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Ação contra gratuidade em transporte coletivo sem indicação de fonte de custeio

Ação contra gratuidade em transporte coletivo sem indicação de fonte de custeio

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Empresa de transporte coletivo ajuíza ação contra Município, para declarar a nulidade da exigência de desconto em passagens sem a indicação da respectiva fonte de custeio.

            Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da ____ Vara Cível da Comarca de Ubá – MG.

            VIAÇÃO UBÁ TRANSPORTES LTDA., CNPJ n.º 25.502.014/0001-34, com sede na Rua Frei Cornélio, n.º 55, bairro Laurindo de Castro, Ubá, MG, neste ato representado por seu procurador infra-assinado, vem, respeitosamente, propor a presente

AÇÃO DECLARATÓRIA C/C PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA

            em desfavor do MUNICÍPIO DE UBÁ, CNPJ n.º 18.128.207/0001-01, com sede na Pç. São Januário, n.º 238, Centro, nesta Cidade, que deverá ser citado na pessoa de seu Prefeito Municipal, Dr. Dirceu dos Santos Ribeiro, mediante os termos que passa a aduzir:


I – DOS FATOS

            1.A autora é a concessionária legal do serviço de transporte público urbano, por ônibus, no Município de Ubá, cujos direitos de concessão estão regulados no contrato n.º 006/91, após sagrar-se vencedora no processo de concorrência pública n.º 001/91.

            Cópia do contrato e sua prorrogação seguem inclusas.

            Nesta senda, além das obrigações legais, ajustou-se o elenco de obrigações específicas de competência da autora, previsto na cláusula terceira do aludido contrato.

            2.Sobre o objeto desta ação, que adiante será especificado, impende ressaltar que a gratuidade do transporte coletivo, estabelecida como obrigação da concessionária, está assegurada, no termos do item XI, da cláusula terceira, do contrato de concessão, em consonância com o edital, apenas às seguintes pessoas:

            a) maiores de 65 (sessenta e cinco) anos;

            b) deficientes físicos;

            c) ex-combatente ubaense durante a 2ª Guerra Mundial;

            d) crianças até 5 (cinco) anos, no mesmo assento que o responsável;

            e) fiscais da Prefeitura Municipal de Ubá em serviço e devidamente credenciados.

            É de se notar, MM. Juiz, que o rol dos beneficiários do transporte gratuito é taxativo e não meramente enunciativo, até porque se trata de uma obrigação oriunda de contrato administrativo, cuja interpretação deve estar pautada nos princípios da legalidade e da vinculação ao edital (ditados pelos arts. 1º da Lei Federal 8.666/93, 14 da Lei Federal 8.987/95 e pelo artigo 175 da Carta Maior) e no princípio da intangibilidade do ato jurídico perfeito, assegurado pelo art. 5º, XXVI da Constituição Federal, não comportando interpretações elásticas, nem atos discricionários.

            3.Ocorre, todavia, que a partir do segundo semestre do ano de 2004, a municipalidade – ré passou a exigir da concessionária o desconto de 20% (vinte por cento) sobre o preço da tarifa destinada a estudantes, baseada no art. 3º, alínea "d", da Lei Municipal n.º 1.302, de 28.08.1979 (cópia em anexo).

            A exigência, feita pelo réu, incide sobre a venda de bilhetes feita diretamente aos estudantes, bem como sobre os bilhetes adquiridos pela municipalidade para distribuição aos alunos da rede pública, estes em conformidade com o contrato n.º 021/2005 (cópia em anexo).

            Aliás, neste contrato n° 021/2005, consta expressamente que a autora deverá conceder o mencionado desconto de 20%, (sic) "determinado pela Lei Municipal n.º 1.302, de 28.07.1979" (cláusula sexta – Do Pagamento).

            Em anexo, seguem cópia de notas fiscais de vendas de bilhetes do transporte coletivo feitas ao réu, demonstrando que somente a partir de maio de 2005 o desconto passou a ser exigido.

            Oportuno salientar que as referidas notas fiscais demonstram a abusividade da alteração unilateral promovida pelo Município, constando o valor de R$ 23.246,40!

            A referida obrigação, em que pese tenha previsão em lei não constou do contrato de concessão e, até então, jamais foi exigida pelo Município.

            Demais disso, imperioso constatar que a Lei Municipal 1.302/79, que confere essa gratuidade aos estudantes sem contra-partida financeira à Autora, é anterior à Constituição Federal de 1988, ao Estatuto de Licitações e Contratos Administrativos (Lei Federal 8.666/93) e ao Diploma das Concessões e Permissões de Serviços Públicos (Lei Federal 8.987/95), que contêm normas nacionais cogentes, que se superpõe às disposições da lei local.

            4.Outrossim, não consta no contrato de concessão nenhuma disposição obrigando a concessionária a conceder o referido desconto, além do que também não está prevista nenhuma forma de compensação por este ônus arcado pela autora, de modo a assegurar o equilíbrio econômico-financeiro do ajuste de concessão, obrigatório à luz dos arts. 29 da Lei Federal 8.666/93 e 9º, §§ 2º, 3º e 4º da Lei 8.987/95

            5.Além da inexistência de previsão contratual e da compensação por parte do ente público, a exigência feita pelo art. 3º, alínea "d", da Lei Municipal n.º 1.302/79, é inconstitucional, o que veremos adiante.

            6.Com tais considerações, delineia-se o objeto desta ação, pela qual se pretende a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão do transporte coletivo urbano da cidade de Ubá, afastando-se a exigência do desconto para a venda do bilhete estudantil.


II. DA INCONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA DO "VALE-ESTUDANTIL"

            II.1. Considerações Iniciais

            7.A Lei Municipal n.º 1.302, de 28 de julho de 1979, regula os serviços de transportes coletivos urbanos e, em seu art. 3º, alínea "d", assegura desconto de 20% sobre o preço da tarifa aos estudantes, nestes termos:

            "Art. 3º. Exige-se as seguintes condições mínimas para as firmas ou empresas correntes:

            (...)

            d) obriga-se a vender passes a estudantes com desconto nunca inferior a 20% (vinte por cento), passes esses enfeixados em cadernetas que deverão conter no mínimo 50 (cinqüenta) deles."

            Por outro lado, a lei não previu nenhuma forma de compensação do ônus assumido pela concessionária com o desconto conferido aos estudantes, o que afronta - como se disse - o princípio constitucional da intangibilidade do ato jurídico perfeito (art. 5º, XXVI da CF)

            8.Esta é uma das razões pelas quais a Autora vem demonstrar a invalidade, ilegalidade e inconstitucionalidade da citada norma municipal, especialmente porque veio a verificar (em tempos de economia estável, de baixa liquidez dos ativos financeiros, de redução do lucro das atividades empresariais e de aumento dos encargos) que o cumprimento da regra do desconto na tarifa do transporte coletivo a estudantes tem levado a uma significativa redução do seu faturamento, comprometendo seriamente sua solidez financeira, em face do ilegal abalo da equação financeira inicial do ajuste.

