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Abuso do poder regulamentar no Direito Previdenciário.

Doutrina e jurisprudência

Abuso do poder regulamentar no Direito Previdenciário. Doutrina e jurisprudência

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Muitas vezes é restringido o acesso do contribuinte ao seu direito fundamental à Previdência Social, do que decorre a necessidade de se socorrer no Judiciário para resguardar seu direito.

1 INTRODUÇÃO

Pretende-se, no presente trabalho, realizar uma breve análise da questão do abuso do poder regulamentar no panorama do Direito Constitucional e Administrativo brasileiro, mais especificamente em matéria previdenciária.

O interesse de tal análise decorre do fato de que tais atos decorrentes do poder regulamentar são muitas vezes indevidamente utilizados como uma forma de restringir o acesso do contribuinte ao seu direito fundamental à Previdência Social, do que decorre a necessidade de aquele se socorrer no Poder Judiciário para resguardar seu direito. Tal restrição indevida tem sido inúmeras vezes demonstrada através de decisões judiciais adversas à Autarquia Previdenciária, qual seja, o Instituto Nacional de Seguridade Social, conforme será demonstrado no Anexo Único.

Para compreender como se dá tal abuso de poder, iniciamos com uma breve análise do tema separação dos poderes, desde a sua configuração inicial com Locke e Montesquieu até os dias atuais. Em seguida, abordamos o tema Estado de Direito e o princípio da legalidade, tema intrínseco ao assunto.

Em seguida, abordar-se-á o tema da Previdência Social como um direito fundamental e inescusável, particularmente através do leading case a partir do qual se entendeu deste modo.

Um estudo do poder regulamentar no ordenamento jurídico nacional é o tema seguinte, para que se possa entender o alcance deste instituto, inclusive através de um estudo específico do significado do termo "fiel execução da lei".

Passo seguinte é a análise do tema de modo bastante específico: como e por quais meios se dá o abuso de poder, seguido de estudo acerca das maneiras que cada um dos três ramos do Poder Público, quais sejam, Executivo, Legislativo e Judiciário, tem para sanar tais abusos. A propósito, especificamente, do Poder Executivo, verificar-se-á que tal abuso constitui, em tese e segundo a Constituição Federal, crime de responsabilidade, não obstante não seja tipificado em lei penal.

Finalmente, verificaremos determinados casos concretos de abuso do poder regulamentar em matéria que chegaram ao Poder Judiciário, bem como as soluções que lhes foram dadas.


2 A TEORIA DA SEPARAÇÃO DO PODER

Usualmente, trata-se da teoria da separação/tripartição dos poderes ou da separação/tripartição das funções. Neste trabalho, tendemos a entender que o uso mais correto do termo seria referir-se sempre à separação do Poder, pelos motivos que veremos mais à frente, o que em nada invalida a utilização clássica do termo. No entanto, como este não é o escopo do trabalho, não será necessário, ou mesmo desejável, prender-se a tal minúcia, utilizando-se o conceito conforme o trata cada autor consultado, mantendo-se apenas, simbolicamente, o título do presente capítulo neste sentido mais específico.

Inicialmente, necessário ressaltar que o poder é, em si mesmo, uno: só há um Poder. Nesse sentido, vide FRANÇA (2000: p. 18):

"Hoje em dia não há propriamente uma separação de poderes, mas sim uma separação funcional do poder. O poder é uno e deve residir no povo, como determina o art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal, ao dizer que todo poder deve dele emanar. Mais que um princípio, junto à cidadania, a soberania popular constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito."

Tal fato é, em si mesmo, uma conseqüência lógica da própria separação de poderes: para que algo seja separado, fracionado, é necessário que seja um só. Neste sentido, GUSMÃO (2000: p. 363):

"A teoria da separação de poderes não deve ser confundida com a questão da divisibilidade ou indivisibilidade do poder do Estado. Poder estatal é uno, indivisível, manifestado nas funções executiva, legislativa e jurisdicional, cujo exercício pode ser atribuído a órgãos diferentes e independentes sem com isso fragmentar-se a autoridade ou o poder do Estado, pois, quando o Legislativo legisla é o Estado que o faz, da mesma forma, quando o Judiciário julga ou quando o Executivo executa ou administra. A distribuição dos poderes do Estado a órgãos diferentes não é da essência do poder estatal, mas exigência da segurança individual, bem como fruto da necessidade de descentralização de funções e serviços, tendo em vista o agigantamento do Estado e a complexidade de suas funções e serviços."

Deste modo, verifica-se que embora o poder seja em si mesmo uno, um dos fundamentos do Estado de Direito moderno é a teoria da separação dos poderes ou, como tem sido chamada atualmente, a teoria da separação das funções, conforme se verá. Tal denominação é bastante adequada, até mesmo por representar um resgate do conceito original de divisão do poder, conforme lembra LENZA (2008: p. 291):

"As primeiras bases teóricas para a ‘tripartição de Poderes’ foram lançadas na Antiguidade grega por Aristóteles, em sua obra Política, através da qual o pensador vislumbrava a existência de três funções distintas exercidas pelo poder soberano, quais sejam, a função de editar normas gerais a serem observadas por todos, a de aplicar as referidas normas ao caso concreto (administrando) e a função de julgamento, dirimindo os conflitos oriundos da execução das normas gerais nos casos concretos".

Ocorre, porém, que até este momento o poder, embora conceitualmente divisível, era efetivamente concentrado nas mãos de uma só pessoa, que era o soberano. A evolução deste conceito somente viria a ocorrer com Montesquieu, que veio a propor, para efetivação da tripartição das funções, a tripartição do poder em diferentes órgãos, como lembra LENZA (2008: p. 291):

"O grande avanço trazido por Montesquieu não foi a identificação do exercício das três funções estatais. De fato, partindo deste pressuposto aristotélico, o grande pensador francês inovou, dizendo que tais funções estariam intimamente conectadas a três órgãos distintos, autônomos e independentes entre si. Cada função corresponderia a um órgão, não mais se concentrando nas mãos únicas do soberano. Tal teoria surge em contraposição ao absolutismo, servindo de base estrutural para o desenvolvimento de diversos movimentos como as revoluções americana e francesa, consagrando-se na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, em seu art. 16.

Por meio de tal teoria, cada Poder exercia uma função típica, inerente à sua natureza, atuando independentemente e autonomamente. Assim, cada órgão exercia somente a função que fosse típica, não mais sendo permitido a um único órgão legislar, aplicar a lei e julgar, de modo unilateral, como se percebia no absolutismo.

Tal conceito está intimamente ligado não apenas à idéia de um Estado de Direito, ou seja, de um Estado fundamentado na Lei e não no poder de um soberano; é mais amplo que isto, estando vinculado mesmo à idéia de Estado Democrático de Direito, vale dizer, a um Estado fundamentado na lei e onde o titular do Poder é, em última instância, o demos, o povo, e onde os eventuais abusos de poder por parte de cada um dos órgãos são devidamente reprimidos nos termos do denominado sistema de freios e contrapesos, como bem ensina DALLARI (2002: p. 219):

"O sistema de separação de poderes, consagrado nas Constituições de quase todo o mundo, foi associado à idéia de Estado Democrático e deu origem a uma engenhosa construção doutrinária, conhecida como sistema de freios e contrapesos. Segundo essa teoria os atos que o Estado pratica podem ser de duas espécies: ou são atos gerais ou são atos especiais. Os atos gerais, que só podem ser praticados pelo poder legislativo, constituem-se a emissão de regras gerais e abstratas, não se sabendo, no momento de serem emitidas, a quem elas irão atingir. Dessa forma, o poder legislativo, que só pratica atos gerais, não atua concretamente na vida social, não tendo meios para cometer abusos de poder nem para beneficiar ou prejudicar a uma pessoa ou a um grupo em particular. Só depois de emitida a norma geral é que se abre a possibilidade de atuação do poder executivo, por meio de atos especiais. O executivo dispõe de meios concretos para agir, mas está igualmente impossibilitado de agir discricionariamente, porque todos os seus atos estão limitados pelos atos gerais praticados pelo legislativo. E se houver exorbitância de qualquer dos poderes surge a ação fiscalizadora do poder judiciário, obrigando cada um a permanecer nos limites de sua respectiva esfera de competência.

Deste modo, vemos que a tripartição das funções pode ser entendida como uma atribuição de competências a cada um dos três órgãos para exercer uma parcela do poder que, em sua essência, é uno, só sendo "dividido" para fins de controle de uns órgãos pelos outros. Tal controle é a razão de tal separação, mas não é ele a principal razão: sua ultima ratio é permitir que, em um estado Democrático de Direito – vale dizer, em um Estado onde o povo é o verdadeiro titular do Poder – a vontade do povo seja realizada.

E é por este motivo que intitulamos este capítulo do presente trabalho como a separação do Poder: para visualizar a separação existente entre o exercício do Poder – separação esta que ocorre entre os órgãos do Estado – e a separação existente entre o exercício e a titularidade do mesmo Poder, o primeiro pertencente ao Estado e o segundo pertencente ao Povo.

É nesse mesmo sentido que leciona ATALIBA (2001: p. 122), ao discorrer sobre o princípio da legalidade, exarando lição essencial no escopo do presente trabalho:

"Se o povo é o titular da res publica e se o governo, como mero administrador, há de realizar a vontade do povo, é preciso que esta seja clara, solene e inequivocamente expressada. Tal é a função da lei: elaborada pelos mandatários do povo, exprime a sua vontade. Quando o povo ou o governo obedecem à lei, estão: o primeiro obedecendo a si mesmo, e o segundo ao primeiro. O governo é servo do povo e exercita sua servidão fielmente ao curvar-se à sua vontade, expressa na lei. O Judiciário, aplicando a lei aos dissídios e controvérsias processualmente deduzidas perante seus órgãos, não faz outra coisa senão dar eficácia à vontade do povo, traduzida na legislação emanada por seus representantes."

Tal excerto doutrinário tem o condão de, através de uma interpretação bastante simples de seu sentido, entender que o sentido último da tripartição é, através de uma junção com o princípio da legalidade, permitir o controle do Poder pelo Poder: afinal, se os Poderes são "harmônicos e independentes entre si", nos termos do art. 2º da Carta Política, não é menos verdade que estão, todos eles, submetidos a um poder maior, extraído do Princípio da Legalidade: o Império da Lei ou, contemporaneamente, ao Império da Juridicidade, esta mais ampla que a lei e compreendendo todo o sistema normativo, particularmente e supremamente o sistema constitucional.

Claro está, ainda, que se os Poderes constituídos estão submetidos ao controle da lei, outro não é o destino do próprio povo, o qual também há de obedecer à lei, conforme o mesmo ATALIBA (2001: pp. 122-123):

"O evolver das instituições publicísticas que informam a nossa civilização culmina com a consagração do princípio segundo o qual ‘ ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei’ (art. 5º, II), que, no nosso contexto sistemático, aparece como a conjugação do princípio da supremacia da lei e exclusividade da lei como forma inovadora e inaugural (Oswaldo Aranha Bandeira de Mello) da vontade estatal. Daí que só a lei obrigue e nada além da lei o possa fazer. Em conseqüência, nenhuma expressão de vontade estatal será compulsória se não amparada em lei. Se só a lei obriga, tudo que não seja lei não obriga, salvo as exceções expressas, que devem ser restritivamente interpretadas. Mas a lei, no nosso sistema, não é só o ato formal do Poder Legislativo assim batizado. Para ser válida, a lei brasileira há de ser abstrata, isonômica, impessoal, genérica e irretroativa (quando crie ou agrave encargos, ônus, múnus).

É este, em última instância, o sentido mesmo do presente capítulo: demonstrar como se dá a relação entre o princípio da separação do poder e o princípio da legalidade. pedra fundamental do Estado Democrático de Direito.

Tema de fundamental importância, no que diz respeito à separação dos poderes, é a questão da incapacidade, por parte tanto do Poder Executivo quanto do Poder Legislativo, de garantir um cumprimento racional dos preceitos constitucionais, conforme afirma Andreas Krell, citado por ESTEVES (2008: p. 79).

Isto porque, de um lado, o Poder Executivo não tem recursos para atender a todas as demandas que lhe são apresentadas; e, por outro lado, o Poder Legislativo não é, em função de sua característica de colegiado, dotado da rapidez necessária para assegurar tais direitos. Tal tema adquire importância ainda maior quando se verifica que o Poder Legislativo não tem o hábito de exercitar a competência que lhe é atribuída para sustar os atos do Poder Executivo que se verifique serem exorbitantes do poder regulamentar; deste modo, resta apenas o Poder Judiciário como competente a realizar o controle de tais abusos.

Critica-se, porém, determinadas atuações do Poder Judiciário, com fundamento na teoria da separação dos poderes, sob a alegação de se tratarem as mesmas de interferências indevidas deste nas competências do Poder Executivo, e alegando ainda uma suposta atuação política por parte do Poder Judiciário.

Neste sentido, em crítica à utilização do princípio da separação dos poderes como maneira de evitar o controle daqueles Poderes pelo Poder Judiciário, escreve ESTEVES (2008: p. 74):

"Todos os órgãos estatais, nos quais se inclui o Poder Judiciário, têm função política. A argumentação de que o Judiciário é um órgão estatal incumbido de uma função meramente jurisdicional, incompatível com a atividade política atribuída ao Executivo e ao Legislativo -, e que por esse motivo deve permanecer estritamente vinculado a uma interpretação que ‘revele’ o direito contido nos pressupostos legais, doutrinários e jurisprudenciais, dando-lhe uma característica de neutralidade diante das posições políticas que envolvem o conjunto da sociedade -, somente teria sentido em uma construção jurídico-ideológica que tentasse esconder a existência da discricionariedade da jurisdição. Tanto a lei quanto as posições doutrinárias e a jurisprudência encontram-se formuladas com base em posicionamentos ideologicamente definidos. Mesmo um posicionamento doutrinário que nega esse viés político da jurisdição o faz mantendo posicionamento de ordem político-ideológica."

Verifica-se a inconsistência do argumento de interferência na separação dos poderes, tanto pelo argumento apresentado pelo autor, quanto pelo apelo a outro princípio, tido como princípio fundamental no panorama constitucional brasileiro, qual seja, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, previsto no art. 5º, inc. XXXV da Constituição Federal: de fato, e ao menos aparentemente, uma aplicação rígida da teoria da separação dos poderes teria o condão de deixar à míngua de qualquer possibilidade de tutela jurisdicional o cidadão que se sentisse vítima de indevido abuso pelo Poder Executivo, incluídos aí os atos decorrentes de eventual abuso da competência regulamentar.


3 O ESTADO DE DIREITO E O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Neste capítulo, pretendemos abordar o princípio da legalidade como sendo algo ínsito ao Estado de Direito. Para tanto, a idéia fundamental consiste em seguir uma linha baseada nas relações entre ambos os conceitos.

