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A prisão civil do depositário infiel proveniente da execução trabalhista

A prisão civil do depositário infiel proveniente da execução trabalhista

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Há homens que lutam um dia e são bons. Há outros que lutam um ano e são melhores. Há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda uma vida, estes são imprescindíveis.

Bertold Brecht

RESUMO

A prisão civil do depositário infiel é um tema que, apesar da vedação do Supremo, ainda gera veementes discussões. No entanto, a matéria necessita de um olhar diferenciado, isto é, no âmbito da justiça do trabalho que sofre diretamente as consequências dessa decisão. Este é o propósito aqui engendrado. Assim, é feita uma análise acerca da constitucionalidade técnica e material da prisão proveniente da execução trabalhista. Para tanto, no decorrer dos capítulos, discute-se a hierarquia dos tratados internacionais sobre direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, em especial, do Pacto de São José da Costa Rica e da Constituição da OIT; a questão da supralegalidade dos tratados; o posicionamento dos principais tribunais sobre a prisão civil do depositário infiel. Por fim, a discussão é realizada considerando-se as peculiaridades da justiça trabalhista, para se concluir pela perfeita aplicação desse instituto neste particular. Mostra-se que a negação desta realidade afeta, sobremaneira, a efetividade da execução trabalhista e, principalmente, o credor exequente que normalmente é o trabalhador em busca de seus créditos, fonte de seu sustento e de sua família.

PALAVRAS-CHAVE: prisão civil; depositário infiel; execução trabalhista.

ABSTRACT

The civilian prison of an unfaithful trustee is a theme that, despite the seal of the Supreme, still generates vehement debate. However, the matter requires a different view, namely, in justice work that directly suffer the consequences of that decision. This is the purpose here engendered. Thus, an analysis is made on the constitutionality of the technical and material from the prison labor enforcement. To this end, over the chapters, discusses the hierarchy of international treaties on human rights in the Brazilian legal system, in particular, the Pact of San José, Costa Rica and the ILO Constitution, the question of supra-legal treaties; positioning the main civil courts on the arrest of an unfaithful trustee. Finally, the discussion is carried out considering the peculiarities of the labor courts, in finding the perfect application of this institution in particular. It is shown that the denial of this reality affects greatly on the effectiveness of enforcement of labor and, especially, the creditor which is usually employed in pursuit of their claims that are the source of their livelihood and their families.

KEYWORDS: civil prison; unfaithful trustee; implementing labor.

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 CONTRATO DE DEPÓSITO. 2.1 Conceito, objeto, elementos. 2.2 Características. 2.3 Espécies. 2.4 Obrigações das partes. 2.4.1 Obrigações do depositário. 2.4.1 Obrigações do depositante. 2.5 Ação de depósito.3 TRATADOS INTERNACIONAIS. 3.1 Conceito. 3.2 Relação entre direito internacional público e direito interno do Estado. 3.2.1 Monismo e dualismo. 3.2.2 Teoria dualista. 3.2.3 Teoria monista. 3.3 Condições de validade. 3.4 Interpretação dos tratados internacionais. 3.5 Previsão dos tratados na atual Constituição brasileira. 3.5.1 Procedimento de ratificação dos tratados no Brasil . 3.5.2 Posicionamento dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro. 4 PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL. 4.1 A previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel. 4.2 Posição do Supremo Tribunal Federal. 4.3 Posição do Superior Tribunal de Justiça. 5 PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL NA JUSTIÇA DO TRABALHO. 5.1 Posição do Supremo Tribunal Federal. 5.2 Natureza jurídica dos créditos trabalhistas. 5.3 A Constituição da Organização Internacional do Trabalho e o Pacto de São José da Costa Rica. 5.4 Direito à liberdade X direito à vida. 5.5 A vedação da prisão civil do depositário infiel e seus reflexos na execução trabalhista. 5.6 Posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho. 5.7 Posicionamento da ANAMATRA. 6 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS


1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho que tem como tema "A prisão civil do depositário infiel proveniente da execução trabalhista" traz um estudo acerca do problema da justificativa encontrada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para proibir a prisão civil do depositário infiel, o que afetou, entre outras coisas, a efetividade da aplicação da justiça trabalhista, principalmente após a revogação da súmula 619 da Colenda Corte e a edição da súmula vinculante nº 25.