            9.Não se pretende criticar o objetivo visado pelo legislador ao conceder o desconto no transporte coletivo aos estudantes. Discute-se, isto sim, a validade jurídica do ato normativo que transfere à empresa privada o ônus ou o encargo que deve ser assumido direta e integralmente pelo Poder Público, pois a este incumbe a responsabilidade constitucional de transportar os estudantes da rede pública de ensino, no rastro dos art. 208 e 227 da Carta da República.

            Eis aí, pois, a questão que irá merecer nossa atenção: Lei Municipal transferiu parcialmente à empresa privada o ônus de transportar estudantes, sem repassar ou sem permitir qualquer tipo de contraprestação pelo serviço prestado. Situação como esta é irregular, ilegal e inconstitucional, sob o ponto de vista constitucional, pois não se permite, antes se veda, que o legislador imponha a empresa privada ônus desta natureza sem a correspondente contraprestação.

            Nesta quadra, a Constituição Federal, em seu art. 205, assegura que:

            "Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho."

            A mesma Carta Política explicita o dever do Estado, em seu art. 208:

            "Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

            (...)

            VII – atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático, transporte, alimentação e assistência à saúde."

            No plano infra-constitucional, a Lei Federal n.º 10.880, de 09.06.2004, instituiu o "Programa Nacional de Apoio ao Transporte do Escolar – PNATE", que deixa clara a responsabilidade do Poder Público de "oferecer transporte escolar aos alunos do ensino fundamental público, residentes em área rural, por meio de assistência financeira, em caráter suplementar, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios" (art. 2º).

            10.Pretende-se, pois, afastar a incidência (via medida judicial) da Lei Municipal em relação à atividade empresarial desenvolvida pela autora, desobrigando-a de se submeter à concessão de descontos na tarifa, em razão da flagrante inconstitucionalidade daquele ato normativo, conforme restará sustentado na seqüência.

            11.Inexistem impedimentos ao deferimento do pedido da autora, haja vista que se pretende questionar a validade constitucional de lei municipal, na via do controle difuso, concreto ou incidental de constitucionalidade das leis, reconhecido pela doutrina como modalidade de fiscalização da validade de atos normativos exercido por qualquer órgão judicial, no curso de processo de sua competência e cuja decisão tem o condão, apenas, de afastar a incidência da norma viciada (cf. GILMAR FERREIRA MENDES, "Controle de Constitucionalidade", Ed. Saraiva, 1990, p. 202), o que pode ser objeto de declaração incidental.

            12.A concessionária, desde o final do ano de 2004, vem sendo obrigada a conceder passagens com preços diferenciados a estudantes. Tal obrigação, no entanto, é inválida, diante da inconstitucionalidade de referido ato normativo.

            13.Norma jurídica eivada de vício insanável não gera qualquer efeito juridicamente válido, pois que nula ex-radice. Como já teve oportunidade de decidir o STF, "a superioridade normativa da Constituição traz, ínsita, em sua noção conceitual, a idéia de um estatuto fundamental, de uma ‘fundamental law’, cujo incontrastável valor jurídico atua como pressuposto de validade de toda a ordem positiva instituída pelo Estado" (RTJ 140/954).

            II.2. Violação aos Princípios Constitucionais da Livre Iniciativa, da Propriedade e da Intangibilidade do Ato Jurídico Perfeito

            14.Pois bem, a desvalia jurídica da Lei Municipal nº 1.302/79, que está a impor obrigação indevida à concessionária do transporte coletivo, decorre, de início, da violação dos princípios fundamentais da LIVRE INICIATIVA e da PROPRIEDADE (art. 1º, IV, da CF/88), repetidos em outras oportunidades ("caput" do art. 5º e "caput", parágrafo único e inciso II do art. 170 da CF/88) e de o da INTANGIBILIDADE DO ATO JURÍDICO PERFEITO (art. 5°, XXVI, CF/88).

            Daí decorre a conclusão de que "não só aqui, como no mundo ocidental em geral, a ordem econômica consubstanciada na Constituição, não é senão uma forma econômica capitalista, porque ela se apóia inteiramente na apropriação privada dos meios de produção e na iniciativa privada" (JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Curso de Direito Constitucional Positivo", Ed. Saraiva, 9ª ed., p. 666).

            Ora, há de se considerar que a intervenção do Estado na atuação mercantil da empresa-autora (impondo-lhe, sem contraprestação, ônus relativo à concessão de passagens com desconto) está a ferir de morte os princípios da livre iniciativa e da propriedade, pois restou criada OBRIGAÇÃO NOVA que reduz drasticamente o faturamento da empresa e em conseqüência a sua justa remuneração pelo serviço prestado, características de sua atuação mercantil que estão em sintonia com a ordem constitucional em vigor.

            15.Ao Estado incumbe a prestação do serviço de transporte dos alunos da rede pública, cabendo-lhe, ainda, como decorrência lógica, suportar o ônus relativo à sua obrigação. Como, pois, supor que não teria havido violação dos princípios destacados acima quando se verifica que não existe na Lei 1.302/79 - já obsoleta, como se verá - absolutamente nenhuma previsão quanto à contra-partida que cabe à Autora, concessionária do serviço público, pelo fato de ter sido imposta obrigação nova e que não fora inserida no contrato?

            16. Antes de prosseguir a explanação acerca da inconstitucionalidade da lei municipal em foco, releva salientar o que dispõem as leis federais que disciplinam a matéria, notadamente quando aludem ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão e dos contratos administrativos em geral.

            17. A Lei Federal 8.987/95 (superveniente e hierarquicamente superior à Lei Municipal 1.302/79), estabelece em seus arts. 29, de forma peremptória:

            Art. 29. Incumbe ao poder concedente:

            V - homologar reajustes e proceder à revisão das tarifas na forma desta Lei, das normas pertinentes e do contrato;

            Quando faz alusão especial à política tarifária, taxativamente dispõe a Lei Federal 8.987/95, em seu art. 9º:

            "DA POLÍTICA TARIFÁRIA

            Art. 9o A tarifa do serviço público concedido será fixada pelo preço da proposta vencedora da licitação e preservada pelas regras de revisão previstas nesta Lei, no edital e no contrato.

            (...)

            § 2o Os contratos poderão prever mecanismos de revisão das tarifas, a fim de manter-se o equilíbrio econômico-financeiro.

