Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/17917
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A menos-valia do desvalor da conduta penal no Direito Ambiental brasileiro a partir da (in)consciência social

A menos-valia do desvalor da conduta penal no Direito Ambiental brasileiro a partir da (in)consciência social

Publicado em . Elaborado em .

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 O DESVALOR DA CONDUTA NO DIREITO PENAL. . 3 OS ELEMENTOS NORTEADORES DA "POLÍTICA CRIMINAL". 4 A MENOS-VALIA DA CONDUTA PENAL NO DIREITO AMBIENTAL. 5 A INTERVENÇÃO MÍNIMA E A INSUFICIÊNCIA DA PENA PARA CONTER O CRIME. 6 O SISTEMA CAPITALISTA ASSIMILADO COMO INDICADOR DAS PRIORIDADES. 7 O ESTADO SOCIAL COMO INTERVENTOR. 8 CONCLUSÃO. 9 BIBLIOGRAFIA


1. Introdução

A intenção precípua deste trabalho é realizar uma análise crítica da opção político-legislativa advinda da consciência social vigente que se consolida de forma positivada em nosso ordenamento jurídico através da representação legislativa mandatária constituída pelo sufrágio universal, onde se estabelecem regras penais que indicam a menos-valia da conduta eleita como penalmente relevante que atinge ao meio ambiente.

Dentro de um contexto marcado pelo capitalismo selvagem, a população tem ínsita em sua consciência a opção individualista, fazendo com que se sobressaiam como legítimas e válidas todas as condutas voltadas para a satisfação de necessidades imediatas criadas pelo mercado consumista, relegando atitudes especificamente penalmente tipificadas a serem consideradas como uma agressão menor a incolumidade pública em razão de não atingir de forma tangível a cada membro da sociedade que, diante disso, se inserindo nesta idiossincrasia as que degradam o meio ambiente, que não mereceriam reprimenda severa, pois, não abalroam de forma instantânea e palpável elementos eleitos atualmente como de primeira grandeza, quais sejam, a vida satisfeita com todas as "necessidades" determinadas hodiernamente pela ideológica social predominante e a manutenção do patrimônio adquirido dentro deste mesmo sistema vigente.

Neste diapasão, embora sedimentados e ao menos formalmente referendados nas ordens jurídicas democráticas em vigor, os direitos e princípios de terceira e quarta gerações não gozam da mesma importância no consciente popular que os direitos de primeira e segunda geração. Embora aqueles também estejam pacificamente reconhecidos a título científico e doutrinário, quando colocados em patamar cogente e repressivo, ou seja, em normas abstratas e gerais, recebem tratamento diferenciado que não têm o mesmo condão inibidor à sua mácula como os previstos para outras condutas que albergam objeto jurídico de maior relevância diante da ordem econômica e social vigente.

Tenta-se assim demonstrar que esta opção de menos-valia do desvalor da conduta que leva a mensuração mais branda da sanção penal no âmbito ambiental, advém da opção capitalista ínsita no inconsciente da população que almeja, quase que de forma uníssona, alcançar nível social de satisfação material que para ser obtido não se refreia, sob qualquer hipótese, a partir da possibilidade de causar efeitos deletérios lançados sobre bens imateriais universais de propriedade difusa, desde que os interesses individuais imediatos sejam atingidos gerando o bem estar insaciável próprio do sistema capitalista atual, degenerado e desconectado do elemento produção outrora exigido.


2. O desvalor da conduta no Direito Penal

A partir de inúmeros estudos científicos na área do direito, passou-se a mensurar a pena não só a partir do resultado, mas, também e principalmente, levando em consideração a conduta do agente, em especial com o deslocamento dos elementos dolo e culpa para o fato típico, passando a compor de forma naturalista o ato, evitando assim que o resultado da conduta se sobrepusesse o que levaria a situações inequivocamente absurdas, "verbi gratia", nos casos de homicídio o resultado seria o mesmo, ou seja, a morte, todavia, não havendo distinção pelo elemento subjetivo e conduta, na prática, levaria a mesma sanção a ser aplicada ao autor do crime doloso ou culposo, o que dimana de forma inconteste como injusto.