Diante desse problema, várias questões serão analisadas, entre elas: a influência do Pacto de São José da Costa Rica e da Emenda Constitucional nº 45 no ordenamento jurídico brasileiro; se os tratados internacionais do qual o Brasil é signatário, quando em conflito com a nossa Constituição, a revogam; a razão pela qual há permissão da prisão civil em caso de devedor de prestação alimentícia e proibição da prisão civil do depositário infiel que deve verbas de caráter alimentar na execução trabalhista; o impacto da vedação da prisão civil do depositário infiel na aplicação da justiça no âmbito trabalhista; as dificuldades existentes atualmente nas execuções trabalhistas.

Destarte, o objetivo principal deste trabalho é provar a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel na Justiça do Trabalho, em contraponto com o posicionamento do Supremo.

Recentemente o Supremo Tribunal Federal, editou a súmula vinculante nº 25 proibindo a prisão do depositário infiel, engessando o judiciário, e "pondo fim" às discussões sobre o assunto. No entanto, a inconformidade persiste. Doutrinadores e jurisconsultos ressaltam a inaplicabilidade desta decisão para a Justiça do Trabalho e, para tanto, apresentam suas razões.

Com o presente estudo, pretende-se demonstrar também que a prisão civil do depositário infiel na justiça do trabalho é um caso peculiar, que deve ser analisado conforme suas particularidades. A proibição da prisão não pode alcançar a seara trabalhista por simples razões genéricas, sem uma discussão própria.

A escolha do tema partiu da análise da decisão do Supremo Tribunal Federal referente à inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel no ordenamento jurídico brasileiro, somente excepcionando a prisão civil ao devedor de prestação alimentícia.

Após o posicionamento da Colenda Corte, surge o contrasenso em relação à aplicação dessa regra na justiça laboral em que, os créditos trabalhistas indiscutivelmente possuem natureza alimentar, a mesma natureza dos créditos devidos na prestação alimentícia. Nesse contexto, há de se esclarecer a razão pela qual o devedor de prestação alimentícia é passível de prisão civil, enquanto que o depositário infiel, devedor de créditos da mesma natureza, não está sujeito a mesma.

Ademais, a principal justificativa apontada pelo Supremo foi a ratificação pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica. No entanto, se considerados os rigores técnicos estabelecidos na Constituição, o tratado não adquiriu status de emenda constitucional, pois não foi ratificado pelo quorum necessário. A Corte, assim, apresentou a decisão, não unânime, pela "supralegalidade" dos tratados internacionais.

Além dos motivos expostos, na justiça do trabalho o meio mais eficaz de compelir o executado (que normalmente é o depositário do bem) a pagar a dívida era a imposição da prisão do depositário infiel. Isto, pois, o executado é devedor de créditos trabalhistas, que tem natureza alimentar, imprescindíveis para a sobrevivência do trabalhador e sua família. Com a proibição da prisão, resta prejudicada a efetividade da aplicação da justiça trabalhista.

O estudo sobre o tema proposto é direcionado, sobretudo, aos defensores dos direitos trabalhistas, e principalmente aos próprios titulares desses direitos. Em geral, almeja-se atingir também todos aqueles interessados nesta matéria que, mesmo após a decisão da Suprema Corte, gera veementes discussões entre magistrados e doutrinadores.

Para uma compreensão mais facilitada, aliada a um maior aprofundamento sobre o tema, adotou-se o método dialético, em que serão apresentadas jurisprudências da Corte Suprema e dos tribunais superiores, além de posicionamentos doutrinários, para que, a partir de uma análise comparativa, e por meio de uma abordagem qualitativa, seja alcançado o objetivo esperado.

Como método auxiliar foi utilizado a aplicação de comparativos, tendo em vista um paralelo entre a prática jurídica e a regulamentação normativa.