Para José Afonso da Silva (SILVA: 2004, p. 116), são características básicas do Estado de Direito:

[...] ‘submissão ao império da lei’, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representantes do povo, mas do povo cidadão; ‘divisão de poderes’, que separe de forma independente e harmônica os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos particulares; enunciado e garantia dos direitos individuais (grifo do autor).

BIELSA (1964, p. 83-86) faz importante explanação acerca da distinção entre lei formal e lei material, sendo esta distinção fundamental no âmbito do presente trabalho:

"A legislação expressa, em geral, a idéia de um conjunto de leis de um Estado (v.gr., da Nação ou das províncias), e de uma maneira mais especial, o conjunto das leis relativas a um ramo do direito positivo (v. gr., civil, comercial, processual, administrativo, etc), o que denota sempre uma idéia de unidade (de conjunto). Porém quando se dá a noção de lei, este conceito pode tomar duas acepções diferentes, pelo que importa uma distinção preliminar que convém assinalar. Tais acepções são: a) lei em sentido material, conceito objetivo da norma jurídica; b) lei em sentido formal, como um ato legislativo que tem forma constitucional de lei. A distinção é clara. A lei em sentido material ou substancial (critério objetivo) está determinada pela natureza da atividade do Estado e não pelo órgão do qual ela emana. E assim, ao enumerar as fontes do direito administrativo, visualizamos os regulamentos ditados pelo Poder Executivo no campo das leis materiais e que são, não obstante, atos administrativos. Ao contrário, a lei em sentido formal é aquela que emana do Poder legislativo, porém uma lei desta natureza pode não conter norma jurídica; é, então, a lei pela forma constitucional que a reveste.

(…)

Sobre a concepção da lei, há na doutrina uma certa coincidência conceitual; considera-se, or principio, a lei como a regra geral e abstrata, com a qual se expressa a idéia de objetividade e impessoalidade da norma legal. Estes caracteres têm evidentemente seu fundamento nos princípios políticos, sendo comuns os seguintes a supremacia do Estado, órgão de interesse geral; a igualdade dos habitantes situados na norma jurídica do Estado, e por isto a igualdade perante a lei, a qual, por ser necessariamente estabelecida no interesse geral, e pela vontade geral, é obrigatória. (tradução nossa)

Desta explanação realizada pelo doutrinador portenho, impende extrair dois conceitos essenciais, quais sejam:

a)a classificação da lei pelo critério de sua origem – lei material reconhecida pela atividade material do Estado (critério objetivo), e lei formal quando emanada do Poder Legislativo (critério subjetivo);

b)e, como características da lei, tanto em sua dimensão material quanto formal, esta deverá ser: geral, abstrata, impessoal, isonômica, decorrente do interesse geral e da vontade geral.

A junção destes dois conceitos é o que vem a formar o núcleo da idéia de princípio da legalidade, legalidade esta que é ínsita ao Estado Democrático de Direito, como explica CANOTILHO (2003: p. 251):

"O princípio da legalidade da administração, sobre o qual insistiu sempre a teoria do direito público e a doutrina da separação dos poderes, foi erigido, muitas vezes, em ‘cerne essencial’ do Estado de Direito, pois num Estado democrático-constitucional a lei parlamentar é, ainda, a expressão privilegiada do princípio democrático (daí a sua supremacia) e o instrumento mais apropriado e seguro para definir os regimes de certas matérias, sobretudo dos direitos fundamentais e da vertebração democrática do Estado"

Para DALLARI (2002: p. 151), o Estado Democrático de Direito baseia-se em três pontos, a saber:

"A supremacia da vontade popular, que colocou o problema da participação popular no governo, suscitando acesas controvérsias e dando margem às mais variadas experiências, tanto no tocante à representatividade, quanto à extensão do direito de sufrágio e aos sistemas eleitorais e partidários; a preservação da liberdade, entendida sobretudo como o poder de fazer tudo o que não incomodasse o próximo e como o poder de dispor de sua pessoa e de seus bens, sem qualquer interferência do Estado; a igualdade de direitos, entendida como a proibição de distinções no gozo de direitos, sobretudo por motivos econômicos ou de discriminação entre classes sociais."

ATALIBA (1981: p. 185) afirma, ressaltando a absoluta importância, especificamente no direito brasileiro, do princípio da legalidade:

"No contexto do nosso sistema constitucional, o modo exigente como foi posto o princípio da legalidade melhor faz valorizado o conceito de estado de direito, tal como concebido por Balladore Pallieri, ao defini-lo como "aquele que se submete à lei e à jurisdição independente e imparcial (Diritto Costituzionale, 3ª ed., Milão, Giuffrè, p. 85).

Efetivamente – é observação do notável constitucionalista de Milão – de muito pouco valeria o estado obedecer à lei, se pudesse manipulá-la seja na elaboração, seja na aplicação." (grifamos)

Grifada a última frase da citação, essencial no escopo do presente trabalho, para ressaltar o papel importante do momento da aplicação da lei, tarefa esta cumprida, no que diz respeito ao Direito Administrativo, sob a égide não apenas da lei em si, mas também do poder regulamentar do Poder Executivo.

Neste mesmo contexto, o mesmo doutrinador cita Pontes de Miranda, lembrando a sua criação do termo legalitariedade, utilizado para "distinguir o suave e programático princípio do direito constitucional comparado e sublinhar a rigidez, estreiteza e imperatividade com que nós o consagramos" (idem, ibidem, p. 185)

Claro que a questão da supremacia da lei como valor absoluto encontra temperamentos, particularmente no que diz respeito à evolução da sociedade como um todo. Cabral de Moncada (MONCADA: 2002, p. 11) afirma que:

"A preferência da lei continua a significar o predomínio do poder legislativo de base parlamentar no contexto dos poderes do Estado. Muito embora não se possa imputar nos nossos dias ao legislativo e ao executivo a mesma posição relativa do século passado, parece claro que o significado essencial da preferência da lei continua inalterado. É pois sobretudo a reserva da lei que se alterou e através dela o princípio da legalidade. A alteração deu-se em várias direcções. Desde logo, a introdução no conteúdo legislativo de novos processos de regulamentação das questões, sem retirar ao dispositivo legislativo o seu lugar na hierarquia das fontes e a sua importância como manifestação inicial do poder, roubou-lhe algo do seu caráter preceptivo. A lei limita-se com freqüência a fornecer um quadro geral inoperante enquanto tal ou um repositório de directivas inexeqüíveis a pedir intervenções secundárias. Em boa verdade, a dificuldade das questões a tratar e a incidência imediata dos conflitos de interesses sobre o legislador levam-no por vezes a uma compreensível atitude de retraimento que diminui a capacidade operativa da lei. Também por esta via se alterou profundamente a posição da administração perante a lei." (grifamos)

ALMEIDA, no longínquo ano de 1959, já observava o abuso do poder regulamentar como uma constante no ordenamento jurídico nacional como "um mal da terra e dos tempos" (p. 29); afirmava ainda

"Dos Poderes do Estado, é o Executivo o que se apresenta com maior continuidade e fixidez, dentre os três Poderes. O Legislativo dá-nos as leis e o Judiciário distribui justiça. Porém, um e outro não atuam ininterruptamente junto à massa de governados, por modo que sintam de perto os ditames das necessidades sociais. Lei e sentença, ainda quando admiravelmente apresentadas, só por feliz acaso podem descobrir o caminho do que convém à solução de problemas. Nasce disto uma vantagem para o Executivo, que é a experiência contínua. Mas, desta vantagem, também, nasce um adiantamento de soluções constantes, as quais, com tardança, vêm a ser adotadas nas normas jurídicas formais. Esse adiantamento, seja de má-fé, seja de boa-fé, surge ora mal disfarçado, ora bem disfarçado nos regulamentos, transformados parcialmente em leis materiais [01].

(...)

Essas circunstâncias, estimuladas pela histórica tendência dos chefes do Executivo, qual a de interferir insensivelmente em matérias estranhas à sua competência, como criaram a psicologia daquele que, para empregar uma metáfora, de usar o cachimbo, ficou com a boca torta." (grifos nossos) (ALMEIDA, 1959, p. 29)

A circunstância de compreender tal "psicologia do Executivo" não impediu, contudo, o mesmo doutrinador de entender que a atividade constituísse não apenas abuso, mas também ilícito propriamente dito:

"De onde se pode dizer que, emanando-as [normas jurídicas], o Executivo realiza atividade ilícita, porquanto os atos administrativos, que, tendo a forma de regulamentos, contêm normas jurídicas, são ilícitos, visto resultarem de uma simulação de que resulta a obtenção de um fim diverso daquele que é atribuído ao regulamento." (grifos nossos, exceto quanto ao último, original do autor) (ALMEIDA, 1959, p. 31)

Vivesse o vetusto jurista em nossa contemporânea "Era dos Direitos", como a denominou Norberto Bobbio, certamente consideraria ainda mais grave que o regulamento atingisse direitos previstos diretamente na Carta Magna e que podem, assim, ser compreendidos como fundamentais, irrenunciáveis e inalienáveis, a qualquer pretexto; é o que nos lembra Francisco Campos, apud BARROSO (2002: p. 181):

"Por maior a amplitude que se queira atribuir ao poder regulamentar da administração, esse poder não está apenas adstrito a operar intra legem e secundum legem, mas não poderá, em caso algum e sob qualquer pretexto [02], ainda que lhe pareça adequado à realização da finalidade visada pela lei, editar preceitos que envolvam limitações aos direitos individuais. Este domínio é, de modo absoluto, reservado à legislação formal, ou aos preceitos jurídicos editados pelo Poder Legislativo."

Não é assim, porém, que costumam agir os detentores do poder. Não discorrendo sobre o poder regulamentar de modo específico, mas sobre a legislação tributária, MARTINS, (apud MARTINS: 2009, p. 169), afirma que:

"Os beneficiários do tributo – os governantes – mesmo sendo também contribuintes, são seus grandes receptores e destinatários, motivo pelo qual, embora com uma visão não tão sectarista quanto os agentes fiscais encarregados da cobrança, não deixam de exaltar o tributo e criar legislação cada vez mais apenadora, no mundo inteiro, para assegurar o cumprimento das obrigações fiscais impostas, sem grande contestação." (MARTINS, 2009, p. 169)

Ou seja, parece ser um consenso que os governantes, desde longo tempo, têm o hábito de "apenar" os governados, de modo abusivo, através do uso do poder normativo, e não apenas através do poder regulamentar strictu sensu. Tal hábito vem de longe, conforme já visto antes, já tendo sido designado de um "mal da terra". TÁCITO afirma, a respeito da origem do abuso de poder:

"O abuso de poder surge com a violação da legalidade, pela qual se rompe o equilíbrio da ordem jurídica. Tanto da legalidade externa do ato administrativo (competência, forma prevista ou não proibida em lei, objeto lícito) como da legalidade interna (existência dos motivos, finalidade)." (TÁCITO, 1959, p. 28)

O mesmo autor cita (1959, p. 29) a lei 221/1894, que previa a chamada "ação sumária especial para anulação dos atos administrativos", nos moldes do que seria hoje o mandado de segurança, ressaltando mais uma vez a existência, desde muito tempo, da necessidade de tal controle dos atos administrativos no país.

Posto este panorama, e visto como um todo, porém, é de se notar, de passagem, que o abuso do poder regulamentar não parece ser de todo intencional, mas sim o resultado de um "agigantamento" do Poder Executivo, com um correspondente enfraquecimento do Poder Legislativo. Esta tendência não se dá apenas no Brasil, mas em todo o mundo, existindo até mesmo teses como a da deslegalização de determinadas matérias atualmente submetidas à reserva da lei. Isto, porém, seria matéria para outro trabalho, não cabendo nos estreitos limites desta monografia; não poderia, porém, deixar de ser citada a presente questão.


4 GENERALIDADES SOBRE O ABUSO, O DESVIO E O EXCESSO DE PODER ADMINISTRATIVO

CRETELLA (1968: p. 30) traz à colação uma conceituação do tema abuso, excesso e do poder administrativo, subdividindo-o, deixando claro porém que a divisão não é bastante clara:

"Para alguns autores, as três expressões são empregadas como absolutamente sinônimas, ao passo que para outros o desvio de poder é simples modalidade do excesso de poder.

Como quer que seja, o assunto ainda não recebeu dos autores a sistematização desejada. Dentro da linguagem, rigorosamente técnica e precisa que o direito exige, seria conveniente empregar os vocábulos em acepções precisas. Assim, abuso seria empregado em sentido mais genérico; desvio e excesso, em sentido mais específico.

O abuso de direito, em nosso campo, caracterizar-se-ia ou por excesso (diferença quantitativa) ou por abuso (diferença qualitativa)." (grifos no original)

Continua ainda, o mesmo autor, acerca do desvio de poder:

"JÈZE, Gaston define o desvio de poder como ‘todo ato jurídico, regular na aparência, realizado por um agente público com uma finalidade distinta daquela para a qual foi destinado’ (Principios Generales del Derecho Administrativo, trad. Arg.1949, vol. III, p. 79/80. FOIGNET, René: ‘Quando um agente usa de seu poder num caso ou para motivos diferentes daqueles para os quais o poder lhe foi confiado temos o desvio de poder.’ (Manuel Elementáire de Droit Administratif, 16ª ed., 1926, p. 648). Os mais expressivos autores franceses de nossos dias acentuam, sem dissonância, a nota específica que caracteriza o desvio de poder, qual seja, a persecução pelo agente administrativo de fim diverso daquele para o qual o ato deveria ser legalmente executado, mesmo se o fim nada contiver, em si, de chocante." (CRETELLA, 1968, p. 31, nota de rodapé)

A conceituação do excesso de poder, pelo mesmo autor, não verifica o fim a que se destina o agente administrativo, mas apenas se o poder é exercido de modo excessivo, vale dizer, além do que permite a lei.

Mas quais os motivos possíveis pelos quais a Administração Pública, em algum momento, opta – supondo que seja uma opção e não um mero excesso de zelo ação não-intencional na aplicação da lei – por agir ultrapassando o que lhe permite a lei? Dado que o objeto do presente trabalho não comporta maiores voos, permitir-nos-emos algumas ponderações de ordem especulativa, sem respostas definitivas e/ou fechadas.

Inicialmente, impende verificar que a análise do caso concreto de abuso de poder envolve, necessariamente, uma análise dos fins perseguidos com o ato abusivo. A este respeito, indispensável a citação de CRETELLA JÚNIOR, a respeito especificamente do desvio do poder: "Por isto se diz que o desvio de poder envolve uma noção teleológica, isto é, o fim perseguido pelo autor de um ato ébásico para julgar seu autor". (CRETELLA JÚNIOR, 1968, p. 31.). Não obstante a restrição feita pelo autor, na observação, ao desvio de poder, espécie do gênero abuso de poder, é possível entender que o abuso de poder também se encaixa nesta observação.

