal foi minuciosa ao elencar as autoridades passíveis de ser responsabilizadas por crimes de responsabilidade. Porém, não há, em nenhuma disposição constitucional, a previsão de punição dos Governadores de Estado por crime de natureza funcional. O único dispositivo que trata da perda do cargo do Governador é o art. 28, §1º, da CF/88 [12], que longe fica de configurar uma hipótese de punição por crime de responsabilidade. Outra previsão de punição de Governadores é por crime comum, cuja competência seria do Superior Tribunal de Justiça (art. 105, inc. I, a). Poder-se-ia afirmar que, por isso, os Governadores de Estado não podem ser processados e julgados por crimes de responsabilidade?

Como já foi frisado, a noção de responsabilização dos Governantes é intrínseca ao princípio republicano adotado pela Constituição brasileira vigente. Só por isso, já seria correto afirmar que os Governadores podem ser processados por crimes de responsabilidade, como decorrência da adoção do modelo republicano. Além do princípio republicano, um outro princípio constitucional entronizado pelo Estado brasileiro torna imperativa a responsabilização dos Governadores de Estado por crimes de responsabilidade, qual seja, o princípio da simetria, decorrente do nosso peculiar sistema federativo. Desse modo, a possibilidade de punição dos Governadores e Secretários de Estado é corolário lógico dos princípios republicano e federativo [13].

Diga-se, a propósito, que o tema é bastante antigo. No voto do eminente Ministro Gonçalves de Oliveira, no famoso habeas-corpus 41.296 – DF, cujo paciente era o então Governador de Goiás, Mauro Borges Teixeira, julgado em pleno período de ditadura militar, a matéria é bem esclarecida:

"Em nosso País, velha prática republicana autoriza o impeachment do Governador dentro do modelo federal. Ao propósito, conhecem-se pareceres de Paulo de Lacerda, Afrânio de Melo Franco, Afonso Celso, Epitácio Pessoa e Clóvis Beviláqua com esta ementa: ‘Nenhuma dúvida pode levantar-se contra a competência dos Estados para criarem o impeachment dos respectivos governadores. Não só esta providência é da índole do regime como se ajusta aos preceitos da Constituição de 1891. Organizando o processo de impeachment, os Estados terão, porém, de submeter aos princípios orgânicos da Constituição Federal, segundo esta preceitua no artigo 63 e é da essência do nosso sistema político’ (R.F., 26-453). Também, no mesmo sentido, Prudente de Morais Filho e Rui Barbosa (Rev. Cit., 27/103).

Na vigência da Carta de 1946, outro não é o entendimento constitucional, como opinam Pontes de Miranda e Carlos Maximiliano (R.F., vol.125/93 segs.) e Themistocles Cavalcanti (A Constituição Federal Comentada, 2ª ed., vol. II, p. 273).

Esta conclusão foi prestigiada pelo Supremo Tribunal, ao julgar em 3.10.47, a Representação nº 96 contra a Constituição do Estado de São Paulo, ao dispor, no art. 45, § 1º, que o recebimento da denúncia pela maioria absoluta da Assembléia importaria o afastamento do Governador do exercício das suas funções até decisão final do processo. Também, no caso de Alagoas, decidiu essa Suprema Corte que era obrigatório o modelo federal. Somente julgando procedente a acusação e não o recebimento da denúncia era possível o afastamento, conforme em referência ao Presidente da República dispunha a Carta Política Federal (ac. na R. F., 125/93 e segs.; A. J., 85/77 e segs.). De resto, o art. 74 da Lei de Responsabilidade, L. 1.079, de 1953, expressamente autoriza o impeachment, na esfera estadual, o que, pelo que se mostrou, não é inconstitucional: "Artigo 74. Constitui crime de responsabilidade dos Governadores dos Estados ou dos seus secretários, quando por eles praticados os atos definidos como crimes nesta lei". E o processo de impeachment é previsto (artigos 76/79)".

Do brilhante voto, conclui-se que o Governador pode ser sujeito ativo do crime de responsabilidade. Por outro lado, muito se discute se as regras referentes à punição dos Governadores de Estado devem ser normatizadas no âmbito federal ou no âmbito estadual. Em outras palavras: podem os Estados-membros disporem sobre o processo e o julgamento dos Governadores e seus Secretários por crimes funcionais? A quem compete legislar sobre os crimes de responsabilidade das autoridades estaduais, à União ou ao próprio Estado-membro?

Pela leitura do voto acima citado, proferido antes da entrada em vigor da Constituição de 1988, poder-se-ia concluir que as constituições estaduais poderiam regular o processo de crimes de responsabilidade, devendo, porém, guardar, a respeito, "exata consonância com a normatividade posta para o impeachment federal". A solução, contudo, não é a predominante. O Ministro Victor Nunes, no já citado Habeas-Corpus 41.296 – DF, trata da matéria nos seguintes termos:

"O primeiro problema suscitado a esse respeito, senão nas informações oficiais, pelo menos no debate extra-judicial, é a alegada inconstitucionalidade dessa lei, por falta de competência do legislador federal. Mas essa questão já foi resolvida, no sentido da constitucionalidade, pelo Supremo Tribunal, no caso de Alagoas (RMS 4.928, de 20.11.57. Cfr. Edgard Costa, Grandes Julgamentos, 4/53). O pensamento vitorioso nesta Corte pode ser sintetizado nas palavras que então proferiu o eminente Ministro Hahnemann Guimarães (p. 122): "... na Representação nº 97, do Piauí, julgada em 12 de novembro de 47 e na Representação nº 111, de Alagoas, julgada em 23 de setembro de 1948, sustentei a tese, que mantenho, de que compete, exclusivamente à União Federal, nos termos do artigo 5º, XV, a, da Constituição, legislar sobre Direito Penal e o processo. Não pode, pois, o legislador estadual definir sujeitos de responsabilidade, crimes, órgãos jurisdicionais e processo, que não estejam previstos na lei federal. O impeachment é, por sua tradição anglo-americana, essencialmente, um processo judiciário-parlamentar. É um processo penal-político, e não exclusivamente político, como sustenta, com tanto brilho, o eminente Sr. Ministro Nelson Hungria.

(...) No Caso do Piauí, a que se refere o eminente Mestre, disse S. Exa.:

‘... a respeito dos arts. 67, 68 e 69 da Constituição estadual, que regulam a responsabilidade do Governador, eu me manifesto pela inteira inconstitucionalidade de todas as disposições, pois que, segundo os pareceres dos professores Noé de Azevedo e Joaquim Canuto Mendes de Almeida, entendo que a Constituição estadual não pode restringir a garantia devida aos Governadores, que somente podem ser responsabilizados por fatos e segundo processos definidos em lei federal. Esta minha convicção, que se baseou nas razões aduzidas por aqueles eminentes juristas, impõe o reconhecimento da inconstitucionalidade dos artigos 67, 68 e 69’ (Rep. 97, 12.11.47, Ed. Costa, ob. cit., 2/341, 378).

O mesmo entendimento já expressava Epitácio Pessoa, no regime de 91, ao discutir, como relator, o Caso Aurelino Leal (HC 2.385, 18.8.1906):

‘pode o Estado votar uma lei de responsabilidade para os seus funcionários? Não: uma lei que define crimes e lhes comina penas é uma lei substantiva e como tal excede à esfera de ação dos Estados — Const. art. 34, nº 23. Dir-se-á que esta pena é uma simples medida política e como tal pode ser criada pelo Estado. Mas não deixa de ser uma pena, e como não há pena sem crime, o Estado terá de definir os crimes a que ela é aplicável..., o que escapa à sua competência. Demais, é uma medida cuja aplicação retarda e pode até bular... a execução da Constituição e do Código Penal. Nem se invoque o direito que o Estado tem de prescrever as condições de demissibilidade dos seus funcionários, pois este direito só pode ir ao ponto em que não ofenda a ação das leis federais’ (Epitácio Pessoa, Acórdãos e Votos, 1955, p. 190)".

A diretriz apontada pelo Supremo Tribunal Federal, pela qual os Estados não podem legislar sobre processo, julgamento e definição dos crimes de responsabilidade, é a que prevalece na atualidade. Com efeito, somente a lei federal poderá dispor sobre o processo, julgamento e definição dos crimes de responsabilidade cometidos por autoridades estaduais. Se a norma local dispuser sobre tais matérias será ela inaplicável, salvo, é óbvio, se guardar estrita consonância com o modelo federal. Em outras palavras: ou a norma estadual simplesmente repete o preceito federal ou, inovando ou dispondo de modo contrário, será inválida.

No caso específico do Estado de Alagoas, a Constituição local estabelece algumas regras procedimentais a serem seguidas na hipótese de crimes de responsabilidade cometidos pelo Governador e seus Secretários. Vale citá-las:

"art. 79. Compete privativamente à Assembléia Legislativa:

I – autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo por crime de responsabilidade contra o Governador, o Vice-Governador e os Secretários de Estado;"

(...)

"art. 109. São crimes de responsabilidade os atos do Governador do Estado que atentarem contra as Constituições Federal e Estadual e especificamente:

I – a existência e a integridade da União Federal;

II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Governos Municipais;

III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;

IV – a segurança interna do país, do Estado e do Município;

V – a probidade na Administração;

VI – a lei orçamentária;

VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais;

VIII – a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos;

IX – a honra o decoro de suas funções.

Parágrafo único. A apuração e o julgamento dos crimes que trata este artigo serão realizados na conformidade do que dispuser a lei.

"art. 101. Admitida a acusação pela Assembléia Legislativa Estadual, pelo voto de dois terços de seus membros, será o Governador do Estado, nas infrações penais comuns, submetido a julgamento perante o Superior Tribunal de Justiça, e, perante a própria Assembléia Legislativa, na hipótese de crime de responsabilidade".

A pergunta que, forçosamente, vem à tona é a seguinte: são válidas (constitucionais) essas disposições da Constituição Estadual de Alagoas de 1989? Ou melhor: teria o poder constituinte estadual competência legislativa para dispor sobre crimes de responsabilidade ou estaria a matéria entre aquelas submetidas à reserva de lei federal?

O Supremo Tribunal Federal, várias vezes, seguindo a orientação pretérita já mencionada, declarou a inconstitucionalidade de Constituições estaduais e outras normas não-federais que dispunham sobre os crimes de responsabilidade de autoridades locais. Entendeu-se que os crimes de responsabilidade e seu respectivo processo e julgamento são matérias estritamente submetidas à reserva de lei federal.

Exemplificativamente, na ADInMC 2.220-SP, rel. Min. Octavio Gallotti, 1º.8.2000, por aparente ofensa à competência da União para legislar sobre direito processual (CF, art. 22, I), assim como para definir os crimes de responsabilidade (CF, art. 85, parágrafo único), o Supremo Tribunal Federal deferiu medida cautelar em ação direta ajuizada pelo Procurador-Geral da República para suspender a eficácia de dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo que definem os crimes de responsabilidade do Governador e regulam o seu processo e julgamento [14]. Igualmente, na ADInMC 1.628 – SC (rel. Nelson Jobim), ficou assentado que "a definição de crimes de responsabilidade e a regulamentação do respectivo processo e do julgamento são de competência da União (Constituição Federal, art. 85, parágrafo único, e 22, I)" [15].

