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Prisão preventiva e o estado de inocência

Prisão preventiva e o estado de inocência

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A Constituição Federal de 1988 consagra o estado de inocência, prevendo que o cidadão somente será considerado culpado após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (art. 5º, LVII), do que se extrai que a execução da pena em desfavor do agente somente é possível se calcada em condenação definitiva.

Dentre as penas elencadas em nosso ordenamento jurídico está a privativa de liberdade, que tem como uma de suas subdivisões a reclusão, disciplinada no art. 33 do Código Penal, in verbis:

Art. 33 - A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto. A de detenção, em regime semi-aberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado.

§ 1º - Considera-se:

a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média;

b) regime semi-aberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar;

c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado.

§ 2º - As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso:

a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado;

b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto;

c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto. Destaques postos.

Sendo a prisão uma modalidade de pena, para encarcerar o agente se impunha aguardar o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, em respeito ao estado de inocência.

Contudo, situações excepcionais se apresentam que tornam imprescindível afastar cautelarmente o agente do convívio social, sem que isso signifique ofensa ao estado de inocência e ao seu direito fundamental de liberdade.

Possibilitando a adoção dessa medida excepcional, o inciso LXI do art. 5º da Constituição Federal prevê que "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente" (grifo posto).

Assim, embora sem trânsito em julgado da sentença condenatória, há compatibilidade entre a prisão preventiva e o estado de inocência, devendo, entretanto, ficar comprovada a presença dos pressupostos (prova da existência do crime e indício suficiente de autoria) e requisitos (garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal) que a autorizam.

Disso se extrai que a liberdade é a regra e a prisão exceção, sendo imprescindível, então, demonstrar que a decretação da prisão preventiva se amolda, concretamente, à previsão do art. 312 do Código de Processo Penal, sob pena de coação ilegal, passível de correção por via de ordem de habeas corpus.

O Supremo Tribunal Federal de há muito tem decidido nesse rumo, conforme adiante:

Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. [01]

HABEAS-CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. PRISÃO PREVENTIVA. REQUISITOS: AUSÊNCIA. 1. Conveniência da instrução criminal. A mera afirmação de que o paciente influiria nas investigações, sem elementos concretos que a comprove, não constitui fundamento idôneo à decretação da prisão cautelar. 2. Necessidade de preservação da ordem pública. É insuficiente o argumento de que esse requisito satisfaz-se com a simples assertiva de clamor público em razão da hediondez do fato delituoso e da sua repercussão na comunidade, impondo-se a medida constritiva de liberdade sob pena de restar abalada a credibilidade do Poder Judiciário. 3. Garantia da aplicação da lei penal. A circunstância de o paciente ter fugido após a consumação do crime não significa que pretenda furtar-se à sanção penal que eventualmente lhe for aplicada, já que, decorridos cinco dias do fato delituoso, compareceu perante a autoridade policial e confessou a autoria, permanecendo no distrito da culpa durante cinqüenta dias, quando foi decretada a sua prisão preventiva. 4. O caráter hediondo do crime não consubstancia motivo suficiente à adoção da prisão preventiva automática, de muito abolida do sistema processual penal brasileiro. Habeas-corpus deferido. [02] Destaques postos.

Mesmo com previsão legal vedando a liberdade provisória, nossa Corte Suprema entende que a prisão cautelar não poderá subsistir se não demonstrada a sua imprescindibilidade:

