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Considerações sobre a ingerência interestatal no cenário jurídico internacional

Considerações sobre a ingerência interestatal no cenário jurídico internacional

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RESUMO: O presente trabalho tem por escopo realizar uma análise acerca das mudanças ocorridas no cenário jurídico internacional, no que tange especificamente aos conceitos de Soberania e Ingerência Humanitária. Para tanto, utilizará como aporte central de seus estudos o atual debate instaurado sobre a (in)compatibilidade entre a noção clássica de Soberania, sob a perspectiva de respeitados autores, e o novel elemento da Ingerência em assuntos internos de outras Nações, diante da globalização e das transformações orquestradas a partir da difusão deste elemento no mundo contemporâneo. O estudo objetivará atentar para a necessidade de os Estados se adaptarem a um novo quadro, caracterizado pela limitação de suas Soberanias, destacando o importante papel das Organizações Internacionais que precisam atuar na regulamentação de ações de ingerência pautadas no bom senso e em normas preestabelecidas pela sociedade internacional, evitando, deste modo, arbitrariedades que maculem o processo de lapidação de um novo paradigma que já se estabelece no cenário jurídico global, impedindo ainda, assim, práticas avessas à defesa e à implementação dos direitos humanos dos nacionais em situação de ingerência. Ao seu término, a pesquisa pretende destacar a intensificação do exercício paulatino de uma política supranacional de direitos humanos, limitadora de posturas absolutistas, típicas dos Estados Soberanos de outrora, legitimando, desta feita, o uso cada vez mais significativo de um "Direito de Ingerência" pautado em diretrizes humanitárias e devidamente ratificado pelos entes da comunidade global.

PALAVRAS-CHAVE: Soberania; Estados; Direito de Ingerência; Direitos Humanos.


INTRODUÇÃO

A percepção contemporânea do direito enseja a análise, pelos juristas, de institutos tradicionais, correlacionando-os com os mais recentes conceitos jurídicos. Os significados, valores e percepções sociais desvendam-se mutáveis, o que eleva a importância da função do estudioso do direito, especificamente no que concerne ao gratificante trabalho de decifrar as novas realidades que se encontram inseridas nos mais diversos ordenamentos jurídicos.

No campo do Direito Internacional essa realidade também se faz presente, e, abre-se, assim, o debate hodierno que abrange, de um lado, a Soberania, de cunho clássico, valor elevado a princípio norteador, e, de outro, a Ingerência, novato elemento que merece cada vez maior destaque nesta fileira de estudos.

Este trabalho tem o condão de mostrar as dificuldades que o conceito originário de Soberania, inicialmente sistematizado por Jean Bodin, no século XVI, reafirmado pelo Tratado de Westfália, e repensado na atualidade por diversos juristas, encontra para ser hodiernamente levado a termo, notadamente quando se observa o desenvolvimento em outra via do novel instituto denominado Direito de Ingerência.

Na busca de oferecer subsídios teóricos que auxiliem a resolver esse dilema e sem a pretensão de esgotar o assunto, este trabalho procura escolher alguns dos seus aspectos mais importantes a fim de balizar o debate e marcar o início de um estudo mais aprofundado sobre elemento tão apaixonante.


1 SOBERANIA

1.1 GENERALIDADES

A notícia mais antiga que se tem do surgimento da Soberania em seu sentido próprio remonta da assinatura do Tratado de Westfália, em 1648. Antes disso não havia instrumentos capazes de ameaçar a excelência do poder estatal.

Inicialmente concebida como um ente derivado do poder absoluto, a qual fora o foco dos estudos de Hobbes, a Soberania recebeu novos contornos a partir do século XVIII; em conjunto com os ideais da Revolução Francesa ela foi reformulada, atingindo o status de Soberania popular, logo em sendo redirecionada para a questão nacional. Com o século XIX, com a evidente intenção de garantia do ideal expansionista das grandes potências da Europa, decide o fator que impede a ausência de limitações jurídicas externas. E, no século XX, a Soberania é transformada num símbolo no qual o seu único titular é o Estado, constituindo, deste modo, um atributo estatal hábil a afiançar que, em termos internacionais, não há poder capaz de submeter o Estado, e, nem em interferir em suas matérias internas. A acepção, mesmo que dotada de um significado único, possui aparências claramente diferenciadas dependendo do nível em que for tomada.