Portanto, prevalece no âmbito do Supremo Tribunal Federal, sobretudo após a Constituição de 1988, o entendimento de que as constituições estaduais não podem tratar do processo ou definição de crimes de responsabilidade. A competência, no caso, é da União, tanto para definir os tipos, quanto para regulamentar o processo e julgamento.

Os dispositivos da Constituição do Estado de Alagoas, naquilo em que confrontarem com os ditames das normas federais, são, por esta razão, inconstitucionais, devendo ser aplicadas, no processo e julgamento de Governadores de Estado, as regras da Lei 1.079/50, adaptadas ao novo modelo estabelecido pela Constituição de 1988 para o processo e julgamento do Presidente da República. Caso a Constituição Estadual apenas reproduza, ipsis literis, os dispositivos da Constituição Federal ou da Lei 1.079/50, não há, obviamente, razão para se reconhecer a sua inconstitucionalidade. Na hipótese, a norma estadual será inócua, sem razão para existir.

No tópico seguinte, serão analisados os aspectos formais referentes ao processo e julgamento dos Governadores e Secretários de Estado nos crimes de responsabilidade.


3. Aspectos Formais Referentes ao Processamento do Crime de Responsabilidade

É preciso tecer alguns comentários acerca da legitimidade ativa para iniciar o procedimento nos crimes de responsabilidade instaurados contra Governadores de Estado e seus Secretários. Muitas divagações podem vir à tona; afinal, trata-se do exercício de um direito político de suma importância, que pode modificar a própria história do Estado.

Não há, na Constituição Federal, um órgão em particular incumbido a dar o impulso inicial do processo dos crimes de responsabilidade eventualmente cometidos pelo Presidente da República.

Se se considerar que o crime de responsabilidade é um crime de ação penal pública, somente os membros do ministério público teriam a competência privativa para impulsioná-lo, sem prejuízo da ação penal privada subsidiária (cf. art. 129, inc. I, e art. 5º, inc. LIX, da CF/88: "são funções institucionais do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei" e "será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal"). Há, inclusive, parecer neste sentido da lavra dos juristas Roberto Delmanto e Roberto Delmanto Júnior, com o título Ilegitimidade Processual dos Autores do Pedido de ‘Impeachment’, publicado na Revista dos Tribunais, v. 82, nº 698, São Paulo, 1993, p. 410/411. Esse ponto de vista, contudo, é minoritário, não prevalecendo em julgado algum do Supremo Tribunal Federal.

Em verdade, o entendimento dominante é no sentido de que continua em vigor a denúncia popular, prevista na Lei 1.079/50. A regra da denúncia popular vale tanto para o Presidente da República e Ministros de Estado (art. 14), quanto para os Governadores e Secretário de Estado (art. 75). Vale citar este dispositivo:

"art. 75. É permitido a todo cidadão denunciar o Governador perante a Assembléia Legislativa, por crime de responsabilidade".

Analisando a validade do "princípio da denunciabilidade popular", na hipótese de crime de responsabilidade cometido por Ministro de Estado, o eminente Ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal perfilhou o entendimento de que permanecem válidos os dispositivos da Lei 1.079/50. Veja-se:

"Essa questão - que consiste no reconhecimento da legitimidade ativa de qualquer cidadão (vale dizer, de qualquer eleitor) para fazer instaurar, perante o Supremo Tribunal Federal, o concernente processo de impeachment contra Ministro de Estado - assume indiscutível relevo político-jurídico.

É irrecusável, no entanto, que, em tema de ativação da jurisdição constitucional pertinente ao processo de impeachment, prevalece, em nosso sistema jurídico, enquanto diretriz básica, o "princípio da denunciabilidade popular" (PONTES DE MIRANDA, "Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1, de 1969", tomo III/355, 2ª ed., 1970, RT).

Essa circunstância justifica o reconhecimento, em favor dos ora denunciantes - ambos cidadãos no pleno exercício de seus direitos políticos -, da legitimidade ativa ad causam necessária à instauração do processo de apuração da responsabilidade político-administrativa de Ministro de Estado, perante o Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, I, c, da Constituição" (Inquérito 1.350 – DF, DJU de 15 de fevereiro de 2000).

Assim, somente o cidadão, nessa qualidade, possui legitimidade ativa para denunciar as autoridades indicadas pela Lei 1.079/50 por crime de responsabilidade.

Quanto a esse ponto, o professor Alexandre de Moraes é enfático:

"Todo cidadão, e apenas ele, no gozo de seus direitos políticos é parte legítima para oferecer acusação à Câmara dos Deputados. A acusação da prática de crime de responsabilidade diz respeito às prerrogativas da cidadania do brasileiro que tem o direito de participar dos negócios políticos" (Direito Constitucional. 5ª ed. Atlas, São Paulo, 1999, p. 393).

E mais à frente arremata o mestre:

"A legitimidade ativa ad causam, portanto, não se estende a qualquer um, mas somente às pessoas investidas no status civitatis, excluindo, portanto, pessoas físicas não alistadas eleitoralmente, ou que foram suspensas ou perderam seus direitos políticos (CF, art. 15) e, ainda, as pessoas jurídicas, os estrangeiros e os apátritadas" (Ob. cit. p. 393) - grifamos.

O constitucionalista e parlamentar Michel Temer é igualmente claro ao explicar que, no caso do Presidente da República, "todo cidadão no gozo de seus direitos políticos é parte legítima para oferecer a acusação à Câmara dos Deputados. Somente os cidadãos, isto é, aqueles que a Constituição define como brasileiros (art. 12). E devem estar no gozo de seus direitos políticos. Só quem deles goza pode exercê-los. A acusação da prática do crime de responsabilidade diz respeito às prerrogativas da cidania; do brasileiro que tem o direito de participar dos negócios políticos" (Elementos de Direito Constitucional. 10ª ed. Malheiros, São Paulo, 1994, p. 157/158) [16].

Feitas essas considerações, fica fácil perceber que o Tribunal Regional do Trabalho da 19ª Região não teria legitimidade ativa para oferecer representação (denúncia) contra o Governador e os Secretários de Estado. A denúncia formulada, por isso, não merece prosperar, havendo, no caso, a típica hipótese de "carência de ação" (ausência de uma das condições da ação, qual seja, legitimidade ativa ad causam). A Assembléia Legislativa tem, portanto, o dever de sumariamente indeferir a denúncia, ressalvando-se, é claro, a possibilidade de, sanado o defeito apontado, dar prosseguimento a seu processamento.

3.2. O Rito a Ser Seguido no Processamento de Governador de Estado e de Seus Secretários por Crime de Responsabilidade

"O processo de impeachement submete-se a uma ordem ritual definida, que se desenvolve, de modo escalonado, em fases procedimentais rigidamente demarcadas. Enquanto estrutura formal, o impeachement observa um rito procedimental, com momentos próprios, vinculados, cada qual, a finalidades específicas. A estipulação de prazos — prazos que são peremptórios e preclusivos —, para a prática de atos processuais pelo denunciado, não se revela incompatível com o postulado do due process of law e com todas as conseqüências jurídicas que dele derivam" Min. Celso de Mello, MS 21623-DF.

Se, por um lado, é fácil compreender que somente o cidadão tem a legitimidade ativa para deflagrar o processo de impeachment do Governador de Estado, por outro lado, saber qual o rito a ser seguido após protocolizada a denúncia é questão bastante tormentosa. Somente através de uma análise sistemática das decisões do Supremo Tribunal Federal, torna-se possível visualizar todo o iter procedimental nos crimes de responsabilidade atribuídos a Governador de Estado.

Lembra-se que as constituições estaduais não podem dispor sobre crimes de responsabilidade das autoridades locais. Qualquer solução de ordem processual, portanto, há de ser buscada ou na própria Constituição Federal, ou na Lei 1.079/50. Esta (a Lei 1.079/50) somente será aplicável naquilo em que não contrariar o novo modelo federal adotado para a responsabilização do Presidente da República.

Entre as várias indagações de natureza processual que podem surgir, enumeram-se as seguintes: 1) qual o órgão competente para apreciar o recebimento da acusação? 2) qual o órgão competente para processar acusação, após o seu recebimento? 3) qual o órgão competente para o julgamento do processo? 4) qual o quorum a ser adotado no recebimento da acusação e julgamento do processo? 5) em qual momento processual ocorre o afastamento provisório do Governador (no recebimento da acusação ou na instauração do processo)?

A Constituição do Estado de Alagoas e a Lei 1.079/50 tratam de cada uma dessas matérias de modo diverso. Pela Lei 1.079/50 (art. 77), se a Assembléia Legislativa, por maioria absoluta, decretar a procedência da acusação, será o Governador imediatamente suspenso de suas funções. O julgamento, no caso, competiria a um tribunal misto, composto de cinco membros do Legislativo e de cinco desembargadores sob a presidência do Presidente do Tribunal de Justiça local. A escolha desse Tribunal seria feita – a dos membros do Legislativo, mediante eleição pela Assembléia; a dos desembargadores, mediante sorteio. No caso da Constituição Estadual (art. 110), admitida a acusação pela Assembléia Legislativa Estadual, pelo voto de dois terços de seus membros, será o Governador submetido a julgamento perante a própria Assembléia Legislativa, na hipótese de crime de responsabilidade, e somente ficará suspenso de suas funções "após a instauração do processo pela Assembléia Legislativa". A antinomia, portanto, é manifesta. Cumpre aferir qual a norma a ser aplicada.

Viu-se que as constituições estaduais não podem tratar do processo e julgamento dos crimes de responsabilidade. Assim, à primeira vista, afastar-se-ia por completo a incidência dos preceitos da Constituição Estadual. Por outro lado, a Lei 1.079/50, no seu art. 78, remete às constituições estaduais a forma do julgamento do Governador, regulamentando a matéria apenas "nos Estados onde as Constituições não determinarem o processo nos crimes de responsabilidade dos Governadores". Seria, nesse ponto, a Lei 1.079/50 inconstitucional? Vale dizer: poderia a lei federal delegar aos Estados-membros a elaboração de normas processuais, em matéria, que por força da Constituição, é de sua competência privativa?

A resposta a essa pergunta já foi reproduzida acima, quando ficou ressaltado que compete, exclusivamente à União Federal, legislar sobre direito Penal e o processo. Logo, não pode, o legislador estadual definir sujeitos de responsabilidade, crimes, órgãos jurisdicionais e processo, que não estejam previstos na lei federal. Assim, entre as regras da Lei 1.079/50 e as regras da constituição estadual, no que forem conflitantes, aplica-se a primeira.

Há, não obstante, mais algumas ressalvas. A Lei 1.079/50 foi promulgada à luz da Constituição de 1946, quando a matéria tinha disciplina bastante diferente da estabelecida na Constituição de 1988. Logo, a Lei 1.079/50 não pode ser aplicada "cegamente", sem críticas. É preciso adaptá-la à nova regulamentação constitucional.