Em outra linha de raciocínio, verifica-se que, via de regra, o abuso do poder é tratado em função de interesses pessoais; daí que, como a Administração Pública age de modo impessoal, o tema abuso de poder é matéria típica do Direito Privado, comportando ali um grande arcabouço teórico.

Não obstante, conforme já se verificou, o abuso de poder também ocorre no seio da Administração Pública, em diversas esferas. No que toca ao poder regulamentar, verificar-se-á o abuso do poder sempre que o regulamento restringir direitos dos administrados, o que, conforme é cediço, só poderia ocorrer por meio da lei, e ainda assim, em obediência estrita aos ditames constitucionais.

Neste sentido, ATALIBA (1981: p. 189) explica que:

"[O regulamento] só indiretamente pode atingir os administrados. Daí o asserto de Sérgio Ferraz no sentido de que ‘o regulamento é um ato de eficácia externa, ou seja, sua normatividade não obriga apenas a administração, que por ele se auto-limita, mas confere direito público subjetivo invocável pelo particular (3 estudos de direito, p. 105).

Os administrados só são sujeitos aos preceitos regulamentares, na medida em que, pela lei, devam tratar com os servidores públicos, e só nessa medida. Os administrados não são subordinados ao chefe do Poder Executivo. Não devem acatamento às suas ordens."

Deste excerto doutrinário extrai-se regra de inexcedível valor no escopo do presente estudo, qual seja: sempre que o regulamento atingir diretamente, de modo não expressamente previsto na lei, qualquer direito público subjetivo do administrado, verifica-se o abuso de poder regulamentar.

Exemplo claro disto, tipicamente verificado no âmbito do Direito Previdenciário, são as exigências feitas pelos regulamentos da Previdência Social que tendem a limitar o usufruto dos benefícios previdenciários. Concretamente, já se verificou a existência de redação do Regulamento Previdenciário [03] que exigia, para a concessão do benefício salário-maternidade, a existência de relação de emprego, em flagrante usurpação da reserva legal, visto que a lei não fazia qualquer menção a condições a serem impostas para a concessão do referido benefício. Outros exemplos poderão ser encontrados na seção específica destinada à análise da jurisprudência acerca do tema.

Do mesmo texto de ATALIBA (idem, ibidem), extrair-se-á outra observação importante, devida a Pontes de Miranda, acerca da natureza do poder regulamentar: "em se tratando de regra jurídica de direito formal, o regulamento não pode ir além da edição de regras que indiquem a maneira de ser observada a regra jurídica."

Desta pequena citação doutrinária, retira-se relevante conclusão acerca dos caracteres vinculado e discricionário do poder regulamentar, consistindo o primeiro numa estrita vinculação à lei e o segundo numa discricionariedade, de caráter amplo, do modo como se deve realizar a fiel aplicação da lei.

O entendimento da amplitude de cada um destes dois caracteres, no sentido de que, existindo a fiel aplicação da lei, ou por outro ângulo de visão, inexistindo lesão imprevista na lei aos direitos subjetivos do administrado, o modo como ela se dará e de exclusiva escolha do Poder Executivo, parece ser um controle extremamente eficaz dos eventuais abusos do poder regulamentar.

À guisa de critério hermenêutico para a identificação segura do abuso do poder regulamentar, FRANÇA (2000: p. 40) explica que há uma parcela de discricionariedade estatal, que não é do Poder Executivo, mas sim de titularidade do Estado como um todo:

"Sendo a discrição do legislador mais ampla em conteúdo e a primeira a manifestar-se, cronologicamente, no processo de expressão de ‘vontade’ do Estado, a discrição reservada ao administrador e ao juiz pode dizer-se, em certo sentido, residual, sendo exercida no que não tiver sido regulado pela lei. Onde e quando se manifeste, em toda a sua plenitude, a discrição do Poder Legislativo, já não haverá opções confiadas aos Poderes Executivo e Judiciário no processo de expressão da vontade estatal. Exaurindo a lei as possibilidades de escolha, não há outra conduta possível além do estabelecido, devendo ser individualizada tal solução." (grifamos)

Discorrendo sobre o tema, GASPARINI (1978, passim) entende que o poder regulamentar possui, também, fundamentos políticos, os quais residem na conveniência e oportunidade conferida ao Poder Executivo, para disciplinar os comandos legalmente previstos, visando dispor internamente sobre a estrutura da Administração ou pormenorizando o conteúdo de determinadas matérias. Destarte, o exercício da atribuição regulamentar é assegurado ao chefe do Executivo, mesmo que nada disponha o ordenamento jurídico acerca desta competência.

Em contraponto ao que foi dito até aqui, apresentamos a seguir um pequeno estudo sobre aquilo que se tem denominado de crise da legalidade, crise esta que seria passível de explicar a existência dos problemas decorrentes de eventuais abusos do poder regulamentar.


5 A CRISE DA LEGALIDADE

Ainda que todas estas observações venham a ser, eventualmente, pertinentes, não é possível ou desejável demonizar o Estado, como se este agisse, generalizadamente, com o fito de prejudicar os seus administrados.

De fato, sabe-se que a atuação do Estado moderno, em função de sua atuação cada vez maior na vida dos cidadãos, leva a uma maior complexidade em sua atuação; e que a existência desta maior complexidade leva a uma maior quantidade de conflitos.

CABRAL DE MONCADA (2002: p. 22) disserta sobre o tema nos seguintes termos:

"Estão pois maduras as condições para se poder afirmar que o entendimento clássico da legalidade administrativa está em crise. Para este, a acção administrativa justiçava-seenquanto execução fidedigna da lei por aí se medindo a sua legitimidade de base nessa mesma medida democrática. Sucede, contudo, que a complexidade da moderna acção administrativa, a que já se aludiu, modificou por dentro o alcance da legalidade administrativa ao mesmo tempo que colocou em novos moldes a questão da legitimidade da actividade adminstrativa, como não podia deixar de ser. A moderna acção administrativa não pode configurar-se como uma mera execução da lei e por assim ser não pode esperar-se que a lei seja a única fonte de sua legitimidade. Carece pois a moderna actividade administrativa de novas fontes de legitimidade capazes de lhe emprestar uma remoçada dignidade."

A razão para tal dificuldade apontada, conforme explicitado no texto, é que a atuação do Executivo se torna cada vez mais complexa à medida que a própria sociedade como um todo se torna mais complexa. É nesse sentido que BARROSO (2003: p. 204) afirma:

"No Direito, a temática já não é a liberdade individual e seus limites, como no Estado liberal; ou a intervenção estatal e seus limites, como no welfare state. Liberdade e igualdade já não são os ícones da temporada. A própria lei caiu no desprestígio. No Direito Público, a nova onda é a da governabilidade. (grifamos)   

Ainda discorrendo sobre esta tendência, o professor José Reinaldo de Lima Lopes, (apud MARQUES: 2004, p. 2) afirma que:

"É possível narrar a história do Direito Administrativo não de modo ingênuo,da defesa do cidadão comum – pessoa natural – contra um poderosíssimo Leviatã, mas de modo um pouco mais realista, como a história da definição de um campo em que estão lado a lado grande política eleitoral, grande política econômica, grandes finanças e grandes negócios. São as mudanças neste jogo e nas interações destes grandes atores que definem afinal a sorte do direito Administrativo."

A explicação para tal tendência, notadamente na vigência do Welfare State ou Estado-Providência, decorre da existência de uma transmutação das demandas normativas do Estado contemporâneo, demandas estas que o Parlamento não teria a capacidade material de fazer face; desta incapacidade decorreria, segundo MARQUES (2004: p. 5) uma alteração na dinâmica do Poder Executivo.

Esta alegada alteração na dinâmica do Executivo, se não justifica os abusos decorrentes do abuso do poder regulamentar, ao menos os explica. A respeito do assunto, e citando a professora Maria Paula Dallari Bucci, vide MARQUES (idem, ibidem):

"Na verdade, a formulação técnica do Direito Administrativo que define a administração, enquanto parte do Poder Executivo, como mera executora da lei é reconhecida pelos próprios administrativistas como ‘simplista e insatisfatória’, especialmente com o Estado social de direito, de que resulta um Poder Executivo fortalecido. O próprio direito administrativo é profundamente afetado, pois, embora se continue a proclamar o princípio da legalidade como uma de suas vigas mestras, na realidade a lei a que se obriga a Administração compreende também atos normativos de diferentes modalidades editados pelo próprio Poder Executivo."

Em um ambiente jurídico pós-positivista, como parece ser necessariamente o existente no Estado Democrático de Direito, no qual os direitos decorrem não mais simplesmente da lei, mas sim do sistema jurídico como um todo, tendo em seu ápice o a Norma Máxima, qual seja, a Constituição Federal, já se fala na substituição do princípio da legalidade pelo princípio da "juridicidade".

Nesta nova forma de visão, o que hoje se denomina como "império da lei" seria substituído por um "Império da Justiça", sendo superado o paradigma positivista em favor de um paradigma pós-positivista, o qual seria mais capaz e mais tendente a corrigir as inevitáveis imperfeições do sistema jurídico como um todo através de um entendimento ampliado do conceito de Justiça.

FRANÇA (2000: p. 50), discorrendo sobre o princípio da indisponibilidade do interesse público, afirma serem dele decorrentes, entre outros subprincípios, o princípio da juridicidade administrativa, o qual seria, por sua vez, composto pela junção dos conceitos de legalidade administrativa, impessoalidade ou finalidade e proporcionalidade. Partindo desta visão, fica claro que, de um ponto de vista da supremacia do interesse público vista de modo mais atento, eventuais abusos do poder regulamentar têm o condão, não apenas, de não atendê-lo, mas antes de afrontá-lo; isto, ainda que à primeira vista um tratamento "rigoroso" do contribuinte/cidadão pareça ser benéfico à primeira vista, pode acabar por tornar-se nefasto, em vista das consequências jurídicas daí advindas.

O mesmo autor, discorrendo sobre interesse e sobre interesse público, afirma (FRANÇA: 2000, pp. 63-64):

"A ação do Estado é determinada pelas diretrizes e fundamentos da Constituição e da legislação infraconstitucional dela decorrente. É evidente que existem interesses próprios da administração, que refletem a vontade de quem está no exercício da competência administrativa. Entretanto, devem estes ‘interesses públicos’ estar submetidos ao interesse público consolidado pelo constituinte e expresso no texto normativo.

(...)

"Inexiste um sentido pronto e acabado para o interesse público. É preciso compreendê-lo como uma resultante de um processo de concretização normativa do texto legal, para que nos limites da situação dada, orientando-se pela utilização coerente, harmônica e lógica dos princípios e regras jurídicas abstratamente previstas no ordenamento jurídico, satisfaça-se uma finalidade pública. É no caso concreto que os pressupostos fáticos e jurídicos previstos no texto normativo ganham vida (se devidamente identificados pelo operador jurídico), permitindo ao administrador concretizar o texto normativo."

Tal princípio, por muito mais amplo, eventualmente teria o condão de atender à maior complexidade do Estado moderno, porém ainda não há uma solução definitiva entre tal princípio doutrinário e jurisprudencial e a norma constitucional vigente, a qual não o prevê de forma expressa; é, no entanto, importante ferramenta a ser utilizada na evolução do Estado moderno, o qual certamente terá que, em futuro próximo – ou, talvez, não tão próximo -, rever alguns de seus paradigmas, sob pena de não ser capaz de solucionar os problemas decorrentes de sua própria evolução, sob pena de ser incapaz de continuar sua evolução e de chegar a um impasse.

Isto fica claro na observação do jurista português Gomes Canotilho (apud MARQUES: 2004, p. 6):

"O princípio da legalidade já não é mais o que era. A lei perdeu prestígio e importância. As razões são várias. Como atrás se salientou, as leis transportaram, por vezes, elas próprias os lenhos da injustiça e do não direito. Noutros casos, as leis enredaram-se na solução de casos concretos, perdendo as dimensões mágicas da generalidade e da abstração. Acresce que,perante as derivas do legalismo estatal, as modernas constituições reivindicam o caráter o seu caráter de lei superior, vinculativo de todos os poderes do Estado, inclusivemente dos poderes que fazem as leis. (...) O Estado de direito é informado e conformado por princípios radicados na consciência jurídica geral e dotados de valor ou bondade intrínsecos. Não basta, para estarmos sob o império do Direito, que o Estado observe as normas que ele ditou e actue através de formas jurídicas legalmente positivadas." (grifos no original)

No entanto, o mesmo doutrinador deixa claro que a lei, se está em crise, ainda é um consectário necessário do Estado de Direito, e que ainda é, em certa medida, correspondente à idéia rousseauniana de ser, se não "a expressão da vontade geral" em seu sentido mais estrito, ao menos uma expressão da vontade comunitária, conforme deixa expressamente consignado (idem, ibidem):

"A lei ocupa ainda um lugar privilegiado na estrutura do Estado de direito porque ela permanece como expressão da vontade comunitária veiculada através de órgãos representativos dotados de legitimação democrática directa. Por outras palavras: a lei emanada dos órgãos da sociedade – parlamentos – converte-se ela própria em esquema político revelador das propostas de conformação jurídico-política aprovadas democraticamente por assembléias representativas democráticas."

Verifica-se, assim, a existência de um impasse, no que diz respeito à lei formal em contraposição ao regulamento: ainda que aquela, em virtude da lentidão e morosidade de sua produção, características estas decorrentes do caráter político e colegiado de sua produção, não seja capaz de atender às necessidades do Poder Executivo, por sua própria natureza mais célere e dinâmico, não há ainda uma solução à vista, à exceção da solução doutrinária e jurisprudencial consistente no princípio da juridicidade, nos termos citados.


6 O DIREITO FUNDAMENTAL À PREVIDÊNCIA SOCIAL

O objetivo fundamental do presente capítulo é apresentar a o direito à Previdência Social como um direito fundamental no atual panorama constitucional brasileiro.

Para tanto, será necessária uma pequena introdução à teoria dos direitos fundamentais, particularmente na visão de GUERRA FILHO, seguida de uma apresentação do recurso cível 90.02.08648-2/RJ, julgado em 19/03/1992 pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região no qual, pela primeira vez, se definiu o direito à previdência social como um direito fundamental.

Sabe-se que, em sociedades periféricas como o Brasil, a notória incapacidade do Estado em concretizar os direitos assegurados pelo ordenamento jurídico, pela inércia do Poder Legislativo e ineficiência do Poder Executivo, desembocou naquilo que Boaventura de Sousa Santos chama de "patologia da representação" (SANTOS, 2005, p. 39-82), que nada mais é que o fato de os cidadãos se considerarem cada vez menos representados por aqueles que elegeram.

É intuitivo que um dos sintomas desta patologia consiste na pletora de violações ao princípio não apenas da legalidade mas, conforme já visto, violações à Justiça propriamente dita, considerado o princípio da juridicidade já analisado anteriormente.