            § 3o Ressalvados os impostos sobre a renda, a criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a apresentação da proposta, quando comprovado seu impacto, implicará a revisão da tarifa, para mais ou para menos, conforme o caso."

            § 4o Em havendo alteração unilateral do contrato que afete o seu inicial equilíbrio econômico-financeiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração.

            18. Portanto, essas normas nacionais impuseram à Administração Ré o dever de reajustar ou revisar periodicamente o valor das tarifas, quando presentes as hipóteses nelas definidas – dentre as quais o estabelecimento de encargos legais que afetem a equação financeira – de modo a assegurar a mantença do equilíbrio econômico financeiro do contrato de concessão.

            De seu turno, a Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei Federal 8.666/93) repete normas da mesma espécie (arts. 40, VI; 55, IIII; 65, II, letra "d" e 65, §6º), estabelecendo a obrigação de o Poder Concedente (Município Réu) conceder reajustes ou rever as tarifas quando eventos de natureza econômica, financeira, operacional ou legal, tenham repercussão sobre o seu preço e vierem a afetar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

            Inegável que a exigência da gratuidade parcial nas tarifas dos estudantes – sem embargo de sua ilegalidade - provocou afetação do equilíbrio da equação inicial em desfavor da Autora, comprometendo sua capacidade de manter, renovar e atualizar a frota, em detrimento do direito dos usuários/munícipes de terem acesso a transporte regular, seguro, contínuo, eficiente e atual, direitos que o art. 6º, §1º da Lei Federal 8.987/95 e o art. 6º, inciso X, do Código do Consumidor lhes assegura.

            18. Apenas existe autorização constitucional para intervenção do Estado no domínio econômico em casos que não guardam nenhuma semelhança com o que se tem em comento.

            Apenas é possível a intervenção do Estado – em qualquer de suas esferas de poder – no domínio econômico, quando o Poder Público exerce as funções de fiscalização, incentivo e planejamento ("caput" do art. 174 da CF/88), sendo-lhe lícito, também, via Poder Legislativo, "reprimir o abuso do poder econômico" (§ 4º do art. 174 da CF/88), algo que, a toda evidência, está fora de cogitação na hipótese dos autos, porquanto se está a tratar não de correção de conduta comercial irregular mas, sim, de atuação imprópria do Estado-legislador, que impôs ônus pesadíssimo a empresa regida pelas leis de mercado sem a necessária contraprestação.

            JOSÉ AFONSO DA SILVA, notável constitucionalista pátrio, bem abordou a questão da limitação da intervenção estatal no domínio econômico, "in verbis":

            "Se a constituição econômica, traduzida no direito constitucional positivo, é essencialmente capitalista, fundada na livre iniciativa e na livre concorrência, a faculdade de intervenção e participação estatal no domínio econômico constitui apenas um modo de temperamento do sistema" ("Curso de Direito Constitucional Positivo", Ed. RT, 2ª ed., p. 506).

            II.3. Da Ausência de Requisitos Constitucionais para a Concessão do Benefício

            19.Mais evidente a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 1.302/79 quando, comparada suas prescrições com as contidas nos atos indicados no item anterior, verifica-se que a mesma não estipulou nenhuma limitação para o exercício do privilégio ali estatuído. Ou seja: não houve previsão legislativa sobre a delimitação do número de estudantes que fariam jus à gratuidade nos ônibus da Autora e nem definição sobre os trajetos e números de viagens que poderiam empreender. Também não se definiu se o benefício seria destinado somente aos alunos carentes economicamente ou se atingiria os estudantes em geral, mesmo os de alto poder aquisitivo.

            Tal como está lançada, a lei permite que qualquer estudante – mesmo os mais abastados – faça uso do transporte coletivo com preço diferenciado, sem restrição alguma – nem quanto aos horários letivos, nem quanto ao trajeto exclusivo casa/escola/casa - dando margem à utilização indiscriminada do benefício.

            Vale dizer: a concessionária está obrigada a assumir pesado ônus, ao ser obrigada a permitir que qualquer estudante usufrua o transporte coletivo, sem critério e sem previsão de ressarcimento pelo Erário.

            Tudo, pois, está a demonstrar ser inválida a lei questionada, por desatenção clara e grave a princípios constitucionais básicos, que foram absolutamente desprezados.


III. Da Posição Jurisprudencial e Doutrinária Contra a Gratuidade nos Transportes Sem a Necessária Indicação de Fonte de Custeio

            20.Repita-se, por necessário: o arrostamento da Lei Municipal 1.302/79 a dispositivo constitucional específico, além de outros já citados, além de eivá-la com vício insanável de inconstitucionalidade – que pode ser incidentalmente declarada – fez surgir encargo novo, inexistente à época da assinatura do contrato de concessão (cópia em anexo), GERANDO NÍTIDO DESEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO, ao arrepio da garantia constitucional da intangibilidade do ato jurídico perfeito.

            21.O Ministro Presidente do Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de manifestar-se, liminarmente, em três processos ainda pendentes de julgamento pelo Pleno daquela Corte. Embora neles se cuidasse da gratuidade concedida aos maiores de 60 anos, as razões sustentadas pelo Ministro, contra a gratuidade em geral, encaixam-se como luvas à hipótese vertente, verbis:

            "Dinheiro não dá em árvores. Por mais verdes que sejam, as folhas não se transmudam em Dólares. Nem nos Reais da nossa atual unidade monetária, que exibe uma mulher cega, ar desolado de quem ganhou e logo perdeu a última olimpíada".

            "Não é difícil fazer lei sob as melhores intenções. Nem vale lembrar o Getúlio, soberbo – "a lei, ora a lei..." Oportuno, porém, lembrar o Bismarck, pasmo – "Não me perguntem sobre como se fazem as leis, nem as salsichas".

            "Ora, as leis terão que obedecer sempre à ordem constitucional, à lógica do Estado de Direito Democrático, o qual se funda em valores e em princípios, segundo a idéia de que a democracia há de buscar sempre o melhor para todos."

            "Assim, não pode haver, por exemplo, uma lei suprimindo o direito de propriedade. Nem uma lei em confronto, por exemplo, com o ato jurídico perfeito. "Ou seja, com o que foi legalmente contratado".

            (...)

            "Assim, o contrato de autorização, concessão ou permissão de uma linha de ônibus, por exemplo, há que prever e isso está previsto desde a promulgação da Carta de 1988 as formas de ressarcimento pelo Estado das despesas da empresa para o cumprimento dessa ordem constitucional".

            "Nossas relações econômicas se regem pelas regras do sistema capitalista, da economia de mercado, não sendo licito ao Estado, em nome de uma obrigação que é sua, confiscar vagas em ônibus ou qualquer outro meio de transporte, sem a correspondente contrapartida indenizatória".