Sob o aspecto jurídico, a partir do que prescreve a obra de Pedro Dallari, a Soberania pode ser compreendida, para alguns autores, como um poder, qualidade ou elemento constitutivo do Estado. Para Dallari (1998), ela é uma concepção de poder estatal incontestável. O objeto e o significado da Soberania, segundo o autor, é verificado sobre o poder que exerce sobre os indivíduos e sobre todo o limite territorial do Estado. "E com relação aos demais Estados a afirmação de soberania tem a significação de independência, admitindo que haja outros poderes iguais, nenhum, porém, que lhe seja superior".

No âmbito das relações internacionais, conforme explicam Williams Gonçalves e Guilherme Silva, a Soberania é um dos pilares do jogo de interesses entre as nações, cuja construção pode ser remetida à Paz de Westfália, em 1648. Para eles, "no que diz respeito às relações entre os Estados, é imposta a norma absoluta de não-intervenção em assuntos internos, não apenas os de ordem política e legal, mas também os de ordem religiosa" (2005, p.228). Segundo os estudiosos das relações internacionais, a Soberania, bem como os conceitos essenciais de Estado e Território, não são estáticos, sofrendo influência direta dos contextos sócio-históricos em que são analisados.

1.2 A Nova Ordem Internacional

O exercício de conceituação de Soberania, partindo dos ensinamentos trazidos até agora neste trabalho deságua em uma percepção evidente, qual seja o entendimento de que, grosso modo, há enorme divergência em se chegar a um conceito unânime que abarque em sua completude o que seja Soberania no mundo contemporâneo.

Nesta nuvem de idéias, resta a filiação ao ideário já preconizado por muitos autores da atualidade; é preciso reformular ou reinterpretar o conceito de Soberania como forma de adaptá-lo à realidade hodierna, que em uma velocidade sem precedentes divulga informações e contextualiza situações outrora particulares, a um número sempre crescente de expectadores. Assim, partindo da imperiosa necessidade de adaptar a Soberania ao mundo contemporâneo, é que novos estudos são realizados no intuito de aproximar os clássicos paradigmas da nova ordem mundial.

1.2.1 Globalização e Democratização da Informação

O neófito quadro parece muito apropriado para a questão da determinação do conceito de Soberania no momento atual. A figura da globalização, conceituada brilhantemente pelo sociólogo espanhol Manuel Castells (1999, p. 149) como

"um processo, segundo o qual as atividades decisivas num âmbito de ação determinado - a economia, os meios de comunicação, a tecnologia, a gestão do ambiente e o crime organizado - funcionam como unidade em tempo real no conjunto do planeta. Trata-se de um processo historicamente novo (distinto da internacionalização e da existência de uma economia mundial) porque somente na última década se constituiu um sistema tecnológico (telecomunicações, sistemas de informação interativos e transporte de alta velocidade em um âmbito mundial, para pessoas e mercadorias) que torna possível essa globalização"

A globalização tem um só plano, qual seja, conectar o mundo, eliminando barreiras interestatais, acabando por provocar a difusão instantânea de todo e qualquer tipo de informação.

Nessa nova realidade, a revolução da informação torna o controle dos territórios mais trabalhoso sob certos aspectos, a natureza e a importância da Soberania parecem já estar num caminho eivado de alterações substanciais e o controle das fronteiras geográficas hoje não parece mais bastar para se falar em exercício do poder soberano.

A democratização da informação tem, ainda, o condão de fortalecer ou enfraquecer governos. Os processos de globalização e de "democratização da informação" geram para os governos o dilema a seguir: caso o governo mantenha o monopólio da informação, está mantendo da mesma forma o controle sobre a sua população, mas ficará à margem do cenário internacional globalizado; sob outra via, caso libere o acesso à informação, não possuirá mais um de seus mais importantes instrumentos de domínio. A partir desse processo gradativo de alterações globais, as populações dos mais diversos Estados passam com maior frequência a dizer para os seus governos o que esperam que estes façam por elas; um quadro inimaginável se remetido a um passado no qual somente uma pequena elite usufruía a acessibilidade a todas as informações.