Especificamente, no que diz respeito ao nosso tema, qual seja, o abuso do poder regulamentar em matéria previdenciária, isto tem ocorrido através da edição de leis previdenciárias lacunosas, as quais acabam por deixar margens às interpretações dúbias e, em atendimento majoritariamente, quando não exclusivamente, aos interesses econômico-financeiros do Estado, os quais são usualmente qualificados como "interesse público".

Tais leis lacunosas acabam por dar margem a regulamentos de execução das leis previdenciárias que são por vezes excessivamente restritivos, visto que tendem a limitar, indevidamente, o acesso dos segurados aos benefícios da Previdência Social. Tal é, em última síntese, a conceituação ou a caracterização do abuso do poder regulamentar em matéria previdenciária.

Fazendo isto, tais regulamentos ensejam a violação de diversos princípios, dos quais o de mais alta importância é o chamado principio da dignidade da pessoa humana, visto que violam o direito de acesso a um direito fundamental previsto na Constituição Federal. E, como afirma BANDEIRA DE MELLO (1981: p. 83):

"Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra."

Isto posto, torna-se necessária uma caracterização do tema Estado e sociedade, quadro no qual estarão inseridos os direitos fundamentais. FEITOSA (2008) afirma que:

"Salveti Neto define o Estado como ‘a sociedade política e juridicamente organizada para atender ao bem comum’. A sucinta definição demonstra que a condução dos negócios estatais não se submete, exclusivamente, às regras de cunho jurídico. E isto se explica na própria gênese do Estado, cuja conformação jurídica é relativamente recente. (...). O bem comum, assim, é o fim principal do Estado.

Uma maneira típica de se alcançar o bem comum em uma determinada sociedade é através do estabelecimento de determinados direitos, os quais serão indiscriminadamente conferidos a todos os membros daquela sociedade; tais direitos serão denominados direitos fundamentais. A existência de tais direitos e a garantia de sua fruição pelos membros de tal sociedade são, contemporaneamente, vistos como um dos pilares fundamentais do chamado Estado de Direito.

GUERRA FILHO (2006: p. 101), ao dissertar sobre os princípios constitucionais, afirma que:

"O princípio do Estado Democrático de Direito pode ser entendido como resultado da conjunção de duas exigências básicas, da parte dos integrantes da sociedade brasileira, dirigida aos que atuarem em seu nome na realização de seus interesses, e que podem ser traduzidas no imperativo do respeito à legalidade, devidamente amparada na legitimidade. Já no primeiro artigo da Constituição evidencia-se que daquele princípio se extraem outros, tidos, pelo próprio enunciado do frontispício do título I, como ‘princípios fundamentais’. Dentre estes, porém, seguindo de perto a melhor doutrina constitucional portuguesa, esteada em lições germânicas (J. J. Gomes Canotilho), distinguiremos ‘princípios fundamentais estruturantes’ de ‘princípios fundamentais gerais’, sendo esses colocados em patamar abaixo dos primeiros, havendo ainda, abaixo deles, os ‘princípios constitucionais especiais’, e, em seguida, as normas constitucionais que não são princípios, mas simples ‘regras"

A importância específica de tal excerto para o presente trabalho é a qualificação do princípio da legalidade, a qual está devidamente amparada na legitimidade – amparo este que ressaltamos, também, por sua própria importância específica - como, eventualmente, o princípio fundamental estruturante do Estado Brasileiro de Direito.

ATALIBA (2001: pp. 122-123) também ressalta tal importância, ao afirmar que:

"Se o povo é o titular da res publica e se o governo, como mero administrador, há de realizar a vontade do povo, é preciso que esta seja clara, solene e inequivocamente expressada. Tal é a função da lei: elaborada pelos mandatários do povo, exprime a sua vontade. Quando o povo ou o governo obedecem à lei, estão: o primeiro obedecendo a si mesmo, e o segundo ao primeiro. O governo é servo do povo e exercita sua servidão fielmente ao curvar-se à sua vontade, expressa na lei. O Judiciário, aplicando a lei aos dissídios e controvérsias processualmente deduzidas perante seus órgãos, não faz outra coisa senão dar eficácia à vontade do povo, traduzida na legislação emanada por seus representantes.

O evolver das instituições publicísticas que informam a nossa civilização culmina com a consagração do princípio segundo o qual ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, III), que, em nosso contexto sistemático, aparece como a conjunção do princípio da supremacia da lei e exclusividade da lei como forma inovadora e inaugural (Oswaldo Aranha Bandeira de Mello) da vontade estatal. Daí que só a lei obrigue e nada além da lei o possa fazer. (grifamos)

Discorrendo sobre a absoluta limitação, no que diz respeito ao poder regulamentar, de efetivar restrições aos direitos fundamentais, SABINO (2004) explica, em sentido contrário, que os direitos fundamentais são, em si mesmos, uma restrição, um autêntico limite, ao poder regulamentar, como se vê:

"Garantidos na Constituição os direitos individuais, a sua declaração constitui, por si mesma, um limite oposto de modo absoluto ao poder regulamentar da Administração. Os direitos fundamentais são, pois, limitações ao poder regulamentar. A máxima efetividade que lhes deve ser conferida impõe um modo de proteção. A exigência, em hipóteses restritivas, de leis em conformidade com os postulados normativos aplicativos da proporcionalidade e da razoabilidade constitui uma proteção indissociável da efetividade dos direitos fundamentais."

O outro princípio de fundamental importância, no escopo do presente trabalho, é o chamado princípio da dignidade humana. O supracitado doutrinador GUERRA FILHO, no mesmo trabalho já citado (GUERRA FILHO: p. 101), afirma que:

"Dentre os ‘princípios fundamentais gerais’, enunciados no art. 1º da Constituição de 1988, merece destaque especial aquele que impõe o respeito à dignidade da pessoa humana. O princípio mereceu formulação clássica na ética kantiana, precisamente na máxima que determina aos homens, em suas relações interpessoais, não agirem jamais de molde a que o outro seja tratado como objeto, e não como igualmente um sujeito. Esse princípio demarcaria o que a doutrina alemã, considerando a disposição do art. 19, II, da Constituição de Bonn (1949), denomina de ‘núcleo essencial intangível’ dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais, portanto, estariam consagrados objetivamente em ‘princípios constitucionais especiais’, que seriam a densificação (Canotilho) ou a ‘concretização’ (embora em nível ainda extremamente abstrato) daquele ‘princípio fundamental geral’, de respeito à dignidade humana. Dele, também, se deduziria o já mencionado ‘princípio da proporcionalidade’, até como uma necessidade lógica, além de política, pois se os diversos direitos fundamentais estão, abstratamente, perfeitamente compatibilizados, concretamente se dariam as ‘colisões’ entre eles, quando então, recorrendo a esse princípio, se privilegiaria, circunstancialmente, algum dos direitos fundamentais em conflitos, mas sem com isso chegar a atingir outro dos direitos fundamentais conflitantes em seu conteúdo essencial."

Deste excerto doutrinário é possível extrair algumas conclusões interessantes para o tema central do presente trabalho, o que passamos a fazer. Inicialmente, impende verificar que o autor insere o princípio da dignidade da pessoa humana na classe dos ‘princípios fundamentais gerais’, classe esta que, lembramos, é colocada em patamar abaixo dos chamados ‘princípios fundamentais estruturantes’, classe na qual se inseriu o princípio da legalidade. Tal aparente "rebaixamento" é, a nosso ver, e salvo melhor juízo, apenas aparente, visto que depreende-se do texto que, em um Estado Democrático de Direito – o qual terá, como já dito, entre os seus fundamentos o princípio da legalidade - o princípio da dignidade da pessoa humana será uma decorrência lógica do respeito ao princípio da legalidade.

E nem mesmo poderia ser de outro modo: se a existência do Estado - o qual é erigido sob a condição fundamental de privar o ser humano de um quinhão significativo daquele valor que lhe é um dos mais importantes, qual seja, a liberdade – tem por objetivo fundamental possibilitar a existência do bem comum a ser obtido através da lei, da juridicidade e da segurança jurídica, privar o ser humano do acesso a estes bens é privá-lo daquilo que lhe é mais importante.

O consectário lógico de tal conclusão será que, ocorrida uma lesão ao princípio da legalidade, lesada estará a dignidade humana; e mais forte será a lesão quando ocorrer diretamente a um direito fundamental, aqui exemplificado no direito à Previdência Social, visto que os direitos fundamentais são, conforme expressamente consignado pelo autor supracitado, uma forma de densificação da dignidade da pessoa humana.

Corolário importante, também a título de conclusão extraída do texto supracitado, é que o assim chamado princípio da proporcionalidade deverá ser uma ferramenta de dissolução dos conflitos envolvendo direitos fundamentais, entre os quais se inclui o direito à Previdência Social.

Explicitamente, entenda-se que a execução da lei, que se dará através do denominado regulamento de execução, deverá ser aplicada de modo a avaliar as proporções dos interesses e valores envolvidos, e a não-observância de tal preceito poderá ter como resultado a lesão ao direito fundamental; não é por outro motivo que os excessos regulamentares eventualmente presentes na seara do Direito Previdenciário têm sido entendidas como constituindo um abuso do poder regulamentar.

Observado este panorama geral, analisamos a seguir o leading case no qual, pela primeira vez, através de uma analogia entre o princípio da dignidade da pessoa humana – não citado nominalmente, mas ali presente em sua essência - e a lei de proteção aos animais, definiu-se o direito à previdência social como um direito fundamental.


7 A PREVIDÊNCIA SOCIAL COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL: A APELAÇAO CÍVEL NO PROCESSO 90.02.08648-2/RJ DO TRIBUNAL FEDERAL REGIONAL DA 2ª REGIÃO

Tal julgado se insere no escopo do presente trabalho por ter sido aquele em que, pela primeira vez, conforme já dito, qualificou-se o direito à previdência social como um direito fundamental, no sentido dado aos direitos fundamentais pela atual Carta Constitucional. Em si mesmo, o julgado não tem qualquer menção, ainda que indireta, ao tema do abuso do poder regulamentar, prestando-se a estar aqui presente apenas pelo pioneirismo, bem como pelo contraste que se verifica entre sua fundamentação inteiramente baseada em princípios constitucionais e a fundamentação estritamente positivista, no mau sentido, que se verifica na defesa de regulamentos previdenciários que, em última instância, vêm a se verificar serem infringentes do próprio princípio da legalidade.

A fundamentação da decisão teve como base o chamado caráter humanitário [04] da questão, através de uma interessantíssima comparação entre os direitos humanos e os direitos dos animais, conforme se verá.

Vide a ementa do acórdão:

PREVIDENCIÁRIO - CONCESSÃO DE BENEFÍCIO

I - No caso presente, um ancião, agora com noventa anos, valeu-se de possíveis fraudes para obtenção de aposentadoria. O benefício, no seu valor mínimo, deveria ser concedido, conforme estabelecido no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal, por ter-se tornado ela auto-aplicável, em virtude de, até o momento, não ter sobrevindo a lei referida em tal dispositivo. Ademais, o benefício deveria, também, ser concedido, mediante a simples comprovação de se tratar de um ser humano. Invoca-se, para tanto, assim como o fez o saudoso Jurista Sobral Pinto, o Decreto nº 24.645/34, Lei de Proteção aos Animais, quando, no seu artigo 11, afirma: "todos os animais existentes no País são tutelados do Estado". Já os brasileiros, somente gozarão de tal tutela se conseguirem, embora em idade provecta, doentes e desamparados, comprovar a prestação de serviços durante trinta anos. Pelo artigo 21, parágrafo 31, do mesmo diploma legal: "os animais serão assistidos em Juízo pelo representantes do Ministério Público". Já, o segurado humano destes autos só logrou manifestação contrária à sua causa. O artigo 31, inciso V, da mesma lei considera maus tratos: "abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem como deixar de ministrar-lhe tudo que humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência veterinária". O autor, com quase um século de existência, aguardou em vão, durante anos, a concessão de auxílio doença que, finalmente, não veio.

II - Recurso provido, em parte, para condenar o INSS a pagar ao autor o benefício de um salário mínimo mensal a partir do ajuizamento da ação. Sem honorários nem custas em face da gratuidade e da sucumbência recíproca.

POR UNANIMIDADE, DEU-SE PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO.

Verifica-se que a não-concessão do benefício fundamenta-se basicamente na inexistência de previsão legal para tanto, o que foi devidamente contraposto pelo relator através do entendimento de tratar-se de diploma constitucional auto-aplicável, ou seja, independendo de previsão legal expressa.

A este fundamento, acrescentou-se que, se mesmo os animais são protegidos pelo Estado em sua sobrevivência, seria um contra-senso deixar à míngua da mesma proteção estatal um ser humano, ainda mais em se tratando de um ser humano de idade avançada; tal procedimento consistiria, em última análise, em ter como de maior valor a vida animal que a vida humana.

Em primeira instância judicial, assim como na instância administrativa, o pedido havia sido indeferido, visto que, alegadamente, o segurado era um recorrente fraudador da Previdência Social, sendo inclusive conhecido dos servidores e existindo até mesmo uma Circular emanada da Chefia da Autarquia Previdenciária que "avisava" sobre as suas artimanhas, entre as quais se incluíam a falsificação de registros laborais na Carteira de Trabalho e até mesmo o que denominava como "Contratos Gratuitos", os quais eram forjados de molde a "comprovar" a existência de supostas prestações de serviço, as quais seriam aptas a enquadrar o autor como beneficiário da Previdência Social.

Nada disto, contudo, teria, na visão do Relator, o condão de afastar o caráter humanitário – que atualmente denominaríamos, provavelmente, o caráter de dignidade humana – da concessão do benefício, visto que indispensável, no caso concreto, à sobrevivência do segurado. Ao contrário, a conduta violadora da lei é vista como mero resultado do que entende ser o que denomina "perversidade do sistema previdenciário", perversidade esta que tende, em si mesma, a conduzir ao comportamento fraudador; vide excerto do acórdão:

Perverso o Sistema Previdenciário que leva um ancião, agora com cerca de 90 anos, a valer-se de possíveis fraudes para obtenção de uma mísera aposentadoria.

O benefício, num País civilizado, deveria ser concedido, no seu valor mínimo, mediante a simples comprovação de se tratar de um ser humano.

Invoco em prol de que afirmo, tal como o fez o Saudoso Jurista Sobral Pinto, o Decreto nº 24.645, de 10 de julho de 1934, lei da proteção aos animais.

(...)

Já o Autor, com quase um século de existência, como se verifica nos autos do procedimento administrativo, aguardou em vão, durante vários anos, a concessão de auxílio-doença que finalmente não veio. Durante anos, os funcionários recomendavam "o máximo rigor na apuração da efetiva prestação de serviços."

Já o animal doente, ferido, extenuado ou mutilado não poderia ser abandonado por força de lei, devendo-se-lhe ministrar tudo que humanitariamente se lhe pudesse prover, inclusive assistência veterinária.