            "Se isso não tem previsão contratual, não está em vigor, não foi pactuado entre a empresa e o Estado; ainda que essa ordem decorra de uma Lei, não está a empresa autorizada, concessionária ou permissionária, obrigada a transportar de graça o matusalém, por mais carcomido que apareça".

            "Um País com tantos problemas como os da sonegação fiscal, da corrupção com o dinheiro público, o das evasões inconfessáveis de bilhões de dólares para os escaninhos ilícitos dos paraísos fiscais; um País precisado de tantos investimentos externos indispensáveis ao enfrentamento do desemprego e precisado de desenvolvimento econômico, não pode cochilar especialmente nesse tema de respeito aos contratos".

            "O que se trata aqui com essa lei generosa, misericordiosa, bem intencionada, em favor dos velhinhos humilhados porque não podem andar de ônibus, tem a ver com o respeito ou desrespeito aos contratos".

            "Diz a Carta Magna":

            "Art. 5º, XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

            "Ato jurídico perfeito aí é o contrato celebrado e em vigor entre as empresas de transportes e o poder público. Significa dizer que nem a lei pode alterar o que foi, antes, previamente contratado. O que se há de fazer, sim, será um aditivo ao contrato, uma maneira legal de se estabelecer, mediante nova negociação, a forma de ressarcimento às empresas das despesas decorrentes do transporte gratuito assegurado pela Lei".

            "Imaginar o contrário, afirmar a possibilidade de que toda Lei pode vir em cima da iniciativa privada impondo uma ordem desse tipo, sem a correspondente contraprestação pecuniária, é desafiar o contrato, é ofender diretamente o mandamento maior da Constituição".

            "O Estado, afinal, se mantém em seus deveres para com a sociedade em função do que arrecada de impostos, taxas e contribuições e, especialmente, do equilíbrio com as suas despesas. Daí que todo gasto há que resultar de previsão orçamentária. Qualquer conta, alguém tem que pagar. E não dá para se remeter tudo e sempre para o contribuinte em geral".

            (...)

            "A meu sentir, considerando os elementos constantes dos autos, há o risco invertido de dano à ordem e economia públicas, com a possibilidade, aqui refletida, de quebra do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com o Poder Público, na medida em que estabelece o início de um serviço público de transporte, de natureza assistencial, sem instituir a fonte de custeio e sua forma de execução, para que possa produzir efeitos válidos, eis que não editada lei específica que regulamente o benefício e seu exercício na integralidade". (Suspensão De Segurança Nº 1.404 - Df (2004/0119581-4) Requerente: Agência Nacional de Transportes Terrestres – Antt - Procurador : Juan Pablo Couto de Carvalho e Outros - Requerido : Desembargador Federal Relator do Mandado de Segurança n° 200401000372685 do Tribunal Regional Federal da 1a Região Impetrante: Abrati Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros - Advogado : Paulo Soares Cavalcanti da Silva e Outros. P. 10.09.2004)

            22. Outra decisão suspendendo efeitos de lei que concedera gratuidade sem contrapartida de custeio, ferindo o ato jurídico perfeito, foi prolatada ab initio pelo Ministro Edson Vidigal, Presidente do colendo STJ, desta feita considerando inconstitucional lei municipal da Cidade de Barueri/SP, aqui transcrita parcialmente:

            "O que se tem com essa lei generosa, misericordiosa, bem intencionada, tem a ver com o respeito ou desrespeito aos contratos".

            "Diz a Carta Magna":

            "Art. 5º, XXXVI a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada."

            "Ato jurídico perfeito aí é o contrato celebrado e em vigor entre a empresa de transporte urbano e o poder público. Significa dizer que nem a lei pode alterar o que foi, antes, previamente contratado".

            "O que se há de fazer, sim, será um aditivo ao contrato ou uma maneira legal de se estabelecer, mediante nova negociação, a forma de ressarcimento à empresa das despesas decorrentes do transporte gratuito assegurado pela Lei. Imaginar o contrário, afirmar a possibilidade de que toda Lei pode vir em cima da iniciativa privada impondo uma ordem desse tipo, sem a correspondente contraprestação pecuniária, é desafiar o contrato, é ofender diretamente o mandamento maior da Constituição".

            "Como a suspensão de liminar ou de segurança não possui natureza jurídica de recurso, não propiciando a devolução do conhecimento da matéria para eventual reforma, sua análise deve ficar restrita à verificação de seus pressupostos, sem adentrar no efetivo exame do mérito da causa principal, cuja competência cabe tão-somente às instâncias ordinárias".

            "Daí não ser admitia a sua utilização como simples via de atalho para modificar decisão desfavorável ao ente público, como anotado no AGSS 1282/RJ, Rel. Min. Nilson Naves, DJ 4.2.2004; AGP 1354/AL, Rel. Min. Costa Leite, DJ 14.4.2003 e AGSS 1061/GO, Rel. Min. Nilson Naves, DJ 14.4.2003. E o sistema processual contempla e possibilita meios para combater o erro de procedimento e o erro de julgamento - SS nº 605/BA, nº626/PB, nº924/RJ, nº 945/MG, nº 1.132/DF, nº 1.134/MS e a Pet. nº 1.622/PR".

            "Nessa linha, as alegações de ordem jurídica apresentadas pela requerente só podem ser aqui tomadas como indicação da plausibilidade do direito sustentado, insuficiente, por si só, para viabilizar a concessão da contra cautela".

            "Neste caso, não verifico risco de lesão a qualquer dos valores tutelados na Lei nº 4.348/64, art. 4º, a autorizar a medida extrema. Debate-se em torno da aplicabilidade da Lei nº 1.240/01, questionando-se a legalidade da instituição do Sistema de Passe Livre no transporte urbano, sem indicação da fonte de custeio e de seus critérios, cuja alargada abrangência ultrapassa, e muito, a ordem constitucional".

            "A meu sentir, considerando os elementos constantes dos autos, o risco aqui é inverso, com a possibilidade de quebra do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com o Poder Público, na medida em que estabelece o início de um serviço público de transporte, de natureza assistencial, sem instituir a fonte de custeio e sua forma de execução, para que possa produzir efeitos válido".

            "No particular, nos termos em que redigida, a citada Lei Municipal pode comprometer a prestação dos serviços ao restante da comunidade, na medida em que, sendo significativa a quantidade de assentos ocupados gratuitamente pelos beneficiados com a norma municipal, não terá a empresa como se ressarcir dos custos do transporte, podendo restar inviabilizados, até mesmo, os investimentos necessários à manutenção da segurança dos veículos e da população usuária".

            "Assim, ausentes os requisitos legais, indefiro o pedido".

            "Intimem-se. Publique-se".