Ocorre que, mesmo com a preocupação esposada nas linhas anteriores, caso os governos queiram lograr êxito em suas práticas econômicas no mundo contemporâneo, precisam abrir seus mercados, e, com isso suas novas fronteiras, as de informação, para que possam ocupar um espaço no cenário global. Assim, a prosperidade de um Estado hoje, passa indubitavelmente pela cessão do controle sobre o fluxo de informações.

A abertura a que se alude acima gera, por conseguinte, um efeito conexo e imediato, qual seja, a dificuldade de no mundo globalizado sobrepor a Soberania à informação, e, nesta esteira de entendimento a tendência atual se configura no sentido de que o Estado não pode tomar qualquer decisão que lhe aprouver, unicamente levando em consideração os benefícios que este ato lhe trará; hoje em dia, ao contrário, o Estado soberano tende a dever cada vez mais satisfações em relação às suas decisões, explicações estas que são dirigidas não só aos seus nacionais, como também a outros Estados soberanos e, ainda, a órgãos internacionais com poder de regulação. O poder de julgar sem ser julgado e a incontestabilidade de outros tempos, que integram o poder soberano, vem perdendo sua força de modo considerável.

Nos dizeres de José Eduardo Faria, o fenômeno da globalização, agindo nos moldes elucidados acima, provocou "a desconcentração, a descentralização e a fragmentação do poder", projetando, conforme o já exposto, a alteração do conceito de Soberania. O autor não diz que o princípio da Soberania e o Estado-nação são exterminados, mas revela um abalo radical em suas prerrogativas, com a mudança de suas figuras perante as transformações decorrentes da "sociedade global". No mesmo sentido é a posição de Celso Ribeiro Bastos, preconizando que:

O princípio da soberania é fortemente corroído pelo avanço da ordem jurídica internacional. A todo instante reproduzem-se tratados, conferências, convenções, que procuram traçar as diretrizes para uma convivência pacífica e para uma colaboração permanente entre os Estados. Os múltiplos problemas do mundo moderno, alimentação, energia, poluição, guerra nuclear, repressão ao crime organizado, ultrapassam as barreiras do Estado, impondo-lhe, desde logo, uma interdependência de fato. À pergunta de que se o termo soberania ainda é útil para qualificar o poder ilimitado do Estado, deve ser dada uma resposta condicionada. Estará caduco o conceito se por ele entendermos uma quantidade certa de poder que não possa sofrer contraste ou restrição. Será termo atual se com ele estivermos significando uma qualidade ou atributo da ordem jurídica estatal. Nesta sentido, ela – a ordem interna – ainda é soberana, porque, embora exercida com limitações, não foi igualdade por nenhuma ordem de direito interna, nem superada por nenhuma outra externa. (BASTOS, apud, MARTINS, p. 165, 1998).

Do exposto pode-se inferir que a sociedade global, resultante de uma maior integração estatal, seja pelo convívio em organizações internacionais, seja pela majoração das atividades de celebração de tratados ou ainda pela intensificação de relações comerciais, impõe aos Estados uma atenuação da noção de Soberania, determinando inclusive a submissão às normas internacionais.

1.2.2 Soberania Limitada

Ao contrário do que pensou Jean Bodin, a Soberania encontra limitações não apenas no que o autor nomeava como poder divino ou natural, mas, também pela evolução do direito hodierno, há obstáculos ao seu uso irrestrito quando anseios de ordem interestatal são violados.

A abordagem de Luigi Ferrajoli sobre o tema em A soberania no mundo moderno é elucidadora, uma vez que o autor traz as idéias, ainda atuais, do jurista espanhol Francisco de Vitoria (1485-1546). A contribuição de Vitoria estaria em suas formulações, primeiro, acerca da existência de Estados soberanos independentes que se relacionariam numa "sociedade internacional"; segundo, sobre a existência de um direito natural das gentes e dos povos; e, terceiro, sobre a questão de cada Estado estar apto, em determinadas circunstâncias, a empreender "guerras justas".