Foi empregada a técnica bibliográfica de pesquisa com o objetivo de obter informações demonstradas através de recursos como leis, jurisprudências, livros, artigos e revistas.

Para tanto, o trabalho subdivide-se em quatro capítulos.

O primeiro capítulo traz uma noção inicial sobre contrato de depósito, instituto do direito civil, além de explicar a situação do depositário judicial, figura esta de grande importância para este estudo.

O segundo capítulo trata sobre os tratados internacionais: teorias, condições de validade, interpretação. Além disso, é analisado o posicionamento dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro, segundo a Constituição brasileira.

O terceiro capítulo traz uma abordagem quanto à previsão constitucional da prisão civil do infiel depositário. Concentra, também, posicionamentos jurisprudenciais do Supremo e do Superior Tribunal de Justiça acerca da matéria.

O quarto e último capítulo traz uma análise específica sobre o tema proposto com base em todo o estudo feito nos capítulos anteriores, desta vez voltado à justiça trabalhista.

A conclusão condensa em razões finais, a opinião do autor, todo seu embasamento jurídico, assim como, as razões de foro íntimo que norteia seu pensamento favorável à prisão civil depositário infiel no âmbito trabalhista.


2 CONTRATO DE DEPÓSITO

O conhecimento acerca do contrato de depósito é essencial para a compreensão do tema proposto. A figura do depositário somente é possível em virtude da existência de um contrato de depósito, em que aquele, por contrariar o contrato, é denominado depositário infiel.

Interessa agora analisar essa espécie contratual prevista nos artigos 627 a 652 do Código Civil, além do procedimento da respectiva ação de depósito.

2.1 Conceito, objeto, elementos

O vocábulo depósito é derivado do verbo latino deponere, que significa colocar alguma coisa em confiança sob a guarda de uma pessoa (ULPIANO apud NADER, 2008, p. 305). Por depósito, costuma-se denominar também a própria coisa que é entregue.

Carlos Roberto Gonçalves traz a seguinte definição de depósito:

[...] contrato em que uma das partes, nomeada depositário, recebe da outra, denominada depositante, uma coisa móvel, para guardá-la, com a obrigação de restituí-la na ocasião ajustada ou quando lhe for reclamada. (GONÇALVES, 2010, p. 384)

Este é o objetivo do contrato de depósito, colocar um bem sob a guarda e conservação de outrem em favor do depositante. Tem como base, sobretudo, a confiança, uma vez que para que a coisa própria seja entregue a outrem é necessária a confiança neste.

Conforme se depreende do próprio conceito, o contrato de depósito possui três elementos, são eles: a entrega de coisa móvel; a guarda da coisa móvel, com o poder ou não de uso; a obrigação de restituir a coisa, quando solicitada.

No direito romano, origem do instituto, o contrato em estudo era aplicado também aos bens imóveis.

No ordenamento jurídico brasileiro, ao contrário, o contrato de depósito diz respeito apenas a bens móveis. A previsão exclusiva aos bens móveis deve-se ao fato de que a conservação de bens imóveis implicaria atos de administração, que são próprios do mandato (outra forma contratual). Nesse contexto, o artigo 627 do Código Civil dispõe que "pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para guardar até que o depositante o reclame" (grifei).

Quanto aos bens móveis, ressalta Paulo Nader (2008, p. 306) que o depósito se aplica apenas a coisas infungíveis, vez que a entrega de coisas a serem devolvidas por outras de igual gênero, quantidade e qualidade, conforme o artigo 645 do Código Civil, é regulada pelo mútuo.

Em relação ao segundo elemento do contrato de depósito, "a guarda da coisa móvel, com o poder ou não de uso", tem-se que o uso e gozo do bem pelo depositário, não é seu elemento constitutivo. No entanto, pode o depositante autorizar a utilização da coisa, mas apenas para fins de guarda e conservação do bem, em benefício do depositante, caso contrário caracterizaria outra espécie de contrato. Poderá ainda o depositário assumir pequenos encargos, tendo e vista a conservação da coisa. Para Ennerccerus, se a atribuição impuser vigilância constante, não haverá depósito, mas sim um mandato ou prestação de serviço (apud NADER, 2008, p. 307).

