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Ação contra gratuidade em transporte coletivo sem indicação de fonte de custeio

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20/11/2005 às 00:00
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IV - Considerações Finais sobre a Inconstitucionalidade e a Imprestabilidade da Lei Municipal Hostilizada

            30. Além das inconstitucionalidades e ilegalidades detectadas, a Lei Municipal aqui hostilizada reforçou um outro tipo de inconstitucionalidade já argüida por alguns juristas, ao estimular a prática do instituto da gratuidade, ou seja, conceder descontos ou isenções tarifárias nos serviços de transporte público para determinada categoria de usuário, os estudantes.

            31. Sobre este enfoque, não se pode ignorar que um dos princípios básicos da Constituição Federal de 1988 é o da isonomia, expresso no art. 5º, que estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Da norma constitucional podemos extrair duas lições básicas: a primeira é a de que não pode existir uma legislação que viole o citado mandamento, sob qualquer pretexto; a outra é a de que o legislador - seja municipal, estadual ou federal - ao elaborar uma nova lei, deve reger com iguais disposições, com os mesmos ônus e as mesmas vantagens situações idênticas.

            32. De outro lado, a Constituição Federal de 1988, estabeleceu competência à União, Estados e Municípios sobre determinados serviços públicos ofertados a população em geral. Segundo os ditames constitucionais, estabeleceu o art. 30, incisos I e V, que compete ao Município:

            "I - legislar sobre assuntos de interesse local;

            V - organizar e prestar, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial."

            Assim, extrai-se destes dispositivos que ao município cabe legislar somente sobre assuntos de interesse local, ou seja, somente "organizar e prestar" o serviço.

            Portanto, a teor do que dispõe a Constituição Federal, o Município pode e deve organizar e prestar os serviços de transporte público na sua circunscrição territorial, todavia com estrita observância das normas constitucionais e federais, de caráter nacional, que trazem as normas gerais a que obrigatoriamente se submetem as leis locais.

            Nesse sentido expressam-se os nossos constitucionalistas, entre os quais destaca-se o entendimento do prof. Celso Bastos (Cursos de Direito Constitucional", Saraiva, 1997, p. 312) quando, ao fazer referência à competência municipal instituída pelo Art. 30 da Constituição Federal, diz o seguinte:

            "Esses dispositivos não devem estimular uma visão exageradamente grandiosa da autonomia municipal. Diversas matérias aí explicitadas sofrem a restrição de uma normatividade superior, que lhes diminui o âmbito de atuação. Exemplifiquemos. O inc. V do supracitado artigo dispõe que aos Municípios compete organizar os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo. Mas já o art. 21, XX, estipula que cabe à União editar diretrizes para os transportes urbanos."

            Constata-se, desde logo, que as atribuições delegadas pela Constituição Federal ao Município, como organizar e prestar o serviço de transporte coletivo, deve ser respeitada pelos demais entes da Federação, ou seja, União e Estados.

            Por outro lado, em se tratando – como na espécie - de serviço público objeto de concessão, matéria de competência da União (artigo 175 da Constituição Federal), o Município, ao exercer a sua atribuição constitucional relativamente ao transporte coletivo (art. 30, inciso V), deve fazê-lo com rigorosa observância da legislação nacional que regulou os institutos da concessão e permissão, especialmente a Lei Federal nº 8.987/95, à qual se aplica, subsidiariamente, a Lei Federal 8.666/93 (estatuto de licitações e contratos administrativos).

            A Lei 8.987/95 tem caráter nacional e é aplicável na íntegra a todos os membros da Federação, sem distinção, conforme define seu art. 1º, parágrafo único, verbis:

            "Art. 1º - As concessões de serviços públicos e de obras públicas e as permissões de serviços públicos reger-se-ão pelos termos do art. 175 da Constituição Federal, por esta Lei, pelas normas legais pertinentes e pelas cláusulas dos indispensáveis contratos.

            Parágrafo único - A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão a revisão e as adaptações necessárias de sua legislação às prescrições desta Lei, buscando atender as peculiaridades das diversas modalidades dos seus serviços. "(grifo nosso)

            Portanto, o Município Réu, responsável pelo transporte coletivo urbano, deve ater-se às suas atribuições expressas na Constituição Federal, na Lei Orgânica e nas legislações correlatas que cuidam da espécie, principalmente quanto à prestação do serviço público de transporte.