            Brasília (DF), 21 de janeiro de 2005 - MINISTRO EDSON VIDIGAL – Presidente (SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA Nº 79 - SP (2005/0010544-9) – REQUERENTE: MUNICÍPIO DE BARUERI –

            PROCURADOR : LEANDRO SARAI E OUTROS –

            REQUERIDO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO  –

            INTERES.: BB TRANSPORTE E TURISMO LTDA. –

            ADVOGADO: ANTÔNIO CELSO PONCE PUGLIESE E OUTRO.

            23. De seu turno, o Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais já decidiu que, nos casos de gratuidade, sem ônus para o Poder Concedente, há inegável vilipêndio de norma constitucional, em desfavor de concessionária de transporte coletivo:

            "ADMINISTRATIVO - CONTRATO PÚBLICO DE CONCESSÃO - SERVIÇO DE TRANSPORTE COLETIVO MUNICIPAL - INSTITUIÇÃO POSTERIOR E UNILATERAL DE GRATUIDADE A USUÁRIOS DO SERVIÇO, PROIBINDO-SE À CONCESSIONÁRIA O REPASSE DO ENCARGO DECORRENTE - NORMA DE EFICÁCIA CONCRETA, VIOLANDO DIREITO ADQUIRIDO DA IMPETRANTE INDEPENDENTEMENTE DE PROVA DO PREJUÍZO - CONFIRMADA SENTENÇA QUE CONCEDEU A SEGURANÇA." (APELAÇÃO CÍVEL Nº 000.269.406-5/00 - COMARCA DE SÃO JOÃO DEL-REI - APELANTE(S): 1º) JD 1 V. CV. COMARCA SÃO JOÃO DEL REI, PELO PREFEITO MUN. SÃO JOÃO DEL REI, 2º) PRESID. CÂMARA MUN. SÃO JOÃO DEL REI - APELADO(S): MEIER TRANSP. COLETIVO LTDA. - RELATOR: EXMO. SR. DES. AUDEBERT DELAGE – DJMG 28.05.2003)

            Proferindo o seu voto, o eminente relator Audebert Delage asseverou:

            "O art. 9º da aludida Lei Municipal, ao estabelecer que a concessionária do serviço de transporte coletivo urbano não poderá repassar, para os demais usuários, as despesas provenientes com o transporte gratuito aos estudantes, por ela instituído, fere o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato firmado entre ela e o Município".

            "Como já foi salientado, a Administração Pública poderá alterar unilateralmente os contratos por ela firmados, no entanto, tais alterações devem restringir-se às cláusulas regulamentares ou de serviço, devendo ser mantido o equilíbrio econômico-financeiro, não sendo permitido o agravamento dos encargos e obrigações da concessionária, sem o necessário reajuste da remuneração estipulada."

            24. Outro aresto pretoriano em igual sentido:

            "Na concessão de serviço público é lícita a modificação pelo poder concedente do funcionamento do serviço desde que fique assegurado o equilíbrio do contrato" (RTJ 46/144).

            25. A doutrina, nesse mister, também é incisiva quando repele a concessão de gratuidades no transporte coletivo sem a correspondente fonte de custeio, em flagrante violação do ato jurídico perfeito e inconstitucional transferência, para a iniciativa privada, de obrigação que é nitidamente estatal.

            26. Não se desconhece a célebre lição doutrinária no sentido de que, perante o poder concedente, "os direitos do concessionário cifram-se ao respeito à parte contratual da concessão, isto é, à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro e também a que não lhe seja exigido, sob cor de cumprimento de suas obrigações, o desempenho de atividade estranha ao objeto da concessão, pois é o objeto que identificará tal ou qual concessão" (CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, "Prestação de Serviços Públicos e Administração Indireta", Ed. RT, 2ª ed., p. 42).

            27. Ainda sobre o tema, a doutrina de MARÇAL JUSTEN FILHO ("Concessões de Serviços Públicos", Ed. Dialética, 1997, p. 162) é precisa ao abordar a questão da variação da tarifa em função da ausência de recursos do usuário ("tarifa social"), in verbis:

             "A questão apresenta contornos distintos conforme se enfoque a prestação do serviço público efetivada diretamente pelo Estado ou por concessionário. É QUE O CONCESSIONÁRIO NÃO TEM O DEVER DE ARCAR, INDIVIDUALMENTE, COM CUSTOS REFERENTES À REDUÇÃO OU SUPRESSÃO DAS DESIGUALDADES ECONÔMICAS".

            "Esses encargos devem ser repartidos entre todos os integrantes da comunidade, segundo o princípio da isonomia. Pode-se supor que, desempenhado o serviço público diretamente pelo Estado, os efeitos econômicos das tarifas sociais acabam repassados à comunidade, segundo princípios adequados. QUANDO SE PRETENDE, PORÉM, ESTABELECER TARIFA SOCIAL PARA SERVIÇOS PÚBLICOS CONCEDIDOS, NÃO SE PODE IMPOR AO CONCESSIONÁRIO QUE ARQUE, COM RECURSOS PESSOAIS PRÓPRIOS, COM OS EFEITOS ECONÔMICOS CORRESPONDENTES. Deverá haver mecanismos, na concessão, de transferência dos custos da tarifa social para toda a comunidade. De regra, esse mecanismo não pode repassar o custo para a tarifa dos demais usuários. Se essa fosse a solução, os custos da tarifa social seriam partilhados entre os usuários do serviço. Ora, normalmente, nem todos os integrantes da comunidade são usuários. De todo modo, a transferência desses custos para a tarifa produziria outras distorções incompatíveis com os princípios constitucionais, pois o consumo mais intenso de serviço público significaria assunção de encargos mais elevados. A SOLUÇÃO, PORTANTO, É O ESTADO CUSTEAR ESSAS TARIFAS SOCIAIS" (sem destaque no original).

            O mesmo autor faz menção ao texto original do art. 12 da Lei das Concessões, que foi vetado pelo Presidente da República, que era bastante elucidativo e que estava em harmonia com o Texto Constitucional: "Art. 12 - É vedado, ao poder concedente, estabelecer privilégios tarifários que beneficiem segmentos específicos de usuários do serviço concedido, exceto se no cumprimento de lei que especifique as fontes de recursos".

            O veto, certamente, apenas foi aposto em razão de ser tradição no Brasil o Poder Público "dar esmola com o bolso alheio" sem que, contudo, fique afastada a vedação constitucional à gratuidade sem contra-partida de custeio.