Tomando com base o voto do e. Ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, proferido na ADIn nº 1.628-8 – Santa Catarina, referendado por unanimidade pelo plenário, é possível extrair algumas regras referentes ao processamento e julgamento dos Governadores de Estado pela prática de crimes de responsabilidade. Assinale-se que as normas da Constituição do Estado de Santa Catarina atacadas na ADIn assemelhavam-se bastante com as normas da Constituição do Estado de Alagoas.

Naquele julgamento, o emérito Ministro fez precisamente as seguintes perguntas: "(a) a Constituição do Estado pode dispor sobre essa matéria [crime de responsabilidade]? (b) Pode ela afastar a incidência da Lei Federal, criando órgão específico, que seria a própria Assembléia Legislativa, para julgar o Sr. Governador de Estado? (c) Pode a Constituição estadual estabelecer que a suspensão – contrariamente ao que dispõe a Lei Federal – da função do Governador deverá se dar quando do início do procedimento perante a Assembléia Legislativa, com o juízo de admissibilidade da acusação?"

Após tecer comentários sobre o impeachment, o Ministro entendeu, na linha jurisprudencial já consolidada, que a definição dos crimes de responsabilidade, como também o estabelecimento de normas de processo e julgamento, é da competência da União Federal, devendo, portanto, ser aplicada a Lei 1.079/50, no processo e julgamento dos Governadores de Estado. Em face disso arrematou:

"O art. 77 da Lei dispõe: ‘Apresentada a denúncia e julgada objeto de deliberação, se a Assembléia Legislativa, por maioria absoluta’ – leia-se, aqui, maioria de 2/3, em decorrência do quorum da Constituição de 1988, matéria essa superada nessa Corte – ‘decretar a procedência da acusação, será o Governador imediatamente suspenso de suas funções’.

Então, Sr. Presidente, entendo que, vigente a Lei Federal por sobre as normas estaduais, não poderá: (a) o Governador de Estado ser suspenso de suas funções como decorrência da admissibilidade da denúncia, e (b) não poderá ser julgado pela Assembléia Legislativa, mas, sim, pelo órgão da Lei de 1950" [17].

Assim, de acordo com a orientação do Supremo Tribunal Federal, o órgão competente para processar e julgar o Governador do Estado é o Tribunal Especial de que fala a Lei 1.079/50, de composição mista [18].

Com relação especificamente ao quorum tanto para o juízo de admissibilidade da denúncia quanto para o julgamento final do Governador, o Pretório Excelso vem entendendo que o disposto no art. 86, caput, da CF ("Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.") não é prerrogativa exclusiva do Presidente da República, devendo os Estados-membros estender sua aplicação a seus Governadores. Com base nesse entendimento, na ADInMC 1.634-SC, rel. Min. Néri da Silveira, 17.9.97, o STF indeferiu medida liminar em ação direta requerida pelo Partido dos Trabalhadores - PT, na qual se impugnavam normas do Estado de Santa Catarina que prevêem o quorum de dois terços da Assembléia Legislativa estadual para o recebimento de denúncia contra o governador por crime comum (Constituição Estadual, art. 73), e de representação por crime de responsabilidade (Regimento Interno da Assembléia Legislativa, art. 243, § 4º) [19]. Ressalte-se, nesse caso, o quorum da Lei 1.079/50 foi "adaptado" à disciplina constitucional estabelecida desde a Constituição de 1967.

Levando em consideração as regras acima expostas, e analisando a Lei Federal 1.079/50 à luz da Constituição de 1988, pode-se resumir o inter procedimental do julgamento dos Governadores de Estado, nos crimes de responsabilidade, da seguinte forma:

1. o cidadão faz o protocolo da denúncia perante a Assembléia Legislativa (apresentação da denúncia);

2. é formada, na Assembléia Legislativa, comissão especial para dar parecer sobre se a denúncia deve ou não ser objeto de deliberação, conforme dispuser o Regimento Interno da Assembléia (juízo político de mera conveniência e oportunidade, bem como de análise dos aspectos formais da denúncia – exemplificativamente, "os pertinentes à legitimidade ativa dos denunciantes ou à eventual ilegalidade passiva do agente público denunciado, ou à inépcia jurídica da peça acusatória, ou à observância das formalidades rituais, ou, ainda, aos próprios pressupostos de válida instauração do procedimento parlamentar");

3. antes de submeter o parecer à apreciação do Plenário, a Comissão Especial deverá, em obséquio ao princípio da ampla defesa e do contraditório, conceder aos acusados a possibilidade de contraditar a denúncia, sem contudo, iniciar o "processo" propriamente dito [20];

4. apresentado o parecer, a Assembléia deliberará, em escrutínio aberto [21], acerca da admissibilidade ou não da denúncia, atuando tal qual a Câmara dos Deputados [22];

5. admitida a acusação do Governador, por dois terços da Assembléia Legislativa, será ele submetido a julgamento perante o tribunal especial de que fala o art. 78, da Lei 1.079/50;

6. instaurado o processo pelo tribunal especial, ficará o Governador suspenso temporariamente de suas funções;

7. após o regular processamento, em que se observarão todas as garantias processuais decorrentes do due process of law (contraditório, ampla defesa, publicidade, motivação etc), aplicando-se, no que couber, o Código de Processo Penal, o tribunal especial, que ocupará papel semelhante ao do Senado Federal, no julgamento do Presidente da República, julgará a denúncia, por dois terços de seus membros.

Em síntese, são estas as regras processuais a serem observadas.


4. Questões de Mérito

Que a definição dos crimes de responsabilidade está submetida à reserva de lei (lei federal, diga-se de passagem) não resta dúvida. A Constituição Federal, nesse ponto, é bastante clara (art. 85, parágrafo único). Dessa forma, o princípio da estrita legalidade (reserva legal), com todos os seus consectários, aplica-se integralmente na tipificação dos crimes funcionais. Não há crime de responsabilidade sem lei federal anterior que o defina, devendo a referida lei tipificar com precisão e de forma cristalina a conduta proibida. Porém, não é qualquer conduta que pode ser definida pela lei como crime de responsabilidade. Essa conduta, antes de tudo, deve ser uma conduta que atente contra a Constituição. É que o caput do art. 85, da CF/88, determina que "são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição, e, especialmente...". Por esta razão, qualquer ato de autoridade contrário aos mandamentos constitucionais pode, em tese, se a lei federal assim o determinar, configurar um crime de responsabilidade [23]. Nessa matéria, como informou o Min. Celso de Mello, "mostra-se essencial que os comportamentos legalmente qualificados como crimes de responsabilidade traduzam, sempre, atos de violação da Constituição ou dos princípios que ela adota" (MS 21.564-DF).

Percebe-se que não é qualquer ato de autoridade que viole a Constituição que será considerado crime de responsabilidade. Do contrário, toda vez que um ato administrativo(e.g. uma medida provisória, um decreto etc) fosse declarado inconstitucional pelo Poder Judiciário, deveria haver a imputação de crime de responsabilidade à autoridade que o editou. É fundamental, pois, que, além de inconstitucional, o ato seja típico, vale dizer, configure, em tese, um crime de responsabilidade, conforme definido em lei.

Embora caiba a um órgão próprio o julgamento do Governador do Estado nos crimes de responsabilidade, esta circunstância, por si só, não afasta a possibilidade do controle jurisdicional da própria existência, em tese, da imputação de um crime. Confira-se, nesse sentido, trecho de voto proferido pelo Min. Sepúlveda Pertence no julgamento do Mandado de Segurança 21.546/DF:

"Desse modo, Senhor Presidente, não excluo a verificação da existência, em tese, da imputação de um crime de responsabilidade, dada a exigência constitucional, que é peculiar ao nosso sistema, de sua tipificação em lei, ainda que não exclua a ampla discricionariedade e a exclusividade do juízo do Senado na concretização dos conceitos indeterminados na definição típica dos crimes de responsabilidade".

Da análise do voto, infere-se a importância de um adequado juízo jurídico por parte do Poder Legislativo, na aferição da ocorrência ou não da conduta criminosa imputada às autoridades. Não basta desejar politicamente o afastamento do Governador; antes é preciso, inexoravelmente, saber se ele cometeu algum crime de responsabilidade [24]. Assim, para o impeachment do Governador faz-se fundamental que a concorrência de dois fatores inafastáveis: (a) o ânimo político dos deputados estaduais desejando o afastamento e, (b) que o Governador tenha cometido, de fato, algum crime de responsabilidade definido em lei federal. Com relação ao ânimo político, nenhum comentário há a fazer: trata-se de matéria que escapa inteiramente a qualquer apreciação jurídica. A análise da tipicidade formal e material da conduta, por outro lado, demanda um raciocínio essencialmente jurídico, empírico-dialético, através do qual o jurista, diante dos fatos, dos valores e das normas fornecidos, pode trilhar com certa segurança. Será nesta seara jurídica que se caminhará doravante.

4.2. O Caso Concreto

O crime de responsabilidade que se imputa ao Governador do Estado, no caso ocorrente, é não haver incluído na proposta orçamentária de 2001 a verba necessária ao pagamento dos precatórios trabalhistas. Teria, com isso, o Chefe do Executivo local violado a norma constitucional constante do §1º, do art. 100, da Constituição, que prescreve:

"art. 100. (...)

§1º. É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de débitos constantes de precatórios judiciais, apresentados até 1º de julho, data em que serão atualizados seus valores, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte".

Essa norma, justamente por ser de status constitucional, é, potencialmente, hábil a configurar um crime de responsabilidade, desde que haja a sua definição típica em uma lei federal [25]. A Constituição, por si só, não cria tipos penais; delega a uma lei especial a sua definição. Não fosse assim seria completamente inútil o cânone inscrito no parágrafo único, do art. 85, pelo qual os crimes de responsabilidade serão definidos em lei especial. Desse modo, para verificar se houve ou não o cometimento de crime de responsabilidade por parte do Governador, não basta aferir se houve a violação da norma constitucional. É preciso, a par disso, avaliar se houve afronta direta às leis federais que definem tais crimes.

A denúncia oferecida não deixa claro qual foi especificamente o crime cometido pelo Governador e os Secretários de Estado. Há a citação de uma série de normas, sem qualquer indicação da moldura típica delituosa, o que, sem dúvida, pode resultar em prejuízo à eventual defesa das autoridades indicadas. Sem adentrar na polêmica de saber se, por este motivo, a denúncia seria inepta [26], vale analisar todos os dispositivos legais citados pelo Tribunal-denunciante, combinando com outros correlatos, aferindo se houve ou não o descumprimento, formal e material, dos preceitos invocados.

Compulsando atentamente a Lei 1.079/50, verifica-se que não existe dispositivo algum que tipifique expressamente como crime de responsabilidade a não-inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de débitos constantes de precatórios judiciais [27]. A definição típica mais semelhante seria a prevista no art. 10 (crimes contra a lei orçamentária), inc. I: "não apresentar ao Congresso Nacional a proposta do orçamento da República dentro dos primeiros dois meses de cada sessão legislativa". Obviamente, a conduta omissiva do Governador do Estado, no caso, não foi essa, uma vez que a proposta orçamentária foi remetida dentro do prazo determinado. Resta verificar os dispositivos citados pelo denunciante.