Após períodos de instabilidades e mudanças, o Estado torna-se um ente autônomo no cenário jurídico e político internacional.

Tal modelo, ainda segundo Ferrajoli, atinge seu auge e seu declínio na primeira metade do séc. XX, no período das duas guerras mundiais (1914-1945). Seu término é dado pela criação da ONU (Organização das Nações Unidas) em 1945 e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948. Os dois fatos considerados chaves para tirar o mundo, ao menos no plano normativo, do Estado de natureza o levando para um Estado civil. A soberania deixa de ser livre e se subordina a duas normas fundamentais: 1. O imperativo da paz; 2. A tutela dos direitos humanos. Neste sentido, o autor preconiza que a carta da ONU equivale a um contrato social internacional, limitando o poder Soberano.

A crise percebida por Ferrajoli e por outros pensadores do direito contemporâneo pode ser tomada como uma crise atinente à limitação da Soberania face às transformações e exigências do mundo hodierno, dentre as quais, este trabalho grifa o respeito e a promoção dos direitos humanos.


2 INGERÊNCIA

2.1 Esboço Histórico

O crescimento dos conflitos internacionais seja de ordem étnica, nacionalista, religiosa ou por autodeterminação no período posterior à Guerra Fria, constituindo evidentes ofensas aos direitos humanos em diversos Estados Soberanos, gerou um panorama de grande instabilidade no cenário das relações interestatais, acarretando um processo de defesa dos direitos humanos como fator de segurança global. A partir disto, concebeu-se a prática de intervenções humanitárias sob a tutela da Organização das Nações Unidas, mediante a expressa autorização do seu Conselho de Segurança, o que conferia, ab initio, legitimidade a esse procedimento. Tais intervenções significavam um comportamento admissível na política internacional, que se origina da pretensão de cada Estado para agir em caso de violações humanitárias. Seu objetivo precípuo seria prover dignidade à população que estivesse em crise, para que esta, novamente fortalecida, possa reaver a sua liberdade de autodeterminação. Este instituto, ainda que bastante utilizado não possui um respaldo jurídico, via de uma definição nesta seara, que o delimite. Para alguns estudiosos, entretanto, aceitá-lo denotaria invalidar princípios relevantes ao salutar andamento das relações internacionais: a Soberaniae a Não-Intervenção em assuntos internos.

A "intervenção de humanidade" teria sido aquela realizada com a finalidade da defesa dos direitos do homem. A sua validade foi admitida por diversos "clássicos" do Direito Internacional, como Francisco de Vitoria e Hugo Grócio. Outros internacionalistas a criticaram, como Antoine Rougier, que considerava os interesses de cunho político como formadores desta espécie interventiva.

O uso dos termos ingerência e intervenção como sinônimos é corriqueiro. E, a moderna doutrina internacionalista compreende que a ingerência de um Estado nos assuntos de outro Estado é um dos elementos que constituem a intervenção.

Segundo Bettati, a elaboração do direito internacional humanitário foi profundamente marcada pelo problema crucial da Soberania dos Estados. Desde tempos imemoriáveis que é o principal entrave com que se deparam a elaboração e a aplicação do direito internacional.

Por esta esteira de pensamento, pode-se prenunciar um dilema que por um lado traz o respeito à Soberania como corolário do direito internacional, juntamente com o princípio da não-ingerência nos assuntos internos dos Estados, e por outro, a imperiosa necessidade de desenvolvimento de um direito humanitário, com traços decisivos de ingerência, sem que isto venha a afrontar a Soberania estatal.

2.2 Recepção Jurídica

Em linhas anteriores afirmou-se que a figura do Direito de Ingerência não recebeu ainda das fileiras jurídicas uma conceituação capaz de delimitá-lo e inseri-lo oficialmente no rol de atos jurídicos aceitos ou praticados sem quaisquer restrições pelos sujeitos da comunidade internacional. Os Estados, ante ao inevitável, reconhecem a sua presença, porém ainda não o disponibilizam com a tranquilidade inerente a outros recursos colocados à disposição de suas "mãos" no cenário político global.