Nesse sentido, transcrevo o ensinamento de JESUS:

A doutrina penal, mesmo antes de Welzel, havia percebido que a adoção da teoria causal da ação levava à perplexidade. Diante dela, não havia diferença entre a ação de uma lesão dolosa e a de uma lesão culposa, visto que o resultado nos dois crimes é idêntico (ofensa à integridade corporal ou à saúde da vítima). O desvalor do resultado não constitui elemento diversificador. A diferença está na ação: é o desvalor da ação que faz com que um homicídio doloso seja apenado mais severamente do que um homicídio culposo embora o resultado morte seja elementar dos dois delitos. Diante disso, viram que os crimes não se diferenciam só pelo desvalor do resultado, mas, principalmente pelo desvalor do comportamento típico, ou, como diz Maurach, repetindo a antiga ideia reacionária, pelo "desvalor do fenômeno da ação por si só".(Direito Penal, 1º Volume – Parte Geral, Damásio E. De Jesus, 2002, p. 234)

Assim, por óbvio, passou-se a preponderar, quando da opção sancionadora do legislador no âmbito da política criminal, a conduta do agente, e em especial o desvalor desta conduta diante dos parâmetros eleitos pela sociedade politicamente organizada.

Em sentido etimológico podemos definir o desvalor, valendo-se de HOUAISS, como:

1 ausência ou perda de valor; depreciação 2 carência de aceitação, de afeto ou de crédito; desestima, descrédito 3 falta de ânimo; abatimento desânimo 4 fata de intrepidez ou covardia.

Dimana assim da ciência penal aplicada à legislação, uma vez adotada predominantemente a teoria finalista em nosso direito material penal, que o legislador nesta esfera interpreta o desvalor da conduta em sua segunda definição, ou seja, a carência de aceitação, de afeto ou de crédito; desestima, descrédito, que levam a construção da sanção penal ao agente criminoso.

A jurisprudência, em atividade finalistica, também alberga este espírito e ainda a nomenclatura para aferir os limites da tipicidade:

RECURSO CRIMINAL RCCR 4578 GO 2005.35.00.004578-2 (TRF1) PROCESSUAL PENAL E PENAL. PECULATO (CP, ART. 312). CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. 1. A tendência generalizada da política criminal moderna é reduzir ao máximo a área de incidência do Direito Penal. 2. Em se tratando de crime de peculato (artigo 312, CP) cujo objeto jurídico é a proteção da Administração Pública no tocante ao interesse não só patrimonial (preservação do erário público), mas, também, moral (fidelidade e probidade dos agentes do poder), não se mostra desprezível o resultado, por isso que a infringência do dever de probidade e de fidelidade para com a Administração revela o desvalor da conduta, afastando a aplicação do princípio da insignificância. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. 4. Recurso criminal provido.

Vale citar também o escol de ZAFFARONI:

O injusto (conduta típica e antijurídica) revela o desvalor que o direito faz recair sobre a conduta em si, enquanto a culpabilidade é uma característica que a conduta adquire por uma especial condição do autor (pela reprovabilidade), que do injusto se faz ao autor. (Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral, 5ª edição, Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, 2004, p. 373)

Afirma-se com estes enxertos, a certeza de que a conduta é o elemento principal de valoração para fins de sanção penal em qualquer âmbito deste ramo do direito hodiernamente.


3. Os elementos norteadores da "Política Criminal"

Embora se discuta, às vezes de forma aguda, se direito é ciência ou política, há que se concordar que em qualquer sociedade o âmbito das relações sociais é regulamentado através de regras advindas do corpo populacional a partir da dialética política que leva a definição do que deverá ser observado na convivência daquela comunidade.

Dentro deste contexto, as ciências jurídicas vêem-se limitadas ao campo delineado pela manifestação política da respectiva sociedade.

ZAFFARONI conclui neste sentido em análise limitada ao direito penal:

O sistema penal é a parte do controle social que resulta institucionalizado em forma punitiva e com discurso punitivo (apesar de que frequentemente, inclusive neste âmbito, se tratou de encobrir tal discurso, ainda que de forma grosseira, dado o inquestionável da realidade punitiva). Dentro do sistema penal, como veremos de imediato, o direito penal ocupa somente um lugar limitado, de modo que sua importância, embora inegável, não é tão absoluta como às vezes se pretende, especialmente quando dimensionamos o enorme campo de controle social que cai fora de seus estreitos limites. (Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral, 5ª edição, Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, 2004, p.68)

Os anseios desta sociedade, mesmo que de forma pouco esclarecida, trazendo para nossa realidade, traduzidas através do voto com a eleição dos mandatários em nosso Estado Democrático de Direito é que fará eclodir o campo de atuação do direito e em que graus especificamente.