            28. Em "Direito Administrativo" (Ed. Saraiva, p. 203), o Professor Caio Tácito já acolhia, em 1975, o princípio sub oculis da doutrina francesa:

            "(...) O princípio da chamada equação financeira do contrato é que, na expressão de Marcel Waline, um "direito fundamental à equivalência entre as vantagens e os custos tal como calculados no momento de conclusão do contrato" (Droit Admministratif, 8ª ed., 1959, p. 574), constituindo "direito original do co-contratante da Administração", no dizer de Péquignot (Theórie Genérale du Contrat Admministratif, 1945, p. 430), a ser respeitado como "elemento determinante do contrato", conforme Laubadère, "de modo a que se restabeleça o razoável balanceamento gerador do acordo de vontade entre as partes contratantes." (Traité de Contrates Administratifs, vol. VI, 1950, p. 34).

            29. Reportando-se ao parágrafo sexto do art. 65 da Lei de Licitações que determina a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro ou equação financeira que Celso Antônio Bandeira de Melo (in Curso de Direito Administrativo, Forense), assim conceitua:

            "Equilíbrio econômico-financeiro (ou equação econômico-financeiro) é a relação de igualdade formada, de um lado, pelas obrigações assumidas pelo contratante no momento do ajuste e, de outro lado, pela compensação econômica que lhe corresponda. A equação econômico-financeira é intangível. Vezes a basto têm os autores encarecido este aspecto."

            (...)

            "O princípio da chamada equação financeira do contrato é que, na expressão de Marcel Waline, um "direito fundamental à equivalência entre as vantagens e os custos tal como calculados no momento de conclusão do contrato" (Droit Admministratif, 8ª ed., 1959, p. 574), constituindo "direito original do co-contratante da Administração", no dizer de Péquignot (Theórie Genérale du Contrat Admministratif, 1945, p. 430), a ser respeitado como "elemento determinante do contrato", conforme Laubadère, "de modo a que se restabeleça o razoável balanceamento gerador do acordo de vontade entre as partes contratantes" (Traité de Contrates Administratifs, vol. VI, 1950, p. 34).


IV - Considerações Finais sobre a Inconstitucionalidade e a Imprestabilidade da Lei Municipal Hostilizada

            30. Além das inconstitucionalidades e ilegalidades detectadas, a Lei Municipal aqui hostilizada reforçou um outro tipo de inconstitucionalidade já argüida por alguns juristas, ao estimular a prática do instituto da gratuidade, ou seja, conceder descontos ou isenções tarifárias nos serviços de transporte público para determinada categoria de usuário, os estudantes.

            31. Sobre este enfoque, não se pode ignorar que um dos princípios básicos da Constituição Federal de 1988 é o da isonomia, expresso no art. 5º, que estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Da norma constitucional podemos extrair duas lições básicas: a primeira é a de que não pode existir uma legislação que viole o citado mandamento, sob qualquer pretexto; a outra é a de que o legislador - seja municipal, estadual ou federal - ao elaborar uma nova lei, deve reger com iguais disposições, com os mesmos ônus e as mesmas vantagens situações idênticas.

            32. De outro lado, a Constituição Federal de 1988, estabeleceu competência à União, Estados e Municípios sobre determinados serviços públicos ofertados a população em geral. Segundo os ditames constitucionais, estabeleceu o art. 30, incisos I e V, que compete ao Município:

            "I - legislar sobre assuntos de interesse local;

            V - organizar e prestar, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial."

            Assim, extrai-se destes dispositivos que ao município cabe legislar somente sobre assuntos de interesse local, ou seja, somente "organizar e prestar" o serviço.

            Portanto, a teor do que dispõe a Constituição Federal, o Município pode e deve organizar e prestar os serviços de transporte público na sua circunscrição territorial, todavia com estrita observância das normas constitucionais e federais, de caráter nacional, que trazem as normas gerais a que obrigatoriamente se submetem as leis locais.

            Nesse sentido expressam-se os nossos constitucionalistas, entre os quais destaca-se o entendimento do prof. Celso Bastos (Cursos de Direito Constitucional", Saraiva, 1997, p. 312) quando, ao fazer referência à competência municipal instituída pelo Art. 30 da Constituição Federal, diz o seguinte:

            "Esses dispositivos não devem estimular uma visão exageradamente grandiosa da autonomia municipal. Diversas matérias aí explicitadas sofrem a restrição de uma normatividade superior, que lhes diminui o âmbito de atuação. Exemplifiquemos. O inc. V do supracitado artigo dispõe que aos Municípios compete organizar os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo. Mas já o art. 21, XX, estipula que cabe à União editar diretrizes para os transportes urbanos."

            Constata-se, desde logo, que as atribuições delegadas pela Constituição Federal ao Município, como organizar e prestar o serviço de transporte coletivo, deve ser respeitada pelos demais entes da Federação, ou seja, União e Estados.

            Por outro lado, em se tratando – como na espécie - de serviço público objeto de concessão, matéria de competência da União (artigo 175 da Constituição Federal), o Município, ao exercer a sua atribuição constitucional relativamente ao transporte coletivo (art. 30, inciso V), deve fazê-lo com rigorosa observância da legislação nacional que regulou os institutos da concessão e permissão, especialmente a Lei Federal nº 8.987/95, à qual se aplica, subsidiariamente, a Lei Federal 8.666/93 (estatuto de licitações e contratos administrativos).

            A Lei 8.987/95 tem caráter nacional e é aplicável na íntegra a todos os membros da Federação, sem distinção, conforme define seu art. 1º, parágrafo único, verbis:

            "Art. 1º - As concessões de serviços públicos e de obras públicas e as permissões de serviços públicos reger-se-ão pelos termos do art. 175 da Constituição Federal, por esta Lei, pelas normas legais pertinentes e pelas cláusulas dos indispensáveis contratos.

            Parágrafo único - A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão a revisão e as adaptações necessárias de sua legislação às prescrições desta Lei, buscando atender as peculiaridades das diversas modalidades dos seus serviços. "(grifo nosso)

            Portanto, o Município Réu, responsável pelo transporte coletivo urbano, deve ater-se às suas atribuições expressas na Constituição Federal, na Lei Orgânica e nas legislações correlatas que cuidam da espécie, principalmente quanto à prestação do serviço público de transporte.

            Além da inconstitucionalidade detectada, a Lei Municipal em comento reforçou um outro tipo de inconstitucionalidade já argüida por alguns juristas, ao estimular a prática descriteriosa do instituto da gratuidade, ou seja, conceder descontos ou isenções tarifárias nos serviços de transporte público para determinadas categorias de usuários, em detrimento de outras e em total acinte ao ato jurídico per5feito (contrato de concessão), na medida em que remete os ônus dessa benesse ao particular, quando a obrigação de suportá-lo é da Administração Pública.

            A única exceção ao citado princípio, é quando a própria Constituição Federal dispõe expressamente sobre a aplicabilidade de um certo direito a um grupo determinado de pessoas.