O Direito Internacional apresenta-se, conforme leciona MELLO (2002, p. 71) como "um conjunto de normas que regulam as relações externas dos atores que compõem a sociedade internacional visando estabelecer a paz, justiça e promover o desenvolvimento". E, mesmo considerando que os Estados sejam soberanos, determinando, portanto, as regras desse direito, as máximas da solidariedade e do consenso fazem-se presentes para a cominação das regras que dirigem a sociedade internacional, eliminando o individualismo estatal e priorizando a interdependência entre os entes Soberanos.

Acostando o entendimento deste trabalho na obra de Hans Kelsen, é possível afirmar que desde a Segunda Guerra Mundial, com o surgimento da ONU e diversas outras organizações internacionais, a primazia do direito internacional não compromete a estrutura da sociedade global, nem implica no final do Estado, demandando, conforme o já dito em linhas pretéritas, uma relativização do conceito de Soberania. Insistir na sustentação da Soberania absoluta do Estado significa, pois, contrariar os postulados da ordem internacional contemporânea.

A previsão legal dos novos direitos de segunda, terceira e até a probabilidade de direitos de quarta geração, estendeu o domínio do conceito de legítima defesa, ofertando um campo mais vasto para que a comunidade conjeturasse a possibilidade de invocação do chamado Direito de Ingerência, quando ocorrer a hipótese da necessidade de garantia do exercício dos direitos humanos. Inovação que anos atrás seria uma aberração no plano internacional.

Para o entendimento da recepção do Direito de Ingerência pela ordem jurídica internacional, é de suma importância trazer o que reza a Carta das Nações Unidas, de 1945, que em seu artigo 2º, alínea 7, dispõe de forma clara:

"Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capitulo VII."

A não-ingerência, preconizada acima é um corolário dos direitos fundamentais dos Estados, especialmente do direito à Soberania e do direito à igualdade jurídica. Desta feita, tal princípio foi não apenas devidamente consagrado na Carta da ONU, mas também encontra respaldo ao se afirmar a igualdade jurídica dos Estados no artigo 2º, alínea 1, do mesmo diploma, in verbis: "A Organização é baseada no princípio da igualdade de todos os seus Membros."

E, diante do exposto, como falar acerca da aplicação do Direito de Ingerência se há um mandamento proibitivo de seu emprego no texto das Nações Unidas?

A resposta à indagação acima só poderá ser oferecida de forma satisfatória caso se proceda a uma análise pormenorizada do termo "intervenção" estampado no corpo do dispositivo da Carta de São Francisco que foi aqui publicado.

Introduzindo tal exame, Bettati (1996, p. 39) expõe, que:

"Para uns a palavra intervenção deve ser entendida no sentido geral, que significa toda a veleidade de intrometer nos assuntos internos, de deliberar, de emitir uma advertência, uma resolução, de determinar um procedimento, em suma, de discutir a situação interna de um Estado do prisma dos direitos do homem [...]. A ONU e os seus Estados membros arrogaram-se progressivamente o direito de discutir sobre a forma como os indivíduos eram tratados pelo seu governo, o direito de emitir advertências, de expressar a sua indignação e de exercer pressões políticas, econômicas ou diplomáticas sobre os Estados, de apelas para a opinião pública."

E continua o autor lecionando que, para outros, "não é necessário arrogarem-se um tal direito, uma vez que apenas as intervenções materiais, físicas, constrangedoras, entram na categoria das ingerências ilícitas."

Ante ao trazido por Bettati, é imperioso reconhecer ainda, que em nome da universalidade dos direitos do homem, a Soberania é posta em uma posição secundária, cabendo aos Estados suportarem a postura ingerente de Organizações Internacionais ou de outros Estados subordinada ao crivo das Nações Unidas. Isto se faz evidente pelo reconhecimento de um direito internacional dos direitos humanos justificado pelas preocupações pacíficas mais legítimas, notadamente aquelas esculpidas na Carta da ONU de 1945. Neste sentido também são os ensinamentos de René Cassin, conforme aponta a obra de Bettati, justificando a utilização do "Direito de Ingerência" quando amparado por preceitos éticos que universalizariam, ab initio, os direitos humanos, obrigando sua defesa além das fronteiras.