"HABEAS CORPUS". VEDAÇÃO LEGAL ABSOLUTA, EM CARÁTER APRIORÍSTICO, DA CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA. LEI DE DROGAS (ART. 44). INCONSTITUCIONALIDADE. OFENSA AOS POSTULADOS CONSTITUCIONAIS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, DO "DUE PROCESS OF LAW", DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA PROPORCIONALIDADE. O SIGNIFICADO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE, VISTO SOB A PERSPECTIVA DA "PROIBIÇÃO DO EXCESSO": FATOR DE CONTENÇÃO E CONFORMAÇÃO DA PRÓPRIA ATIVIDADE NORMATIVA DO ESTADO. PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ADI 3.112/DF (ESTATUTO DO DESARMAMENTO, ART. 21). CARÁTER EXTRAORDINÁRIO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE INDIVIDUAL. NÃO SE DECRETA PRISÃO CAUTELAR, SEM QUE HAJA REAL NECESSIDADE DE SUA EFETIVAÇÃO, SOB PENA DE OFENSA AO "STATUS LIBERTATIS" DAQUELE QUE A SOFRE. IRRELEVÂNCIA, PARA EFEITO DE CONTROLE DA LEGALIDADE DO DECRETO DE PRISÃO CAUTELAR, DE EVENTUAL REFORÇO DE ARGUMENTAÇÃO ACRESCIDOPOR TRIBUNAIS DE JURISDIÇÃO SUPERIOR. PRECEDENTES. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. [03] Destaques constam do original.

É importante destacar que incumbe ao magistrado, e não ao agente, demonstrar a necessidade da decretação ou manutenção da prisão preventiva, conforme entendimento pacificado na doutrina e na jurisprudência, que inclusive ensejou a Resolução N.º 66 de 27 de janeiro de 2009 do Conselho Nacional de Justiça, que assim determina:

Art. 1º Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá, imediatamente, ouvido o Ministério Público nas hipóteses legais, fundamentar sobre:

I – a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, quando a lei admitir;

II – a manutenção da prisão, quando presentes os pressupostos da prisão preventiva, sempre por decisão fundamentada e observada a legislação pertinente; ou

III – o relaxamento da prisão ilegal.

Sobre a prisão cautelar leciona Marco Aurélio Leite Silva:

A prisão cautelar deve ser sempre entendida como um fenômeno excepcional, somente admitido ante requisitos rigorosamente comprovados e, assim, capazes de excepcionar a regra constitucional da presunção de inocência. A segregação de alguém no cárcere tem legitimidade, de ordinário, apenas diante de condenação penal transitada em julgado; quaisquer outras formas de aprisionamento constituem licenças perigosíssimas de que se serve o Poder Público no interesse da coletividade. Basta um milímetro aquém desse rigor para que a prisão seja ilegal. [04]

Se acaso decretada a prisão preventiva lastreada na presença de seus pressupostos (prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria), ausentes, entretanto, os seus requisitos (garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal) – art. 312, CPP -, indubitavelmente estará caracterizada a execução antecipada da pena, vedada pela Carta Magna.

Nesse sentido vem decidindo reiteradamente o Supremo Tribunal Federal:

