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Estupro: afastamento da presunção de violência em conjunção carnal com menor de 14 anos

Estupro: afastamento da presunção de violência em conjunção carnal com menor de 14 anos

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Sentença rejeitando a denúncia de estupro presumido contra menor de 14 anos, a qual afasta a presunção pelas circunstâncias concretas do caso, em virtude do consentimento da suposta vítima.

S E N T E N Ç A

Vistos etc.,

Ministério Público propôs Ação Penal em face de HÉLIO PEREIRA GOMES FILHO, qualificado nos autos, dando-o como incurso nas penas do artigo 213 c/c 224, letra "a", ambos do Código Penal pelo seguinte:

"No dia 10 de dezembro de 2001, por volta de 3 horas da madrugada, consciente e voluntariamente, com o fim precípuo de satisfazer sua própria concupiscência, no interior do Hotel Caravellas, nesta Comarca, mediante presumida violência, uma vez que contava a vítima Larissa Lorraine Marreira Sékuka, com apenas 13 anos de idade na data do fato, constrangeu-a o denunciado a permitir que com ela praticasse conjunção carnal introduzindo o pênis em sua vagina até alcançar o clímax (...)"

Levar um cidadão ao banco dos réus, muito mais do que um mero "recebo a denúncia", é um ato de reflexão profunda, onde o julgador deve estar convicto dos indícios mínimos de autoria e materialidade do crime imputado, especialmente nas hipóteses de estupro, crime que estigmatiza o acusado para o resto de sua vida.

"A tortura, nas formas mais cruéis está abolida, ao menos sobre o papel; mas o processo por si mesmo é uma tortura" (Santo Agostinho)


DAS DIVERSAS VERSÕES APRESENTADAS PELA VÍTIMA:

Nos crimes contra os costumes a palavra da vítima ganha especial relevo, pois os mesmos são cometidos às escuras, fato que impõe ao julgador, no momento de analisar a prova, ainda que indiciária, buscar sintonia, coerência e precisão na versão apresentada.

Neste caso temos que a vítima, após despertar por volta das 11:30 hs com o acusado ainda no Motel, como se amante fosse, retorna para casa no carro deste com o único objetivo de justificar a sua mãe, TEREZA MARREIRA, o inexplicável.

Como a mãe não presenciou o ocorrido e, deste apenas tomou conhecimento através da única e exclusiva versão apresentada por ambas às filhas – e que filhas -, dirigiu-se a Autoridade Policial e narrou o seguinte:

"(...) que no dia 10/12/2001 por volta das 03:00 horas, que sua filha Larissa de 13 anos se encontrava com sua irmã Jennifer de 18 anos de idade, na praça XV de novembro em Marechal Hermes, que pararam ali para comer um cachorro-quente, quando foram surpreendidas por Helinho, que puxando Larissa pelo braço com violência, a colocou dentro do seu veículo, indo para lugar incerto, dizendo para Larissa que estava no Bairro Guadalupe, que forçou Larissa a praticar com ele conjunção carnal; que Larissa era virgem perdendo sua virgindade para Helinho, que só retornou com Larissa as 11:30 horas, que todos estavam preocupados com ela, que ao chegar em casa a declarante a conduziu logo para esta UPJ (...)" (fl. 5 grifei)

Colhida esta cinemática fática, a Autoridade então passa a ouvir, ato contínuo e na presença da mãe, por volta das 14:00 horas, portanto 3 horas após retornar para casa, LARISSA, que narra o seguinte:

"(...) que foi comprar cachorro quente, quando foi abordada por um rapaz por volta das 02:30 horas e que não quis entrar no carro, sendo puxada a força por ele, que partiu com o veículo, que ficou sem saber onde estava, que ele disse para ela que estava em Guadalupe próximo a uma festa de um colega dele. Que ele veio agarrando, e ela não queria, mas que depois deixou-se beijar e ser abraçada pelo seu agressor, até chegar a conjunção carnal, que não passou disso, informou que saiu um pouquinho de líquido da sua vagina após o ato, sabe que o rapaz é solteiro tem mais ou menos 29 anos e estava com cheiro de bebida alcoólica (...)" (fl. 07 – grifei)

A primeira versão da vítima descreve um "rapaz"veja que em nenhum momento afirma o seu nome – que lhe puxou a força para o interior do carro e a levou para um local – não descreve o mesmo nem traz qualquer tipo de detalhe a respeito - onde acabou coagindo-lhe a praticar relações sexuais, sendo que em dado momento passou a consentir a perpetuação do ato.

Encaminhada ao IML imediatamente após o termino de sua oitiva (fl. 9), a vítima passa a se entrevistar com as Médicas responsáveis pelo exame, o qual sabe-se é feito sem a presença dos familiares para evitar o constrangimento da narrativa detalhada.