Além disso, dispõe o art. 203 da Constituição Federal:

"Art. 203. A Assistência Social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à Seguridade Social e tem por objetivos:

V - a garantia de um salário-mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meio de prover a própria manutenção ou de tê-la provido por sua família, conforme dispuser a lei."

E se a lei até agora não veio, a Constituição se torna auto-aplicável ou, então, é de se conceder mandado de injunção ex officio para seu cumprimento."

Verificado, deste modo, o inafastável caráter de direito fundamental da Previdência Social, fica alcançado o nosso objetivo nesta altura do trabalho, tanto no que diz respeito a uma inaplicabilidade de uma visão positivista/legalista quando da análise de tais direitos, quanto no que diz respeito ao malferimento à dignidade da pessoa humana que tal visão pode vir a provocar.


8 O PODER REGULAMENTAR NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

BOBBIO (1989: p. 24) leciona que os regulamentos são, como as leis, normas gerais e abstratas, mas, à diferença das leis, a sua produção é confiada geralmente ao Poder Executivo por delegação do Poder Legislativo [05], e uma de suas funções é a de integrar leis muito genéricas, que contêm somente diretrizes de princípio e não poderiam ser aplicadas sem que fossem ulteriormente especificadas. É impossível que o Poder Legislativo formule todas as normas necessárias para regular a vida social; limita-se então a formular normas genéricas, as quais contêm somente diretrizes, e confia aos órgãos executivos, que são muito mais numerosos, o encargo de torná-las exequíveis.

CLÈVE (2000: pp. 288-290) cita aquilo que denomina os princípios reitores das relações entre a lei e o regulamento, que lembra serem devidos ao jurista português Gomes Canotilho, e que são:

O primeiro princípio é o da primazia ou preeminência da lei. A lei está, hierarquicamente, acima do regulamento. Este não pode contrariar aquela. O direito brasileiro não tolera regulamentos revocatórios (ab-rogatórios ou derrogatórios) e suspensivos da eficácia de normas legais. Todavia, " (...) a lei frente ao regulamento não tem limites de atuação funcionáveis: pode derrogá-lo ou excluir um regulamento para ordenar qualquer matéria (...); pode derrogá-lo pura e simplesmente ou, pelo contrário, elevá-lo de categoria, convertendo-o em lei e emprestando-lhe com isso sua própria força superior; pode restringir seu âmbito de atuação ou, pelo contrário, ampliá-lo. Não há nenhum âmbito que pertença exclusivamente ao regulamento e em que este possa atuar à margem ou prescindindo (...) da lei.

O segundo princípio é o da precedência da lei. O Estado Democrático de Direito exige não apenas uma vinculação negativa (dever de não conrariar), mas também uma vinculação positiva (dever de apontar o fundamento legal) da Administração à lei. Assim, não é legítima a edição de regulamento sem a prévia existência da lei. O regulamento presta-se para favorecer a aplicação da lei.

O terceiro princípio é o da acessoriedade dos regulamentos. Os regulamentos são acessórios em relação à lei. Não podem tomar o lugar delas. Não podem assumir o papel que a Constituição reservou à lei. São atos normativos sujeitos à lei e dela dependentes. Como ensina Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ‘os seus preceitos constituem regras técnicas de boa execução da lei, para melhor aplicação. Complementar os seus preceitos, neles apoiados, como meros elementos de sua execução, como procedimentos de sua aplicação.’ São ainda acessórios, porque os seus preceitos formam um direito adjetivo e um direito processual do direito substantivo instituído pela lei.

O quarto princípio é o do congelamento da categoria. Dele decorre que disciplinada determinada por meio de lei, apenas por lei ou ato de hierarquia superior poderá sofrer alteração. Da hierarquia normativa, extrai-se a regra segundo a qual um ato normativo só pode ser revogado (derrogado ou ab-rogado), modificado ou substituído, por outro ato normativo de igual ou superior qualidade formal. (...)

O quinto princípio é o da identidade própria do regulamento. Ou seja, ainda que previsto pela lei, as normas regulamentares guardam a hierarquia que lhes é própria, não alcançando, com a simples previsão legal, promoção hierárquica ou deslocamento de regime jurídico (do regulamentar para o específico da lei). Ainda que o Legislativo pretenda que a norma regulamentar integre o diploma legal, isto não pode ocorrer em face da Constituição. Semelhante previsão não passa de cláusula nula e insuscetível de realização.

O sexto princípio é o da autonomia da atribuição regulamentar. Bem por isso, regulamento independe de autorização legislativa, encontrando seu fundamento não na lei, mas na própria norma constitucional. Isto quer significar que (i) com ou sem previsão legal (do regulamento, evidentemente), poderá o Presidente da República regulamentar as leis cuja aplicação desafiem atuação administrativa; (ii) não pode o Legislador proibir a atuação do poder regulamentar do Presidente da República; regra legal desse quilate será nula por inconstitucional; (iii) para a manifestação da ação regulamentar, basta a existência prévia de lei não auto-executável exigente de atuação administrativa.

O sétimo princípio é o da colaboração necessária entre a lei e o regulamento. Em face dele, havendo dispositivos não auto-aplicáveis, então deverá o Presidente da República regulamentá-los, sob pena, inclusive, de praticar crime de responsabilidade (art. 85, VII, da CF).

O oitavo e último princípio, nesta amostragem referido, é o da autonomia da lei. Dele decorre que (i) a vigência da lei não pode ficar condicionada à edição de regulamento; previsão legal neste sentido fere a Constituição, importando delegação vedada de poder; a eficácia (execução) da lei pode ficar condicionada à edição do regulamento, desde que seja fixado prazo para a ação normativa do Executivo (o princípio da divisão dos poderes não admite deixar-se ao inteiro arbítrio do Executivo a suspensão ou adiamento da execução da lei); (iii) não previsto prazo para a edição de regulamento, então a lei ‘será eficaz desde a sua vigência em tudo aquilo que não depender do ato complementar e inicial da execução’; e, finalmente, (iv) definido o prazo da regulamentação e esgotado sem sua edição, ‘a lei será eficaz em tudo o que não depender do regulamento, já que antes de vencida a dilação temporal, era totalmente ineficaz"

Deste longo porém proveitoso excerto doutrinário, fica clara a delimitação do poder regulamentar, o qual deverá ser editado nas lindes da lei, ou seja, em estrita obediência à lei; tal delimitação corresponde àquilo que se denomina de princípio da legalidade, conforme veremos.

No Brasil, em função do chamado princípio da legalidade contido no art. 5º, inc. II da Constituição Federal, segundo o qual somente a lei, no sentido material e no sentido formal, é capaz de obrigar alguém a fazer ou a deixar de fazer algo, ou, em outras palavras, somente a lei é capaz de inovar na ordem jurídica, o princípio da legalidade atua permitindo ao regulamento apenas, de maneira bastante rígida, propiciar a fiel execução das leis, nos estritos termos do art. 84, inc. IV da Carta Constitucional [06].

Ainda assim, há na doutrina entendimentos no sentido de que o regulamento pode completar a lei lacunosa, no que diz respeito, exclusivamente, a possibilitar a sua efetiva aplicabilidade; afinal, a lei vigente não pode ser destituída da eficácia pela falta de regulamento que possibilite a sua execução.

Não é por outro motivo que MORAES (2002) afirma que;

"O exercício do poder regulamentar do Executivo situa-se na principiologia constitucional da Separação de Poderes (CF, arts. 2º; 60, § 4º, III), pois, salvo em situação de relevância e urgência (medidas provisórias), o Presidente da República não pode estabelecer normas gerais criadoras de direitos ou obrigações, por ser função do Poder Legislativo. Assim, o regulamento não poderá alterar disposição legal, e tampouco criar obrigações diversas das previstas em disposição legislativa.

Essa vedação não significa que o regulamento deva reproduzir literalmente o texto da lei, pois seria de flagrante inutilidade. O poder regulamentar somente será exercido quando alguns aspectos da aplicabilidade da lei forem conferidos ao Poder Executivo, que deverá evidenciar e explicitar todas as previsões legais, decidindo a melhor forma de executá-la e, eventualmente, inclusive, suprir suas lacunas de ordem prática ou técnica." (grifamos)

Desta lição do doutrinador, faz-se possível retirar duas importantes pistas acerca dos limites do poder regulamentar, com as quais se poderá caracterizar a exorbitação do mesmo, que são a impossibilidade de criar normas gerais e a possibilidade de suprir lacunas de ordem técnica ou prática, vale dizer: que venham a impossibilitar a aplicação da lei..

Quanto à natureza jurídica dos regulamentos, Duguit, apud RÁO (1999: p. 311), não vê qualquer diferença entre a lei e o regulamento, do ponto de vista puramente material ou, como chama, do ponto de vista interno: "Il reste qu’au point de vue juridique interne le règlement et le loi materialle sont identiques" [07]

Não obstante, o próprio RÁO (idem, ibidem) faz distinção material e formal entre ambos os institutos jurídicos. Do ponto de vista substancial, a distinção é que a lei, dentro do único limite que a Constituição lhe traça, pode escolher livremente a relação de fato que quer disciplinar e pode discipliná-la como melhor se afigurar ao legislador, ao passo que ao regulamento não se permite nem exceder nem restringir o alcance da lei que se regula; em outras palavras, aquela tem o que o autor chama de conteúdo próprio, ao passo que o regulamento possui apenas o conteúdo subordinado à lei e destinado a propiciar a sua fiel execução.

Indispensável citar CANOTILHO, o qual nos dá um importante aviso:

"O regulamento é uma norma emanada pela administração no exercício da função administrativa e, regra geral, com carácter executivo e/ou complementar da lei. É um acto normativo e não um acto administrativo singular; é um acto normativo mas não um acto normativo com valor legislativo." (grifamos). (CANOTILHO, 2002, p. 833)

A lição do jurista português, ao enfatizar a falta de valor legislativo do regulamento, é equivalente ao que o constituinte brasileiro institui em nossa Carta Política, em seu art. 1º, parágrafo único: "Todo o poder emana do povo"; não poderá, assim, aquele que não é representante legítimo da vontade popular fazer aquilo que só à lei formal é permitido, qual seja: criar novos direitos e novas obrigações. Deverá, ao contrário, e conforme já salientado, ater-se a propiciar a fiel execução das leis.

GASPARINI (1995) conceitua o poder regulamentar como sendo a atribuição privativa do chefe do Poder Executivo para, mediante decreto, expedir atos normativos, denominados regulamentos, compatíveis com a lei e visando desenvolvê-la.

De modo muito semelhante, a conceituação constitucional do regulamento consta do art. 84, inc. IV da Carga Magna, conforme se vê:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

(...)

IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;

Fica claro, de acordo com tal diploma constitucional, que tais regulamentos devem ser editados visando a fiel execução da lei, conforme já se viu.

Não poderá deste modo o Poder Executivo, quando no exercício do Poder Regulamentar, ultrapassar os limites do que lhe permitiu a lei: há de estar, necessariamente, a ela jungido.

É nesta mesma direção, ressaltando ainda o valor inferior do regulamento em relação à lei, o magistério de Hely Lopes MEIRELLES (2001: p. 171):

"Como ato administrativo, o decreto está sempre em situação inferior à lei e, por isso mesmo, não a pode contrariar. O decreto geral tem, entretanto, a mesma normatividade da lei, desde que não ultrapasse a alçada regulamentar de que dispõe o Executivo."

Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1997: 143), vai mais fundo no que se entende por decreto, tido como a expressão por excelência do Poder Regulamentar:

"Decretos não são propriamente atos normativos, mas de caráter administrativo, cuja competência exclusiva pertence ao chefe do Executivo, e que tem por finalidade dispor regras sobre situações gerais ou individuais, previstas de forma abstrata, de modo expresso ou implícito, na lei... Como ato administrativo, o decreto está sempre em situação inferior à da lei, e, por isso mesmo, não a pode contrariar."

Da mesma maneira, REALE explica:

"Não são leis os regulamentos ou decretos, porque estes não podem ultrapassar os limites postos pela norma legal que especificam ou a cuja execução se destinam. Tudo o que as normas regulamentares ou executivas estejam em conflito com o disposto ali não tem validade, e é suscetível de impugnação por quem se sinta lesado."

Há que lembrar ainda que não pode o Poder Executivo, a pretexto de "interpretar" a lei, realizar de fato uma ampliação ou uma restrição do alcance da mesma: veja-se o que afirma GASPARINI (1978):

"Outra faceta dos regulamentos subordinados é a de não poder o Executivo, a pretexto de regulamentar uma dada lei, impor a sua interpretação. Essa regulamentação disfarçada da lei iria muito além da atribuição que vimos examinando. A única interpretação aceita pelo sistema é a realizada pelo Judiciário, o único a dizer a palavra final. Nem mesmo a interpretação levada a efeito pelo Poder Legislativo, chamada de autêntica, é aceita, já que é entendida como nova lei, modificadora daquela dita interpretada. Com precisão, ensina Pontes de Miranda que, onde a lei oferece dúvida, não é ao Executivo que toca varrê-la, e enfatiza o ilustre Geraldo Ataliba: ‘ainterpretação da lei, expressa no regulamento, não é vinculada senão para os subordinados hierárquicos do Presidente da República; não é mais autorizada que qualquer outra, doutrinária ou jurisprudencialmente; esta pelo contrário, sempre sobrepuja à primeira." (grifamos) (GASPARINI, 1978, p. 123)

Deste modo, vê-se que não há justificativa viável para a atitude do Poder Executivo no sentido de exacerbar dos limites de sua atribuição regulamentar: tal se dá, eventualmente, por um rigorismo excessivo por parte daquele Poder na aplicação da lei, porém a tendência é que os excessos sejam podados pelo Poder Judiciário.

Estes ditos abusos dão-se dá através do artifício de permitir, aparentemente de modo proposital, a existência de "lacunas" na legislação previdenciária – no caso, especificamente na lei 8.213/99 – e, através da edição de regulamentos excessivamente restritivos, impedir ou ao menos procrastinar o acesso do contribuinte aos benefícios a que teria direito.

Tal assertiva tem sido comprovada pelo grande número de ações que chegam ao Poder Judiciário questionando tais decretos, bem como pelas reiteradas decisões no sentido de que tais regulamentos ultrapassam o poder regulamentar, chegando a serem autênticas "leis de fato", no sentido de que, conforme se verifica, inovam na ordem jurídica, criando obrigações serem cumpridas para o exercício de determinados direitos subjetivos.


9 O CONCEITO DE "FIEL EXECUÇÃO DA LEI"

Para conceituar a idéia de fiel execução da lei, tarefa constitucionalmente reservada aos regulamentos em sua modalidade executiva, impende citar CANOTILHO, o qual lembra o art. 199, alínea "c" da Constituição Portuguesa [08], onde se atribui ao governo competência para, no exercício das funções administrativas, "fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis".

