III. Da Posição Jurisprudencial e Doutrinária Contra a Gratuidade nos Transportes Sem a Necessária Indicação de Fonte de Custeio
20.Repita-se, por necessário: o arrostamento da Lei Municipal 1.302/79 a dispositivo constitucional específico, além de outros já citados, além de eivá-la com vício insanável de inconstitucionalidade – que pode ser incidentalmente declarada – fez surgir encargo novo, inexistente à época da assinatura do contrato de concessão (cópia em anexo), GERANDO NÍTIDO DESEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO, ao arrepio da garantia constitucional da intangibilidade do ato jurídico perfeito.
21.O Ministro Presidente do Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de manifestar-se, liminarmente, em três processos ainda pendentes de julgamento pelo Pleno daquela Corte. Embora neles se cuidasse da gratuidade concedida aos maiores de 60 anos, as razões sustentadas pelo Ministro, contra a gratuidade em geral, encaixam-se como luvas à hipótese vertente, verbis:
"Dinheiro não dá em árvores. Por mais verdes que sejam, as folhas não se transmudam em Dólares. Nem nos Reais da nossa atual unidade monetária, que exibe uma mulher cega, ar desolado de quem ganhou e logo perdeu a última olimpíada".
"Não é difícil fazer lei sob as melhores intenções. Nem vale lembrar o Getúlio, soberbo – "a lei, ora a lei..." Oportuno, porém, lembrar o Bismarck, pasmo – "Não me perguntem sobre como se fazem as leis, nem as salsichas".
"Ora, as leis terão que obedecer sempre à ordem constitucional, à lógica do Estado de Direito Democrático, o qual se funda em valores e em princípios, segundo a idéia de que a democracia há de buscar sempre o melhor para todos."
"Assim, não pode haver, por exemplo, uma lei suprimindo o direito de propriedade. Nem uma lei em confronto, por exemplo, com o ato jurídico perfeito. "Ou seja, com o que foi legalmente contratado".
(...)
"Assim, o contrato de autorização, concessão ou permissão de uma linha de ônibus, por exemplo, há que prever – e isso está previsto desde a promulgação da Carta de 1988 – as formas de ressarcimento pelo Estado das despesas da empresa para o cumprimento dessa ordem constitucional".
"Nossas relações econômicas se regem pelas regras do sistema capitalista, da economia de mercado, não sendo licito ao Estado, em nome de uma obrigação que é sua, confiscar vagas em ônibus ou qualquer outro meio de transporte, sem a correspondente contrapartida indenizatória".
"Se isso não tem previsão contratual, não está em vigor, não foi pactuado entre a empresa e o Estado; ainda que essa ordem decorra de uma Lei, não está a empresa autorizada, concessionária ou permissionária, obrigada a transportar de graça o matusalém, por mais carcomido que apareça".
"Um País com tantos problemas como os da sonegação fiscal, da corrupção com o dinheiro público, o das evasões inconfessáveis de bilhões de dólares para os escaninhos ilícitos dos paraísos fiscais; um País precisado de tantos investimentos externos indispensáveis ao enfrentamento do desemprego e precisado de desenvolvimento econômico, não pode cochilar especialmente nesse tema de respeito aos contratos".
"O que se trata aqui com essa lei generosa, misericordiosa, bem intencionada, em favor dos velhinhos humilhados porque não podem andar de ônibus, tem a ver com o respeito ou desrespeito aos contratos".
"Diz a Carta Magna":
"Art. 5º, XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
"Ato jurídico perfeito aí é o contrato celebrado e em vigor entre as empresas de transportes e o poder público. Significa dizer que nem a lei pode alterar o que foi, antes, previamente contratado. O que se há de fazer, sim, será um aditivo ao contrato, uma maneira legal de se estabelecer, mediante nova negociação, a forma de ressarcimento às empresas das despesas decorrentes do transporte gratuito assegurado pela Lei".
"Imaginar o contrário, afirmar a possibilidade de que toda Lei pode vir em cima da iniciativa privada impondo uma ordem desse tipo, sem a correspondente contraprestação pecuniária, é desafiar o contrato, é ofender diretamente o mandamento maior da Constituição".
"O Estado, afinal, se mantém em seus deveres para com a sociedade em função do que arrecada de impostos, taxas e contribuições e, especialmente, do equilíbrio com as suas despesas. Daí que todo gasto há que resultar de previsão orçamentária. Qualquer conta, alguém tem que pagar. E não dá para se remeter tudo e sempre para o contribuinte em geral".