Na presença das médicas LARISSA apresenta uma versão totalmente diferente das apresentadas a sua mãe e a Autoridade, muito embora tal exame tenha sido realizado no mesmo dia por volta de 18:45 horas (fl. 50), portanto cinco horas após a narrativa em sede policial e sete horas após o seu retorno para casa.

Portando-se, conclusão das próprias peritas médicas, como uma pessoa que se apresenta de forma: "(...) lúcida, orientada no tempo e no espaço, respondendo as solicitações verbais com clareza (...), mantendo " (...) o curso do pensamento ordenado com encadeamento de idéias (...) e narrando "(...) os fatos com segurança e riqueza de detalhes, tranqüila, cooperativa (...)" (fls. 50/51 – grifei), a vítima então lhes dá a seguinte versão:

"(...) alega que era virgem e que às 02:30 h de 10/12/01, um homem colocou-a a força dentro do seu carro, que ele tentou agarra-la e que depois ele a convenceu a manter relação sexual com ele; que cada um tirou a sua própria roupa, que ela ficou deitada em decúbito dorsal dentro do carro e ele ficou sobre ela e introduziu o pênis na vagina (...)" (fl. 50 – grifei).

Desta versão extrai-se pela primeira vez que a prática sexual, a qual até então não se sabia efetivamente onde ocorrera, ganha um lugar, ou seja, segundo a jovem tranqüila e de idéias ordenadas tudo teria ocorrido no interior do carro.

A pedido do Parquet (fl. 38), a vítima é novamente ouvida (fls. 43/44) e, desta vez - novamente assistida por sua mãe - cria uma terceira versão; distinta das apresentadas nas oportunidades anteriores, aduzindo o seguinte:

"(...) Foi vítima de violência e abuso sexual no dia 10.12.02, reconhecendo como autor do fato a pessoa que conhece como HELINHO. Que no dia do fato teria ido, em companhia de sua irmã JENNIFER e mais dois colegas de nome THIAGO e RODRIGO, com intuito de comprar cachorros quentes numa barraca nas proximidades da Estação Ferroviária de Mal Hermes momento em que HELINHO teria parado com seu veículo, sendo o mesmo um GOLF de cor preta solicitando que a declarante se aproximasse perguntando se sua mãe ainda estava cortando cabelo, isto porque sua mãe é cabeleireira, momento o qual a porta do referido veículo abriu e a declarante foi puxada para o interior do mesmo e HELINHO teria arrancado com o veículo tendo a porta se fechado. Que neste momento a Declarante solicitou ao mesmo que a levasse de volta para casa. Que em ato seguido o motorista fez o contorno na praça de Mal Hermes e emparelhou seu veículo ao veículo de THIAGO, onde no interior do mesmo encontravam-se JENNIFER e RODRIGO. Que naquele momento HELINHO dissera que a levaria de volta para casa e que THIAGO o seguisse. Que a declarante neste momento não desceu do veículo acreditando na promessa de ser transportada a sua residência. Que HELINHO tomou direção ao bairro de Sulacap e a todo momento a Declarante pedia ao mesmo que a levasse para casa, o que não foi atendida. Que HELINHO entrou no Hotel Caravelas, naquele bairro. Que a declarante neste momento não desceu do veículo porque estava com medo, pois já teria ouvido dizer que HELINHO era agressivo, que batia em sua namorada. Que ao chegar na garagem do Hotel HELINHO teria subido as escadas que dão acesso ao quarto tendo a Declarante ficado na garagem e já posteriormente atendido a solicitação do mesmo de subir. Que já no interior do quarto HELINHO convenceu a declarante abraçando-a, beijando-a tirando-lhe a parte de cima de suas vestes e posteriormente a calça comprida, isto acontecendo com a Declarante sentada na beira da cama. Que suas vestes foram retiradas por HELINHO com delicadeza, estando o mesmo, na ocasião, sem camisa. Que quando se deitou na cama ainda encontrava-se de calcinha e sutian porém HELINHO encontrava-se completamente despido. Que o autor deitou-se por cima da Declarante tendo-lhe retirado o resto de suas vestes. Que a partir daí tiveram relação sexual por cópula convencional. Que HELINHO não usou camisinha, que após o coito ambos pegaram no sono que a Declarante não fugiu pois estava cansada e tinha medo (...)" (fls. 43/44 – grifei)

Anota-se neste momento o surgimento de diversos elementos até então desconhecidos de todos, inclusive da própria mãe (fl. 05); tais como: os amigos THIAGO & RODRIGO, presentes no local, o nome do acusado, que até então figurava como "um rapaz", o carro de THIAGO com a irmã ter emparelhado com o carro de HELINHO, o bairro deixa de ser GUADALUPE e vira SULACAP, o local do ato deixa de ser o interior do carro e passa a ser o Hotel Caravellas, que por sinal fica bem em frente ao complexo da PMERJ (CFAP, ESFO etc) e, alfim, HELINHO se torna violento e ganha uma namorada que por sinal apanhava do mesmo.