3 SOBERANIA E INGERÊNCIA: coexistência NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

Pelo exposto até aqui, é inegável a percepção de que o conceito clássico de Soberania não recebe mais no cenário internacional o mesmo tratamento de outros tempos. Igualmente, é fato que o aparecimento de situações que demandam o uso de um Direito de Ingerência já não se furtam aos olhos dos Estados e Organizações Internacionais.

Destarte, realizando a aproximação necessária entre os dois conceitos cernes deste estudo, a lição de J.J. Gomes Canotilho parece ser de relevância ímpar para que se possa tecer argumentos no sentido de acautelar as conclusões acerca da prevalência de um Direito de Ingerência em detrimento da Soberania estatal. Nesta linha de raciocínio ensina o mestre de Coimbra que:

"A relativização do princípio da soberania interna pela ampliação do conteúdo do conceito de ameaça à paz poderá ser uma das exigências de uma "nova ordem internacional", mas não é certo que através de uma transposição de planos – intervenções militares por ameaça à paz em vez de intervenções humanitárias – se dêem os passos decisivos a favor do "direito de urgência humanitária." (CANOTILHO, apud PESTANA, 2004, p.14)

E, demonstrando sua grande preocupação com o desenvolvimento do tema, o autor ainda aduz que a "nova ordem mundial através de intervenções" tem de estruturar-se como "Estado de direito" ou como "comunidade" que observa o the rule of the law. (CANOTILHO, apud PESTANA, 2004, p.14).

Pode-se perceber que Canotilho preconiza a necessidade de um Direito de Ingerência reconhecido oficialmente pela sociedade internacional, que seja o guardião das normas regulamentadoras dos atos de ingerência. Isto se revela no trecho abaixo, onde o autor afirma que:

"A dimensão puramente formal da autorização para a ingerência – humanitária ou militar – não é fundamento suficiente para assegurar a legitimidade da mesma. Ainda que não haja um "último guardião" para assegurar a legalidade das deliberações do Conselho de Segurança, existe pelo menos a "racionalidade material" que a comunidade internacional exige às ações dos seus órgãos. Uma "crise humanitária" não se inventa, é necessário existirem situações existenciais coletivas quando não seja possível manter o padrão mínimo humanitário." (CANOTILHO, apud PESTANA, 2004, p.14).

Feitas tais considerações, o cenário de mudanças que se impõe resta ancorado nas transformações que a comunidade internacional vivenciou a partir do início do século XX e que ainda nos dias atuais se fazem presentes, e, em constante mutação, corroborando o pensamento de Norberto Bobbio de que os direitos não nascem todos de uma vez, mas quando devem ou podem nascer.

E, nesta torre de idéias, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem contribuiu de forma decisiva para a configuração desta ordem diferenciada, a partir do esforço de mobilizar a comunidade das nações em torno de um conjunto de direitos e liberdades que, a serem respeitados, evitariam o regresso ao poder dos regimes fascistas e a repetição das atrocidades que acarretaram a morte de quase sessenta milhões de pessoas.

O quadro desenrolado leva a comunidade internacional a se adaptar a uma nova realidade, onde os Estados gradativamente adotam uma orientação balizada pelos conceitos de interdependência e solidariedade.

A consequência natural de todo o processo de incremento das relações internacionais, apresentado até agora é a gradual limitação do poder soberano dos Estados, que, por todo o já exposto, não podem abrir mão da atuação em conjunto com seus pares.

Diante de um quadro aparentemente irrevogável, onde a garantia dos direitos humanos é reconhecida como premissa máxima a ser buscada pelas nações é crescente a preocupação acerca do modo como esta tarefa alcança êxito. Assim, surgem entre os internacionalistas correntes que se posicionam em lados opostos no que concerne à celeuma da (i)licitude de um instituto que ratifique a ingerência, via da intervenção, em situações de proteção e promoção dos direitos humanos, sobrepondo-se à Soberania estatal.