Então, sem dúvida, quando falamos da política criminal adotada pelo legislador, temos por premissa que o povo, através de seus representantes, elegeu as condutas a serem observadas que sempre se ligam, de forma imprescindível, a um mínimo de obediência a princípios gerais do direito e a ética, com maior rigor no campo penal, pois, por óbvio, é onde se impõe preponderantemente a sanção tendo como aplicador o Estado com toda sua força repressiva e coercitiva.

Nesse sentido inúmeros doutrinadores apresentam suas reflexões:

O princípio da utilidade. A Constituição imperial (25.2.1894) dispunha que "nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública" (art. 179, §2º). Tal exigência, comum a todos os diplomas legislativos, deve ser especialmente observada pelo legislador penal, máxime porque é de sua responsabilidade a elaboração das normas incriminadoras e das medidas de reação estatal.

Aludindo à reforma penal portuguesa, o seu grande líder e emérito jurista, Eduardo Correia, adverte que a necessidade da defesa e proteção dos bens jurídicos não pode ser arbitrária ou de qualquer tipo conceitual, como seria a que partisse de um mínimo ético, de saúde pública ou da sua particular importância para a organização da vida em sociedade. E arremata: "Ela deve ser, desde logo, limitada materialmente, pela maior coincidência possível com uma concepção majoritária e obtida através dos órgãos constitucionais competentes. Até porque, desse modo, se reduzirão ao mínimo os conflitos entre a visão do Estado e a dos particulares, entre a lei penal e a consciência de cada um, limitando, até um limite possível, os chamados crimes de consciência" ("As grandes linhas da reforma penal", ob. Cit., p.14). (Curso de Direito Penal, Renê Ariel Dotti, 2002, p.441/442)

Esse conjunto de opiniões e juízos indemonstrados corresponde às preferências valorativas em vigor na sociedade. Os valores sociais, como enfatizou Max Weber, têm uma vigência (Geltung) que lhes é própria, consistente na geral convicção de sua legitimidade. Vigoram na consciência das pessoas, antes mesmo de engendrarem normas objetivas de comportamento. Eles se organizam sempre de forma hierárquica: a um valor supremo subordinam-se, ordenadamente, todos os demais. Cada civilização tem sua própria hierarquia de valores, discutindo-se se ela surge ou desaparece de modo espontâneo, se é aceita ou rejeitada convencionalmente, ou se corresponde, antes, a preferência impostas a toda a sociedade pelos grupos ou classes dominantes.

Em qualquer hipótese, para a introdução de novos valores, ou a defesa dos que já vigoram no meio social, não basta o recurso à força. É indispensável um mínimo de justificação ética. A consciência do bem e do mal, com o consequente sentimento de justiça ou injustiça, é inerente à condição humana, qualquer que seja a concepção que se tenha da sua origem: se se trata de algo inato, ou totalmente adquirido no curso da vida social. (Ética, Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno, Fábio konder Comparato, 2006, p.25)

É, ainda, ciência finalista, porque atua em defesa da sociedade na proteção de bens jurídicos fundamentais, como a vida humana, a integridade corporal dos cidadãos, a honra, o patrimônio etc. A consciência social eleva estes interesses, tendo em vista o seu valor, à categoria de bens jurídicos que necessitam de proteção do Direito Penal para a sobrevivência da ordem jurídica. Damásio, apud, Magalhães Noronha. (Direito Penal, 1º Volume – Parte Geral, Damásio E. De Jesus, 2002, p.6).

Como dimana das lições acima transcritas, as valorações sociais através do processo político e dialético elegem as prioridades na vida em comum em um certo âmbito, restando o direito penal como o aplicador da mais severa sanção aos atos que revelam conduta impregnada de maior desvalor.


4.A menos-valia no desvalor da conduta penal no Direito Ambiental.

Cediço de todos os operadores do direito que o Direito Ambiental é o que se ocupa das relações sociais que envolvem, de qualquer forma, o meio ambiente e a ecologia, sistemas entrelaçados na própria possibilidade de continuidade de existência humana.