"HABEAS CORPUS" - CONDENAÇÃO PENAL RECORRÍVEL - SUBSISTÊNCIA, MESMO ASSIM, DA PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE NÃO-CULPABILIDADE (CF, ART. 5º, LVII) - RÉUS QUE PERMANECERAM SOLTOS DURANTE O PROCESSO - RECONHECIMENTO DO DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE - CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS (ARTIGO 7º, Nº 2) - ACÓRDÃO QUE ORDENA A PRISÃO DOS CONDENADOS, SEM QUALQUER MOTIVAÇÃO JUSTIFICADORA DA CONCRETA NECESSIDADE DE DECRETAÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR DOS ORA PACIENTES - AUSÊNCIA DE EFICÁCIA SUSPENSIVA DOS RECURSOS EXCEPCIONAIS (RE E RESP) NÃO OBSTA O EXERCÍCIO DO DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE - DECRETABILIDADE DA PRISÃO CAUTELAR - POSSIBILIDADE, DESDE QUE SATISFEITOS OS REQUISITOS MENCIONADOS NO ART. 312 DO CPP - NECESSIDADE DA VERIFICAÇÃO CONCRETA, EM CADA CASO, DA IMPRESCINDIBILIDADE DA ADOÇÃO DESSA MEDIDA EXTRAORDINÁRIA - SITUAÇÃO EXCEPCIONAL NÃO VERIFICADA NA ESPÉCIE - CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO - PEDIDO DEFERIDO. A PRISÃO CAUTELAR CONSTITUI MEDIDA DE NATUREZA EXCEPCIONAL. - A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade. A prisão preventiva, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe - além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência do crime e presença de indícios suficientes de autoria) - que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu. - A questão da decretabilidade da prisão cautelar. Possibilidade excepcional, desde que satisfeitos os requisitos mencionados no art. 312 do CPP. Necessidade da verificação concreta, em cada caso, da imprescindibilidade da adoção dessa medida extraordinária. Precedentes. A PRISÃO PREVENTIVA - ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR - NÃO PODE SER UTILIZADA COMO INSTRUMENTO DE PUNIÇÃO ANTECIPADA DO INDICIADO OU DO RÉU. - A prisão preventiva não pode - e não deve - ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão preventiva - que não deve ser confundida com a prisão penal - não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. RECURSOS EXCEPCIONAIS (RE E RESP) - AUSÊNCIA DE EFICÁCIA SUSPENSIVA - CIRCUNSTÂNCIA QUE, SÓ POR SI, NÃO OBSTA O EXERCÍCIO DO DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE. - A denegação, ao sentenciado, do direito de recorrer em liberdade depende, para legitimar-se, da ocorrência concreta de qualquer das hipóteses referidas no art. 312 do CPP, a significar, portanto, que, inexistindo fundamento autorizador da privação meramente processual da liberdade do réu, esse ato de constrição reputar-se-á ilegal, porque destituído, em referido contexto, da necessária cautelaridade. Precedentes. - A prisão processual, de ordem meramente cautelar, ainda que fundada em decisão condenatória recorrível (cuja prolação não descaracteriza a presunção constitucional de não-culpabilidade), tem, como pressuposto legitimador, a existência de situação de real necessidade, apta a ensejar, ao Estado, quando efetivamente ocorrente, a adoção - sempre excepcional - dessa medida constritiva de caráter pessoal. Precedentes. - Se o réu responder ao processo em liberdade, a prisão contra ele decretada - embora fundada em condenação penal recorrível (o que lhe atribui índole eminentemente cautelar) - somente se justificará, se, motivada por fato posterior, este se ajustar, concretamente, a qualquer das hipóteses referidas no art. 312 do CPP. Situação inocorrente no caso em exame. [05] Grifos não constam do original.

"HABEAS CORPUS". INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA "EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA". ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART. 1º, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. O art. 637 do CPP estabelece que "[o] recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da sentença". A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5º, inciso LVII, que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". 2. Daí que os preceitos veiculados pela Lei n. 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. 3. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar. 4. A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão. 5. Prisão temporária, restrição dos efeitos da interposição de recursos em matéria penal e punição exemplar, sem qualquer contemplação, nos "crimes hediondos" exprimem muito bem o sentimento que EVANDRO LINS sintetizou na seguinte assertiva: "Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinqüente". 6. A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados --- não do processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] serão inundados por recursos especiais e extraordinários e subseqüentes agravos e embargos, além do que "ninguém mais será preso". Eis o que poderia ser apontado como incitação à "jurisprudência defensiva", que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF não pode ser lograda a esse preço. 7. No RE 482.006, relator o Ministro Lewandowski, quando foi debatida a constitucionalidade de preceito de lei estadual mineira que impõe a redução de vencimentos de servidores públicos afastados de suas funções por responderem a processo penal em razão da suposta prática de crime funcional [art. 2º da Lei n. 2.364/61, que deu nova redação à Lei n. 869/52], o STF afirmou, por unanimidade, que o preceito implica flagrante violação do disposto no inciso LVII do art. 5º da Constituição do Brasil. Isso porque --- disse o relator --- "a se admitir a redução da remuneração dos servidores em tais hipóteses, estar-se-ia validando verdadeira antecipação de pena, sem que esta tenha sido precedida do devido processo legal, e antes mesmo de qualquer condenação, nada importando que haja previsão de devolução das diferenças, em caso de absolvição". Daí porque a Corte decidiu, por unanimidade, sonoramente, no sentido do não recebimento do preceito da lei estadual pela Constituição de 1.988, afirmando de modo unânime a impossibilidade de antecipação de qualquer efeito afeto à propriedade anteriormente ao seu trânsito em julgado. A Corte que vigorosamente prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da propriedade não a deve negar quando se trate da garantia da liberdade, mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; a ameaça às liberdades alcança de modo efetivo as classes subalternas. 8. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual. Ordem concedida. [06] Grifos postos.