(...)
"A meu sentir, considerando os elementos constantes dos autos, há o risco invertido de dano à ordem e economia públicas, com a possibilidade, aqui refletida, de quebra do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com o Poder Público, na medida em que estabelece o início de um serviço público de transporte, de natureza assistencial, sem instituir a fonte de custeio e sua forma de execução, para que possa produzir efeitos válidos, eis que não editada lei específica que regulamente o benefício e seu exercício na integralidade". (Suspensão De Segurança Nº 1.404 - Df (2004/0119581-4) Requerente: Agência Nacional de Transportes Terrestres – Antt - Procurador : Juan Pablo Couto de Carvalho e Outros - Requerido : Desembargador Federal Relator do Mandado de Segurança n° 200401000372685 do Tribunal Regional Federal da 1a Região Impetrante: Abrati Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros - Advogado : Paulo Soares Cavalcanti da Silva e Outros. P. 10.09.2004)
22. Outra decisão suspendendo efeitos de lei que concedera gratuidade sem contrapartida de custeio, ferindo o ato jurídico perfeito, foi prolatada ab initio pelo Ministro Edson Vidigal, Presidente do colendo STJ, desta feita considerando inconstitucional lei municipal da Cidade de Barueri/SP, aqui transcrita parcialmente:
"O que se tem com essa lei generosa, misericordiosa, bem intencionada, tem a ver com o respeito ou desrespeito aos contratos".
"Diz a Carta Magna":
"Art. 5º, XXXVI a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada."
"Ato jurídico perfeito aí é o contrato celebrado e em vigor entre a empresa de transporte urbano e o poder público. Significa dizer que nem a lei pode alterar o que foi, antes, previamente contratado".
"O que se há de fazer, sim, será um aditivo ao contrato ou uma maneira legal de se estabelecer, mediante nova negociação, a forma de ressarcimento à empresa das despesas decorrentes do transporte gratuito assegurado pela Lei. Imaginar o contrário, afirmar a possibilidade de que toda Lei pode vir em cima da iniciativa privada impondo uma ordem desse tipo, sem a correspondente contraprestação pecuniária, é desafiar o contrato, é ofender diretamente o mandamento maior da Constituição".
"Como a suspensão de liminar ou de segurança não possui natureza jurídica de recurso, não propiciando a devolução do conhecimento da matéria para eventual reforma, sua análise deve ficar restrita à verificação de seus pressupostos, sem adentrar no efetivo exame do mérito da causa principal, cuja competência cabe tão-somente às instâncias ordinárias".
"Daí não ser admitia a sua utilização como simples via de atalho para modificar decisão desfavorável ao ente público, como anotado no AGSS 1282/RJ, Rel. Min. Nilson Naves, DJ 4.2.2004; AGP 1354/AL, Rel. Min. Costa Leite, DJ 14.4.2003 e AGSS 1061/GO, Rel. Min. Nilson Naves, DJ 14.4.2003. E o sistema processual contempla e possibilita meios para combater o erro de procedimento e o erro de julgamento - SS nº 605/BA, nº626/PB, nº924/RJ, nº 945/MG, nº 1.132/DF, nº 1.134/MS e a Pet. nº 1.622/PR".
"Nessa linha, as alegações de ordem jurídica apresentadas pela requerente só podem ser aqui tomadas como indicação da plausibilidade do direito sustentado, insuficiente, por si só, para viabilizar a concessão da contra cautela".
"Neste caso, não verifico risco de lesão a qualquer dos valores tutelados na Lei nº 4.348/64, art. 4º, a autorizar a medida extrema. Debate-se em torno da aplicabilidade da Lei nº 1.240/01, questionando-se a legalidade da instituição do Sistema de Passe Livre no transporte urbano, sem indicação da fonte de custeio e de seus critérios, cuja alargada abrangência ultrapassa, e muito, a ordem constitucional".
"A meu sentir, considerando os elementos constantes dos autos, o risco aqui é inverso, com a possibilidade de quebra do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com o Poder Público, na medida em que estabelece o início de um serviço público de transporte, de natureza assistencial, sem instituir a fonte de custeio e sua forma de execução, para que possa produzir efeitos válido".