Percebe-se aqui uma postura típica dos adolescentes que são flagrados em desvios comportamentais. Como se vê à vítima passa a justificar, como se precisasse, acaso fosse violada, seu comportamento durante o ocorrido, assim como colhido nas seguintes passagens: "(...) que HELINHO entrou no Hotel CARAVELAS, naquele bairro. Que a Declarante neste momento não desceu do veículo porque estava com medo, pois já teria ouvido dizer que HELINHO era agressivo, que batia em sua namorada (...)" e ainda "(...) Que após o coito ambos pegaram no sono e que a Declarante não fugiu pois estava cansada e com medo (...)" (fl. 44 – grifei).

Em se tratando de adolescente e seus envolvimentos sexuais, bem se vê que as justificativas de sua inércia visavam mais uma satisfação à desenganada mãe do que efetivamente a descrição de um crime, até porque sempre após as imputações a vítima se contradiz e descreve momentos fraternais entre ambos; senão vejamos: "(...) já no interior do quarto HELINHO convenceu a Declarante abraçando-a, beijando-a tirando-lhe à parte de cima de suas vestes e posteriormente a calça comprida (...) que suas vestes foram retiradas por HELINHO com delicadeza (...) que a partir daí tiveram relação sexual (...)que após o coito ambos pegaram no sono (...)" (fl. 44 – grifei), e assim continuaram, em sono profundo, até nada mais nada menos do que as 11:30 hs do dia seguinte!


DA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA DOS FATOS E DA VÍTIMA

A conjuntura vivida pela vítima foi muito bem explicada por Enrico Altavilla, professor da Faculdade de Nápoles, da seguinte forma:

"A puberdade deve ser encarada com especial cuidado em relação a tudo que diga respeito à esfera sexual. (...) quando a criança se veja forçada a uma acusação falsa, para esconder o seu vício, ou por qualquer outra razão, será fatalmente escolhido para sujeito da sua acusação. Este estado de consciência torna-se mais agudo nas raparigas, as quais, até por terem uma vida menos livre, pela impossibilidade de satisfazer fisiologicamente os seus primeiros desejos, são levadas a surpreendentes fusões entre a sua imaginação e a realidade" (In. Psicologia Giudiziaria, vol I, O Processo Psicológico e a Verdade Judicial, 3ª Ed, Colecção STUDIUM, Armênio Amado – Editor, Sucessor – Coimbra, Portugal 1981, traduzido por Fernando de Miranda, p. 86 - grifei)

Aliás, o próprio mestre italiano, através de um caso concreto enfrentado ensina como agir para identificar e repelir processos fantasiosos e mentirosos criados pelas supostas vítimas de crimes sexuais:

"Um terceiro critério, para procurar a mentira deve encontrar-se nas modificações dos depoimentos, mas só quando, gradativamente, se identifiquem com um especial plano de defesa. Rita De fugiu, em 1951, com um rapaz com quem andava de amores há cerca de dois anos. Apanhada pelos carabineiros com o amante, confessou ter fugido espontaneamente. Repetiu essa confissão diante de um comissário de polícia, mas depois, imprevistamente, modificou a sua narração, reportando-se à queixa do pai e acrescentando, mais tarde, diversos pormenores, para demonstrar que fora vítima de rapto violento, embora admitindo que, levada para o hotel, se entregara espontaneamente ao noivo. Pouco depois fez uma quarta declaração, na qual afirmou que não sabia como havia sido desflorada, porque, quando chegou ao hotel, o noivo lhe oferecera um líquido verde de que tinha bebido com ela. Num quinto depoimento, excluiu que o rapaz tivesse bebido o licor e disse que no quarto de cama havia grandes garrafas cheias do tal líquido verde. Num sexto depoimento, acrescentou que o noivo lhe apertara o nariz, obrigando-a, pela força, a beber. Para explicar porque modificara as duas primeiras versões, disse:’também repeti ao comissário as minhas falsas declarações porque, enquanto falava com o comissário, chegou o meu pai que me disse não querer perdoar-me e que me expulsaria de casa’. Revelou-se, desta forma, evidente esforço para atenuar a responsabilidade perante o pai e para ser readmitida em casa (tanto mais que o namorado fora preso), transformando o rapto de consensual em violento e atenuando cada vez mais a sua responsabilidade, por haver sido possuída" (In. Ob. Cit. Págs. 162/163, vol II, Personagens do Processo Penal, grifei)