"HABEAS CORPUS" - PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA COM FUNDAMENTO NA GRAVIDADE OBJETIVA DO DELITO, NO CLAMOR PÚBLICO, NA SUPOSTA OFENSA À CREDIBILIDADE DAS INSTITUIÇÕES E NA CONJECTURA DE QUE A PRISÃO CAUTELAR SE JUSTIFICA PARA CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL - CARÁTER EXTRAORDINÁRIO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE INDIVIDUAL - UTILIZAÇÃO, PELO MAGISTRADO, NA DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA, DE CRITÉRIOS INCOMPATÍVEIS COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - SITUAÇÃO DE INJUSTO CONSTRANGIMENTO CONFIGURADA - AFASTAMENTO, EM CARÁTER EXCEPCIONAL, NO CASO CONCRETO, DA INCIDÊNCIA DA SÚMULA 691/STF - "HABEAS CORPUS" CONCEDIDO DE OFÍCIO. A PRISÃO CAUTELAR CONSTITUI MEDIDA CAUTELAR DE NATUREZA EXCEPCIONAL. - A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade. A prisão preventiva, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe - além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e presença de indícios suficientes de autoria) - que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu. - A questão da decretabilidade da prisão cautelar. Possibilidade excepcional, desde que satisfeitos os requisitos mencionados no art. 312 do CPP. Necessidade da verificação concreta, em cada caso, da imprescindibilidade da adoção dessa medida extraordinária. Precedentes. A PRISÃO PREVENTIVA - ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR - NÃO PODE SER UTILIZADA COMO INSTRUMENTO DE PUNIÇÃO ANTECIPADA DO INDICIADO OU DO RÉU. - A prisão preventiva não pode - e não deve - ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão preventiva - que não deve ser confundida com a prisão penal - não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. A GRAVIDADE EM ABSTRATO DO CRIME NÃO CONSTITUI FATOR DE LEGITIMAÇÃO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE. - A natureza da infração penal não constitui, só por si, fundamento justificador da decretação da prisão cautelar daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado. Precedentes. O CLAMOR PÚBLICO NÃO BASTA PARA JUSTIFICAR A DECRETAÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR. - O estado de comoção social e de eventual indignação popular, motivado pela repercussão da prática da infração penal, não pode justificar, só por si, a decretação da prisão cautelar do suposto autor do comportamento delituoso, sob pena de completa e grave aniquilação do postulado fundamental da liberdade. - O clamor público - precisamente por não constituir causa legal de justificação da prisão processual (CPP, art. 312) - não se qualifica como fator de legitimação da privação cautelar da liberdade do indiciado ou do réu. Precedentes. A PRESERVAÇÃO DA CREDIBILIDADE DAS INSTITUIÇÕES NÃO SE QUALIFICA, SÓ POR SI, COMO FUNDAMENTO AUTORIZADOR DA PRISÃO CAUTELAR. - Não se reveste de idoneidade jurídica, para efeito de justificação do ato excepcional da prisão cautelar, a alegação de que a prisão é necessária para resguardar a "credibilidade da Justiça". AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO, NO CASO, DA NECESSIDADE CONCRETA DE DECRETAR-SE A PRISÃO PREVENTIVA DO PACIENTE. - Sem que se caracterize situação de real necessidade, não se legitima a privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu. Ausentes razões de necessidade, revela-se incabível, ante a sua excepcionalidade, a decretação ou a subsistência da prisão preventiva. O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA IMPEDE QUE O ESTADO TRATE, COMO SE CULPADO FOSSE, AQUELE QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL. - A prerrogativa jurídica da liberdade - que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) - não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem. Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível - por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) - presumir-lhe a culpabilidade. Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico, consagra, além de outras relevantes conseqüências, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes. [07] Destaques postos.