            Neste caso, constata-se que a única categoria de usuários beneficiada pela gratuidade nos serviços de transporte coletivo urbano são as pessoas idosas maiores de 65 anos, segundo comando expresso no art. 230, parágrafo 2º da Constituição Federal.

            32. Extrata-se a conclusão de que qualquer outra lei, como a famigerada Lei Municipal n° 1.302, de 28.08.1979, que determine a concessão de uma gratuidade para outra categoria de usuário do serviço de transporte urbano – sem a estipulação de critérios e a indicação da respectiva fonte de custeio – ressalvada a que contemple idosos acima de 65 anos - é inconstitucional.

            33. Mesmo assim, os defensores da concessão de gratuidades, poderiam argumentar que as leis que concederam o benefício antes da Constituição Federal de 1988 deveriam ser respeitadas e mantidas, face ao princípio do direito adquirido.

            Tal interpretação, embora pudesse ter lastro em suposta lógica, não mereceria acolhida em razão de dois pontos doutrinários básicos. O primeiro, é que as leis cujos conteúdos não guardam consonância com as normas constitucionais supervenientes não são recepcionadas pela nova ordem constitucional, salvo quando nela expressamente mencionadas, devendo, portanto, ser revisadas para supressão do vício e adequação à nova ordem, sob pena de serem declaradas inconstitucionais.

            A segunda, é que o direito adquirido decorre de interesse particular, e dessa forma, não pode sobrepor-se sobre o interesse coletivo ou público. No caso da gratuidade concedida a uma categoria específica de usuário, não pode ela prevalecer em detrimento de todos os demais usuários do sistema de transporte público, porque restaria lesado o princípio da igualdade. Muito menos poderia conceder essa benesse sem fonte de custeio correspondente, porque violaria os princípios da livre iniciativa e do respeito ao ato jurídico perfeito (intangibilidade contratual), também de índole mandamental.

            34. Sobre o tema, vale lembrar as lições do Prof. José Afonso da Silva, da Universidade de São Paulo:, sobre o assunto:

            "São inconstitucionais as discriminações não autorizadas pela Constituição. O ato de discriminatório é inconstitucional."

            "Há duas formas de cometer essa inconstitucionalidade. Uma consiste em outorgar benefício legítimo a pessoas ou grupos, discriminando-os favoravelmente em detrimento de outras pessoas ou grupos em igual situação. Neste caso, não se estendeu às pessoas ou grupos discriminados o mesmo tratamento dados aos outros. O ato é inconstitucional, sem dúvida porque feriu o princípio da isonomia"

            Voltando à análise da Lei Municipal em questão, deve-se observar que ela foi editada em confronto com os princípios do sistema legislativo nacional. Nesse sentido, invoca-se o escólio do Prof. WASHINGTON DE BARROS MONTEIROS, em o seu livro Curso de Direito Civil, Saraiva, 29ª edição, p.15, verbis:

            "Quanto à sua origem legislativa, as leis são federais, estaduais e municipais. Num Estado Federal, como nosso país, existe verdadeira hierarquia nas leis. A lei magna é a Constituição Federal, a lei fundamental, a lei primeira. Depois, vêm as leis federais ordinárias; em terceiro lugar, a Constituição Estadual; em seguida as leis estaduais ordinárias e, por último, as leis municipais. Surgindo conflito entre elas, observar-se-á essa ordem de precedência quanto à sua aplicação."

            Com efeito, há de se observar que a precedência deve ser aplicada em consonância com a competência constitucional de cada ente da Federação, de acordo com a matéria a ser objeto da lei.

            Outro ponto a ser considerado é que a função legislativa edilícia é um campo de atividades restritas, e a legalidade da lei deve constituir a primeira cautela do legislador, uma vez que esta, consagrando regras jurídicas de conduta, há de ser antes e acima de tudo conforme o Direito, o que inocorreu na edição da malsinada lei do Município.

            35.Sem embargo, da análise do ato normativo verifica-se o desequilíbrio que ele provocou na relação contratual mantida entre a concessionária e o Município, com arrostamento da regra legal (art. 9º da Lei Federal nº 8.987/95) e constitucional (inciso XXI do art. 37 da CF/88 – "...mantidas as condições efetivas da proposta") do equilíbrio econômico-financeiro, além dos artigos citados da Magna Carta que garantem a intangibilidade do ato jurídico perfeito e consagram o princípio da isonomia. O fato é que houve alteração da relação encargo-remuneração, que deveria ser mantida durante toda a execução do contrato firmado entre as partes.

            36.Perpetrada por vícios constitucionais e legais insanáveis, o que se demonstrou à exaustão com a citação de jurisprudência específica, citações doutrinárias e sólidos argumentos, a lei municipal em comento não pode prevalecer no universo jurídico, incumbindo ao Poder Judiciário declarar, de modo incidental, a sua inconstitucionalidade ou, alternativamente, a sua ineficácia, para que cesse de produzir efeitos, eis que nula ab ovo.

            37.Balizamentos como os extraídos dos acórdãos citados (mormente os do ínclito STJ) e da farta doutrina trazida à colação, demonstram que a Lei nº 1.302/79, anterior à nova Carta da República e às leis nacionais 8.666/93 e 8.987/95, está derrogada ou mesmo revogada, além de conter obrigação (transporte gratuito de estudantes) sem a indicação de custeio respectivo, o que a mancha de inconstitucionalidade irremediável.

            38. Os exemplos de correta observância da Constituição Federal não acabam. Veja-se a questão da propaganda eleitoral gratuita, que é transmitida, obrigatoriamente, pelas empresas concessionárias de serviços públicos de telecomunicações. Seria o caso de perguntar se tais empresas, ao realizarem a divulgação, em horário nobre, da propaganda eleitoral (supostamente gratuita), estariam assumindo tal encargo em nome do Poder Público sem qualquer contraprestação.

            A resposta, pelo que se vê de leis editadas por ocasião das eleições (tal como a Lei Federal nº 8.173/93, regulamentada pelo Decreto nº 1.976/96), é no sentido de que as emissoras de rádio e televisão, obrigadas à divulgação "gratuita" de propaganda eleitoral, poderão excluir do lucro líquido, para efeito de determinação do lucro real, valor correspondente a oito décimos do resultado da multiplicação do preço do espaço comercializável pelo tempo que seria efetivamente utilizado pela emissora em programação destinada a publicidade comercial, no período de duração daquela propaganda (art. 1º).