Adotando postura semelhante à de Rita De, LARISSA a todo instante modifica suas versões criando conflitos entre dados negativos e positivos acerca do acusado e sua personalidade, atuação típica de quem manifesta vontade de resguardar-se diante da mãe e da família - quem sabe até por ter sido ameaçada ou punida pelos impulsos sexuais revelados -. Esta conduta, tal como demonstrou Enrico Altavilla, simboliza bem a imagem padrão de quem enfrenta este tipo de situação numa sociedade como a nossa, definida por Afrânio Peixoto, como "himenólatra".

Na doutrina médico-legal encontramos as autorizadas palavras de Hélio Gomes, para quem a atitude de LARISSA se justifica porque:

"A preservação da integridade himenal, via de regra, coincide com a preservação de sentimentos morais e da pureza do corpo. A integridade himenal é um poderosíssimo dique de contenção moral. Quando a membrana se rompe fora do casamento, a observação mostra, cada dia, que a rotura física é talvez o primeiro sintoma de uma rotura moral, que daí por diante se alarga até os descaminhos sociais" (In. Medicina Legal, Freitas Bastos, 13ª Ed., p. 468 – grifei).

Daí a importância em denunciar o acusado, processa-lo e vê-lo julgado, atos que, de per si restauram a moral e os bons costumes perante a sociedade e a família e justificam seus desvios comportamentais, pois como afirmam Porto Carrero e Afrânio Peixoto, citados por Helio Gomes, vivemos "(...) o absurdo topográfico de colocar a honra da mulher nas dobras da mucosa vaginal (...)" muito embora esqueçamos que "(...) uma rapariga pode ser ao mesmo tempo virgem e não casta, casta e não virgem, casta e virgem, nem vigem nem casta." (Ob. Cit. P. 468 – grifos no original).

Abra-se um breve parêntese para esclarecer que na moderna psicologia o mecanismo de defesa utilizado por LARISSA denomina-se "projeção", que ocorre:

"Quando nos sentimos maus, ou quando um evento doloroso é de nossa responsabilidade, tendemos a projeta-lo no mundo externo, que ao nosso ver assumirá as características daquilo que não podemos ver em nós" (In. Clara Regina Rappaport e outros, Teoria do desenvolvimento – Conceitos Fundamentais – Psicologia do Desenvolvimento, Vol 1, Editora Pedagógica e Universitária LTDA (EPU)- 12ª reimpressão – pág. 31, item 2.5.4 – grifei)

A experiência comum já nos demonstrou que o crime de estupro é doloroso, causando um distúrbio psíquico com o qual, não raras às vezes, a vítima leva anos para superar, assim sendo, torna-se inviável aceitar a versão de LARISSA no que tange a ter sido vítima de violência e ter praticado os atos por medo, máxime quando ao final confessa ter sido muito bem tratada e ter dormido com o acusado no motel após tudo que teria "sofrido".

Dada a inidoneidade das diversas versões da vítima, naturalmente caminha-se para outros elementos probatórios que possam prestigiar a imputação inicial e, na análise das provas exsurge a versão apresentada por THIAGO LACE, amigo da vítima e sua irmã, que presente na noite dos fatos exterioriza uma versão totalmente diferente das apresentadas por LARISSA e sua irmã JENNIFER:

"(...) que encontrava-se na Praça de Marechal Hermes, na companhia de suas colegas Jeniffer e sua irmã Larissa, comendo um cachorro quente, quando ali chegou, dirigindo seu carro, um Gol de cor preta, seu conhecido de nome Helio, que também conhecia as duas meninas, e chamou Larissa para conversar, não chegando a sair do carro; que Jeniffer acompanhou Larissa até a janela do carro de Hélio e ali ficaram conversando algum tempo, sendo que quando Jeniffer se afastou, o declarante viu quando Hélio saltou do carro, abriu a porta do carona e Larissa entrou, tendo Hélio dado a volta entrado no Gol pela outra porta dianteira ; que Hélio saiu com o carro, juntamente com Larissa e dois minutos depois retornou ao local onde estavam o declarante e Jeniffer, tendo novamente Hélio chamado Jeniffer para conversar, dizendo para esta que iria sair com Larissa, mas não iria demorar; que como Hélio e Larissa não retornaram, o declarante a pedido de Jeniffer a levou para casa, apesar de ter demonstrado estar com medo da mãe, já que chegaria em casa sem Larissa; que no entender do declarante Larissa não foi forçada por Helio a entrar no carro deste (...)" (fl. 16 – grifei).