É oportuno lembrar que mesmo sendo decretada a prisão preventiva, cabe ao magistrado analisar, de ofício ou por provocação, a subsistência dos motivos que lhe deram causa, conforme prevê o art. 316 do Código de Processo Penal [08].

No mesmo rumo (art. 316, CPP) a Lei 11.719/08 introduziu o parágrafo único ao art. 387 do Código de Processo Penal, dispondo que "O juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta".

Do exposto se extrai que (i) a prisão preventiva é medida excepcional, (ii) cabível somente se preenchidos os pressupostos e requisitos do art. 312, CPP, (iii) devendo ser revogada se desaparecerem os motivos que lhe deram suporte, (iv) por ser vedada a execução antecipada da pena.

Não bastasse isso, para decretar a prisão preventiva deve ser analisada a sua proporcionalidade, conforme leciona Eugênio Pacelli de Oliveira:

Com efeito, a prisão cautelar é utilizada, e somente aí se legitima, como instrumento de garantia da eficácia da persecução penal, diante de situações de risco real devidamente previstas em lei. Se a sua aplicação pudesse trazer conseqüências mais graves que o provimento final buscado na ação penal, ela perderia a sua justificação, passando a desempenhar função exclusivamente punitiva. A proporcionalidade da prisão cautelar é, portanto, a medida de sua legitimação, a sua ratio essendi. [09]

Além de o magistrado verificar a adequação da prisão preventiva ao art. 312 do Código de Processo Penal e ao princípio da proporcionalidade, quando da prolação da sentença condenatória deverá fundamentar sobre a sua manutenção, com base nos critérios estabelecidos no § 2º do art. 33 do Código Penal quanto à fixação do regime prisional.

Diante da necessidade de retirada do agente do convívio social para garantia da ordem pública, da ordem econômica, da instrução criminal ou da aplicação da lei penal, se o regime prisional fixado na sentença condenatória for o semiaberto ou o aberto, o magistrado deverá revogar o decreto de prisão preventiva, por ser a medida compatível apenas com o fechado, não comportando abrandamento.

Nesse sentido o Superior Tribunal de Justiça:

DIREITO PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. PRISÃO EM FLAGRANTE. CONDENAÇÃO. REGIME SEMI-ABERTO. DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. 1. Ao preso em flagrante condenado à pena privativa de liberdade, a ser cumprida em regime semi-aberto, é assegurado o direito de recorrer em liberdade. Trata-se de idéia-força decorrente do princípio constitucional da proporcionalidade, visto que a prisão provisória, medida cautelar, nas circunstâncias, é mais gravosa que a reprimenda, finalidade precípua do processo penal. 2. Ordem concedida para assegurar ao paciente o direito de recorrer em liberdade. [10] Grifo posto.