            Além da inconstitucionalidade detectada, a Lei Municipal em comento reforçou um outro tipo de inconstitucionalidade já argüida por alguns juristas, ao estimular a prática descriteriosa do instituto da gratuidade, ou seja, conceder descontos ou isenções tarifárias nos serviços de transporte público para determinadas categorias de usuários, em detrimento de outras e em total acinte ao ato jurídico per5feito (contrato de concessão), na medida em que remete os ônus dessa benesse ao particular, quando a obrigação de suportá-lo é da Administração Pública.

            A única exceção ao citado princípio, é quando a própria Constituição Federal dispõe expressamente sobre a aplicabilidade de um certo direito a um grupo determinado de pessoas.

            Neste caso, constata-se que a única categoria de usuários beneficiada pela gratuidade nos serviços de transporte coletivo urbano são as pessoas idosas maiores de 65 anos, segundo comando expresso no art. 230, parágrafo 2º da Constituição Federal.

            32. Extrata-se a conclusão de que qualquer outra lei, como a famigerada Lei Municipal n° 1.302, de 28.08.1979, que determine a concessão de uma gratuidade para outra categoria de usuário do serviço de transporte urbano – sem a estipulação de critérios e a indicação da respectiva fonte de custeio – ressalvada a que contemple idosos acima de 65 anos - é inconstitucional.

            33. Mesmo assim, os defensores da concessão de gratuidades, poderiam argumentar que as leis que concederam o benefício antes da Constituição Federal de 1988 deveriam ser respeitadas e mantidas, face ao princípio do direito adquirido.

            Tal interpretação, embora pudesse ter lastro em suposta lógica, não mereceria acolhida em razão de dois pontos doutrinários básicos. O primeiro, é que as leis cujos conteúdos não guardam consonância com as normas constitucionais supervenientes não são recepcionadas pela nova ordem constitucional, salvo quando nela expressamente mencionadas, devendo, portanto, ser revisadas para supressão do vício e adequação à nova ordem, sob pena de serem declaradas inconstitucionais.

            A segunda, é que o direito adquirido decorre de interesse particular, e dessa forma, não pode sobrepor-se sobre o interesse coletivo ou público. No caso da gratuidade concedida a uma categoria específica de usuário, não pode ela prevalecer em detrimento de todos os demais usuários do sistema de transporte público, porque restaria lesado o princípio da igualdade. Muito menos poderia conceder essa benesse sem fonte de custeio correspondente, porque violaria os princípios da livre iniciativa e do respeito ao ato jurídico perfeito (intangibilidade contratual), também de índole mandamental.

            34. Sobre o tema, vale lembrar as lições do Prof. José Afonso da Silva, da Universidade de São Paulo:, sobre o assunto:

            "São inconstitucionais as discriminações não autorizadas pela Constituição. O ato de discriminatório é inconstitucional."

            "Há duas formas de cometer essa inconstitucionalidade. Uma consiste em outorgar benefício legítimo a pessoas ou grupos, discriminando-os favoravelmente em detrimento de outras pessoas ou grupos em igual situação. Neste caso, não se estendeu às pessoas ou grupos discriminados o mesmo tratamento dados aos outros. O ato é inconstitucional, sem dúvida porque feriu o princípio da isonomia"

            Voltando à análise da Lei Municipal em questão, deve-se observar que ela foi editada em confronto com os princípios do sistema legislativo nacional. Nesse sentido, invoca-se o escólio do Prof. WASHINGTON DE BARROS MONTEIROS, em o seu livro Curso de Direito Civil, Saraiva, 29ª edição, p.15, verbis:

            "Quanto à sua origem legislativa, as leis são federais, estaduais e municipais. Num Estado Federal, como nosso país, existe verdadeira hierarquia nas leis. A lei magna é a Constituição Federal, a lei fundamental, a lei primeira. Depois, vêm as leis federais ordinárias; em terceiro lugar, a Constituição Estadual; em seguida as leis estaduais ordinárias e, por último, as leis municipais. Surgindo conflito entre elas, observar-se-á essa ordem de precedência quanto à sua aplicação."

            Com efeito, há de se observar que a precedência deve ser aplicada em consonância com a competência constitucional de cada ente da Federação, de acordo com a matéria a ser objeto da lei.

            Outro ponto a ser considerado é que a função legislativa edilícia é um campo de atividades restritas, e a legalidade da lei deve constituir a primeira cautela do legislador, uma vez que esta, consagrando regras jurídicas de conduta, há de ser antes e acima de tudo conforme o Direito, o que inocorreu na edição da malsinada lei do Município.