O terceiro e último elemento do contrato é a "obrigação de restituir a coisa quando solicitada". Trata-se de um contrato temporário. Ademais, o depositário tem obrigação de restituir a coisa quando esta for requerida pelo depositante, ainda que o contrato tenha prazo determinado. A não restituição do bem tinha como consequência a prisão civil do depositário de até um ano, além do ressarcimento por perdas e danos, com previsão no artigo 652 do Código Civil.

2.2 Características

O contrato de depósito é real, temporário, unilateral, gratuito e formal.

O contrato se aperfeiçoa com a tradição, esta é elemento integrante do contrato. Paulo Nader (2008, p. 305) salienta que com a tradição, isto é, a entrega do bem, não há transferência de propriedade, nem da posse, transfere-se, somente, a possessio naturalis.

O depositante, em regra é o proprietário do bem, porém, tanto administradores quanto possuidores em geral, têm capacidade para contratar. Assim, os usufrutuários e inquilinos, podem entregar a coisa em depósito.

O contrato de depósito como mencionado alhures é temporário, isto porque a obrigação de restituir é essência do contrato, segundo a qual o depositário guardará o bem até que o depositante o reclame (art. 647 do Código Civil).

A unilateralidade é em razão de somente o depositário assumir obrigações. O contrato pode, entretanto, tornar-se bilateral se for estabelecida uma contraprestação por parte do depositário infiel. Este último caso, Sílvio de Salvo Venosa caracteriza como contrato bilateral imperfeito, in verbis:

[...] pode assumir feição de bilateral imperfeito quando se atribuem obrigações ao depositante sob determinadas circunstâncias na hipótese de o depositário tornar-se credor do depositante, como na situação do art. 643. Por este dispositivo o depositante é obrigado a pagar ao credor as despesas com a coisa e os prejuízos decorrentes do seu depósito. Desse modo, desde o nascedouro, o contrato apresenta características de negócio sinalagmático imperfeito (VENOSA, 2009, p.240).

Para Gonçalves (2010, p. 388), entretanto, essa denominação é incorreta, posto que tal obrigação resulta de fatos posteriores, externos e independentes do contrato.

Nesse passo, a gratuidade é regra, mas não é absoluta, uma vez que pode ser admitida uma contraprestação. No entanto, o que se observa, na prática é a prevalência do depósito remunerado em variadas modalidades, tais como a guarda de automóveis em garagens, de vestuários em teatros, de jóias e valores em cofres de aluguel, entre outras (GONÇALVES, 2010, p. 388).

O contrato de depósito voluntário é formal. O próprio artigo 646 do diploma civil brasileiro estabelece que "o depósito voluntário provar-se-á por escrito". Nesse contexto, preleciona Sílvio de Salvo Venosa:

[...] o escrito é exigido apenas para provar o contrato, não lhe sendo essencial para fixar sua existência (ad probationem tantum). Admite-se até mesmo simples início de prova por escrito. Ademais, sendo contrato real, a prova testemunhal será com frequência suficiente para provar a ocorrência ao menos desse ato material. Desse modo, o tíquete de entrega da coisa, cupom ou equivalente serão documentos suficientes para atestar o negócio (VENOSA, 2009, p. 241).

Em relação ao depósito necessário, podem ser certificados por qualquer meio de prova. O depósito judicial evidencia-se pelo termo ou pelo instrumento em que é lavrado, com descrição do bem e o compromisso do depositário.

2.3 Espécies

No Código Civil brasileiro estão disciplinadas as principais espécies de depósito que são o voluntário e o necessário.

Além dessa classificação, conforme leciona Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 389), o depósito pode ser: regular e irregular; simples e empresarial; contratual e judicial.

O depósito voluntário deriva de um acordo de vontades. É livremente ajustado pelas partes, inclusive a escolha do depositário. Não exige forma especial para sua celebração, apenas para a prova de sua existência requer instrumento escrito.