No mesmo rumo entende o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

HABEAS CORPUS - PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO - PRISÃO PREVENTIVA - LIBERDADE PROVISÓRIA - PENA VIRTUAL - REGIME MENOS GRAVOSO QUE O FECHADO - INCOMPATIBILIDADE COM A MANUTENÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR - ORDEM CONCEDIDA. [11]

"HABEAS CORPUS" - RECEPTAÇÃO; POSSE IRREGULAR DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO; E OFERTA DE DROGA, EVENTUALMENTE E SEM OBJETIVO DE LUCRO, A PESSOA DE SEU RELACIONAMENTO, PARA JUNTOS A CONSUMIREM - PRISÃO EM FLAGRANTE - LIBERDADE PROVISÓRIA - INADMISSIBILIDADE - FLAGRANTE COMO SUSTENTÁCULO DA SEGREGAÇÃO - DECISÃO DENEGATÓRIA DA LIBERDADE PROVISÓRIA DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA-PACIENTE COM NÓDOAS NO CURRÍCULO CRIMINAL - RESGUARDO DA ORDEM PÚBLICA - ADVENTO DOS PRESSUPOSTOS DA PRISÃO PREVENTIVA - PENA CORPORAL VIRTUAL A SER CUMPRIDA EM REGIME ABERTO OU SEMIABERTO - INCOMPATIBILIDADE COM A MANUTENÇÃO DA SEGREGAÇÃO CAUTELAR - ORDEM CONCEDIDA. [12]

"HABEAS CORPUS" - ESTELIONATO - PRISÃO PREVENTIVA - LIBERDADE PROVISÓRIA - ADMISSIBILIDADE - "SURSIS" PROCESSUAL - PACIENTE EVADIDA DO DISTRITO DA CULPA - PREVENTIVA DECRETADA - MANDADO CUMPRIDO - AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO JÁ REALIZADA - RÉ JÁ CITADA, QUE COMPARECEU AOS AUTOS PARA DEFESA A APRESENTAÇÃO DE NOVO ENDEREÇO - PENA VIRTUAL QUE, SE IMPOSTA, EVENTUALMWENTE MERECERÁ REGIME MAIS BRANDO QUE O FECHADO - INCOMPATIVILIDADE COM A SEGREGAÇÃO CAUTELAR - ILEGALIDADE DA CUSTÓDIA - ORDEM CONCEDIDA. [13]

'HABEAS CORPUS' - ESTELIONATO - EXECUÇÃO PROVISÓRIA DE PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE - SENTENÇA CONDENATÓRIA QUE VEDA O DIREITO DE APELAR EM LIBERDADE - PACIENTE QUE PERMANECEU SOLTO AO LONGO DA INSTRUÇÃO CRIMINAL - FUNDAMENTAÇÃO COM SUPEDÂNEO NO NÃO COMPARECIMENTO DO RÉU PERANTE A JUSTIÇA, AINDA QUE INTIMADO - NA REINCIDÊNCIA E MAUS ANTECEDENTES DO PACIENTE, ACOSTUMADO A CRIMES DA MESMA NATUREZA - PACIENTE QUE COMPARECEU EM JUÍZO POSTERIORMENTE PARA INTERROGATÓRIO E NÃO MAIS SE FURTOU AOS CHAMAMENTOS DA JUSTIÇA - DECURSO DE QUASE UMA DÉCADA DA PRÁTICA DO DELITO E SENTENÇA - MOTIVAÇÃO QUE NÃO FORA SUFICIENTE PARA A DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA AO LONGO DO PROCESSO - INEXISTÊNCIA DA ALTERAÇÃO DO QUADRO FÁTICO - AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA A PRISÃO PREVENTIVA, EX VI DO ART. 312 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL - IMPOSIÇÃO DE REGIME SEMIABERTO PARA O CUMPRIMENTO DA PENA, INCOMPATÍVEL COM A MANUTENÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR - ORDEM CONCEDIDA. [14]

Lado outro, a Lei 7.210/84 (Execução Penal), dispõe em seu art. 2º, parágrafo único, que a sua aplicação não se limita aos condenados com trânsito em julgado, mas também aos presos provisórios [15].