"No particular, nos termos em que redigida, a citada Lei Municipal pode comprometer a prestação dos serviços ao restante da comunidade, na medida em que, sendo significativa a quantidade de assentos ocupados gratuitamente pelos beneficiados com a norma municipal, não terá a empresa como se ressarcir dos custos do transporte, podendo restar inviabilizados, até mesmo, os investimentos necessários à manutenção da segurança dos veículos e da população usuária".
"Assim, ausentes os requisitos legais, indefiro o pedido".
"Intimem-se. Publique-se".
Brasília (DF), 21 de janeiro de 2005 - MINISTRO EDSON VIDIGAL – Presidente (SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA Nº 79 - SP (2005/0010544-9) – REQUERENTE: MUNICÍPIO DE BARUERI –
PROCURADOR : LEANDRO SARAI E OUTROS –
REQUERIDO: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO –
INTERES.: BB TRANSPORTE E TURISMO LTDA. –
ADVOGADO: ANTÔNIO CELSO PONCE PUGLIESE E OUTRO.
23. De seu turno, o Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais já decidiu que, nos casos de gratuidade, sem ônus para o Poder Concedente, há inegável vilipêndio de norma constitucional, em desfavor de concessionária de transporte coletivo:
"ADMINISTRATIVO - CONTRATO PÚBLICO DE CONCESSÃO - SERVIÇO DE TRANSPORTE COLETIVO MUNICIPAL - INSTITUIÇÃO POSTERIOR E UNILATERAL DE GRATUIDADE A USUÁRIOS DO SERVIÇO, PROIBINDO-SE À CONCESSIONÁRIA O REPASSE DO ENCARGO DECORRENTE - NORMA DE EFICÁCIA CONCRETA, VIOLANDO DIREITO ADQUIRIDO DA IMPETRANTE INDEPENDENTEMENTE DE PROVA DO PREJUÍZO - CONFIRMADA SENTENÇA QUE CONCEDEU A SEGURANÇA." (APELAÇÃO CÍVEL Nº 000.269.406-5/00 - COMARCA DE SÃO JOÃO DEL-REI - APELANTE(S): 1º) JD 1 V. CV. COMARCA SÃO JOÃO DEL REI, PELO PREFEITO MUN. SÃO JOÃO DEL REI, 2º) PRESID. CÂMARA MUN. SÃO JOÃO DEL REI - APELADO(S): MEIER TRANSP. COLETIVO LTDA. - RELATOR: EXMO. SR. DES. AUDEBERT DELAGE – DJMG 28.05.2003)
Proferindo o seu voto, o eminente relator Audebert Delage asseverou:
"O art. 9º da aludida Lei Municipal, ao estabelecer que a concessionária do serviço de transporte coletivo urbano não poderá repassar, para os demais usuários, as despesas provenientes com o transporte gratuito aos estudantes, por ela instituído, fere o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato firmado entre ela e o Município".
"Como já foi salientado, a Administração Pública poderá alterar unilateralmente os contratos por ela firmados, no entanto, tais alterações devem restringir-se às cláusulas regulamentares ou de serviço, devendo ser mantido o equilíbrio econômico-financeiro, não sendo permitido o agravamento dos encargos e obrigações da concessionária, sem o necessário reajuste da remuneração estipulada."
24. Outro aresto pretoriano em igual sentido:
"Na concessão de serviço público é lícita a modificação pelo poder concedente do funcionamento do serviço desde que fique assegurado o equilíbrio do contrato" (RTJ 46/144).
25. A doutrina, nesse mister, também é incisiva quando repele a concessão de gratuidades no transporte coletivo sem a correspondente fonte de custeio, em flagrante violação do ato jurídico perfeito e inconstitucional transferência, para a iniciativa privada, de obrigação que é nitidamente estatal.
26. Não se desconhece a célebre lição doutrinária no sentido de que, perante o poder concedente, "os direitos do concessionário cifram-se ao respeito à parte contratual da concessão, isto é, à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro e também a que não lhe seja exigido, sob cor de cumprimento de suas obrigações, o desempenho de atividade estranha ao objeto da concessão, pois é o objeto que identificará tal ou qual concessão" (CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, "Prestação de Serviços Públicos e Administração Indireta", Ed. RT, 2ª ed., p. 42).
27. Ainda sobre o tema, a doutrina de MARÇAL JUSTEN FILHO ("Concessões de Serviços Públicos", Ed. Dialética, 1997, p. 162) é precisa ao abordar a questão da variação da tarifa em função da ausência de recursos do usuário ("tarifa social"), in verbis:
"A questão apresenta contornos distintos conforme se enfoque a prestação do serviço público efetivada diretamente pelo Estado ou por concessionário. É QUE O CONCESSIONÁRIO NÃO TEM O DEVER DE ARCAR, INDIVIDUALMENTE, COM CUSTOS REFERENTES À REDUÇÃO OU SUPRESSÃO DAS DESIGUALDADES ECONÔMICAS".