Deflui de seu âmbito o Direito Ambiental Penal que, aos olhos das constatações feitas, ataca de forma específica as condutas com desvalor político-jurídico que atingem ao meio ambiente, bem de uso comum.

DOTTI faz referência a importância desta seara em sede Constitucional após a entrada em vigor da Constituição cidadã em 1988:

"A Ecologia consiste no setor da Biologia que estuda as relações entre os seres vivos e o meio ambiente em que vivem, bem como as suas influências recíprocas. O vocábulo ganhou consagração constitucional quando a Carta Política de 1988 declarou o direito em favor de todos "ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida" (art. 225). O crime ecológico, portanto, é a infração dolosa ou culposa que ofende esse interesse de caráter geral. (Curso de Direito Penal, Renê Ariel Dotti, 2002, p. 373)

Com relação ao vocábulo "menos-valia", volto a HOUAISS, para transcrever sua definição etimológica:

Menos-valia: diminuição do valor de alguma coisa, perda de valor.

Analisando a maior expressão formal de direito no ordenamento jurídico nacional no que tange a sanção de condutas relevantes penalmente contra agentes que agridem o meio ambiente, "in casu", a Lei nº 9.605 de 12 de fevereiro de 1998, percebe-se que o desvalor das condutas ali tipificadas não se apresenta consentânea, por exemplo, com a tutela penal concedida ao patrimônio individual.

A Lei 9605/98 estampa como crimes ao meio ambiente trinta e sete condutas tipificadas entre os artigos 29 a 69-A.

Destas trinta e sete condutas, quinze admitem o oferecimento de transação penal e posteriormente ainda a suspensão condicional do processo; dezoito permitem a suspensão condicional do processo; três não permitem a suspensão condicional do processo, mas, em caso de condenação admitem a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos; e apenas uma, a conduta tipificada no artigo 69-A, por força da Lei 11284/06, com pena entre três e seis anos é que eventualmente fugiria do benefício da substituição da pena privativa de liberdade, embora, na prática, isso venha a ser raríssimo, só atingindo este grau de condenação o agente criminosos reincidente e com todas as circunstâncias desfavoráveis, pois, na prática, com certeza, na ingente maioria dos casos o eventual condenado receberia também o benefício da substituição da pena pelo máximo que ela atingiria "in concreto".

Uma análise perfunctória do Código Penal em seu título II, dos crimes contra o patrimônio, revela que o furto, ato de subtração sem violência, simples e qualificado, recebem penas proporcionalmente muito superiores às imputadas aos agentes criminosos ambientais.

Constata-se que se duas pessoas, com unidade de desígnios, subtrairem um objeto no valor de um salário-mínimo de um terceiro, sem qualquer utilização de violência (art. 155, §4º, inciso IV), estará sujeito a uma pena de reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa. Se o furto for de veículo automotor que se destine a outro Estado ou país, a pena sobre para três a oito anos.

Se duas pessoas, dolosamente, de acordo com o artigo 41 da Lei 9605/98, incendiarem toda uma mata ou floresta, desde que não se encontrem em uma das situações do artigo 53 do mesmo diploma legal, se sujeitaram a uma pena de dois a quatro anos de reclusão e multa. Se incidir a majorante acima citada, onde se admitiria até a supressão de espécies raras ou em extinção, aumenta-se a pena de 1/6 a 1/3 (Inciso, II, letra "c" do artigo 53 c/c 41, da Lei 9605/98).

Nesta esteira, o agente que cometer o crime ambiental previsto no artigo 41 da Lei 9605/98, um dos mais severos previstos, arrasando toda uma floresta com mata nativa e espécies raras, caso seja uma pessoa repleta de processos, condenações e com todas as condições e circunstâncias judiciais desfavoráveis, sofreria a sanção máxima de cinco anos e quatro meses de reclusão e multa.

No mesmo caso, o agente criminoso que furtar um veiculo e encaminhá-lo a unidade diversa da federação sofreria uma sanção máxima de oito anos de reclusão.