Celso D. Albuquerque Mello argumenta que, muito embora a sociedade internacional demande a proteção desses direitos, não há licitude nas intervenções humanitárias, aduzindo que:

"Nenhuma organização internacional, seja ela qual for, poderá intervir para a defesa dos direitos do homem. Tais direitos são encarados como tendo a sua aplicação e fiscalização fazendo parte da jurisdição doméstica dos Estados. A própria ONU só poderia intervir se a sua violação acarretasse uma ameaça à paz e à segurança internacionais. O fundamento de uma ação desta natureza seria não propriamente a violação dos direitos do homem, mas da própria paz e segurança internacionais [...]. Esta atitude pode servir de pretexto para a prática de abusos. Acresce ainda que direitos do homem, além de ser uma noção jurídica, também é uma noção eminentemente política. Por outro lado, quem defende este tipo de intervenção são uns poucos Estados ocidentais que sempre tiveram a oposição dos antigos países socialistas e do terceiro mundo". (MELLO apud DELGADO 2005, p. 66)

E, em sua análise, Mello ainda leciona que:

"nesta matéria parece-nos que uma nova visão deve ser exposta. É que os direitos do homem estão se internacionalizando. É suficiente lembrar que os Pactos da ONU já entraram em vigor. É óbvio que o ideal é que qualquer ação para defesa dos direitos do homem partisse de organizações internacionais, especialmente da ONU, mas ainda não chegamos a esta era, apesar de reconhecermos que tal matéria não pode mais pertencer à jurisdição doméstica dos Estados. Podemos considerar os direitos do homem como sendo matéria costumeira e, portanto tendo ocorrido a internacionalização, mas cabe ao Estado que se considera vítima agir pela proteção diplomática, através de organizações internacionais ou, ainda, se for possível, nos tribunais internacionais, mas nunca se admitir a intervenção, ato ilícito, por um Estado". (MELLO apud DELGADO 2005, p. 66)

A exposição de Celso de Mello exprime em suas lições a percepção de parte de doutrina que entende não ser possível a aplicação de um "Direito de Ingerência". Em outra via, porém, encontra-se enraizado o entendimento de que existe uma orientação legitimadora da "ingerência humanitária", podendo ocorrer até sob a forma militar. O chamado "direito internacional humanitário" cederia, pois, espaço para a prática consuetudinária de um poder especial, advindo das decisões do Conselho de Segurança da ONU, que autorizaria, deste modo, a ingerência, via da intervenção, nos ambientes político e territorial de um Estado, quando nele ocorressem violações graves aos direitos humanos. Tal modo de pensar, para (DELGADO, 2005, p. 66-67) estaria sedimentado pelas mais importantes instituições internacionais, sendo, nos dias atuais, o posicionamento das Nações Unidas, via de seu Conselho de Segurança e de seu Secretariado Geral, talvez esquecendo que a Carta de São Francisco não preveja tais práticas de forma explícita, proibindo, conforme o já visto, a intervenção em assuntos internos de outros Estados, a não ser que a paz e a segurança internacional estejam comprometidas.

Há no campo da aceitação ou não da ingerência, assuntos ainda não devidamente explicitados, como os critérios que autorizariam o seu uso, ou o que, de fato, atentaria contra a paz e a segurança internacional. E, é nesta fileira que os autores discordam e expõem em seus escritos os entraves para a consecução imediata deste novo elemento.

O que se tem, por hora, é o reconhecimento de que já existe no cenário global o embrião de um "Direito de Ingerência", aplicado pelas ações já desencadeadas em nações mundo afora, como por exemplo, no caso de Kosovo, antiga província da ex-Iugoslávia, em 1999, onde a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), através de atos de ingerência, sem a autorização das Nações Unidas, interveio sob a justificativa de mesmo sem o amparo do Conselho de Segurança da ONU, fazia-se justa a sua ação.