A versão trazida pelo amigo da vítima é a única que se aponta idônea, prestigiando inclusive a versão do acusado que se apresentou espontaneamente a Delegacia tão logo tomou conhecimento das imputações que pesavam contra si (fls. 13/14).

De se ressaltar, que desta versão brotam detalhadamente o modo como LARISSA se retirou do local com o acusado e com a aquiescência da irmã JENNIFER, a qual só manifestou preocupação, ao contrário do que afirma(fls. 18/19), quando confessou a THIAGO ter medo de chegar em casa sem LARISSA.

Portanto, os problemas de JENNIFER e, especialmente LARISSA, em nenhum momento foram com a relação sexual; mas sim com as justificativas que deveriam ser apresentadas à mãe e a família.

É certo que se pode afirmar, em oposição a tudo que foi dito, que LARISSA contava apenas 13 anos na data do fato, e que por tal motivo à violência é presumida por força de lei. Entretanto, muitos outros argumentos são contrários a esta cômoda argumentação.


DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA DESCRITA NA ALÍNEA "A", DO ART. 224 DO CP

Baseado no Digesto – qui velle non potuit, ergo noluit – (aquele que não pode querer, logo não quer), Carpzovio estabeleceu durante a idade média a teoria da presunção e sua aplicação no Direito Penal, tema que por sinal sempre foi alvo de severas críticas da doutrina que afirma não se poder afiançar a falta, em sentido naturalístico, de consentimento dos impúberes e dos dementes; mas sim a ausência de validade jurídica deste.

Trazida para o ordenamento jurídico brasileiro, a presunção acabou inserida no Código Penal de 40 com a seguinte justificativa na exposição de motivos:

"O fundamento da ficção legal de violência, no caso dos adolescentes, é a innocentia consilli do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais, de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento" (nº 70 – grifei).

Passadas seis décadas, não se pode mais afirmar que tal presunção é absoluta, motivo pelo qual Mirabete aponta inúmeras absolvições em casos semelhantes a este:

"Estupro ficto. Acusado que nega com veemência a autoria do delito. Ofendida com procedimento pouco recomendável, que presta declarações contraditórias e até inverídicas. (...) Dúvida quanto à idade da ofendida na época em que teria ocorrido o pretendido congresso carnal. No juízo criminal, dúvidas e ausência de provas se equivalem" (RT: 609/363). "Sendo a vítima de crimes contra os costumes menor de 14 anos, seu consentimento na prática dos atos só tem valor quando se trata de pessoa já dissoluta, corrompida (...). Caso contrário, se a mesma é totalmente desinformada sobre sexo, sem qualquer capacidade de discernimento, sua anuência é irrelevante." (RT: 769/694) "STJ: No crime de estupro, a presunção de violência prevista no art. 224, a do CP é relativa. Assim, pode ser afastada se a vítima que com 12 anos de idade, não era ingênua ou inexperiente e tinha capacidade de autodeterminação, com clara ciência do ato que praticara". (RT: 762/580 e 720/415) "A presunção de violência inserida no art. 224, a, do CP, deve ser analisada caso a caso concretamente. Para a caracterização do crime de estupro com violência presumida, necessário se faz que, além de ser a vítima menor de 14 anos de idade, seja ela recatada, inocente e ingênua a respeito de sexo" (RT: 763/627) "Crime contra os costumes – Estupro – Violência Presumida (art. 224, a, do CP) – Delito não caracterizado – Vítima menor de 14 anos de idade que, entretanto, demonstrou ter consentido na consumação do ato sexual – A tais situações de relativização da presunção deve ser acrescida uma outra, ou seja, exclui-se a presunção de violência quando a pessoa da ofendida, embora com menos de 14 anos de idade, deixa claro e patente ter maturidade suficiente para exercer a sua capacidade de auto determinar-se no terreno da sexualidade. (...) se ela aderir prontamente ao convite de caráter sexual que o agente lhe dirige, constituiria um verdadeiro contra-senso entender que sofreu violência. O consentimento ou a adesão da pessoa ofendida mostra-se nesses casos relevante e eficaz. (RT: 678/411).(...) O estupro pressupõe o constrangimento de mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça – art. 213 do CP. A presunção desta última, por ser a vítima menor de 14 anos, é relativa. Confessada ou demonstrada a aquiescência da mulher e exsurgindo da prova dos autos a aparência, física e mental, de tratar-se de pessoa de idade superior a 14 anos, impõe-se a conclusão sobre a ausência de configuração do tipo penal. Alcance dos artigos 213 e 224, alínea a do CP". (JSTF: 223/372 –3) "STF: Não se configura o crime de estupro se a suposta vítima, embora menor de 14 anos, aparenta idade superior, possui comportamento promíscuo e admite não haver sido constrangida a manter relação sexual com o acusado, tendo o feito por livre e espontânea vontade.HC 73.662 – MG, Rel. Min. Marco Aurélio. 21-5-96 (Informativo do STF 29-5-96)" (In. Código Penal Interpretado, Saraiva, 2ª Ed., 2001, págs. 1514/1516 – grifei)