Fundou-se a representação, entre outros, nos artigos 10 e 73, da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal. Eis o que enunciam tais dispositivos legais:

"art. 10. A execução orçamentária e financeira identificará os beneficiários de pagamento de sentenças judiciais, por meio de sistema de contabilidade e administração financeira, para fins de observância da ordem cronológica determinada no art. 100 da Constituição".

"art. 73. As infrações dos dispositivos desta Lei Complementar serão punidas segundo o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950; o Decreto-Lei nº 201, de 27 de fevereiro de 1967; a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992; e demais normas da legislação pertinente".

Não é preciso muito esforço intelectual para compreender que a conduta omissiva do Governador não se enquadra na hipótese. Pelo contrário, somente com muita tortura do texto é possível dizer que houve, por parte do Chefe do Executivo, violação ao preceito normativo citado. A norma expressamente menciona e trata da "execução orçamentária e financeira". Ora, a execução orçamentária e financeira ocorre em momento posterior ao envio da proposta orçamentária à Assembléia. Não há falar em execução orçamentária, sem lei orçamentária aprovada a ser executada. O dispositivo, portanto, é manifestamente inaplicável ao caso ocorrente, não se prestando a embasar qualquer denúncia por crime de responsabilidade, em razão da não inclusão no orçamento da verba necessária ao pagamento dos débitos decorrentes de precatórios. Nesse ponto, a denúncia apresentada foi leviana, irrefletida e precipitada. A indignação da douta Juíza Presidente do Tribunal trabalhista, com tal argumento, sobrepujou a prudência, que deve orientar os passos dos operadores do direito. É deplorável que, no intuito de defender seu ponto de vista, tenha o denunciante apresentado tão gritante despropósito argumentativo, capaz de comprometer toda a seriedade da representação.

Por último, resta a análise do dispositivo previsto no art. 12, da Lei 1.079/50, citado pelo denunciante. Eis o que prescreve o texto legal:

"art. 12. São crimes de responsabilidade contra as decisões judiciárias:

1. impedir, por qualquer meio, o efeito dos atos, mandados ou decisões do Poder Judiciário;

2. recusar o cumprimento das decisões do Poder Judiciário no que depender do exercício das funções do Poder Executivo;

3. deixar de atender a requisição de intervenção federal do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal Superior Eleitoral;

4. impedir ou frustrar pagamento determinado por sentença judiciária".

O Órgão denunciante parece entender que, por não ter o Chefe do Executivo incluído na proposta orçamentária a verba necessária ao pagamento dos precatórios trabalhistas, houve, indiretamente, descumprimento às decisões judiciais. Sendo verdadeira a assertiva, a responsabilidade dos Secretários de Estado, no caso, já estaria afastada, uma vez que ao Governador – e não aos Secretários de Estado – compete remeter ao Poder Legislativo a proposta orçamentária. Só comete a infração penal quem praticar a conduta - ação ou omissão. Não há responsabilidade penal se a pessoa não estiver indicada (expressa, ou implicitamente) no tipo legal de crime; logo, não há que se imputar a omissão aos Secretários, que não possuem a obrigação (em sentido normativo) de remeter a proposta orçamentária ao órgão legiferante. Talvez tenha sido por esse motivo que não foi requerida sanção alguma aos Secretários. Assim, afastada a responsabilidade dos Secretários indicados, passa-se ao exame da conduta omissiva do Governador.

4.2.1 O Cumprimento das Decisões Judiciais como Cânone Constitucional: Princípio da Sujeição da Administração às Decisões do Poder Judiciário

O respeito às decisões proferidas pelo Poder Judiciário, sobretudo as decorrentes de sentenças transitadas em julgado, constitui dogma a ser observado por todos que compõem a estrutura orgânica do Estado. Como explicou o Ministro Celso de Mello, a exigência de respeito incondicional às decisões judiciais transitadas em julgado traduz imposição constitucional, justificada pelo princípio da separação de poderes e fundada nos postulados que informam, em nosso sistema jurídico, a própria concepção de Estado Democrático de Direito. O dever de cumprir as decisões emanadas do Poder Judiciário, notadamente nos casos em que a condenação judicial tem por destinatário o próprio Poder Público, muito mais do que simples incumbência de ordem processual, representa uma incontornável obrigação institucional a que não se pode subtrair o aparelho de Estado, sob pena de grave comprometimento dos princípios consagrados no texto da Constituição da República (IF nº 590-CE - QO, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJU de 09/10/98).

A sujeição da Administração às decisões do Poder Judiciário é considerado por Eros Roberto Grau um princípio jurídico fundamental implícito, vale dizer, que se encontra em estado de latência, "descoberto" no sistema. Nem por isso perde ele o seu caráter normativo, com força vinculante, num grau máximo de juridicidade, e com uma normatividade potencializada e predominante.

Os princípios jurídicos podem estar expressamente enunciados em normas explícitas ou podem ser descobertos no ordenamento jurídico, sendo que, neste último caso, eles continuam possuindo força normativa. Ou seja, não é por não ser expresso que o princípio deixará de ser norma jurídica. Reconhece-se, destarte, normatividade não só aos princípios que são, expressa e explicitamente, contemplados no âmago da ordem jurídica, mas também aos que, defluentes de seu sistema, são anunciados pela doutrina e descobertos no ato de aplicar o Direito (ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 55). Como observa LUÍS ROBERTO BARROSO, "os grandes princípios de um sistema jurídico são normalmente enunciados em algum texto de direito positivo. Não obstante, e sem pretender enveredar por discussão filosófica acerca do positivismo e jusnaturalismo, tem-se, aqui, como fora de dúvida que estes bens sociais supremos existem fora e acima das regras legais, e nelas não se esgotam, até porque não tem caráter absoluto e se encontram em permanente mutação. No comentário de Jorge Miranda, ‘o Direito nunca poderia esgotar-se nos diplomas e preceitos constantemente publicados e revogados pelos órgãos do poder’" (BARROSO, Luís Roberto. Direito...p.288). Nessa categoria de princípios, que, embora não expressos no texto constitucional ou em qualquer outro diploma escrito, são de obrigatória observância situa-se o princípio do respeito às ordens judiciais. Logo, como consectário da harmonia entre os poderes, o Executivo não pode se furtar de cumprir as determinações oriundas dos órgãos jurisdicionais.

4.2.2 A Relatividade dos Princípios Constitucionais

"Não há princípio do qual se possa pretender seja acatado de forma absoluta, em toda e qualquer hipótese, pois uma tal obediência unilateral e irrestrita a uma determinada pauta valorativa - digamos, individual - termina por infringir uma outra - por exemplo, coletiva. Daí se dizer que há uma necessidade lógica e, até, axiológica, de se postular um ‘princípio de proporcionalidade’, para que se possa respeitar normas, como os princípios - e, logo, também as normas de direitos fundamentais, que possuem o caráter de princípios -, tendentes a colidir" Willis Santiago Guerra Filho, A Norma de Direito Fundamental

Afirmar que os princípios constitucionais são, ontologicamente, normas jurídicas, vinculantes, com um teor máximo de juridicidade e normatividade potencializada e predominante, não significa dizer que sua aplicação é ilimitada, absoluta e irrestrita. Claro que não. Os princípios constitucionais vivem em uma tensão permanente e recíproca, limitando-se entre si, de modo que a relatividade dessas normas é nota característica de sua própria essência.

Essa tensão existente entre os princípios é conseqüência da própria carga valorativa inserta na Constituição, que, desde o seu nascedouro, incorpora, em uma sociedade pluralista, os interesses das diversas classes componentes do Poder Constituinte originário. Esses interesses, como não poderiam deixar de ser, em diversos momentos não se harmonizam entre si em virtude de representarem a vontade política de classes sociais antagônicas. Surge, então, dessa pluralidade de concepções - típica em um "Estado Democrático de Direito" que é a fórmula política adotada por nós - um estado permanente de tensão entre as normas constitucionais. Como explica MÜLLER, a Constituição é de si mesma um repositório de princípios às vezes antagônicos e controversos, que exprimem o armistício na guerra institucional da sociedade de classes, mas não retiram à Constituição seu teor de heterogeneidade e contradições inerentes, visíveis até mesmo pelo aspecto técnico na desordem e no caráter dispersivo com que se amontoam, à consideração do hermeneuta, matéria jurídica, programas políticos, conteúdos sociais e ideológicos, fundamentos do regime, regras materialmente transitórias embora formalmente institucionalizadas de maneira permanente e que fazem, enfim, da Constituição um navio que recebe e transporta todas as cargas possíveis, de acordo com as necessidades, o método e os sentimentos da época (apud BONAVIDES, Paulo. Curso...p. 460).

Ademais, o simples fato de os princípios constituírem um sistema aberto, ou seja, permitirem uma compreensão fluida e plástica, já insinua (ou deixa subentendido) que podem existir fenômenos de tensão entre esses princípios componentes dessa dinâmica ordem sistêmica, sujeita a uma variabilidade infinita de circunstâncias influenciadoras. Por essa razão, nos casos concretos, é muito comum o jurista deparar-se com dois princípios conflitantes. É o que costuma denominar-se de colisão de princípios [28].

Como se sabe, a situação de regras incompatíveis entre si é denominada antinomia. Há três critérios clássicos, apontados por BOBBIO e aceitos quase universalmente, para solução de antinomias: o critério cronológico (lex posterior derogat priori), o critério hierárquico (lex superior derogat inferiori) e, por último, o critério da especialidade (lex specialis derogat generali). Assim, no caso de duas regras em conflito, aplica-se um desses três critérios, na forma do tudo ou nada (no all or nothing [29]): "se se dão os fatos por ela estabelecidos, então ou a regra é válida e, em tal caso, deve-se aceitar a conseqüência que ela fornece; ou a regra é inválida e, em tal caso, não influi sobre a decisão" [30].

No caso de colisão de princípios constitucionais, porém, não se trata de antinomia [31], vez que não se pode simplesmente afastar a aplicação de um deles. Portanto, não há que se falar em aplicação destes critérios para solucionar eventual colisão de princípios constitucionais. Como assevera CANOTILHO, "assim, por ex., se o princípio democrático obtém concretização através do princípio maioritário, isso não significa desprezo da proteção das minorias (...); se o princípio democrático, na sua dimensão económica, exige a intervenção conformadora do Estado através de expropriações e nacionalizações, isso não significa que se posterguem os requisitos de segurança inerentes ao princípio do Estado de direito (princípio de legalidade, princípio de justa indenização, princípio de acesso aos tribunais para discutir a medida da intervenção)" (apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 242).

Surge, em razão dessa impossibilidade de se aplicar os critérios clássicos para resolver antinomias, no caso de conflito entre princípios, uma tormentosa questão: quid iuris no caso de uma colisão de princípio constitucionais, já que eles possuem a mesma hierarquia normativa e, portanto, devem ser igualmente obedecidos?