A grande dúvida que limita a imediata aceitação da ingerência é em saber quais critérios a norteiam, levando o tema para o universo de se indagar se há de fato um direito ou então, um "dever" de ingerência? Se a resposta seguir para o lado do dever de ingerência, pode-se vislumbrar maior tranquilidade no cenário global dos próximos anos, uma vez que o dever de ingerir oferece a noção de que sempre, quando se carecer do restabelecimento da paz e segurança internacional, tal expediente se fará presente, garantindo, os direitos humanos, conforme o discurso das Nações Unidas e da sociedade internacional que a ampara. Porém, caso a opção seja pelo direito de ingerir, caberá o temor de que somente se atue quando os interesses de alguns Estados dotados de maior poder econômico, bélico e, portanto decisório, estiverem em jogo. Esta é a grande questão, face às transformações percebidas no mundo nos últimos anos, a sociedade internacional estaria pronta para admitir em seu bojo um direito ou um "dever" de ingerência?

Lecionando sobre o tema, Delgado (2005, p. 67-68) aduz que:

"Um "dever" de ingerência suporia que, verificada – pela autoridade internacional competente, conforme normas preestabelecidas – a existência de uma situação que daria ensejo à ingerência humanitária, esta ocorreria de conformidade com o procedimento estabelecido para tais casos pela comunidade internacional. De acordo com alguns magistérios seria considerado até mesmo uma obrigação – um verdadeiro dever de intervir – e não apenas uma opção. E pouco importaria que a infração fosse o massacre de curdos por Saddam Hussein, de albano-kosovares por Slobodan Milosevic, de chechenos pela dupla Ieltsin-Putin, a opressão de tibetanos e de dissidentes políticos pelo governo de Beijing ou mesmo o massacre de centenas de civis iraquianos e afegãos na auto-proclamada guerra contra o "Eixo do mal" perpetrada pelos Estados Unidos nos territórios do Afeganistão e do Iraque."

O discurso do autor encontra-se enfileirado com a postura de alguns estudiosos da ingerência que a consideram como um ente de extrema complexidade, tendo por um lado o caráter humanitário, de inequívoca função para a promoção da igualdade jurídica preconizada pela Carta das Nações Unidas e, de outro, os danos que podem ser gerados caso o seu uso não esteja disciplinado de modo a dotar os seus preceitos de segurança jurídica.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A par do exposto, resta uma evidência ao término, ao menos por hora, deste estudo: existe de fato um cenário de transformações na ordem internacional, envolvendo, dentre outras temáticas relevantes, nomeadamente, o exame das mudanças que o conceito clássico de Soberania vem sofrendo ao longo dos tempos, e, o advento, a partir do final da década de 1980, de uma nova terminologia conectada ao direito internacional, mesmo que ainda não reconhecida como seu instituto oficial, qual seja, a Ingerência.

Os esforços demandados na análise que fora desenvolvida dirigiram-se no sentido de aproximar do leitor a compreensão do modo como a Soberania vem sendo limitada pelos fenômenos emergentes do mundo contemporâneo, objetivando aclarar a idéia de que, mesmo debaixo de críticas e severas ponderações, urge o reconhecimento de uma "nova ordem jurídica global" consubstanciada numa maior participação solidária dos Estados nos assuntos de outros Estados, notadamente quando os direitos humanos estiverem em questão.

Disto, conclui-se que a Soberania, tal qual se concebia em outros momentos da história da humanidade, perde sim espaço para um novo modelo de Estado, uma organização estatal voltada para a defesa e promoção dos direitos humanos não só de seus nacionais, mas, devido à universalização desses direitos, também numa esfera supranacional, autorizando, assim, o debate sobre um Direito de Ingerência Humanitária capaz de fomentar a prática dos direitos humanos em todos os setores da sociedade internacional. Há, neste sentido, uma ordem jurídica internacional em (trans)formação, que busca na efetivação de paradigmas formulados inicialmente na década de 1940, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma alteração substancial que precisa acostar-se em figuras jurídicas e políticas capazes de legitimar esta mutação, gerando frutos tanto no âmbito externo dos Estados, em suas relações mútuas, quanto em seus interiores, ofertando uma nova visão acerca de conceitos anteriormente estáticos e imutáveis.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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COGO, Rodrigo. Considerações sobre a ingerência interestatal no cenário jurídico internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2745, 6 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18207. Acesso em: 25 abr. 2024.