Destarte, cotidianamente a análise da imputação não deve mais basear-se única e exclusivamente no pressuposto idade; deve sim, em atendimento a visão contemporânea constatar nos autos, tal como afirmado pela jurisprudência, indícios de que a menor: "não prestou declarações inverídicas e mentirosas", "que não é pessoa dissoluta, desinformada sobre sexo e, o que lhe causaria ausência de discernimento, dada a sua inocência, ingenuidade e falta de auto-determinação, bem como ‘’não ter aderido prontamente a proposta do autor do suposto crime".

Em sã consciência, não há nada, nada mesmo nestes autos que demonstre uma vítima inocente, frágil, coagida por um bárbaro explorador de jovens indefesas. Ao revés, o que se vê nestes autos é uma menina-mulher que muda suas versões como muda de roupas, escondendo detalhes e dados importantíssimos que uma vítima de estupro jamais esqueceria.

Esta jovem, quando adentrou no carro do acusado já tinha pleno discernimento, sabendo durante todo o desenrolar dos fatos o que estava fazendo e as possíveis conseqüências, tanto que ao ficar sozinha na garagem, momento em que poderia se evadir em direção a PMERJ, que insista-se, fica bem em frente ao motel, LARISSA optou por subir ao quarto, deixar o acusado despir-lhe entre rompantes de beijos, abraços e carícias, para adiante ceder-lhe os prazeres da cópula vagínica e, como gran finale, repousar nos seus braços até a hora do almoço no dia seguinte (?)

Há na solidão de todo quarto um forte apelo sexual, principalmente quando a mulher que ali se encontra corresponde aos atos pré-sexuais de forma pacífica e incisiva, as 03:00 horas da madrugada, tomando a iniciativa, sozinha de subir ao quarto de motel ante a insistência "delicada" do seu amante. Com todo respeito não há que se exigir deste jovem de classe média baixa um rompante domador de seus instintos.

Quem não quer reage, grita, esperneia, foge, arranha o agressor; enfim, demonstra resistência, por mais frágil que seja. Jamais encaminha-se a um quarto de motel, deixa-se despir e, ao final da relação repousa tranqüilamente por horas a fio !

É impossível acreditar que uma jovem, numa praça movimentada, no final da madrugada, numa roda de amigos, com roupas típicas de mulher e com "(...) pêlos axilares raspados, mamas desenvolvidas (...) genitália externa parcialmente coberta de pêlos espessados escuros raspados (leia-se: depilados em forma triangular)" (ver fl. 51 Laudo Médico legal – grifei), que ingressa livremente no carro de um homem, direcionando-se, ainda que com fraca resistência, a um motel e, lá chegando sobe para o quarto, adere a relação sexual que lhe é prontamente ofertada, possa ser equiparada a inocente "criança" que o legislador de 40 quis proteger.

Tenho para mim que aqui cabe a lição do Ministro Marco Aurélio, lançada durante o julgamento de rumoroso caso semelhante ao presente no STF; vejamos:

"A presunção de violência prevista no artigo 224 do Código Penal cede à realidade. Até porque não há como deixar de reconhecer a modificação de costume havida, de maneira assustadoramente vertiginosa, nas últimas décadas, mormente na atual quadra. Os meios de comunicação de um modo geral e, particularmente, a televisão, são responsáveis pela divulgação maciça de informações, não as selecionando sequer de acordo com medianos e saudáveis critérios que pudessem atender às menores exigências de uma sociedade marcada pelas dessemelhanças. Assim é que, sendo irrestrito o acesso á mídia, não se mostra incomum reparar-se a precocidade com que as crianças de hoje lidam, sem embaraços quaisquer, com assuntos concernentes à sexualidade, tudo de uma forma espontânea, quase natural. Tanto não se diria nos idos dos anos 40, época em que exsurgia, glorioso e como símbolo da modernidade e liberalismo, o nosso vetusto e ainda vigente Código Penal. Aquela altura, uma pessoa que contasse doze anos de idade era de fato considerada uma criança e, como tal, indefesa e despreparada para os sustos da vida.