Entre as diversas soluções apontadas pela doutrina (concordância prática [32], proporcionalidade, dimensão de peso e importância [33]) todas vão desembocar em uma vala comum: a necessária ponderação dos valores em jogo. O intérprete, no caso concreto, através de uma análise necessariamente tópica, terá que verificar, seguindo critérios objetivos e subjetivos, qual o valor que o ordenamento, em seu conjunto, deseja preservar naquela situação.

Partindo dessas premissas teóricas, é possível concluir que o princípio da sujeição da Administração às decisões judiciais não é absoluto. Há limites, naturais e econômicos, para a sua fiel observância. Veja-se.

A Constituição, é certo, exige que o administrador inclua na proposta orçamentária o montante necessário ao pagamento dos precatórios. Por outro lado, a Constituição também impõe (1) que os servidores públicos, aposentados e pensionistas sejam pagos; (2) que o Administrador invista vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino, conforme dispõe o art. 212; (3) que o Estado repasse aos Municípios cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto sobre a propriedade de veículos automotores licenciados em seus territórios, na forma do art. 158, III; (4) que o Estado repasse aos Municípios vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, de acordo com o art. 158, IV; (5) que o Estado pague, em dia, suas dívidas com a União e suas autarquias, sob pena de retenção de recursos federais, no modo estipulado no art. 160, parágrafo único; (6) que o Administrador invista recursos mínimos em ações e serviços públicos de saúde, conforme dispõe o art. 198, §2º e 3º, com a redação dada pela EC nº 29/2000; (7) que invista em práticas esportivas, na cultura, no turismo, no desenvolvimento científico, pesquisa e capacitação tecnológica, na proteção ao meio-ambiente, na assistência social, enfim, em todos os valores assegurados na Constituição.

Considerando essas imposições constitucionais, extraem-se algumas conclusões quanto aos limites à aplicação do princípio do cumprimento das decisões do Poder Judiciário, que importem em dispêndio de verbas para a Administração:

1ª Situação. Havendo ampla disponibilidade orçamentária não haverá limite ao cumprimento das decisões judiciais, salvo se um interesse maior (vida, liberdade, dignidade da pessoa humana etc) estiver sendo ameaçado pela obediência da decisão. No caso, todas os deveres constitucionais impostos ao Estado poderão ser cumpridos.

2ª Situação. A disponibilidade de dinheiro não é suficiente para saldar as dívidas decorrentes de decisão judicial, nem para cumprir as demais imposições constitucionais. Aqui o problema se complica e é precisamente nessa situação que se encontra o Estado de Alagoas. Não há verba suficiente para pagar os débitos decorrentes de precatórios, nem para cumprir as obrigações determinadas na Constituição. O princípio da sujeição da Administração às decisões judiciais está, portanto, limitado por um fator econômico intransponível: a ausência de verba para pagar as dívidas. Tal situação convencionou-se denominar de "exaustão orçamentária" e será analisada no tópico seguinte.

4.2.3. A Exaustão Orçamentária: Teoria da Impossibilidade Material

A exaustão orçamentária, conforme adverte Eros Roberto Grau, "é a situação que se manifesta quando inexistirem recursos suficientes para que a Administração possa cumprir determinada ou determinadas decisões judiciais. Não há, no caso, disponibilidade de caixa que lhe permita cumpri-las". E continua o autor: "Aqui não importa a prevalência do princípio da sujeição da Administração às decisões do Poder Judiciário, em relação ao princípio da legalidade da despesa pública. Ainda que afastadas as regras que a este último conferem concreção, ainda assim não terá condições, a Administração de dar cumprimento às decisões judiciais". (Despesa Pública. Conflito entre Princípios e Eficácia das Regras Jurídicas. O Princípio da Sujeição da Administração às Decisões do Poder Judiciário e o Princípio da Legalidade da Despesa Pública, RTDP, n. 2, Malheiros editores, São Paulo, 1993, p. 144).

Nesse caso, a exaustão da capacidade orçamentária estabelece um conflito entre as decisões judiciais e a realidade. Entre a realidade e o direito. Sob tal ângulo, a compreensão da exaustão da capacidade orçamentária importa considerar a força normativa da Constituição. A força normativa da Constituição perece quando ela não corresponde à natureza singular do momento. Opera-se o condicionamento material da finalidade de suas normas que estejam em conflito com a realidade, porquanto ela se transforma em obstáculo ao pleno desenvolvimento das forças sociais. Como adverte Konrad Hesse:

"Em síntese, pode afirmar: a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta do seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se se levar em conta essa realidade. Contatam-se os limites da força normativa da Constituição quando a ordenação constitucional não mais se baseia na natureza singular do presente. Estes limites não são, todavia, precisos, uma vez que essa qualidade singular é formada tanto pela idéia de vontade de Constituição quanto pelos fatores sociais, econômicos e de outra natureza" (A Força Normativa da Constituição, Sérgio Fabris editor, Porto Alegre, 1991, p. 24).

Nesse momento, cumpre tecer alguns comentários acerca da teoria da impossibilidade material, bem abordada por Ives Gandra Martins, em parecer intitulado Ordem Judicial de Pagamento – Ausência de Recursos Orçamentários – Teoria de Impossibilidade Material, publicado na Revista de Direito Administrativo, nº 187, 1992.

O emérito professor inicia sua abordagem afirmando que o princípio da impossibilidade material deve nortear a aplicação do direito pelos poderes constituídos à luz da ordem constitucional vigente. Tal princípio – prossegue – decorre do fato de que não pode a determinação judicial exigir algo que, nas diversas alternativas de execução, a materialidade fenomênica demonstre ser irrealizável. Como exemplo, cita o caso de uma decisão judicial impor a um paraplégico, como cumprimento de uma obrigação, corresse os 100 metros rasos em 10 segundos.

Há que se distinguir, contudo, a impossibilidade material da impossibilidade circunstancial. Enquanto a primeira torna sem eficácia o conteúdo material da sentença, fazendo com que ela não existisse no mundo do Direito, a impossibilidade circunstancial acarreta uma mera ineficácia temporal, provisória, sem tirar a eficácia potencial da sentença. Como exemplo de impossibilidade circunstancial, o jurista cita a seguinte hipótese: um juiz que determine, em ação de execução cambial, a penhora dos bens do devedor e estes, por circunstâncias várias, inexistam, poderá condenar o devedor, mas, à falta de patrimônio, sua decisão será inexeqüível, perdendo, momentaneamente, a sua eficácia. Assim, a decisão judicial que esbarre nas impossibilidades circunstanciais fica com sua eficácia apenas suspensa.

Em casos tais, em que não há recursos suficientes para cumprir as decisões judiciais, aplica-se integralmente a teoria da impossibilidade material: "as decisões do Poder Judiciário não se discutem, cumprem-se, desde que haja possibilidade material de seu cumprimento. Aplica-se, como demonstrei no início do parecer, a teoria da impossibilidade material não só das leis, como às decisões judiciais" (p. 358). Nessa hipótese, não há que se falar em crime de responsabilidade, porquanto, embora o administrador deseje cumprir a ordem, não tem materialmente como faze-lo. Como explica Eros Roberto Grau, afirmando que a inexistência de dinheiro é causa excludente da antijuridicidade:

"Estaremos, então, diante de situação que não tenho dúvida em referir como estado de necessidade, a importar que a decisão ou decisões judiciais não devam ser cumpridas pela Administração" (Despesa Pública – Princípio da Legalidade – Decisão Judicial. Em caso de exaustão da capacidade orçamentária deve a Administração Demonstrar, perante o Supremo Tribunal Federal, a impossibilidade do cumprimento de decisão judicial condenatória. RDA nº 191, São Paulo, 1993, p. 326).

Esclareça-se que não se está aqui aplaudindo o erro ou incitando à total desobediência às ordens judiciais. O respeito aos cânones constitucionais é cláusula gravada em pedra. Ante a qualquer desrespeito à Constituição não há espaço para conivência. Porém, a obediência às normas constitucionais está submetida à "reserva do possível", naturalmente limitada por circunstâncias de ordem extrajurídica (econômica, natural etc). Muitas vezes, o descumprimento de ordens judiciais torna-se impossível, por razões que escapam à vontade do sujeito compelido a cumprir a determinação do Poder Judiciário [34]. É o que ocorre no caso do Estado de Alagoas.

4.2.4. O Caráter Excepcional [35] (Ultima Ratio) do Impeachment e a Teoria Substancial dos Crimes de Responsabilidade

"As constituições não são regulamentos administrativos, não são tratados casuísticos, não são roteiros de precauções meticulosas contra a chicana, a ignorância, ou a subserviência mental da rabulice interessada, ou míope. Uma constituição é a caracterização, nitidamente contornada, de um sistema político, indicado nas suas linhas capitais, entregue, na evolução da sua vida orgânica, à ação da consciência popular, confiado, na interpretação das suas conseqüências legislativas, à intuição dos homens de Estado. A evidência das regras diretrizes, a luz do alto, que desce dos princípios, ilumina os casos particulares, ditando, a cada ocorrência imprevista, a cada combinação dos fatos, a solução definida pelas necessidades da harmonia geral." Rui Barbosa, Obras Completas

Mesmo que se considere que a ausência de verbas não justifica o descumprimento da decisão judicial condenatória, o que se diz apenas para concluir o raciocínio, ainda assim é bastante duvidosa a imputação de crime de responsabilidade ao Governador. É que a única sanção para os crimes dessa espécie – salvo se se tratar de Prefeito – é o afastamento da autoridade de seu cargo (impeachment). Logo, somente em casos extremos, quando esgotados todos os demais meios para solução do problema (pedido de intervenção, por exemplo [36]), será justificável cogitar em responsabilizar os detentores de cargos políticos por eventual cometimento de crime de responsabilidade. Não basta, por isso mesmo, que a conduta praticada pela autoridade se amolde, formalmente, à figura típica prevista na norma penal incriminadora. Insta, fundamentalmente, que a conduta seja de tamanha gravidade que justifique o afastamento do Presidente, Ministros, Governadores, Secretários etc. de seus cargos, sobretudo aqueles que foram investidos em suas funções em razão da soberana manifestação da vontade popular.

Essa teoria substancial ou material dos crimes de responsabilidade, através da qual somente ofensas sérias podem torna-se base para o procedimento de impeachment, tem fundamento na doutrina norte-americana. Nas palavras do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gonçalves de Oliveira, proferido, no Hábeas Corpus 41.296DF, citando Harold Zink:

"The Constitution is clear enough when it setsdown treason and bribery as the basis for impeachment: It is not so clear when it adds ´other hight crimes and mis demeanors´. In general, it is understood that only serious offenses of a criminal nature can be made the basis impeachment procedings (Harold Zink, American Government and Politics, 1958, p. 184) [37].