MORAES, eminente constitucionalista cita informação importante para a reflexão que se busca:

Não obstante a preocupação com o meio ambiente seja antiga em vários ordenamentos jurídicos, inclusive nas Ordenações Filipinas que previam no Livro Quinto, Título LXXV, pena gravíssima ao agente que cortasse árvore ou fruto, sujeitando-o ao açoite e ao degredo para a África por quatro anos, se o dano fosse mínimo, caso contrário, o degredo seria para sempre; as nossas Constituições anteriores, diferentemente da atual que destinou um capítulo para sua proteção, com ele nunca se preocuparam. (Direito Constitucional, 13ª. Edição, Alexandre de Moraes, 2003, p.678)

Não se pode olvidar do princípio da proporcionalidade que deve orientar toda a política criminal de um estado. DOTTI, assim diz:

O princípio da proporcionalidade A pena deve retribuir juridicamente a culpabilidade do autor da conduta típica e ilícita. Em última instância ela é o efeito de uma causa e deve guardar uma possível relação de proporcionalidade entre o mal do ilícito e o mal da ação (ou omissão). (Curso de Direito Penal, Renê Ariel Dotti, 2002, p.441)

Não obstante, diante do que acima foi exposto, verifica-se flagrantemente, e há que se ressaltar, a existência de uma tutela estatal na área criminal especialmente mais tenaz em favor da proteção do patrimônio individual do que do patrimônio coletivo e, eventualmente, de impossível recuperação.

Um veículo se reconstrói, se repõe, todavia, a água e o ar, não se asseveram possíveis de tão singela reposição ou recomposição, ainda que existam relevantes avanços científicos, mostrando-se assim uma contradição no tratamento político criminal das respectivas condutas.


5. A intervenção mínima e a insuficiência da pena para conter o crime

Levando em consideração que a Lei 9605/98 é uma inovação legislativa, consentânea aos direitos humanos de últimas gerações, pode-se, muito bem, defender que a minoração das penas nela previstas faz parte de uma ideologia criminal atual baseada na insuficiência da pena como fator de organização e pacificação social.

ZAFFARONI, que adota uma linha penal humanista e garantista, tem seu discurso inteligente e que merece transcrição. Vejamos:

Se a intervenção do sistema penal é, efetivamente, violenta, e sua intervenção pouco apresenta de racional e resulta ainda mais violenta, o sistema penal nada mais faria que acrescentar violência àquela que, perigosamente, já produz o injusto jushumanista a que continuamente somos submetidos. Por conseguinte, o sistema penal estaria mais acentuando os efeitos gravíssimos que a agressão produz mediante o injusto jushumanista, o que resulta num suicídio.

A clara conclusão disto é que o sistema penal deve corresponder ao princípio da intervenção mínima na América Latina, não somente pelas razões que se apresentam como válidas nos países centrais, mas também em face de nossa característica de países periféricos, que sofrem os efeitos do injusto jushumanista de violação do direito ao desenvolvimento. (Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral, 5ª edição, Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, 2004, p. 79)

Nesta concepção o Código Penal do século passado é que não se adequou a modernidade social e não se desvinculou da matiz meramente repressiva.

Embora assim possa ser, há que se ressaltar que o exemplo da sanção aplicável a conduta de furto de veículo acima citado é fruto de inovação legislativa mais recente (Lei 9.426/96) e que não se mostra anacrônica aos institutos da transação penal e suspensão condicional do processo que advieram das Leis 9099/95 e 10259/01, também, dentro de uma política de abrandamento das penas.

Sobressaí assim que não existe uma relação temporal dissonante entre as inovações legislativas acima citadas, algumas na direção do abrandamento das penas, outras na direção contrária, ao sabor dos interesses políticos, em tese, da sociedade representada. Ora, a transação penal e a suspensão condicional do processo vieram a lume em 1995. O furto de veículos destinados ao exterior (§5º do artigo 155 do Código Penal) é resultado da Lei 9426 de 1996. A Lei 9605 é de 12 de fevereiro de 1998. Todas guardam relação de proximidade em sua gênese.

Dimana disso, sem que se possa agredir severamente quem assim pense, a presunção de que o veículo é atualmente mais importante para a sociedade do que o meio ambiente nos termos eleitos a partir da política criminal oriunda da atividade legiferante de nossos representantes no congresso nacional.


6. O sistema capitalista assimilado como indicador das prioridades.

Dentro da moderna sociedade vigente, o sistema capitalista se inseriu de forma espraiada e inconteste em um nível mundial, gerando a impressão no cidadão de uma certeza de que a felicidade somente será alcançada com o atingir dos objetivos eleitos através da concepção econômica vigente, fulcrada, de forma inconteste, no acúmulo de capital, consumismo e individualismo,

Quando a sociedade assimila esta concepção como o caminho a ser seguido, por óbvio as discussões políticas e a representação desta população se dará, também, nestes termos, tornando a relevância de bens materiais e imateriais díspares a partir do interesse econômico estabelecido.