Segundo Sílvio Venosa (2009, p. 245), o contrato irregular, é modalidade de depósito voluntário, tendo por objeto coisas fungíveis, em que o depositário pode alienar o que recebeu, desde que a restitua, quando solicitado, igual quantidade e qualidade. Porém, caso seja acordada a devolução da mesma coisa, embora fungível, o depósito será regular.

O contrato de depósito regular, também chamado de ordinário, caracteriza-se pela infungibilidade da coisa depositada.

O depósito necessário é distinto do voluntário, pois, naquele o contratante não tem condições de escolher o depositário. Serpa Lopes, citado por Gonçalves (2010, p. 398), assevera que no depósito necessário o depositante pratica um ato voluntário havendo consentimento de ambas as partes, no entanto, o consentimento é produto de um acontecimento imprevisto. Destarte, não há a liberdade de escolha do depositário, em face da urgência imposta pelos acontecimentos.

Conforme a dicção do artigo 647 do Código Civil, o depósito necessário subdivide-se em legal e miserável. De acordo com Paulo Nader (2008, p. 308), esse tipo de depósito pode resultar da lei, caso em que é denominado de depósito legal; ou derivar de uma necessidade imperiosa do depositante causada, por exemplo, por uma catástrofe ou mesmo por uma viagem urgente, sendo este último denominado depósito miserável.

Há ainda uma terceira espécie de deposito necessário, equiparado ao depósito legal, prevista no artigo 649 do diploma civil, que é o das bagagens dos viajantes ou hóspedes nas hospedarias onde estiverem.

Haverá o depósito empresarial somente quando envolver causa econômica em poder do empresário ou por conta deste, os demais serão simples.

O contrato de depósito será contratual quando resultar de acordo de vontades, com livre escolha do depositário pelo depositante, sendo aquele possuidor direto do bem, enquanto este o possuidor indireto. Por outro lado, o depósito judicial é determinado por mandado pelo juiz, entregando ao depositário coisa móvel ou imóvel, objeto de um processo, sendo este mero detentor da coisa, pois a posse é do Estado.

2.4 Obrigações das partes

2.4.1 Obrigações do depositário

Ante a unilateralidade dos contratos de depósito as obrigações dele oriundas são direcionadas, primordialmente, para o depositário.

São obrigações fundamentais do depositário a guarda e a conservação da coisa, além de sua restituição quando requerida pelo depositante.

O depositário deve cuidar da coisa como se fosse sua, não devendo faltar a diligência habitual. Pode confiá-la a terceiros, pois não se trata de dever personalíssimo ou intransferível, caso em que deve obter prévia autorização do depositante, sob pena de responder por perdas e danos (artigo 640 do Código Civil). Se agiu com culpa na escolha do terceiro, será responsabilizado (parágrafo único do art. 640 do C.C.).

A conservação é o dever de zelo pela coisa depositada para poder restituí-la no estado em que recebeu.

Responde o depositário por culpa ou dolo se o bem perecer ou deteriorar-se, exceto se provar que o perecimento ou a deterioração se deu em virtude de força maior. Como se trata de responsabilidade contratual fundada na culpa, entende Gonçalves (2010, p. 394), aplicar-se ao caso o art. 393 do C.C. no que tange ao caso fortuito.

Sílvio de Salvo Venosa, infra, adverte o caso em que a coisa é perdida em razão de força maior, e o depositário recebe outra em seu lugar:

[...] se perdida a coisa por força maior, tendo o depositário recebido outra em seu lugar, como seguro, por exemplo, é obrigado a entregar a coisa sub-rogada ao depositante, bem como ceder-lhe as ações que eventualmente tiver contra terceiro responsável pela perda (art. 636, C.C.). (VENOSA, 2009, p. 247).

O depósito, sendo feito para guarda e não para gozo do depositário deve ser restituído com os frutos produzidos, os quais pertencem ao depositante (segunda parte do art. 629 do C.C.).