Transportando-se tal conceito para o panorama constitucional nacional, poder-se-á talvez dizer que são sinônimas a definição da tarefa do regulamento executivo português e do nacional: isto porque o regulamento que propiciar a boa execução da lei será certamente fiel a ela; ao inverso, o regulamento que propiciar a fiel execução da lei certamente possibilitará, certamente, a sua boa execução.

Tal conceituação pode ser obtida (vide grifos) na obra de VELLOSO (1994, p. 421), o qual afirma que:

"Os regulamentos, na precisa definição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ‘são regras jurídicas gerais, abstratas, impessoais, em desenvolvimento da lei, referentes à organização e ação do Estado, enquanto Poder Público. Editados pelo Poder Executivo, visam tornar efetivo o cumprimento da lei, propiciando facilidades para que a lei seja fielmente executada. É que as leis devem, segundo a melhor técnica, ser redigidas em termos gerais, não só para abranger a totalidade das relações que nela incidem, senão também para poderem ser aplicadas, com flexibilidade correspondente, às mutações de fato das quais estas mesmas relações resultam. Por isso, as leis não devem descer a detalhes, mas, conforme acima ficou expresso, conter, apenas, regras gerais. Os regulamentos, estes sim, é que serão detalhistas. Bem por isso, leciona Esmein, ‘são eles prescrições práticas que têm por fim preparar a execução das leis, completando-as em seus detalhes, sem lhes alterar, todavia, nem o texto, nem o espírito. (griiamos)

Outro não é o sentido da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o qual determina, sucintamente, que "Decretos existem para assegurar a fiel execução das leis". (STF – ADin 1.435-8/DF – Medida Liminar Min. Francisco Rezek, Diário de Justiça, Seção 1, 6 ago, 99, p. 5). Da concisão da sentença, fica mais claro que nunca que não há objetivo adicional ao decreto, que não seja aquele estritamente descrito no texto constitucional, sem que se lhe permita a ampliação de hipóteses ou interpretação extensiva.

Tudo isto, no entanto, resta excessivamente subjetivo: poder-se-á dizer que o que um consideraria como sendo "fiel execução da lei" será, para outro, não tal fiel assim, em vista de múltiplas possibilidades de interpretação. O que alguém poderia considerar como sendo uma "lacuna" na lei, outro poderá entender que está implícito na lei, podendo ser daí extraído mediante interpretação sistemática. Daí, talvez, a edição de normas regulamentares excessivamente restritivas, no sentido de serem eventualmente vistas como abuso do poder regulamentar.

Assim, uma alternativa possível para a solução do impasse hermenêutico poderia ser a seguinte observação de RIVERO, apud MORAES (2002: P. 95):

"A Administração é uma função essencialmente executiva: encontra na lei o fundamento e o limite para a sua actividade. Isso não exclui, em relação a ela, a faculdade de estabelecer, tal como o legislador, regras gerais, na medida em que tais regras sejam necessárias para precisar as condições de execuções das leis; mas as regras gerais de origem administrativa, ou regulamentos, estão inteiramente submetidos às leis." (grifamos)

Fica claro que tudo aquilo em que a regra não for estritamente necessária à execução da lei, ela não estará submetida à lei; constituir-se-á, deste modo, um abuso do poder regulamentar.

De acordo com a lição do doutrinador, a "função executiva" há de encontrar na lei tanto o fundamento, quanto o limite para sua atividade. E, desta maneira, qualquer diploma regulamentar tendente a dificultar o exercício do direito previsto em lei será contrário ao espírito constitucional do poder regulamentar, visto que não corresponderá à fiel execução da lei.

A respeito da questão do limite ao poder dito discricionário, FIGUEIREDO afirma (2001: pp. 201-203)

"Enfatize-se que, como limite, na dinâmica da discricionariedade, necessariamente, há a proporcionalidade, a boa-fé, a lealdade e a igualdade, que, a tempo e hora, em tópicos próprios foram discutidos.

Quando, por exemplo, a Administração regulamenta lei para sua fiel execução, como o deseja o texto constitucional, possibilita sua aplicação equânime por meio de regulamento, que a todos nivela.

Na verdade, se a lei for aplicada sem o regulamento, que obriga os próprios administrados a se comportarem da mesma maneira, poderia ocorrer que, por meio da interpretação, houvesse aplicações diferentes. Destarte, o decreto regulamentador dentro da moldura da lei, é elemento de imensa valia para o respeito ao princípio da igualdade."

Verifica-se, desta maneira, que o caráter discricionário do poder regulamentar não permite, conforme já mencionado, a eleição de motivações subjetivas, por parte da Administração Pública, na escolha das maneiras de execução da lei; muito ao contrário disto, o regulamento deve ser editado de modo a não permitir a existência de tais elementos subjetivos, privilegiando sempre o atendimento ao princípio da isonomia.


10 OS MEIOS DE ABUSO DO PODER REGULAMENTAR

A respeito do princípio da legalidade, BANDEIRA DE MELLO afirma que:

"No Brasil, o princípio da legalidade, além de assentar-se na própria estrutura do Estado de Direito e, pois, no sistema constitucional como um todo, está radicado especificamente nos arts. 50, II, 37 [caput] e 84, IV, da Constituição Federal. Estes dispositivos atribuem ao princípio em causa uma compostura muito estrita e rigorosa, não deixando válvula para que o Executivo se evada de seus grilhões. É, aliás, o que convém a um país de tão acentuada tradição autocrática, despótica, na qual o Poder Executivo, abertamente ou através de expedientes pueris – cuja pretensa juridicidade não iludiria sequer a um principiante -, viola de modo sistemático direitos e liberdades públicas e tripudia à vontade sobre a repartição de poderes." (2004, p. 73)

Não obstante a tradição de mau uso do poder acusada por Bandeira de Mello, verifica-se que, ao fazer uso de sua prerrogativa de inovar no ordenamento jurídico, o Poder Legislativo nem sempre possibilita que as leis daí emanadas sejam executadas, em vista de ser o conteúdo legal por demais genérico. Por este motivo, realiza uma autêntica delegação para que aquele que será o aplicador da lei para que este providencie os meios de execução, através do chamado poder regulamentar.

Cumpre, assim, à Administração – vale dizer, via de regra, ao Poder Executivo, o qual tem como suas duas funções principais a função administrativa e a função política – editar normas jurídicas que serão regras complementares à lei, sempre sendo exigido que não estas regras não ultrapassem o conteúdo que lhes foi legalmente delegado; caso não obedeça a esta prescrição, estará alterando a lei, ao invés de meramente complementá-la.

Vale questionar, então: em que consiste administrar? MELLO (2003: p. 95) afirma que:

[...] administrar é prover aos interesses públicos, assim caracterizados em lei, fazendo-o na conformidade dos meios e formas nela estabelecidos ou particularizados segundo suas disposições. Segue-se que a atividade administrativa consiste na produção de decisões e comportamentos que, na formação escalonada do Direito, agregam níveis maiores de concreção ao que já contém abstratamente nas leis.

Ressalte-se, ainda, que não poderá o Poder Legislativo, no intento de resolver a questão, simplesmente delegar ao Executivo a atribuição de dispor integralmente acerca da matéria mediante poder regulamentar; nesse sentido, afirma CARVALHO FILHO (2005, p. 44):

"Significa dizer que o poder regulamentar legítimo não pode simular o exercício da função de legislar decorrente da indevida delegação oriunda do Poder Legislativo, delegação essa que seria, na verdade, inaceitável renúncia à função que a Constituição lhe reservou."

Há que acrescentar que verifica-se, no direito administrativo moderno, padecedor de uma crescente complexidade em função da também crescente complexidade da própria sociedade como um todo, uma crescente aceitação, especialmente na França, do fenômeno da delegação de poderes ao Poder Executivo para que este, com seu corpo técnico maior e possivelmente mais qualificado, realize a regulamentação dos direitos e obrigações previstos em lei.

Tal panorama, porém, não se encontra contemplado no ordenamento jurídico nacional; verifica-se que o regulamento deve ser expedido exclusivamente para a fiel execução da lei, conforme afirma o art. 84, inc. IV da Carta Magna, e como é da tradição constitucional brasileira.

Neste sentido, vale citar a obra de Pimenta Bueno, apud CRETELLA (2002: pp. 310-311), o qual analisa exaustivamente os motivos a caracterizar abuso do poder regulamentar:

Do princípio incontestável que o Poder Executivo tem por atribuição executar, e não fazer a lei, nem de maneira alguma alterá-la, segue-se evidentemente que cometeria grave abuso em qualquer das hipóteses seguintes:

1º - Em criar direitos, ou obrigações novas, não estabelecidos pela lei, porquanto seria uma inovação exorbitante de suas atribuições, uma usurpação do poder legislativo, (...)

2º - Em ampliar, restringir ou modificar direitos ou obrigações, porquanto a faculdade lhe foi dada para que fizesse observar fielmente a lei, e não para introduzir mudança ou alteração alguma nela (...)

3º - Em ordenar, ou proibir o que ela não ordena, ou não proíbe, porquanto dar-se-ia abuso igual ou que já notamos no antecedente número primeiro. E demais, o governo não tem autoridade alguma para suprir, por meio regulamentar as lacunas da lei, e mormente do direito privado, pois que estas entidades não são simples detalhes, ou meios de execução. Se a matéria como princípio é objeto de lei, deve ser reservada ao legislador; se não é, então não há lacuna na lei, sim objeto de detalhe de execução.

4º - Em facultar, ou proibir, diversamente do que a lei estabelece, porquanto deixaria esta de ser qual fora decretada, passaria a ser diferente, quando a obrigação do governo é de ser em tudo e por tudo fiel e submisso à lei.

5º - Finalmente, em extinguir ou anular direitos, ou obrigações, pois que um tal ato equivaleria à revogação da lei que os estabelecera ou reconhecera; seria um ato verdadeiramente atentatório.

Se, já ali no início do séc. XX o doutrinador era capaz de reconhecer cabalmente as hipóteses de abuso do poder regulamentar, tal abuso estará ainda melhor caracterizado no panorama constitucional contemporâneo, em função do princípio da legalidade, o qual estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou fazer alguma coisa, senão em virtude de lei, onde deve-se ser em virtude de lei formal, visto que é esta a verdadeira expressão da vontade geral.

É exatamente esta vontade geral que não constitui fonte da qual emana o poder regulamentar; ao contrário, emana este da vontade da administração pública, a qual tende a se contrapor aos interesses de seus administrados, em função dos interesses econômicos envolvidos.

E é exatamente aí que encontra-se a motivação dos conflitos apresentados anteriormente, os quais, ao chegar ao Poder Judiciário, são quase que invariavelmente declarados como ilegais, por manifesto abuso do poder regulamentar, agredindo os direitos fundamentais dos contribuintes, e que tivemos a oportunidade de observar, particularmente, no que tange aos regulamentos emanados em sede da Legislação Previdenciária do Regime Geral da Previdência Social, o qual inclui tanto o Decreto 3.048/1999 quanto outros diplomas normativos.


11 O CONTROLE DO ABUSO DO PODER REGULAMENTAR

Já no ano de 1959, ALMEIDA, já citado, discorria sobre o abuso do poder regulamentar e, caracterizando-o ilícito, apontava a solução que via para resolver o problema posto. A dupla de soluções que oferece o autor para tal hábito ou, como o chama, vezo do Executivo está abaixo descrita:

"Mas, como coibir tal abuso, estancando o vezo do Executivo? Em verdade, dois caminhos ocorrem: um é de difícil trilho, porque seria o de o Poder Legislativo ser mais ativo e presente e não permanecer atrasado em relação aos problemas que lhe incumbe resolver por leis sábias; outro é o de, cada vez que o administrado vir texto normativo em regulamento, oferecer-lhe resistência e enviar a hipótese ao exame do Judiciário." (ALMEIDA, 1959, p. 31)

Nos dias de hoje, conforme já se viu, tal "vezo", como o denominou o autor, continua vigente. Deste modo, necessário possibilitar o controle do abuso do poder regulamentar, existindo previsão expressa no texto constitucional de que tal abuso constituirá crime, conforme se verá. Necessário, ainda, o efetivo controle dos atos do Poder Executivo tanto pelo próprio Poder Executivo quanto pelos outros dois poderes; e, conforme veremos, tal controle é passível de ser realizado, baseado em diplomas constitucionais bastante claros a respeito de tal possibilidade, conforme poderemos ver.

11.1 O CRIME DE RESPONSABILIDADE DECORRENTE DO ABUSO DO PODER REGULAMENTAR

Da leitura do texto constitucional vigente, verifica-se a seguinte previsão:

Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

(...)

VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

ATALIBA, referindo-se ao à Constituição de 1967, que contava com idêntica redação em seu art. 82, inc. VII, deixa claro seu entendimento no sentido de que o abuso do poder regulamentar constitui atentado ao fiel cumprimento das leis, explicando que (ATALIBA: p. 194):

"Se ele é o responsável pelo fiel cumprimento das leis (obviamente, das leis administrativas), e se estas atribuem ônus, direitos, encargos, tarefas e deveres à administração pública e se esta é subordinada ao chefe do Executivo, parece óbvio que este pode ditar critérios e normas sobre a forma de o imenso e gigantesco aparelho (administração pública federal) dar ‘fiel execução à lei.’

Na verdade, uma visão objetiva prontamente revela o equilíbrio harmônico do sistema delineado.

Seria absurdo dar ao órgão tão grande poder, sem sancionar seu não uso ou abuso. Por outro lado, seria ilógico atribuir-lhe responsabilidade tão grave e ampla, sem lhe conceder os instrumentos para bem se desincumbir dela.

Por isso, se lhe dá enormes poderes. Em contrapartida, a Constituição o responsabiliza por qualquer abuso, desvio, mau uso ou não uso de suas competências (art. 82)"

Não obstante seja constitucional e doutrinariamente definido como crime de responsabilidade, o abuso do poder regulamentar não é regularmente tipificado, em lei ordinária, como sendo crime; assim, não sendo tipificado, não atende ao requisito essencial do art. 5º, inc. XXXIX da Carta Magna; não é, deste modo, crime em sentido formal, constituindo ato impunível; em que pese ser, em tese, ato ilícito, não é ilícito penal, até que venha a ser previsto como tal em lei específica.


12 O CONTROLE DO PODER REGULAMENTAR PELO PODER EXECUTIVO

A respeito dos remédios administrativos que possibilitam, pelo próprio Poder Executivo, o controle dos abusos administrativos em sentido lato, TÁCITO (1959, p. 33) lembra ainda existirem três tipos de meios de controle, que são os meios preventivos, os sucessivos e os repressivos.

Entre os preventivos, cita que determinados atos administrativos dependem, para sua validade, de autorização ou aprovação: são atos complexos que se formam mediante várias manifestações de vontade, sem as quais não se tornam completos. A intervenção obrigatória de mais de uma autoridade atende tanto a condições de conveniência quanto às razões de legalidade.