CARNOY faz interessante consideração:

O problema básico das sociedades capitalistas avançadas, após dois séculos de crescimento econômico, não é mais a adequação dos recursos ou sua alocação "eficiente" para produção máxima. O modo como isso se dá, a definição do que seja produção, o que se produz e quem decide a política de desenvolvimento são, hoje, problemas "econômicos" significativos. E esses problemas estão situados tanto na arena política como na produção. (Estado e Teoria Política, Martin Carnoy, 8ª e., 1988, p.9).

A partir disso podemos imaginar que, ínsito na consciência popular como correto o conceito de acumulação de capital a qualquer custo para obter êxito em sua trilha de vida, a utilização irrestrita dos recursos naturais é mais do que justificável, tornando o ambiente político e econômico favorável a minoração de sanções ou ainda ao ampliar de condições para a exploração econômica dos recursos naturais, fatos que tem se tornado corriqueiros no cenário político institucional nacional.

Esta tessitura política e econômico-social impregnada na consciência da população é que leva a aceitação com naturalidade, ou melhor, com inconsciência ideológica, da descriminalização ou amenização das sanções para com as condutas que contém desvalor penal praticadas contra o meio ambiente, tornando-as aceitáveis em nome da produção de empregos, salários e benefícios materiais à sociedade, que se refletiria benfazejamente a cada um dos cidadãos, desconsiderando quaisquer outros fatores que não se apresentam individualmente como deletérios a si, entretanto isso ocorre por estarem camuflados os prejuízos pelo lugar comum, ou seja, na forma difusa dos bens naturais que os tornam imperceptível singularmente e com brevidade que atemorizasse.

Por isso, para a população em geral a perda de uma árvore não reflete diretamente em seu patrimônio palpável e seria absurda a aplicação de sanção severa ao agente. De forma diametralmente oposta, o furto de seu veículo, atualmente entendido como imprescindível ao largo de cinqüenta milhões de automóveis no país, é crime que deve sofrer sanção severa que repercuta como admoestação geral visando advertir e evitar pela "ameaça legal" o eventual agente com intenção criminosa nesta linde patrimonial.

Neste panorama é importante perguntar se o ser humano abduzido pelo sistema capitalista é verdadeiramente e conscientemente livre para fazer a opção criminosa à luz da impressionante força motriz que o leva a procurar acumular riquezas sob qualquer circunstância, quando mais incentivado pela pouca relevância social e penal da conduta criminal ambiental demonstrada pela legislação em vigor.

ZAFFARONI citando Hegel fala da liberdade subjetiva. Transcrevo:

Recapitulando brevemente Hegel, veremos que para este filósofo o espírito é um princípio ativo que passa por três estágios: o subjetivo, o objetivo e o absoluto. O direito pertence para ele ao espírito objetivo, porque a relação de pessoa a pessoa, isto é, de liberdade a liberdade, somente pode estabelecer-se uma vez alcançada a liberdade – o ser pessoa. Sendo assim, ninguém pode atuar com relevância jurídica enquanto não seja livre. Em consequência, para averiguar se há delito, o primeiro passo será investigar se foi cumprida a etapa do "espírito subjetivo", isto é, se o autor era livre. Logo, a teoria do delito dos hegelianos (ver n.128) iniciava uma investigação acerca do autor e logo depois – no caso do autor ser livre – passava ao fato, porque se o autor não era "livre", não se podia falar de "conduta" com relevância penal. (Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral, 5ª edição, Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, 2004, p. 373).

Embora apresente-se esta concepção filosófica pouco excitante e aplicável sob uma ótica positivista predominante, não soa teratológica do ponto de vista da filosofia do direito e da ciência criminal entender que, efetivamente, o sistema capitalista dá importante contribuição para que as pessoas ultrapassem os limites das condutas lícitas em busca de resultados insuflados pela ideologia econômica vigente como importantes para a vida satisfatória, em especial no ramo do crime ambiental que aqui tratamos.