Ora, passados mais de cinqüenta anos – e que anos: a meu ver, correspondem, na história da humanidade, a algumas dezenas de séculos bem vividos – não se há de igualar, por absolutamente inconcebível, as duas situações. Nos nossos dias não há crianças, mas moças de doze anos. Precocemente amadurecidas, a maioria delas já conta com discernimento bastante para reagir ante eventuais adversidades, ainda que não possuam escala de valores definida a ponto de vislumbrarem toda a sorte de conseqüências que lhes pode advir. Tal lucidez é que de fato só virá com o tempo, ainda que o massacre da massificação da notícia, imposto por uma mídia que se pretende onisciente e muitas vezes sabe-se irresponsável diante do papel social que lhe cumpre, leve à precipitação de acontecimentos que só são bem-vindos com o tempo, esse amigo inseparável da sabedoria.

Portanto, é de se ver que já não socorre a sociedade os rigores de um Código ultrapassado, anacrônico e,em algumas passagens, até descabido, porque não acompanhou a verdadeira revolução comportamental assistida pelos hoje mais idosos. Com certeza, o conceito de liberdade é tão discrepante daquele de outrora que só seria comparado aos que norteavam antigamente a noção de libertinagem, anarquia, cinismo e desfaçatez.

Alfim, cabe uma pergunta que, de tão óbvia, transparece á primeira vista como que desnecessária, conquanto ainda não devidamente respondida: a sociedade envelhece; as leis, não?

Ora, enrijecida a legislação – que, ao invés de obnubilar a evolução dos costumes, deveria acompanhá-la, dessa forma protegendo-a – cabe ao intérprete da lei o papel de arrefecer tanta austeridade, flexibilizando, sob o ângulo literal, o texto normativo, tornando-o, destarte, adequado e oportuno, sem que o argumento da segurança transmuda-se em sofisma e servirá, ao reverso, ao despotismo inexorável dos arquiconservadores de plantão, nunca a uma sociedade que se quer global, ágil e avançada – tecnológica, social e espiritualmente.

De qualquer forma, o núcleo do tipo é o constrangimento e à medida em que a vítima deixou patenteado haver mantido relações sexuais espontaneamente, não se tem, mesmo a mercê da pontecialização da idade, como concluir, na espécie, pela caracterização. A presunção não é absoluta, cedendo as peculiaridades do caso como são as já apontadas, ou seja, o fato de a vítima aparentar mais idade, levar vida dissoluta, saindo altas horas (...)". (HC. Nº 73.662-9 MG – págs. 316/318 – voto condutor do Min. Marco Aurélio – grifei).

A magistral lição amolda-se como uma luva ao presente caso, pois aqui também a vítima se porta como pessoa dissoluta, saindo altas horas e com plena capacidade de discernimento, fato este atestado pelo Laudo Médico de fl. 51.


A INCIDÊNCIA DO E.C.A AO CASO CONCRETO

os rigores obsoletos do nosso Código Penal.

Pelo art. 2º da lei percebe-se que a afirmativa do Min. Marco Aurélio de que "(...) Nos nossos dias não há crianças, mas moças de doze anos (...)" ganha foros de legalidade, pois neste dispositivo o legislador fez a seguinte distinção: "Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade" (grifei).

Para a nova legislação, acima de 12 anos não há mais "criança" ingênua; mas sim, como disse o Min. Marco Aurélio: uma moça.

Esta distinção é muito importante e levou em consideração o processo de amadurecimento dos adolescentes contemporâneos, fato externado mais adiante em diversos dispositivos, como por exemplo: (a) o art. 106, que só admite a privação de liberdade quando se tratar de adolescente; (b) o art 112 aplica as sanções mais severas exclusivamente ao adolescente; (c) as garantias processuais (arts. 109/111) são direcionadas aos adolescentes, equiparando-os aos adultos. Enfim, todas as medidas mais agressivas contra a liberdade previstas no título III do ECA, que trata da "Prática de Ato Infracional", aplicam-se excepcionalmente aos adolescentes, nos termos do art. 2º.

Em relação às crianças, José Luiz Mônaco da Silva demonstra, dada a peculiar fragilidade e inocência, procedimento distinto e protetor nos seguintes termos:

"Como já vimos anteriormente, quando a infração penal for praticada por criança, isto é, pessoa com 12 anos incompletos (cf. art. 2º do Estatuto), serão aplicadas uma das medidas dispostas no art. 101, que vão desde o encaminhamento aos pais ou responsável até a colocação em família substituta". (In. Estatuto da Criança e do Adolescente – Comentários – RT – 1994 – p. 175 – comentários ao art. 112 – grifei)

Aí está a maior prova de que chegada à adolescência, graças ao amadurecimento imposto na atual conjuntura, as responsabilidades aumentam, equiparando-se as dos adultos, tendo o legislador apenas previsto para estes punições mais brandas do que as existentes na legislação em vigor (art. 112).