Cita também os meios sucessivos de controle, entre os quais o julgamento da legalidade dos contratos, das aposentadorias e das pensões pelos Tribunais de Contas.

Finalmente, entre os meios repressivos de controle, cita a anulação ex officio ou mediante representação, de atos administrativos, baseados no fato de que não há direitos adquiridos contra a lei [09].

Não parece, porém, que o Poder Executivo, já tendo exorbitado de seu poder, fosse realizar seu controle posteriormente, fosse ex officio ou a pedido, visto que tal implicaria reconhecer o próprio erro, o que parece ser pouco provável, exceção seja feita aos casos extremos.


13 O CONTROLE DO PODER REGULAMENTAR PELO PODER LEGISLATIVO

Tal controle fundamenta-se na disposição emanada do art. 49, inc. V da Carta Política, o qual afirma que:

Art. 52. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

(...)

V – sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa.

Tal competência tem delimitação bastante específica, alcançando, exclusivamente, atos normativos de primeiro grau, vale dizer: abstratos, gerais e impessoais, não se estendendo aos atos concretos, e decorrentes do poder regulamentar de competência do Presidente da República. Nesse sentido, vide excerto retirado de FERRAZ (1995):

"Exatamente porque adstrito aos expressos termos da Constituição, o poder congressual alcança, tão somente, os atos executivos enquanto expressão do poder regulamentar do Chefe do Executivo. Sendo o poder regulamentar inerente ao Presidente (...), não cabe a sustação, pelo Congresso Nacional, de atos executivos secundários, ainda que normativos, tais como portarias e instruções, mesmo que, por via reflexa, estes se revistam de caráter abusivo relativamente à lei. Somente o regulamento aprovado por Decreto Presidencial pode ser objeto dessa excepcional competência. Para os demais atos abusivos permanece o controle jurisprudencial. Por igual, descabe a sustação de decretos presidenciais de conteúdo concreto, atos administrativos de caráter individual, portanto".

Ocorre, porém, que o Congresso Nacional, por razões que não caberia expendir neste trabalho, não tem o costume de aplicar tal prerrogativa que lhe é conferida, ainda que tal comportamento importe em diminuição de seu próprio prestígio. Já se manifestou, a respeito desse poder de controle, o Supremo Tribunal Federal, com os seguintes dizeres:

"Nenhum ato regulamentar pode criar obrigações ou restringir direitos, sob pena de incidir em domínio constitucionalmente reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido formal. O abuso de poder regulamentar, especialmente nos casos em que o Estado atua contra legem ou praeter legem, não só expõe o ato transgressor ao controle jurisdicional, mas viabiliza, até mesmo, tal a gravidade desse comportamento governamental, o exercício, pelo Congresso Nacional, da competência extraordinária que lhe confere o art. 49, inciso V, da Constituição da República e que lhe permite ‘sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar (...)’. Doutrina. Precedentes (RE 318.873-AgR/SC, Rel. Min. Celso de Mello, v.g.).

Deste modo, verifica-se que, não obstante seja considerado comportamento grave, o abuso do poder regulamentar não costuma ser controlado pelo Poder Legislativo, ao menos especificamente em matéria previdenciária; de fato, em pesquisa realizada no ambiente virtual, não logramos encontrar uma única resolução de sustação de decreto em matéria previdenciária baseado no inc. V do art. 49 da Carta Magna.

TÁCITO (1959, p. 39) dá uma opinião que pode eventualmente explicar o porquê de tal comportamento por parte do poder legislativo, ao classificar a sua presença como eminentemente política; apóia tal tese o supracitado ALMEIDA (1959, p. 31), quando afirma que o controle do abuso do poder regulamentar pelo Poder Legislativo é "de difícil trilho, porque seria o de o Poder Legislativo ser mais ativo e presente e não permanecer atrasado em relação aos problemas que lhe cabe resolver por leis sábias".


14 O CONTROLE DO PODER REGULAMENTAR PELO PODER JUDICIÁRIO

Verifica-se, então, a possibilidade de controle do abuso do poder regulamentar pelo Poder Judiciário. Tal possibilidade está prevista, como direito fundamental, no art. 5º, inc. XXXV, o qual prevê a inafastabilidade da análise, pelo Poder Judiciário, de lesão ou ameaça de lesão a direito, conforme se vê:

Art. 5º.

(...)

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Tal controle tradicionalmente ocorre somente sob o âmbito do controle da legalidade do ato, através da análise de lesão ou ameaça de lesão a direito subjetivo. Tratando-se, como é o caso que estudamos, de abuso do poder regulamentar na esfera federal, por ato expedido pelo Presidente da República ou por autoridade a ele subordinada, a competência para análise do caso será da Justiça Federal.

No caso do controle pelo Poder Judiciário do abuso do poder regulamentar, impende lembrar que examina-se somente a legalidade e não o mérito, a conveniência e a oportunidade do ato, observação importante visto que, conforme já se viu, há uma componente de discricionariedade no poder regulamentar, no que diz respeito à maneira de propiciar a fiel execução da lei.

Do mesmo modo, tal abuso de poder não é, tradicionalmente, passível de controle de constitucionalidade abstrato realizado pelo Supremo Tribunal Federal, em vista do entendimento da Corte a respeito da inconstitucionalidade indireta, contido no bojo dos autos da ADI 996-MC:

"Se a interpretação administrativa da lei, que vier a consubstanciar-se em decreto executivo, divergir do sentido e do conteúdo da norma legal que o ato secundário pretendeu regulamentar, quer porque tenha este se projetado ultra legem, quer porque tenha permanecido citra legem, quer, ainda, porque tenha investido contra legem, a questão caracterizará, sempre, típica crise de legalidade, e não de inconstitucionalidade, a inviabilizar, em conseqüência, a utilização do mecanismo processual da fiscalização normativa abstrata. O eventual extravasamento, pelo ato regulamentar, dos limites a que materialmente deve estar adstrito poderá configurar insubordinação executiva aos comandos da lei. Mesmo que, a partir desse vício jurídico, se possa vislumbrar, num desdobramento ulterior, uma potencial violação da Carta Magna, ainda assim estar-se-á em face de uma situação de inconstitucionalidade reflexa ou oblíqua, cuja apreciação não se revela possível em sede jurisdicional concentrada." (ADI 996-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 11-3-04, DJ de 6-5-94).

Em que pese o respeitabilíssimo entendimento do Supremo Tribunal Federal, tal posicionamento não é livre de toda crítica; crítica esta dirigida não ao Tribunal Maior em si mesmo, mas ao sistema judiciário nacional

Isto porque, ainda que indiretamente, fica caracterizada alguma dose daquilo que tem sido denominado como a auto-restrição do Poder Judiciário, no sentido de levar a extremos de rigidez o princípio da separação dos poderes.

Tratando desta auto-restrição, ESTEVES (2007: p. 82) afirma que:

"Além da construção teórico-dogmática de restrição dos direitos fundamentais sociais, a qual os acondiciona ao exercício da liberdade – aliada a concepções que lhes negam aplicabilidade imediata, subjetividade e justiciabilidade – e à dogmática da separação de poderes, pesa, por fim, uma última contraposição que tem nascedouro sob a influência secular de todas as outras e acaba demonstrando o caráter prático da questão: a auto-restrição do Judiciário. No tocante à necessidade de superação do dogma da separação de poderes, a fim de que o Judiciário desempenhe um papel ativo e concretizador dos direitos fundamentais sociais, a auto-restrição é campo em que o problema se apresenta de forma mais contundente e deve ser entendida como tradicional obstáculo à concretização e efetividade dos direitos sociais, pelo qual juízes consideram que a decisão sobre prioridades é dos órgãos políticos do sistema. O comportamento auto-restritivo do Judiciário quando chamado a desempenhar, com o Executivo e o Legislativo, a tarefa de concretizador da Constituição, denuncia a existência de uma concepção jurídico-ideológica que afirma não existir legitimidade democrática do Judiciário que lhe dê incumbência objetiva na efetividade dos direitos fundamentais sociais.

LENZA (2008: p. 161) leciona, a este respeito, alteração que vem ocorrendo na jurisprudência nacional:

"O STF, excepcionalmente, conforme noticia Alexandre de Moraes, ‘tem admitido ação direta de inconstitucionalidade cujo objeto seja decreto, quando este, no todo ou em parte, manifestamente não regulamenta a lei, apresentando-se, assim, como decreto autônomo. Nessa hipótese, haverá possibilidade de análise de compatibilidade diretamente com a Constituição Federal para verificar-se a observância do princípio da reserva legal.

Em interessante precedente, estabelece o STF: ‘Estão sujeitos ao controle de constitucionalidade concentrado os atos normativos, expressões da função normativa, cujas espécies compreendem a função regulamentar (do Executivo), a função regimental (do Judiciário) e a função legislativa (do Legislativo). Os decretos que veiculam ato normativo também devem sujeitar-se ao controle de constitucionalidade exercido pelo Supremo Tribunal Federal. O Poder Legislativo não detém o monopólio da função normativa, mas uma parcela dela, a função legislativa" (ADI 2.950-AgR, Rel. p/ o ac. Min. Eros Grau, j. 06.10.2004, DJ, 09.02.2007).

Confira, ainda: ‘Impugnação de resolução do Poder Executivo estadual. Disciplina do horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais, consumo e assuntos análogos. Ato normativo autônomo. Conteúdo de lei ordinária em sentido material. Admissibilidade do pedido de controle abstrato. Precedentes. Pode ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade, o ato normativo subalterno cujo conteúdo seja de lei ordinária em sentido material e, como tal, goze de autonomia nomológica" (ADI3.731-MC, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 29.08.2007, DJ, 11.10.2007.

Verifica-se, deste modo, uma atenuação daquela supracitada tendência de auto-restrição do Poder Judiciário, no sentido de que, ainda que, do abuso do poder regulamentar, resulte uma inconstitucionalidade indireta, esta inconstitucionalidade poderá ser analisada em sede de ação direta de inconstitucionalidade, tendo o condão de, eventualmente, vir a afastar definitivamente o ato abusivo do cenário normativo.


15 JURISPRUDÊNCIA COLACIONADA: EXEMPLOS DO ABUSO DO PODER REGULAMENTAR NO AMBITO DO DIREITO PREVIDENCIARIO

Neste ponto, incluímos uma série de sentenças e acórdãos relacionados ao abuso do poder regulamentar em sede de direito previdenciário; após cada pronunciamento jurisdicional, faremos breve comentário acerca da decisão e, na sessão seguinte, será feita uma análise do perfil geral dos abusos que se entendeu cometidos.

15.1 SALÁRIO-MATERNIDADE: EXIGÊNCIA DE RELAÇÃO DE EMPREGO, PELO DECRETO 3.048/1999, PARA SUA CONCESSÃO

Iniciamos com o seguinte acórdão relacionado à concessão do salário-maternidade. Tal benefício previdenciário é regido pela Lei 8.213/1991, a qual afirma que:

Art. 71. O salário-maternidade é devido à segurada da Previdência Social, durante 120 (cento e vinte) dias, com início no período entre 28 (vinte e oito) dias antes do parto e a data de ocorrência deste, observadas as situações e condições previstas na legislação no que concerne à proteção à maternidade.

Para regulamentar tal direito, o Governo Federal dispôs, no Decreto 3.048/1999, do seguinte modo, em seu art. 97:

Art. 97. O salário-maternidade da empregada será devido pela previdência social enquanto existir a relação de emprego.

Ora, é fácil verificar que a exigência da relação de emprego para que ocorra o direito ao salário-maternidade não encontra respaldo legal na Lei 8.213/1991; ali se definiu como condição unicamente a data prevista para o parto e a condição de segurada social – sendo esta, explicitamente inserida no citado artigo da lei, uma forma de proteção à maternidade, o que é um comando constitucional, conforme se depreende da simples leitura do art. 6º da Magna Carta, na redação dada pela Emenda Constitucional 26/2000::

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Outro não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, conforme se vê:

"O salário-maternidade foi instituído como objetivo de proteger a maternidade, sendo, inclusive, garantido constitucionalmente como um direito fundamental, nos termos do art. 7º da CF; assim, qualquer norma legal que se destine à implementação desse direito fundamental deve ter em conta o objetivo e a finalidade da norma magna."

Verifica-se ainda, do ponto de vista puramente lógico, ser um contra-senso a restrição do direito ao salário-maternidade exclusivamente à mãe que comprovar relação de emprego, visto que é exatamente a gestante que não tiver como comprovar a relação de emprego a mais necessitada de tal direito previdenciário, sendo possivelmente a sua única forma de subsistência.

Encontra-se ainda a exigência de todo desarrazoada visto que a própria Lei 8.213/1991 estabelece o chamado período de graça, o qual tem o condão de preservar a qualidade de segurado independentemente da existência de contribuições, conforme se vê:

Art. 15. Mantém a qualidade de segurado, independentemente de contribuições:

(...)

II – até 12 (doze) meses após a cessação das contribuições, o segurado que deixar de exercer atividade remunerada abrangida pela Previdência Social ou estiver suspenso ou licenciado sem remuneração.

Deste modo, ao criar – mediante decreto – restrição à fruição do chamado "período de graça", fica claro ter incorrido a norma regulamentar em abuso.

Não é por outro motivo que tal exigência foi vivamente rechaçada pelos tribunais, fundamentando-se a decisão exatamente no citado art. 15 da lei supracitada, conforme se vê:

PREVIDENCIÁRIO. ARTIGO 535 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. OMISSÃO. NÃO OCORRÊNCIA. SALÁRIO-MATERNIDADE. ART. 15 DA LEI Nº 8.213/91. QUALIDADE DE SEGURADA MANTIDA. BENEFÍCIO DEVIDO. 1. Não ocorre omissão quando o Tribunal de origem decide fundamentadamente todas as questões postas ao seu crivo. 2. A legislação previdenciária garante a manutenção da qualidade de segurado, independentemente de contribuições, àquele que deixar de exercer atividade remunerada pelo período mínimo de doze meses. 3. Durante esse período, chamado de graça, o segurado desempregado conserva todos os seus direitos perante a Previdência Social, a teor do art. 15, II, e § 3º, Lei nº 8.213/91. 4. Comprovado nos autos que a segurada, ao requerer o benefício perante a autarquia, mantinha a qualidade de segurada, faz jus ao referido benefício. 5. Recurso especial improvido. (REsp 549.562/RS, Rel. Ministro PAULO GALLOTTI, SEXTA TURMA, julgado em 25.06.2004, DJ 24.10.2005 p. 393) (grifos nossos)

Por este motivo, e através do Decreto 6.122/2007, o Governo Federal alterou a redação do citado art. 97, conforme se vê:

Art. 97. O salário-maternidade da empregada será devido pela previdência social enquanto existir a relação de emprego, observadas as regras quanto ao pagamento desse benefício pela empresa.