Por certo, a nossa Constituição Federal vigente não adotou expressamente o modelo norte-americano. Tal fato, porém, não retira do crime de responsabilidade um conteúdo material, consistente na gravidade do fato hábil a ocasionar a derrocada, inclusive, da autoridade máxima do Estado, escolhida para ocupar o cargo pela soberana vontade popular. Somente ofensas sérias ao texto constitucional podem justificar o impeachment do Chefe do Executivo. Se assim não fosse, não havia a Constituição estabelecido o quorum de dois terços para que a Câmara dos Deputados autorize o processo, bem como para que o Senado julgue a acusação. Portanto, como anotou o Min. Celso de Mello, o processo de impeachment visa, antes de qualquer coisa, "inibir e reprimir práticas atentatórias daquelas constelação de valores ético-jurídicos e político-administrativos que a Carta Federal consagra como indeclináveis pressupostos axiológicos, fundantes do próprio sistema que estabelece" (MS 21.623 – DF). Um instituto que se destina a operar a destituição constitucional de uma autoridade legitimamente investida pelo povo, além de inabilitá-lo, temporariamente, para o exercício de qualquer função pública, eletiva ou de nomeação, não pode ser utilizado de forma mecânica, sem qualquer ponderação dos interesses em jogo. A função da Assembléia Legislativa, no caso, somente terá sentido se comprometida com os postulados constitucionais; do contrário, sua decisão não conterá qualquer quociente de legitimidade. Antes de aplicar acriticamente os "rigores da lei", tal qual um poeta parnasiano do século passado, através do velho exercício mecânico da lógica formal de subsunção dos fatos à norma, o intérprete deve fazer uma análise tópica, empírico-dialética do caso concreto, buscando, com base na proporcionalidade [38], preservar os valores supremos protegidos pela Constituição.

A propósito, o Min. Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal, ao examinar pedido de impeachment de Ministros de Estado, por supostos cometimentos de crimes de responsabilidade, consistentes precisamente no não-cumprimento de ordens judiciais, ponderando os valores em jogo, decidiu o seguinte:

"a relevância dos fatos narrados na inicial, há de sopesar-se, sob o ângulo do risco, os valores envolvidos. Sobrepõem-se, no caso, os ligados à necessidade de rechaçar-se atos precoces quando em jogo o exercício de funções relevantes como são as atribuídas aos Denunciados, mormente em quadra de turbulência econômica, financeira e social, abrangente de todo mercado mundial" (PETMC 1392 – DF, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 26/11/97).

Voltando à hipótese aqui debatida, afigura-se inarredável que os fatos narrados na denúncia não são hábeis o suficiente a dar justa causa ao processo de impeachment do Governador, sobretudo levando em conta o processo de transição política por que passa o Estado de Alagoas. O eventual recebimento da denúncia pela Assembléia Legislativa e, em razão disso, o afastamento do Governador provocará conseqüências danosas ao ambiente político estadual. Contemporizar com esta catástrofe extrema seria vestir a mortalha do caos. Não é essa a função que o operador do direito deve buscar; afinal, a segurança jurídica é a pedra de toque do Estado Democrático de Direito.


5. Conclusões

"Eu não faço, certamente, ilusão em torno da eficácia das minhas palavras. porém, segundo os ensinamentos daquele magnífico filósofo, que todos deveriam ver em Cristo, ainda que queiram considera-lo somente com filho do homem, não esqueço que as palavras são sementes. Porquanto com o meu trigo se mistura infelizmente muito joio, algum grão aqui pode ser capaz de germinar. Por isso, sem presunção mas com devoção, o semeio. Não pretendo que a colheita me remunere com cem, nem com sessenta, nem com trinta por um. Se, talvez, um só dos meus grãos germinasse, não teria semeado em vão." Francesco Carnelutti, As Misérias do Processo Penal

Diversas conclusões foram extraídas ao longo da exposição, de modo que seria mera repetição desnecessária enunciá-las novamente nessa oportunidade. De qualquer forma, a fim de que se possa ter uma visão sistêmica e resumida do exposto, arrolam-se as seguintes ponderações, que hão de facilitar a compreensão das diretrizes propostas ao cabo do parecer:

1. Matérias de ordem processual que podem ser alegadas em defesa do Governador e dos Secretários de Estado.

As seguintes questões formais podem ser sustentadas em eventual defesa a ser elaborada:

- ilegitimidade ativa do denunciante (3.1): o TRT não possui legitimidade para deflagrar o processo de impeachment contra o Governador de Estado;

- inépcia da denúncia (nota de rodapé nº 25): parte da doutrina defende ser inepta a "denúncia alternativa", em que não se especifica qual a norma penal incriminadora violada;

- quorum constitucional de 2/3 para o recebimento da denúncia (3.2): conforme entendimento do Pretório Excelso, o quorum para o recebimento de denúncia contra Governador de Estado é de 2/3 dos membros da Assembléia Legislativa, e não maioria absoluta, como quer o Tribunal-representante.

2. Ainda sob a ótica dos aspectos processuais, sugiro que seja elaborada ADIn contra os dispositivos da Constituição Estadual que conflitem com o modelo federal adotado, principalmente no que se refere ao órgão competente para processar e julgar o Governador de Estado por crime de responsabilidade. A matéria é controvertida. O Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado, considerou inconstitucional dispositivo da Constituição do Estado de Santa Catarina que atribuía à própria Assembléia Legislativa a competência para processar e julgar o Chefe do Executivo local; decidiu-se que a competência seria do órgão especial de que trata a Lei 1.079/50. Seria oportuna, pois, que Corte Suprema aferisse a validade ou não do dispositivo da Constituição do Estado de Alagoas que atribui à Assembléia Legislativa o processamento e julgamento do Governador de Estado por crime de responsabilidade.

3. Do ponto de vista de mérito, deve-se demonstrar, através de planilhas, estimativas etc, a exaustão orçamentária, ou seja, a total indisponibilidade de verba para saldar os débitos decorrentes de precatórios. Assim, pela teoria da impossibilidade material, não haveria crime em descumprir a ordem judicial. O ato equivaleria a um "estado de necessidade". A par disso, com base na moderna teoria dos valores constitucionais, é possível justificar a manutenção do Governador no cargo, em detrimento do processo de crime de responsabilidade, conforme exposto no item 4.2.4.

Por fim, resta lamentar o fato de que não há como, nesse momento, deixar de submeter as autoridades à prova do debate parlamentar. O que se deseja, apenas, é que um pouco de serenidade recaia sobre o espírito da Assembléia; e o fecunde. O temperamento político não inibe a procura incessante da justiça e do bem comum. Ao final do processo, o que se espera é que os governantes saibam extrair dos infortúnios surgidos os frutos positivos que deles brotaram, encarando-os como um aviso, ou melhor, uma advertência a guiar seus atos na elaboração das propostas orçamentárias futuras.

É o parecer, salvo melhor juízo.

Maceió, 23 de janeiro de 2001.

George Marmelstein Lima

Procurador de Estado


Notas

1..Sobre a importância de tais matérias, cita-se trecho do voto do eminente Min. Celso de Mello do STF: "somente aspectos de ordem formal – tais como, exemplificativamente, os pertinentes à legitimidade ativa dos denunciantes ou à eventual ilegalidade passiva do agente público denunciado, ou à inépcia jurídica da peça acusatória, ou à observância das formalidades rituais, ou, ainda, aos próprios pressupostos de válida instauração do procedimento parlamentar – podem constituir, perante a Câmara dos Deputados, objeto de contestação do denunciado, eis que o locus adequado para a extensa discussão da matéria e para a efetivação de ampla dilação probatória, fundamentalmente no que concerne ao próprio mérito da acusação popular, é, hoje, em função de expressa regra constitucional de competência, o Senado da República, a cujo domínio não se pode usurpar, sob pena de tumultuária inversão da ordem ritual, o exercício de uma prerrogativa que é essencialmente indisponível" (MS 21.564/DF).

2..Prescrevia a Constituição Imperial (1824) que "a Pessoa do Imperador é inviolável e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma" (art. 99). Não obstante, os Ministros de Estado, por força do art. 133, seriam responsáveis por traição, por peita, suborno ou concussão, por abuso de poder, pela falta de observância da lei, pelo que obrarem contra a liberdade, segurança ou propriedade dos cidadãos, por qualquer dissipação dos bens públicos. Também havia previsão de responsabilidade dos Secretários e Conselheiros de Estado (art. 47, 2º).

3..O termo impeachment tem sido usado de maneira não muito técnica para designar todo o procedimento do crime de responsabilidade e sua conseqüente sanção. Na verdade, tecnicamente, o impeachment não se confunde com a punição por crime de responsabilidade ou mesmo com o próprio processo de crimes dessa espécie, como comumente se diz. (O impeachment) é apenas uma fase do processo-crime (comum ou de responsabilidade) movido contra agentes públicos, na qual há a colocação do indiciado em estado de acusação, como conseqüência de aceitação da denúncia, afastando-o provisoriamente do cargo ou função que ocupava. Neste sentido, Fábio Konder Comparato, in Crime de Responsabilidade – Renúncia do Agente – Efeitos Processuais. Revista Trimestral de Direito público, nº 7, 1993, p. 93. Não obstante, dada a vulgarização do termo, e unicamente para os fins ora propostos, não há razão para usar "promiscuamente" a palavra impeachment, em seu sentido coloquial, como o faz o próprio Supremo Tribunal Federal e vários doutrinadores do mais alto escol.

4...Conforme já decidiu o Pretório Excelso, "a obediência aos modelos federais tem sido um ‘standard’ da constitucionalidade dos dispositivos das leis maiores dos Estados, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (Representação N. 949 - RN - RTJ 81/332)".

5..Nesse sentido, na linha do que vem sendo decidido pelo Supremo Tribunal Federal, "o tratamento normativo dos crimes de responsabilidade ou infrações político-administrativas exige, impõe e reclama, para efeito de sua definição típica, a edição de lei especial. Trata-se de matéria que se submete, sem quaisquer exceções, ao principio constitucional da reserva absoluta de lei formal" (ADInMC 834/MT – rel. Min. Celso de Mello. J. 11/2/1993, DJ 2/4/1993).

6...Por força da Lei Federal 3.528, de 03/01/1959, os Prefeitos Municipais também estariam, no que couber, submetidos aos ditames da Lei 1.079/50. Porém, o Decreto-Lei 201, de 27 de fevereiro de 1967, revogou expressamente a referida lei, regulando, especificamente, os crimes de responsabilidade cometidos pelos prefeitos. A par disso, a Lei 7.106, de 28 de junho de 1983, estendeu aos Governadores do Distrito Federal e dos Territórios Federais, a aplicação dos crimes definidos na Lei 1.079/50, ainda quando simplesmente tentados. Recentemente, a Lei 10.028, de 19 de outubro de 2000, incluiu na incidência da norma os aos Presidentes, e respectivos substitutos quando no exercício da Presidência, dos Tribunais Superiores, dos Tribunais de Contas, dos Tribunais Regionais Federais, do Trabalho e Eleitorais, dos Tribunais de Justiça e de Alçada dos Estados e do Distrito Federal, e aos Juízes Diretores de Foro ou função equivalente no primeiro grau de jurisdição (parágrafo único, do art. 39-A), bem como o Advogado-Geral da União, os Procuradores-Gerais do Trabalho, Eleitoral e Militar, aos Procuradores-Gerais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, aos Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal, e aos membros do Ministério Público da União e dos Estados, da Advocacia-Geral da União, das Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal, quando no exercício de função de chefia das unidades regionais ou locais das respectivas instituições(parágrafo único, do art. 40-A).