            39. Tem-se, ainda, que, descumprida a característica mais elementar do contrato de concessão (modalidade de contrato administrativo governado pelo princípio da remuneração e do equilíbrio da equação financeira), restou descumprida a garantia constitucional da INTANGILIBILIDADE DO ATO JURÍDICO PERFEITO (art. 5º, XXXVI, da CF/88), o que certamente não será referendado pelo Poder Judiciário, que tem sido pacífico na declaração de imprestabilidade de leis produzidas em descompasso com a Carta Magna, dentre as quais aquelas que concedem gratuidade sem contrapartida para a concessionária, mediante transferência ilegal e inconstitucional de ônus que é reservado ao próprio Estado.

            40. Com efeito, para que seja preservada a superioridade normativa da Constituição, necessária faz-se necessária a intervenção do Judiciário, que haverá (garantindo-se, evidentemente, a ampla defesa e o contraditório) acolher o presente pedido e declarar que a Autora está desobrigada de conceder o desconto na tarifa de transporte coletivo municipal aos estudantes, sem que lhe seja assegurada fonte de custeio correspondente e efetiva, por força da inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 1.302/79.

            41.De seu turno, deve ser preservado o equilíbrio econômico-financeiro, previsto no art. 9° da Lei Federal 8.987/95 e no art. 65, § 6º, da Lei de Licitações (Lei n.º 8.666/93), "in verbis":

            "§ 6º. Em havendo alteração unilateral do contrato que aumente os encargos do contratado, a Administração deverá restabelecer, por aditamento, o equilíbrio econômico-financeiro inicial."


IV. Da Antecipação da Tutela

            42.Urge seja deferida a prestação jurisdicional, antecipada e liminarmente, pois que presentes os pressupostos de admissibilidade e acolhimento do pedido.

            43.Nos termos do art. 273 do CPC, estando o Magistrado convencido da verossimilhança da alegação, poderá antecipar os efeitos da sentença, proporcionando à parte, antes ameaçada da lesão de direitos pela morosidade no andamento do processo, a certeza de que terá tutela antecipada de seus direitos, para que cessem os efeitos do ato jurídico imperfeito que lesiona seus direitos, até sentença final que o declare inconstitucional, incidentalmente, ou suspenda seus efeitos, até que seja expurgada dos vícios que o eivam de nulidade.

            Nesta linha de pensamento comunga o festejado processualista brasileiro CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO que diz:

            "No direito moderno, a realidade dos pleitos judiciais e a angústia das longas esperas são fatores de desprestígio do Poder Judiciário (como se a culpa fosse só sua) e de sofrimento pessoal dos que necessitam da tutela jurisdicional. Fala-se no binômio custo-duração como eixo em torno do qual gravitam todos os males da Justiça contemporânea (Vincenzo Vigoritti) e com toda a autoridade já foi dito, em sugestiva imagem que: "O tempo é um inimigo do direito, contra o qual o Juiz deve tratar uma guerra sem tréguas." (CARNELUTTI)"

            "Acelerar os resultados do processo é quase uma obsessão, nas modernas especulações sobre a tutela jurisdicional." (Dinamarco, Cândido Rangel. A Reforma do CPC, 2ª Ed. Malheiros Editores. Nº. 1-3, pág. 139).

            44.A inconstitucionalidade da alínea "d" do art. 3º, da Lei n.º 1.302/79 é patente, pelas razões já expostas, e a exigência de seu cumprimento, imposta pelo Município de Ubá, está acarretando sérias dificuldades à saúde financeira da concessionária – fato notório e indene de prova - o que poderá colocar em risco até mesmo a sua continuidade da prestação dos serviços de interesse público, ao arrepio do que preceituam os arts. 6° e 7° da Lei Federal 8.987/95.

            45.O dano financeiro experimentado pela concessionária é real e não se justifica a sua continuidade, em face da inconstitucionalidade do art. 3º, "d", da Lei n.º 1.302/79.

            46.Assim sendo, presentes os requisitos da verossimilhança e havendo o fundado receio de dano irreversível, deverá ser deferida a antecipação da tutela, para que se suspenda a obrigação imposta à autora de conceder gratuidade parcial na venda de bilhetes de passagens a estudantes, sem contrapartida efetiva.

            47.Assevera-se o fato de que o Município de Ubá goza do benefício de possuir prazos processuais privilegiados, de maior dilatação, além de beneficiar-se com a garantia do duplo grau de jurisdição (recurso ex-ofício), o que tornará mais moroso o andamento do feito, em prejuízo evidente aos direitos da Autora, que são líquidos e certos.


V. Dos Pedidos

            48.Em face de todo o exposto, requer e espera desse preclaro Juízo:

            a) a concessão da medida de antecipação da tutela, nos termos do art. 273, do CPC, "inaudita altera pars", exonerando a Autora da obrigação nitidamente inconstitucional e ilegal de vender, aos estudantes ou à Prefeitura Municipal de Ubá, bilhetes do transportes coletivo municipal com desconto de 20% sobre o valor das tarifas, sem qualquer contrapartida de custeio, até a prolação da sentença final;

            b) a citação do Município de Ubá, na pessoa do Prefeito Municipal, para, caso queira, vir responder aos termos desta ação;

            c) julgar, ao final, procedente o pedido, para que se declare, incidentalmente, a inconstitucionalidade da Lei Municipal n.º 1.302, de 28.08.1979 e se exonere a Autora, definitivamente, da obrigação de conceder descontos tarifários parciais aos estudantes municipais, à míngua de indicação de fonte de custeio e em razão do desequilíbrio da equação financeira do contrato de concessão que essa benesse provoca.

            d) alternativamente, julgar procedente o pedido para declarar inexeqüível a lei municipal em destaque, quer pela ausência de dispositivo que preveja fonte de custeio que garanta a equação financeira do contrato, quer porque derrogada ou revogada a lei guerreada, pelo advento da nova Carta da República e das Leis Federais 8.987/95 e 8.666/93.

            e) seja o Município de Ubá condenado a ressarcir à autora todo o valor correspondente aos descontos concedidos nas vendas de bilhetes a estudantes, desde a data dessa exigência até a data em que for cessada por decisão judicial, conforme se vier apurar em futura liquidação de sentença;

            e) seja o réu condenado no pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, à base de 20% sobre o valor da condenação, nos termos do art. 20, § 3º, CPC.

            Protesta provar o alegado por todos os meios de prova em direito admitidos.

            Dá-se à causa o valor de R$ 12.000,00, para efeitos legais.

            Nestes termos, pede e espera deferimento.

            Viçosa, 21 de junho de 2005.

Guilherme Andrade Aquino
OAB/MG 33.392

Randolpho Martino Júnior
OAB/MG 72.561


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AQUINO, Guilherme Andrade. Ação contra gratuidade em transporte coletivo sem indicação de fonte de custeio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 870, 20 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16651. Acesso em: 19 abr. 2024.