Parágrafo único. Durante o período de graça a que se refere o art. 13, a segurada empregada fará jus ao recebimento do salário-maternidade nos casos de demissão antes da gravidez, ou, durante a gestação, nas hipóteses de dispensa por justa causa ou a pedido, situações em que o benefício será pago diretamente pela previdência social.

Verifica-se deste modo, com a inclusão do parágrafo único ao artigo, a correção do abuso do poder regulamentar, submetendo-se agora aos ditames da Lei.

15.2 ORDEM DE SERVIÇO PARA REGULAMENTAR O PARCELAMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS.

Outro exemplo a ser colacionado no presente estudo diz respeito ao abuso de poder regulamentar [10] por ordem de serviço.

Tal instrumento, segundo a definição de DE PLÁCIDO E SILVA, "designa a comunicação endereçada ao subordinado, determinado a realização de tarefa".

O art. 38 da Lei 8.212/1991 previa [11], à época, a possibilidade de parcelamento dos débitos tributários devidos à Previdência Social, nos moldes em que se vê:

Art. 38. As contribuições devidas à seguridade social, incluídas ou não em notificação de débito, poderão, após verificadas e confessadas, ser objeto de acordo para pagamento parcelado em até 60 (sessenta) meses, observado o disposto em regulamento.

§ 1º Não poderão ser objeto de parcelamento as contribuições descontadas dos empregados, inclusive dos domésticos, dos trabalhadores avulsos, as decorrentes da sub-rogação de que trata o inciso IV do art. 30 e as importâncias retidas na forma do art. 31, independentemente do disposto no art. 95.

Neste sentido, a Ordem de Serviço DAF/INSS n.º 100/1993 veio a realizar a seguinte normatização do parcelamento previsto no § 1º do art. 38 da Lei 8.213/1991:

"29. As contribuições dos empregados, descontadas ou não, a partir da competência 07/91, inclusive dos domésticos, dos trabalhadores avulsos e as decorrentes da sub-rogação de que trata o inciso IV do art. 30, além do disposto no art. 95 da mesma lei, não serão objetos de parcelamento". (grifamos)

Entendeu-se que tal extensão, indo das contribuições descontadas, conforme previsto no § 1º do art. 38 da Lei 8.212/1991, para as contribuições descontadas ou não-descontadas constituiu-se em abuso do poder regulamentar. Nas palavras da relatora, citando Wladimir Novaes Martinez:

"O parcelamento deve ser visto como um favor fiscal outorgado pela lei, constituindo-se, após a promulgação da norma, em direito subjetivo do contribuinte, bastando reunir as exigências legais. Nestas condições, não pode ser indeferido."

Deixou ainda consignado, na ementa do acórdão, o entendimento de ter agido em total abuso do poder regulamentar:

TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. PARCELAMENTO. ORDEM DE SERVIÇO. ABUSO DO PODER REGULAMENTAR.

1.A Ordem de Serviço DAF/INSS nº 100/93, sob o pretexto de regulamentar o art. 38 da Lei 8.212/91, acabou por ampliar sua abrangência, estendendo seus efeitos às contribuições não-descontadas dos empregados, em total abuso do poder regulamentar.

2.Recurso especial a que se nega provimento.

(Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial 386.755/RS).

Um dado interessante, não analisado pelo Tribunal Superior, é o caráter de norma interna através da qual se veiculou tal comando normativo. De fato, conforme ficou claro pela definição do dicionarista jurídico, a ordem de serviço, tendo o caráter de norma interna, somente pode atingir ao subordinado da autoridade; não pode, em hipótese alguma, obrigar o contribuinte, não possuindo o caráter de generalidade da norma jurídica emanada do poder regulamentar exercido através, por exemplo, do decreto; não nos aprofundaremos nesta questão visto que, além de não ser este o escopo do presente trabalho, a sua análise demandaria um outro trabalho do mesmo porte.

15.3 REGULAMENTAÇAO DO TETO DO BENEFÍCIO PREVIDENCIARIO DE EX-COMBATENTE

Em outro caso concreto verificado no exame da jurisprudência, verificou-se a regulamentação, pelo Poder Executivo e cm abuso do poder regulamentar verificado pelo Poder Judiciário, do teto de remuneração de ex-combatente, em contrariedade ao previsto pela Emendas Constitucional de número 20, a qual previu a seguinte redação para o art. 248 da Carta Magna:

Art. 248. Os benefícios pagos, a qualquer título, pelo órgão responsável pelo regime geral de previdência social, ainda que à conta do Tesouro Nacional, e os não sujeitos ao limite máximo de valor fixado para os benefícios concedidos por esse regime observarão os limites fixados no art. 37, XI.

Não obstante a clareza da norma constitucional, e através do Decreto 2.172/97, exarou-se norma regulamentar instituindo teto diverso daquele, o que levou à seguinte decisão:

ADMINISTRATIVO - CONSTITUCIONAL - EX-COMBATENTE - BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO CONCEDIDO NA FORMA DA LEI Nº 4.297/63 -LIMITE DE REMUNERAÇÃO DA REDAÇÃO ORIGINÁRIA DO ART. 37, XI. DA CF/88 -REGULAMENTAÇÃO PELO ART. 263, §1º, DO DECRETO Nº 2.172/97 E PORTARIAS DO PODER EXECUTIVO - IMPOSSIBILIDADE - EC/19 E EC/20 -REMUNERAÇÃO DE MINISTRO DO STF COMO TETO DO BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO DE EX-COMBATENTE I- Inadmissível a inovação operada pelo §1º do art. 263 da Decreto nº 2.172/97, haja vista que, tratando-se de norma regulamentadora, não poderia extrapolar os limites da Lei regulamentada, de nº 8.213/91, a qual não remeteu àquele a aplicação do teto constitucional aos benefícios previdenciários dos ex-combatentes. II -Com o advento da Emenda Constitucional nº 20, de 12/12/98, a qual acrescentou o art. 248 às Disposições Constitucionais Gerais, o limite máximo dos benefícios previdenciários dos ex-combatentes passou a ser a remuneração dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, ex vi da redação dada ao art. 37, XI, da CF/88, pela EC/19 de 04/06/98.

16.4 ORDEM DE SERVIÇO QUE PREVÊ PRAZO DE 6 MESES PARA REENQUADRAMENTO DO SEGURADO EM OUTRO NÍVEL DE SALÁRIO-BASE

Do mesmo modo,

TRF4 - APELAÇÃO CIVEL: AC 96974 RS. Relator(a): VICTOR LUIZ DOS SANTOS LAUS. Julgamento: Tue Dec 13 00:00:00 CST 2005. Órgão Julgador: QUINTA TURMA. Publicação: DJ 22/03/2006 PÁGINA: 795.

PREVIDENCIÁRIO. DUPLO GRAU OBRIGATÓRIO. SEGURADO SUJEITOS A RECOLHIMENTOS SEGUNDO O REGIME DA ESCALA DE SÁLÁRIO-BASE (sic) E COMO EMPREGADO. PERDA DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO. § 7º DO ART. 29 DA LEI 8.212/91. DIREITO AO REENQUADRAMENTO. DESNECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DO PRAZO DE SEIS MESES PREVISTO NA OS INSS/DSS Nº 578/97. EXERCÍCIO ILEGAL DO PODER REGULAMENTAR. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.

1. A observância do duplo grau obrigatório de jurisdição, enquanto condição do trânsito em julgado da sentença contra o INSS (autarquia federal), foi incorporada ao art. 475 do CPC, após a Lei 9.469/97.

2. Se o Presidente da República, no exercício do poder regulamentar, não poderia restringir o direito a ser reenquadrado na escala do salário-base, nos termos em que definido pelo § 7º do art. 29 da Lei 8.212/91, não tendo esta Lei nada referido quanto ao prazo para a requerer a revisão do enquadramento na aludida escala, com muito mais força, isso é aplicável aos outros atos gerais emanados de autoridades situadas em patamar inferior ao do Chefe do Poder Executivo, como é o caso da OS INSS/DSS nº 578, emitida pelo Diretor do Seguro Social.

3. Portanto, é de considerar-se ilegal e deve ser declarada a nulidade da OS INSS/DSS nº 578, de 14 de agosto de 1997, na parte em que determinou no Vol I, Parte 1, Cap. III, item 2.3, alínea b, da Consolidação dos Atos Normativos, que o reenquadramento do segurado que contribuiu na escala do salário-base e como empregado, após a perda do vinculo empregatício, nos termos do § 7º do art. 29 da Lei 8.213/91, pode, tão-somente, ser requerido até 6 (seis) meses contados da ruptura do contrato de trabalho.

4. É de explicitar-se que, admitido o direito do segurado de ser reenquadrado e recolher as contribuições no nível 9 (nove) do salário-base, desde outubro de 1996, em lugar do nível 7 (sete), mesmo quando manifestou tal propósito após ultrapassado o prazo de seis meses do término do vínculo empregatício, impõe-se que o INSS revise a RMI da aposentadoria por tempo de serviço, com data de início em 17-6-1998, para que se considere os novos recolhimentos a ser efetuados na classe nove, nas competências de outubro de 1996 a maio de 1998, integrantes do período básico de cálculo - PBC.

5. Correto o novo enquadramento do segurado-autor na classe 9 (nove), em outubro de 1996, porquanto a média aritmética dos seus seis últimos salários-de-contribuição (de abril a setembro de 1996:da atividade de empregador e empregado, atualizados monetariamente pelo mesmo índice aplicável na época ao reajuste dos benefícios, ou seja, o IGP-DI, referente ao período decorrido a partir da competência de cada salário-de-contribuição até a de reenquadramento, perfaz R$ 894,24 (oitocentos e noventa e quatro reais e vinte e quatro centavos), valor que é o mais próximo da classe 9 (nove) da escala do saláriobase, consoante o estatuído no § 7º do art. 29 da Lei 8.212/91.


CONCLUSÃO

Tito Prates da Fonseca, apud CRETELLA JÚNIOR (1968: p. 27) afirma: "O excesso de poder é um dos mais árduos assuntos do direito administrativo."

Não por outro motivo, a conclusão do presente trabalho não pode mais do que chegar, à guisa de conclusão, a resultados genéricos, sem chegar a resultados ou conclusões definitivas.

A primeira destas conclusões é que a teoria da separação ou divisão do poder, como contemporaneamente seria denominada, de modo mais adequado, a teoria da separação dos poderes de Montesquieu, e em que pese sua utilidade ao longo dos séculos, não tem sido instrumento adequado a controlar tais abusos, em face de ter-se modificado grandemente o equilíbrio do poder desde sua formulação até hoje: se, àquela época, o poder predominante era o Poder Legislativo, hoje o protagonismo entre os 3 poderes constituídos se dá pelo Poder Executivo, em face daquilo que já tem sido visto como um agigantamento de suas funções institucionais.

A solução para tal agigantamento possivelmente há de passar por uma revisão daquela teoria, o que já tem sido feito em casos específicos, através de novas atribuições constitucionais ao Poder Executivo, às teorias de deslegalização de determinadas matérias até agora legislativas, à atribuição, por doutrinadores como Paulo Bonavides, ao Poder Legislativo de um papel eminentemente fiscalizador do Executivo, entre outras opções. Conforme leciona CABRAL DE MONCADA, "o princípio da legalidade já não é mais o que era".

Não nos caberia, porém, dado o estreito escopo do presente trabalho, exarar mais que hipóteses a respeito destas teorias. A única conclusão a que ousamos chegar é que existe, de fato, uma crise em curso; e que, no momento, a solução de tal crise se dá, predominantemente, através da solução dos casos concretos que chegam ao Poder Judiciário, e em menor número através da atuação dos Poderes Legislativo e Executivo, através de mecanismos próprios.

O mais que isto, provavelmente decorrerá de um longo caminho a ser percorrido de maneira a permitir que a nova onda da governabilidade, conforme a denomina BARROSO, citado ao longo do texto, possa ser adequadamente surfada por nossos governantes, sem incorrer em abusos, permitindo o adequado funcionamento da máquina administrativa.


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TÁCITO, Caio. Vinculação e Discricionariedade Administrativa. In Revista de Direito Administrativo, n. 242, out/dez. 2005.

TÁCITO, Caio. A Razoabilidade das Leis. In Revista de Direito Administrativo, n. 242, out/dez. 2005.

TÁCITO, Caio. O Princípio da Legalidade: Ponto e Contraponto. In Revista de Direito Administrativo, n. 242, out/dez. 2005.

TÁCITO, Caio. O Desvio de Poder no Controle dos Atos Administrativos, Legislativos e Judiciais. In Revista de Direito Administrativo, n. 242, out/dez. 2005.

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Do Poder Regulamentar. Revista de Direito Público 65, p. 41, 46-48.


Notas

  1. No que nos parece, aqui, um erro terminológico do autor, visto que o decreto, quando dotado dos requisitos de generalidade e abstração, é necessariamente lei material; não é, porém, lei formal – pelo que, provavelmente, o autor queria dizer: "transformados parcialmente em leis formais". Não obstante, optamos pela transcrição pelo seu valor científico e mesmo histórico.
  2. Como, por exemplo, poderia ser o pretexto de defender a autarquia previdenciária de eventuais fraudes através do artifício de inserir, nos regulamentos de concessão dos benefícios, regras que tornem mais difícil ou mesmo impossível a obtenção do benefício previdenciário.
  3. Art. 97. O salário-maternidade da empregada será devido pela previdência social enquanto existir a relação de emprego.
  4. Verifica-se que o Acórdão, ao menos naquela parte disponível no sítio do Tribunal Regional Federal, não se utiliza do termo "dignidade da pessoa humana", o qual, fosse o Acórdão redigido no século XXI, quase que certamente seria recorrente no mesmo.
  5. No Brasil, não se poderia considerar o poder regulamentar como sendo resultado de uma delegação do Poder Legislativo, em vista da origem constitucional deste mesmo poder.
  6. Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
  7. (...)

    IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;

  8. Em tradução livre; "Do ponto de vista jurídico o regulamento e a lei são idênticos".
  9. Art. 199. Compete ao Governo, no exercício das funções administrativas:
  10. (...)

    c) Fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis.

  11. Escrevesse hoje, e certamente o autor citaria a Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal, a qual afirma que: "A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitando os direitos adquiridos, e ressalvada,em todos os casos, a apreciação judicial."
  12. Em que pese, conforme o art. 84, inc. IV, a expressão "poder regulamentar" ser privativa dos atos emandados da autoridade do Presidente da República, utilizamos aqui a expressão em seu sentido lato à vista de possível alteração do escopo do presente trabalho, podendo ser excluído até a sua conclusão, e mesmo em face da utilização, pelo acórdão a seguir citado, da expressão "poder regulamentar" para qualificar a precitada Instrução Normativa.
  13. Verbo "prever" no pretérito em função da revogação do diploma legal pela Lei 11.941/2009.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEFRIN, Fábio Roberto. Abuso do poder regulamentar no Direito Previdenciário. Doutrina e jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2743, 4 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18194. Acesso em: 24 abr. 2024.