7...O dispositivo da Constituição de 1967 assim está redigido: "São crimes de responsabilidade os atos do Presidente que atentarem contra a Constituição federal e, especialmente: I - a existência da União; II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos Poderes constitucionais dos Estados; III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV - a segurança interna do País; V - a probidade na administração; VI - a lei orçamentária; VII - o cumprimento das decisões judiciárias e das leis" (art. 82).

8...Reza o art. 85, da Constituição de 1967: "o Presidente, depois que a Câmara dos Deputados declarar procedente a acusação pelo voto de dois terços de seus membros, será submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal. nos crimes comuns, ou, perante o Senado Federal, nos de responsabilidade". O dispositivo foi mantido pela Emenda Constitucional nº1, de 1969.

9...Com nova Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 02 de Setembro de 1999. Na Redação Anterior, competia ao Senado Federal, "processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade e os Ministros de Estado nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles".

10...Seguindo o mesmo posicionamento, o Min. Celso de Mello afirmou: "Tenho para mim — e não obstante o interregno normativo representado pela vigência da Emenda Constitucional nº 4, de 1961 (art. 5º) — que as figuras típicas caracterizadoras dos crimes de responsabilidade, objeto de definição pela Lei nº 1.079/50 (arts. 5º a 12), não sofreram qualquer derrogação em sua estrutura jurídica, posto que o rol de ilícitos político-administrativos inscrito em nossas Constituições sempre ostentou caráter meramente exemplificativo, como acentua, de modo expresso, em sua notável e clássica monografia sobre o instituto do impeachment, o nosso eminente colega, Ministro Paulo Brossard («O impeachment», pág. 55, item nº 39a, 2ª ed., 1992, Saraiva). A supressão, pela Emenda Constitucional nº 4/61, da menção aos atos atentatórios à probidade na Administração Pública não teve, desse modo, o condão de operar a descaracterização típica das condutas definidas, pela Lei nº 1.079/50, como crimes de responsabilidade. É importante assinalar, neste ponto, que a referência constitucional a determinados valores jurídicos — como o da probidade administrativa, por exemplo — gerava a inevitável conseqüência de impor ao Congresso Nacional o dever de tipificar condutas que afrontassem, de algum modo, aqueles bens postos sob a tutela imediata da Constituição. Isso não significava, contudo, que fosse vedado ao legislador ordinário ampliar, desde que preservado aquele conjunto irredutível de bens constitucionalmente tutelados — verdadeiros parâmetros axiológicos conformadores da ação legislativa mínima e necessária do Poder Público —, as hipóteses de tipificação de novos crimes de responsabilidade cuja prática atentasse contra outros valores qualificados como suscetíveis de proteção pelo Estado" (MS 21564-DF).

11...Em sentido contrário, entende o Professor Luís Roberto Barroso que os crimes de responsabilidade se submetem, no direito brasileiro, a um regime de tipologia constitucional estrita, cabendo ao legislador ordinário tão-somente explicitar e minudenciar práticas que se subsumam aos tipos constitucionais circunscritos nos incisos do art. 85. Por esta razão, defende o constitucionalista, operou-se, com relação ao crime de responsabilidade contra "a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos", figura típica que não consta no elenco do art. 85 da Constituição, o efeito de uma abolitio criminis (in Crimes de Responsabilidade e Processo de Impeachment. Descabimento contra Secretário de Estado que Deixou op Cargo. Revista de Processo, nº 95, jul.-set., 1999, p. 85/96).

12...Prescreve o dispositivo: "perderá o mandato o Governador que assumir outro cargo ou função na administração pública direta ou indireta, ressalvada a posse em virtude de concurso público e observado o disposto no art. 38, I, IV e V".

13...A propósito, o Pretório Excelso, em julgamento plenário sobre o tema concernente à responsabilidade penal do Chefe do Poder Executivo dos Estados-membros, proferiu decisão consubstanciada em acórdão assim ementado: "A responsabilidade dos governantes tipifica-se como uma das pedras angulares essenciais à configuração mesma da idéia republicana. A consagração do princípio da responsabilidade do Chefe do Poder Executivo, além de refletir uma conquista básica do regime democrático, constitui conseqüência necessária da forma republicana de governo adotada pela Constituição Federal. O princípio republicano exprime, a partir da idéia central que lhe é subjacente, o dogma de que todos os agentes públicos - os Governadores de Estado e do Distrito Federal, em particular - são igualmente responsáveis perante a lei. Os Governadores de Estado - que dispõem de prerrogativa de foro ratione muneris, perante o Superior Tribunal de Justiça (CF, art. 105, I, a) - estão permanentemente sujeitos, uma vez obtida a necessária licença da respectiva Assembléia Legislativa (RE 153.968-BA, Rel. Min. ILMAR GALVÃO - RE 159.230-PB, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE), a processo penal condenatório, ainda que as infrações penais a eles imputadas sejam estranhas ao exercício das funções governamentais." (ADI 1.018-MG, Rel. p/ o Acórdão Min. CELSO DE MELLO)

14...Eis como está redigida a ementa do acórdão: "Inscrevem-se na competência legislativa da União a definição dos crimes de responsabilidade e a disciplina do respectivo processo e julgamento".

15...Julgados no mesmo sentido: ADInMC 2.050 – RO; ADInMC 1.879-RO, rel. Min. Moreira Alves, 19.4.99; ADIMC-1901/MG, rel. Min. Ilmar Galvão, j. 05/11/1998 - Tribunal Pleno.

16...No mesmo sentido: "A acusação pode ser articulada por qualquer brasileiro perante a Câmara dos Deputados" (SILVA. José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 16ª edição, Malheiros editores, São Paulo, p. 549). "A primeira fase se abre com a denúncia que pode ser oferecida por qualquer cidadão e culmina com a decisão sobre a procedência da acusação" (FERREIRA FILHO. Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, 17ª edição, editora Saraiva, São Paulo, 1989, p. 144.). "Qualquer cidadão pode denunciar por crime de responsabilidade o Presidente da República. É o princípio da denunciabilidade popular" (MIRANDA. Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, com a emenda nº 1, de 1969, Tomo III, editora Forense, Rio de Janeiro, 1987, p. 363). "A lei permite a qualquer cidadão denunciar o Governador, por crime de responsabilidade, perante a Assembléia Legislativa (art. 75 e seguintes)" (TRIGUEIRO. Oswaldo, Direito Constitucional Estadual, editora Forense, Rio de Janeiro, 1980, p. 192).

17...A propósito, no mesmo voto, o mesmo Ministro estabeleceu, de modo didático, o fluxo específico fornecido pela Lei 1.079/50 acerca do processo e julgamento dos Governadores de Estado por crime de responsabilidade, sem adaptá-lo às regras da Constituição de 88: "(1) denúncia; (2) eleição de comissão especial para dar parecer sobre se a denúncia deve ou não ser objeto de deliberação; (3) parecer de uma Comissão Especial; (4) decisão, pelo Plenário da Assembléia, sobre a admissibilidade da denúncia, ou seja, decisão sobre se a denúncia será, ou não, objeto de deliberação; (5) citação do Governador-denunciado para, no prazo de 20 dias, oferecer contestação e indicar provas; (6) contestação do denunciado; (7) produção de provas e realização de diligências deferidas ou determinadas pela Comissão Especial; (8) parecer da Comissão Especial sobre a procedência da acusação; (9) votação, pelo plenário, do parecer da Comissão".

18...Interessante observar que não foi discutida a constitucionalidade do referido tribunal misto em face do princípio do juiz natural. Porém, tendo em vista que o julgamento da ação foi unânime, adota-se, sem maiores divagações, a orientação firmada pelo plenário da Suprema Corte.

19...Eis a ementa do acórdão: Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Expressões: "...depois de declarada, por aquela, pelo voto de dois terços de seus membros, a procedência da acusação", insertas no caput do art. 73, da Constituição do Estado de Santa Catarina e expressões: "por dois terços dos membros da Assembléia concluindo pelo recebimento da representação..." constantes do § 4º do art. 243, do Regimento Interno da Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina. 3. A Corte, no julgamento de cautelar na ADIN 1628- 8-SC, já adotou posição quanto à aplicabilidade do quorum de 2/3 previsto na Constituição Federal como o a ser observado, pela Assembléia Legislativa, na deliberação sobre a procedência da acusação contra o Governador do Estado. Fundamentos inacolhíveis para determinar a suspensão da vigência das expressões. 4. Orientação desta Corte, no que concerne ao art. 86, §§ 3º e 4º, da Constituição, na ADIN 1028, de referência à imunidade à prisão cautelar como prerrogativa exclusiva do Presidente da República, insuscetível de estender-se aos Governadores dos Estados, que institucionalmente, não a possuem. 5. Medida cautelar indeferida.

20...À Assembléia Legislativa cabe editar um juízo político quanto à admissibilidade da acusação, ao passo que ao tribunal especial compete processar e julgar os acusados. Assim, a Assembléia limita-se a emitir um juízo político sobre a conveniência ou a necessidade de ser apurada a acusação oferecida, em razão de indícios de culpabilidade considerados bastantes. Não há falar em produção de provas na Assembléia. Há, contudo, a necessidade de ao acusado ser concedido prazo para defesa, observadas, entretanto, as limitações decorrentes do fato de a acusação somente materializar-se com a instauração do processo, no tribunal especial, onde será recebida ou não a acusação. Em suma: na Assembléia ocorrerá, apenas, a admissibilidade da acusação, a partir da edição de um juízo político, em que se verificará se a acusação é consistente, se tem ela base em alegações e fundamentos plausíveis, ou se a acusação é simplesmente fruto de quizílias ou desavenças políticas.

21...Sobre o assunto, o Supremo Tribunal Federal, no MS 21.564-DF, analisou profundamente a matéria, decidindo que a forma de votação é a do voto nominal. O caráter aberto dessa votação parlamentar impõe-se como um meio necessário de controle da opinião pública sobre as deliberações do povo, de forma que, conforme afirmou o Min. Celso de Mello, "a exigência de publicidade dos atos que se formam no âmbito do aparelho de Estado traduz um princípio essencial, a que a nova ordem jurídico-constitucional não permaneceu indiferente. A necessidade de controlar o poder constitui exigência essencial para a preservação da ordem democrática" (MS 21564/DF).

22...A denúncia ou queixa será rejeitada quando: o fato narrado evidentemente não constituir crime; já estiver extinta a punibilidade, pela prescrição ou outra causa; for manifesta a ilegitimidade da parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal (cf art 43 incisos I/flI, do CPP). Portanto, a rejeição da denúncia assenta-se nas causas previstas no art.43, do CPP, ou sejam, tipicidade do fato narrado, extinção da punibilidade, ilegalidade de parte e falta de condições exigidas pela lei - interesse de agir e a legitimaria ad processam. No caso dos crimes de responsabilidade, some-se a estes fatores a vontade política de afastar as autoridades de seus cargos.