"Esses encargos devem ser repartidos entre todos os integrantes da comunidade, segundo o princípio da isonomia. Pode-se supor que, desempenhado o serviço público diretamente pelo Estado, os efeitos econômicos das tarifas sociais acabam repassados à comunidade, segundo princípios adequados. QUANDO SE PRETENDE, PORÉM, ESTABELECER TARIFA SOCIAL PARA SERVIÇOS PÚBLICOS CONCEDIDOS, NÃO SE PODE IMPOR AO CONCESSIONÁRIO QUE ARQUE, COM RECURSOS PESSOAIS PRÓPRIOS, COM OS EFEITOS ECONÔMICOS CORRESPONDENTES. Deverá haver mecanismos, na concessão, de transferência dos custos da tarifa social para toda a comunidade. De regra, esse mecanismo não pode repassar o custo para a tarifa dos demais usuários. Se essa fosse a solução, os custos da tarifa social seriam partilhados entre os usuários do serviço. Ora, normalmente, nem todos os integrantes da comunidade são usuários. De todo modo, a transferência desses custos para a tarifa produziria outras distorções incompatíveis com os princípios constitucionais, pois o consumo mais intenso de serviço público significaria assunção de encargos mais elevados. A SOLUÇÃO, PORTANTO, É O ESTADO CUSTEAR ESSAS TARIFAS SOCIAIS"
O mesmo autor faz menção ao texto original do art. 12 da Lei das Concessões, que foi vetado pelo Presidente da República, que era bastante elucidativo e que estava em harmonia com o Texto Constitucional: "Art. 12 - É vedado, ao poder concedente, estabelecer privilégios tarifários que beneficiem segmentos específicos de usuários do serviço concedido, exceto se no cumprimento de lei que especifique as fontes de recursos".
O veto, certamente, apenas foi aposto em razão de ser tradição no Brasil o Poder Público "dar esmola com o bolso alheio" sem que, contudo, fique afastada a vedação constitucional à gratuidade sem contra-partida de custeio.
28. Em "Direito Administrativo" (Ed. Saraiva, p. 203), o Professor Caio Tácito já acolhia, em 1975, o princípio sub oculis da doutrina francesa:
"(...) O princípio da chamada equação financeira do contrato é que, na expressão de Marcel Waline, um "direito fundamental à equivalência entre as vantagens e os custos tal como calculados no momento de conclusão do contrato" (Droit Admministratif, 8ª ed., 1959, p. 574), constituindo "direito original do co-contratante da Administração", no dizer de Péquignot (Theórie Genérale du Contrat Admministratif, 1945, p. 430), a ser respeitado como "elemento determinante do contrato", conforme Laubadère, "de modo a que se restabeleça o razoável balanceamento gerador do acordo de vontade entre as partes contratantes." (Traité de Contrates Administratifs, vol. VI, 1950, p. 34).
29. Reportando-se ao parágrafo sexto do art. 65 da Lei de Licitações que determina a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro ou equação financeira que Celso Antônio Bandeira de Melo (in Curso de Direito Administrativo, Forense), assim conceitua:
"Equilíbrio econômico-financeiro (ou equação econômico-financeiro) é a relação de igualdade formada, de um lado, pelas obrigações assumidas pelo contratante no momento do ajuste e, de outro lado, pela compensação econômica que lhe corresponda. A equação econômico-financeira é intangível. Vezes a basto têm os autores encarecido este aspecto."
(...)
"O princípio da chamada equação financeira do contrato é que, na expressão de Marcel Waline, um "direito fundamental à equivalência entre as vantagens e os custos tal como calculados no momento de conclusão do contrato" (Droit Admministratif, 8ª ed., 1959, p. 574), constituindo "direito original do co-contratante da Administração", no dizer de Péquignot (Theórie Genérale du Contrat Admministratif, 1945, p. 430), a ser respeitado como "elemento determinante do contrato", conforme Laubadère, "de modo a que se restabeleça o razoável balanceamento gerador do acordo de vontade entre as partes contratantes" (Traité de Contrates Administratifs, vol. VI, 1950, p. 34).