Inarredável que vários crimes e atos infracionais cometidos têm como pano de fundo a "necessidade" de atender aos anseios advindos do consumismo, móvel de manutenção do sistema capitalista, podendo se questionar em nível científico e filosófico, o quão livre é um empreendedor rural que em busca de potencializar sua produção e lucro melhorando sua vida no campo e adequando-a ao que hoje se exige na seara individualista capitalista, desmata área para produzir, gerando de conseqüência, efetivamente, de forma tangível e individualmente perceptível, lucro, emprego e produção, não revelando nenhum prejuízo individualizado a outrem, fator que ameniza a compreensão do errado ou antijurídico, uma vez que a agressão ao meio ambiente onde o resultado material é intangível, difuso, fica encoberto pelas benesses usufruídas por toda uma comunidade.


7. O estado social como interventor.

Qualquer equilíbrio das ações estatais perante os interesses capitalistas e os sociais, passa pela readequação dos conceitos atuais de Estado, fazendo sucumbir o vigente capitalismo degenerado que atualmente prescinde, inclusive, do elemento produção, passando a vicejar apenas com base na especulação financeira com a transferência dinâmica e ilimitada de capital entre os países assimilados, normalmente com vantagens voláteis com função de atração dos recursos financeiros para estabilização deste sistema econômico que exige, constantemente, renovação e aumento contínuo de lucro com base no consumo indiscriminado e insuflado por ideologia servil ao esquema.

CASTEL e WOOD indicam esta função estatal como inarredável além de nova perspectiva de ideologia política para alcançar este desiderato:

"O poder público é a única instância capaz de construir pontes entre os dois pólos do individualismo e impor um mínimo de coesão à sociedade. As coerções impiedosas da economia exercem uma crescente pressão centrífuga. As antigas formas de solidariedade estão esgotadas demais para reconstituir bases consistentes de resistência. O que a incerteza dos tempos parece exigir não é menos Estado – salvo para se entregar completamente às "leis" do mercado. Também não é, sem dúvida, mais Estado – salvo para querer reconstituir à força o edifício do início da década de 70, definitivamente minado pela decomposição dos antigos coletivos e pelo crescimento do individualismo de massa. O recurso é um Estado estrategista que estenda amplamente suas intervenções para acompanhar esse processo de individualização, desarmar seus pontos de tensão, evitar suas rupturas e reconciliar os que caíram aquém da linha de flutuação. Um Estado até mesmo protetor porque, numa sociedade hiperdiversificada e corroída pelo individualismo negativo, não há coesão social sem proteção social. Mas esse Estado deveria ajustar o melhor possível suas intervenções, acompanhando as nervuras do processo de individualização. (As metamorfoses da questão social. Uma crônica do Salário. Robert Castel, 1998, p.141)

"A medida que o capitalismo se espraia por regiões mais vastas e penetra mais fundo em todos os aspectos da vida social e do meio ambiente natural, suas contradições vão escapando mais e mais a nossos esforços de controlá-las. A esperança de atingir um capitalismo humano, verdadeiramente democrático e ecologicamente sustentável via se tornando transparentemente irrealista. Mas, conquanto esta alternativa não esteja disponível, resta ainda a alternativa verdadeira do socialismo." (A Origem do Capitalismo. Ellen Meiksins Wood, 2001, p.129)

Percebe-se assim, que o avanço do Estado Democrático de Direito capitalista para um Estado Democrático de Direito com faceta social é imprescindível para que o sistema capitalista venha a se adequar a uma função, também, social, levando em consideração as necessidades gerais, dentre elas, a preservação do meio ambiente como fator irretorquível da própria manutenção de qualquer sistema, pois, equivale a manutenção da própria vida.

Impossível pensar em solução que não passe pela revolução estatal a partir da mobilização político-social, transformando, globalmente, o sistema vigente em um sistema que, de forma cogente, busque um equilíbrio de forças com a aplicação de recursos para a manutenção da espécie humana, elemento imprescindível para a formação do Estado e também do capital.


8. Conclusão.

Parece-me, sem sombra de dúvida, a partir de percepções pessoais advindas do estudo em grupo e em pesquisa científica, que o meio ambiente é relegado de forma inconsciente pela população mundial, fortemente inserida e arraigada ao consumismo capitalista, a um plano de baixa importância devido a não individualização dos problemas advindos dos ataques ao meio ambiente que quando se apresentam vêm de forma difusa e sem certezas científicas sobre a sua exata origem, fazendo vicejar a dúvida sobre a seriedade do problema.