23...Posicionamento diverso, como já visto (nota de rodapé nº 10), é adotado por BARROSO, Luís Roberto. Crimes de Responsabilidade e Processo de Impeachment. Descabimento contra Secretário de Estado que Deixou op Cargo. Revista de Processo, nº 95, jul.-set., 1999, p. 85/96; SILVA, José Afonso. Direito Constitucional Positivo. 10ª ed. Malheiros, São Paulo, 1995, p. 519).

24...É por esta razão que, nada obstante o reconhecimento da exclusividade do juízo político de julgamento pela Casa Legislativa, compete ao Poder Judiciário verificar a legalidade do procedimento, em seu aspecto de legitimidade (rectius: competência) para instauração, obediência criteriosa às normas regimentais, resguardo ao amplo direito de defesa e, ainda, nas palavras do Ministro Carlos Velloso, averiguar no juízo de admissibilidade da acusação, necessariamente de cunho político, "se a acusação é consistente, se tem ela base em alegações e fundamentos plausíveis, ou se a notícia do fato reprovável tem razoável procedência, não sendo a acusação simplesmente fruto de quisilias e desavenças políticas" (MS 21.564-DF, j. 23/09/1992, pp. DJU 27/08/93).

25...Neste sentido, MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1. Revista dos Tribunais, São Paulo, Tomo III, 1970, p. 648. Igualmente, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, em seus Comentários..., ao comentar o §1º, do art. 100, da CF/88.

26...Há alguns entendimentos doutrinários que não admitem a chamada "denúncia alternativa", ou melhor, "denúncia com imputação alternativa", que seria aquela que atribui "ao réu mais de uma conduta penalmente relevante, asseverando que apenas uma defesa efetivamente terá sido praticada pelo imputado, embora todas se apresentem como prováveis", em face dos fatos afirmados. Nesse sentido, os Juízes do Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo, reunidos sob a coordenação da Professora Ada Pellegrini Grinover, discutindo a questão da correlação entre acusação e sentença, chegaram à seguinte conclusão: "A acusação deve ser determinada, pois a proposta a ser demonstrada há que ser concreta. Não se deve admitir denúncia alternativa, principalmente quando haja incompatibilidade lógica entre os fatos imputados" (apud MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo Penal. 6ª ed. Atlas, São Paulo, 1996, p. 123). Por outro lado, decidindo fato envolvendo argüição preliminar de inépcia da denúncia, por ser alternativa a classificação do delito nela descrito, o Pretório Excelso, seguindo lição de Frederico Marques, repeliu a argüição, ementando: "A alternatividade na classificação jurídica do fato não torna inepta a denúncia, porque não somente uma exata e certa adequação é irrelevante, como, também, porque não vincula o julgador. A este é que cabe capitular corretamente o fato nela descrito" ("RT", 528/361. Idem, "JUTACRIM", 81/534, 482). A nosso ver, no caso ora analisado, a imputação alternativa não é causa de inépcia da denúncia, o que não impede de submeter a matéria ao crivo do Legislativo ou, eventualmente, do Poder Judiciário.

27...Entre os diversos crimes contra a lei orçamentária, inclusive os acrescentados pela Lei 10.028/00 (nos 5 a 12), não há qualquer tipo semelhante. Veja-se: "art. 10 - São crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária: 1 - não apresentar ao Congresso Nacional a proposta do orçamento da República dentro dos primeiros dois meses de cada sessão legislativa; 2 - exceder ou transportar, sem autorização legal, as verbas do orçamento; 3 - realizar o estorno de verbas; 4 - infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária. 5 - deixar de ordenar a redução do montante da dívida consolidada, nos prazos estabelecidos em lei, quando o montante ultrapassar o valor resultante da aplicação do limite máximo fixado pelo Senado Federal; 6 - ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal; 7 - deixar de promover ou de ordenar na forma da lei, o cancelamento, a amortização ou a constituição de reserva para anular os efeitos de operação de crédito realizada com inobservância de limite, condição ou montante estabelecido em lei; 8 - deixar de promover ou de ordenar a liquidação integral de operação de crédito por antecipação de receita orçamentária, inclusive os respectivos juros e demais encargos, até o encerramento do exercício financeiro; 9 - ordenar ou autorizar, em desacordo com a lei, a realização de operação de crédito com qualquer um dos demais entes da Federação, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que na forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente; 10 - captar recursos a título de antecipação de receita de tributo ou contribuição cujo fato gerador ainda não tenha ocorrido; 11 - ordenar ou autorizar a destinação de recursos provenientes da emissão de títulos para finalidade diversa da prevista na lei que a autorizou; 12 - realizar ou receber transferência voluntária em desacordo com limite ou condição estabelecida em lei".

28...Para um estudo aprofundado do tema: FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Sérgio Antônio Fabris Editor, Brasília, 1996

29...O termo é de DWORKIN, apud SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Celso Bastos Editor, São Paulo, 1999, p. 44.

30...Idem. Ob. Cit. p. 44.

31..Eros Roberto Grau chama a colisão de princípios de antinomia jurídica imprópria

32...De acordo com o princípio da concordância prática, os direitos fundamentais e valores constitucionais deverão ser harmonizados, no caso sub examine, por meio de juízo de ponderação que vise preservar e concretizar ao máximo os direitos e bens constitucionais protegidos (FARIAS, Edilson Pereira de. Colisão...p. 98). A concordância prática pode ser enunciada da seguinte maneira: havendo colisão entre valores constitucionais (normas jurídicas de hierarquia constitucional), o que se deve buscar é a otimização entre os direitos e valores em jogo, no estabelecimento de uma concordância prática (praktische Konkordanz), que deve resultar numa ordenação proporcional dos direitos fundamentais e/ou valores fundamentais em colisão, ou seja, busca-se o ‘melhor equilíbrio possível entre os princípios colidentes’(LERCHE). Nas palavras de INGO WOLFGANG SARLET: "Em rigor, cuida-se de processo de ponderação no qual não se trata da atribuição de uma prevalência absoluta de um valor sobre outro, mas, sim, na tentativa de aplicação simultânea e compatibilizada de normas, ainda que no caso concreto se torne necessária a atenuação de uma delas"( Valor de Alçada e Limitação do Acesso ao Duplo Grau de Jurisdição. Revista da Ajuris 66, 1996, p. 121).

33...O critério da dimensão de peso e importância (dimension of weights) foi fornecido por RONALD DWORKIN. Na famosa obra Taking Rights Seriously, após explicar que as regras jurídicas são aplicáveis por completo ou não são, de modo absoluto, aplicada (dimensão do tudo ou nada), o prof. da Universidade de Oxford diz que os princípios "possuem uma dimensão que não é própria das regras jurídicas: a dimensão do peso ou importância. Assim, quando se entrecruzam vários princípios, quem há de resolver o conflito deve levar em conta o peso relativo de cada um deles (...). As regras não possuem tal dimensão. Não podemos afirmar que uma delas, no interior do sistema normativo, é mais importante do que outra, de modo que, no caso de conflito entre ambas, deve prevalecer uma em virtude de seu peso maior. Se duas regras entram em conflito, uma delas não é válida" (apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 65). Seguindo o ensinamento de CANOTILHO: "(1) os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida (...); a convivência dos princípios é conflitual (ZAGREBELSKY); a convivência de regras é antinômica; os princípios coexistem; as regras antinómicas excluem-se; (2) consequentemente, os princípios, ao constituirem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à ‘lógica do tudo ou nada’), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exacta medida das suas prescrições, nem mais nem menos. (3) em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objecto de ponderação, de harmonização, pois eles contêm apenas ‘exigências’ ou ‘standards’ que, em ‘primeira linha (prima facie), devem ser realizados; as regras contêm ‘fixações normativas’ definitivas, sendo insustentável a validade simultânea da regras contraditórias. (4) os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação valia); as regras colocam apenas questões de validade (se elas não são correctas devem ser alteradas)." (apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 66).

34...Limongi França, por sua comissão de redação, seleciona 5 espécies de impossibilidade, ao dizer "qualidade daquilo que é impossível, i.e. que não pode ser feito ou realizado Pode-se apontar cinco espécies de impossibilidades: 1ª) absoluta, quando impossível está na própria natureza da coisa, inexistindo alteração de circunstância que a torne possível; 2ª) física, quando decorre de fatores da natureza; 3ª) metafísica, quando envolve contradição; 4ª) moral, quando certos motivos determinantes apontam maior probabilidade para que uma coisa não se torne possível; 5ª) relativa, quando ocorre em face de certas condições, cessando quando essas condições desaparecem" (apud MARTINS, Ives Gandra. Ordem Judicial de Pagamento – Ausência de Recursos Orçamentários – Teoria de Impossibilidade Material. RDA 187, 1992, p. 360).

35...Trata-se do conhecido princípio da intervenção mínima, comum ao direito penal como um todo. Por este princípio, "se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penai" (LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípios Políticos do Direito Penal. 2ª ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 92).

36...Valem, pois, no caso presente, as advertências do Ministro JOSÉ CÂNDIDO, do STJ: "A intervenção federal, como medida constitucional adequada, passou a ser a única que resta a ser acionada para que o Executivo estadual cumpra com o seu dever. É necessário que se restabeleça,... , a ordem jurídica, expressa na independência e harmonia entre os dois Poderes em conflito. A violação a essa regra fundamental é pressuposto suficiente para a intervenção, como advertiu PONTES DE MIRANDA, em seus Comentários à Constituição" (Intervenção Federal nº 001, do Estado do Paraná)

37...Laurence H. Tribe, professor de Direito Constitucional da Harvard University, dos mais acatados constitucionalistas americanos, atualmente, citado pelo Min. Carlos Velloso, no MS 21623/DF, escreve, invocando o Deputado John Bingham, no julgamento do Presidente Johnson: "An impeachable high crime or misdemeanor is one in its nature or consequences subversive of some fundamental or essential principle of government of highly prejudicial to the public interest, and this may consist of a violation of the Constitution, of law, of an official oath, or of duty, by an act committed or omitted, or, without violating a positive law, by the abuse of discretionary powers from improper motives or for an improper purpose".

38...Na aplicação do princípio da proporcionalidade em sentido estrito, levam-se em conta os interesses em jogo (equilíbrio global entre as vantagens e desvantagens da conduta), vale dizer, cuida-se de uma verificação da relação custo-benefíco da medida, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. Em palavras de CANOTILHO, trata-se "de uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim"(apud BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. p. 208/209). Deve haver um sopesamento de valores, a fim de que se busque a proporcionalidade, ou seja, verificar-se-á se a medida trará mais benefícios ou prejuízos. Pergunta-se valores mais importantes (axiologicamente) do que os direitos que a medida buscou preservar?


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Não inclusão de precatórios na proposta orçamentária. Crime de responsabilidade. Teoria da impossibilidade material. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16464. Acesso em: 24 abr. 2024.