            35.Sem embargo, da análise do ato normativo verifica-se o desequilíbrio que ele provocou na relação contratual mantida entre a concessionária e o Município, com arrostamento da regra legal (art. 9º da Lei Federal nº 8.987/95) e constitucional (inciso XXI do art. 37 da CF/88 – "...mantidas as condições efetivas da proposta") do equilíbrio econômico-financeiro, além dos artigos citados da Magna Carta que garantem a intangibilidade do ato jurídico perfeito e consagram o princípio da isonomia. O fato é que houve alteração da relação encargo-remuneração, que deveria ser mantida durante toda a execução do contrato firmado entre as partes.

            36.Perpetrada por vícios constitucionais e legais insanáveis, o que se demonstrou à exaustão com a citação de jurisprudência específica, citações doutrinárias e sólidos argumentos, a lei municipal em comento não pode prevalecer no universo jurídico, incumbindo ao Poder Judiciário declarar, de modo incidental, a sua inconstitucionalidade ou, alternativamente, a sua ineficácia, para que cesse de produzir efeitos, eis que nula ab ovo.

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            37.Balizamentos como os extraídos dos acórdãos citados (mormente os do ínclito STJ) e da farta doutrina trazida à colação, demonstram que a Lei nº 1.302/79, anterior à nova Carta da República e às leis nacionais 8.666/93 e 8.987/95, está derrogada ou mesmo revogada, além de conter obrigação (transporte gratuito de estudantes) sem a indicação de custeio respectivo, o que a mancha de inconstitucionalidade irremediável.

            38. Os exemplos de correta observância da Constituição Federal não acabam. Veja-se a questão da propaganda eleitoral gratuita, que é transmitida, obrigatoriamente, pelas empresas concessionárias de serviços públicos de telecomunicações. Seria o caso de perguntar se tais empresas, ao realizarem a divulgação, em horário nobre, da propaganda eleitoral (supostamente gratuita), estariam assumindo tal encargo em nome do Poder Público sem qualquer contraprestação.

            A resposta, pelo que se vê de leis editadas por ocasião das eleições (tal como a Lei Federal nº 8.173/93, regulamentada pelo Decreto nº 1.976/96), é no sentido de que as emissoras de rádio e televisão, obrigadas à divulgação "gratuita" de propaganda eleitoral, poderão excluir do lucro líquido, para efeito de determinação do lucro real, valor correspondente a oito décimos do resultado da multiplicação do preço do espaço comercializável pelo tempo que seria efetivamente utilizado pela emissora em programação destinada a publicidade comercial, no período de duração daquela propaganda (art. 1º).

            39. Tem-se, ainda, que, descumprida a característica mais elementar do contrato de concessão (modalidade de contrato administrativo governado pelo princípio da remuneração e do equilíbrio da equação financeira), restou descumprida a garantia constitucional da INTANGILIBILIDADE DO ATO JURÍDICO PERFEITO (art. 5º, XXXVI, da CF/88), o que certamente não será referendado pelo Poder Judiciário, que tem sido pacífico na declaração de imprestabilidade de leis produzidas em descompasso com a Carta Magna, dentre as quais aquelas que concedem gratuidade sem contrapartida para a concessionária, mediante transferência ilegal e inconstitucional de ônus que é reservado ao próprio Estado.

            40. Com efeito, para que seja preservada a superioridade normativa da Constituição, necessária faz-se necessária a intervenção do Judiciário, que haverá (garantindo-se, evidentemente, a ampla defesa e o contraditório) acolher o presente pedido e declarar que a Autora está desobrigada de conceder o desconto na tarifa de transporte coletivo municipal aos estudantes, sem que lhe seja assegurada fonte de custeio correspondente e efetiva, por força da inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 1.302/79.

            41.De seu turno, deve ser preservado o equilíbrio econômico-financeiro, previsto no art. 9° da Lei Federal 8.987/95 e no art. 65, § 6º, da Lei de Licitações (Lei n.º 8.666/93), "in verbis":

            "§ 6º. Em havendo alteração unilateral do contrato que aumente os encargos do contratado, a Administração deverá restabelecer, por aditamento, o equilíbrio econômico-financeiro inicial."

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Sobre o autor
Guilherme Andrade Aquino

Advogado em Belo Horizonte, Especialista em Direito Administrativo, Pós Graduado em Direito de Empresa

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AQUINO, Guilherme Andrade. Ação contra gratuidade em transporte coletivo sem indicação de fonte de custeio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 870, 20 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16651. Acesso em: 23 dez. 2024.

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