REJEIÇÃO DA DENÚNCIA E A APLICAÇÃO DO ATIVISMO JUDICIAL

Parafraseando o Min. Marco Aurélio: "enrijecida a legislação – que, ao invés de obnubilar a evolução dos costumes, deveria acompanhá-la, dessa forma protegendo-a – cabe ao intérprete da lei o papel de arrefecer tanta austeridade, flexibilizando, sob o ângulo literal, o texto normativo, tornando-o, destarte, adequado e oportuno".

Destarte, cabe ao Juiz a função de tentar adequar a legislação à visão garantista do processo contemporâneo, o que tem causado muita angústia.

Como forma de superar tal situação foram criadas diversas correntes, tendo despontado dentre os juristas a denominada "Ativismo Judicial", a qual foi definida por Ary Casagrande "(...) como um grupo de Juízes inconformados com o marasmo no Judiciário (...)" (In. Ativismo Judicial – Uma Nova Postura para um Novo Tempo – Revista da AMAERJ, nº 03, junho/julho p. 13).

Inspirado nessa visão o próprio Presidente do E. STF, Min. Marco Aurélio, também entrevistado nesta edição, que por sinal tratou exclusivamente sobre o tema, afirmou: "(...) como julgador, a primeira coisa que faço, ao defrontar-me com uma controvérsia, é idealizar a solução mais justa de acordo com minha formação humanista, para o caso concreto. Somente após, recorro à legislação, à ordem jurídica, objetivando encontrar o indispensável apoio (...)" (p.11).


DA CONCLUSÃO

Este é o caso específico onde, a meu ver e com todo o respeito aos entendimentos divergentes, com segurança já se sabe de antemão que inexiste conduta típica por ausência de violência na conjunção carnal. Portanto, deixar instaurar a relação processual, levando este jovem ao banco dos réus por crime tão grave, apenas e tão somente para se apegar à execrável rigidez da forma, instruindo-se o processo integralmente para só então ser proferida a sentença é algo que no século 21 soa muito mal!

A interpretação literal na espécie conduzirá certamente a uma injustiça, pois não tem sentido impor ao acusado todo o drama do processo, com o percurso de todo o seu labirinto, descrito nas páginas imortais de Kafka, quando a primeira vista resulta convicção de inépcia da denúncia.

O Código de Processo Civil, que regula procedimento aplicável, na sua maioria, a bens disponíveis e de inferior quilate, tem remédio para pôr cobro, célere, à demanda temerária. Já no Código de Processo Penal, que tutela direitos humanos bem mais sagrados, o Legislador omitiu-se na construção de meios legais voltados para o mesmo objetivo.

Não será a imprevidência do Legislador que manietará o Juiz, condenando-o a apodrecer sob as torturantes amarras instituídas pelos romanos e bem traduzida no brocardo – summun jus, summa injuria -. Ao Juiz o destino contemporâneo impôs tarefa bem maior e mais árdua, descrita pelo magnífico mestre Dalmo d´Abreu Dallari com as seguintes palavras: "O ativismo político no sentido de garantir a aplicação do direito em qualquer circunstância, seguindo princípios, diretrizes e normas da Constituição, é um dever do Juiz". (ob. Cit. P. 7).

Por tudo que apreciei e ponderei nestes autos, estou PLENAMENTE CONVENCIDO da ausência do núcleo descrito no injusto do art. 213 do CP, ou seja, "constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça" (grifei), ainda que potencializada a conduta pela presunção instituída na alínea "a" do art. 224 do CP, conclusão a que se chega graças à postura dissoluta da vítima, sua aquiescência com o ato e, derradeiramente a postura descrita no laudo de fl. 51, que atesta - já tive oportunidade de me manifestar nesta decisão a respeito -, ter a mesma conduta inconciliável com 13 anos de idade; fato inclusive atestado pelo acusado as fl. 13.

Isto posto, REJEITO A DENÚNCIA, por entender que o acusado não manteve conjunção carnal com a vítima mediante violência, nem mesmo a presumida, o que faço com base no inciso I, do art. 43 do Código de Processo Penal.

Publicada esta em mãos do Sr. Escrivão, registre-se e sejam as partes intimadas.

P. R. I. C

Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 2002.

Alexandre Abrahão Dias Teixeira

Juiz de Direito


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Alexandre Abrahão Dias. Estupro: afastamento da presunção de violência em conjunção carnal com menor de 14 anos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16560. Acesso em: 24 abr. 2024.