Assim, deve ser entendido que a favor do agente condenado provisoriamente aplicam-se os benefícios previstos na Lei de Execução Penal, dentre eles a progressão de regime, se preenchidos os requisitos objetivo (lapso temporal) e subjetivo (bom comportamento carcerário) [16].

Tendo em vista que a prisão preventiva não comporta abrandamentos, devendo ser mantido o encarceramento em regime fechado, deferida a progressão de regime, a revogação de seu decreto é medida que se impõe, em razão da incompatibilidade do encarceramento cautelar com o novo regime, sob pena de macular a vedação da execução provisória da pena em desfavor do agente.


CONCLUSÃO

A prisão preventiva tem assento constitucional, sendo compatível com o estado de inocência, desde que presentes os seus pressupostos e requisitos e demonstrada a sua proporcionalidade, devendo, entretanto, ser revogado o seu decreto acaso insubsistente os motivos que a ensejaram ou fixado regime prisional diverso do fechado ou, ainda, se deferida a progressão do regime prisional.


Bibliografia

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 5.ª ed., BHte, Del Rey, 2005, p. 404.

SILVA, Marco Aurélio Leite. Prisão temporária, uma aberração. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/6917/1/prisoes-cautelares-aspectos-teleologicos/pagina1.html>. Acesso em: 15 mai. 2009.


Notas

  1. STF, RTJ 176/805.806, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno.
  2. Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal nos autos do Habeas Corpus 82446.
  3. STF - MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 97.976-9 MINAS GERAIS – RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO – Data do Julgamento: 09 de março de 2009.
  4. SILVA, Marco Aurélio Leite. Prisão temporária, uma aberração. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/6917/1/prisoes-cautelares-aspectos-teleologicos/pagina1.html>. Acesso em: 15 mai. 2009.
  5. HC 96059 / RJ - RIO DE JANEIRO - Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO - Julgamento:  10/02/2009           Órgão Julgador:  Segunda Turma.
  6. HC 94408 / MG - MINAS GERAIS - Relator(a):  Min. EROS GRAU - Julgamento:  10/02/2009 - Órgão Julgador:  Segunda Turma.
  7. HC 96095 / SP - SÃO PAULO - Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO - Julgamento:  03/02/2009 - Órgão Julgador:  Segunda Turma.
  8. Art. 316. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no correr do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.
  9. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 5.ª ed., BHte, Del Rey, 2005, p. 404.
  10. HC 101.493/RS, Rel. Ministro  HAMILTON CARVALHIDO, Rel. p/ Acórdão Ministra  MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 26/05/2008, DJe 28/10/2008.
  11. HABEAS CORPUS N° 1.0000.10.012820-6/000 - RELATOR: EXMO. SR. DES. ANTÔNIO CARLOS CRUVINEL – Data do Julgamento: 01 de junho de 2010.
  12. HABEAS CORPUS N° 1.0000.09.505541-4/000 - RELATOR: EXMO. SR. DES. ANTÔNIO CARLOS CRUVINEL – Data do Julgamento: 06 de outubro de 2009.
  13. HABEAS CORPUS N° 1.0000.09.505962-2/000 - RELATOR: EXMO. SR. DES. ANTÔNIO CARLOS CRUVINEL – Data do Julgamento: 20 de outubro de 2009.
  14. HABEAS CORPUS N° 1.0000.09.505560-4/000 - RELATOR: EXMO. SR. DES. ANTÔNIO CARLOS CRUVINEL – Data do Julgamento: 27 de outubro de 2009.
  15. Parágrafo único. Esta Lei aplicar-se-á igualmente ao preso provisório e ao condenado pela Justiça Eleitoral ou Militar, quando recolhido a estabelecimento sujeito à jurisdição ordinária. Grifo posto.
  16. Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.

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PEREIRA, Geraldo Lopes. Prisão preventiva e o estado de inocência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2637, 20 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17447. Acesso em: 19 abr. 2024.