De outro norte, parece-me inconteste que esta inconsciência social é apreciada pelos detentores do poder econômico que necessitam de expansão ilimitada para manutenção do círculo vicioso capitalista, mesmo que este sistema tenha se desvencilhado de forma contundente do elemento produção, passando a viver em boa parte da mera especulação de capital.

Os movimentos incipientes de defesa do meio ambiente são muitas vezes vistos com escárnio, sendo seus integrantes classificados como excêntricos ou desvairados, eventualmente por força, inclusive, do poder econômico que sustenta uma divulgação ideológica de massa.

A comunidade científica que visa a preservação na área ambiental não recebe atenção consentânea com as que pesquisam novas tecnologias que geram lucros imediatos

Este panorama favorece a exploração voraz dos recursos naturais sem que se crie na população a consciência dos problemas que são e serão enfrentados de forma mais robusta no futuro.

A prisão de um homicida ou de um autor de furto ou roubo é vista com bons olhos pela população. A prisão de alguém que pescou de forma irregular ou que desmatou ou tenha cometido algum outro crime ambiental é vista como inadmissível, com a clara percepção social de um mal menor que não exige repressão severa, revelando uma clara opção valorativa com relação a conduta social admissível.

Em um país eminentemente agrícola e que a partir de alguns anos avança em outras áreas, mas, que ainda se vale fortemente do setor primário, extrativista, as raízes familiares em muitas vezes estão ligadas ao campo e os pequenos delitos, como o consumo de animais silvestres, a não obediência a limites ambientais etc., são vistos com naturalidade e ainda geram pilhérias no âmbito destas famílias, fazendo recrudescer ainda mais o sentimento de que nada está acontecendo de grave.

Assim, a menos-valia do desvalor da conduta na seara penal é reflexo de uma sociedade muito pouco interessada na preservação do meio ambiente, que se parelha ao sistema econômico vigente, relegando a proteção dos recursos necessários para a própria vida a um momento futuro, postergado este ponto de importância ímpar, como todos os outros compromissos e anseios que superem o imediatismo vívido em nosso dia-a-dia, a um momento em que se faça necessária alguma atitude.

Enquanto isso vivenciamos o esfacelamento da consciência geral nesta seara, em muito pela falta de uma melhor educação que abarque, ainda, de forma séria o direito ambiental, relegado mesmo em grau superior a matéria eletiva, como se a existência de possibilidade de vida fosse um bem menor.

Que o futuro nos seja generoso apesar de nossos desmandos!


9. Bibliografia

Carnoy, Martin. Estado e teoria política / Martin Carnoy (tradução pela equipe de tradutores do Instituto de Letras da PUC-Campinas) – 2ª ed. - Campinas, SP : Papirus, 1998.

Castel, Robert. As metamorfoses da questão social : uma crônica do salário / Robert Castel; tradução de Iraci D. Poleti. - Petrópolis, RJ : Vozes, 1998.

Comparato, Fábio konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno / Fábio Konder Comparato – São Paulo : Companhia das Letras, 2006.

Dotti, René Ariel, 1934 –. Curso de direito penal : parte geral / René Ariel Dotti. – Rio de Janeiro : Forense, 2002.

Houaiss, Antônio (1915-1999) e Villar, Mauro Salles (1939-). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa / Antônio Houaiss e Mauro Salles Villar, elaborado no Instituto Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda – Rio de Janeiro : Objetiva, 2001.

Jesus, Damásio E. De, 1935 – Direito Penal / Damásio E. de Jesus. - São Paulo : Saraiva, 2002.

Moraes, Alexandre de. Direito constitucional / Alexandre de Moraes – 13 ed. - São Paulo : Atlas, 2003.

Wood, Ellen Meiksins. A origem do capitalismo / Ellen Meiksins Wood; tradução, Vera Ribeiro; apresentação, Emir Sader. - Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2001.

Zaffaroni, Eugênio Raúl. Manual de direito penal brasileiro : parte geral / Eugenio Raúl Zaffaroni, José Henrique Pierangeli. - 5. ed. rev. Atual. - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2004.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS JÚNIOR, Lázaro Alves. A menos-valia do desvalor da conduta penal no Direito Ambiental brasileiro a partir da (in)consciência social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2707, 29 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17917. Acesso em: 25 abr. 2024.