A coisa será entregue assim que exigida pelo depositante, exceto se o depositário tiver o direito de retenção; se o objeto for judicialmente embargado; se sobre ele pender execução, notificada ao depositário; se houver motivo razoável de suspeitar que a coisa foi dolosamente obtida, caso em que, expondo o fundamento da suspeita, requererá que se recolha o objeto ao depósito público (GONÇALVES, 2010, p. 395).

A obrigação de restituição é do depositário, no entanto, se este falecer, será sucedido pelos herdeiros. Isto não ocorrerá se o depositário for acometido de incapacidade superveniente (interdição, falência), caso este que resolve o contrato de depósito e seus representantes não podem substituí-lo.

O bem deve ser restituído no local combinado ou naquele em que foi recebido o depósito (art. 631 do C.C.).

2.4.2 Obrigações do depositante

Como já elucidado no item 8.1.2 deste projeto, o contrato pode tornar-se bilateral se for estabelecida uma contraprestação por parte do depositante.

Assim, no contrato bilateral há obrigação do depositante de pagar ao depositário a remuneração convencionada.

Em relação ao contrato unilateral que, em um primeiro momento, obriga apenas o depositário, Carlos Roberto Gonçalves ensina que:

[...] quando o aludido contrato é gratuito, aperfeiçoa-se com a entrega da coisa, após a qual o depositário terá obrigações. Neste caso, é unilateral. Por conseguinte, as eventuais obrigações do depositante decorrerão de fatos posteriores à sua formação (GONÇALVES, 2010, p. 392).

Nesse diapasão, o contrato, ainda que unilateral, pode gerar obrigações para o depositante, ocasionadas por fatos supervenientes à sua formação. Tais obrigações, segundo o citado autor, consistem em: reembolsar as despesas feitas pelo depositário com o depósito; indenizar o depositário pelos prejuízos provenientes do depósito.

O depositário tem direito de retenção sobre a coisa depositada até que o depositante pague o que lhe for devido, é o que se extrai do artigo 644 do Código Civil, ipsis litteris:

Art. 644 - O depositário poderá reter o depósito até que se lhe pague a retribuição devida, o líquido valor das despesas, ou dos prejuízos a que se refere o artigo anterior, provando imediatamente esses prejuízos ou essas despesas.

Parágrafo único – Se essas dívidas, despesas ou prejuízos não forem provados suficientemente, ou forem ilíquidas, o depositário poderá exigir caução idônea do depositante ou, na falta desta, a remoção da coisa para o Depósito Público, até que se liquidem.

Caio Mário citado por Gonçalves (2010, p.392) anota que se for ostensivo o defeito, e perceptível ao primeiro exame visual, ou se o depositário tiver sido prevenido no momento da tradição, deverá se entender que este assumiu todos os riscos.

2.5 Ação de depósito

A ação de depósito está prevista 901 a 906 do Código de Processo Civil brasileiro.

O objetivo desta ação é a restituição da coisa depositada.

A necessidade de restituição do depósito, através da ação de depósito, surge quando o depositário torna-se infiel, ou seja, quando descumpre a obrigação de restituir a coisa com os seus acessórios, assim que o depositante a exigir (DONIZETTI, 2008, p. 864).

O processualista Elpídio Donizetti (2008, p. 866) pontua que o procedimento da ação de depósito é aplicável a qualquer modalidade de depósito, desde que a coisa seja infungível. Em se tratando de coisa fungível aplicar-se-á o regime jurídico do mútuo, e a restituição poderá ser exigida por meio da ação de cobrança, não obstante entendimento contrário do Superior Tribunal de Justiça.

No que diz respeito ao depósito judicial, Carlos Roberto Gonçalves assinala que:

[...] a ação não se faz necessária, uma vez que o depositário é mero detentor, podendo o juiz nos próprios autos em que se constituiu o encargo, determinar, por simples mandado, a busca e apreensão da coisa, restituindo-a a quem de direito (GONÇALVES, 2010, p. 403).

No depósito judicial a prisão do depositário infiel poderia ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, ao teor da revogada Súmula 619 do Supremo Tribunal Federal.

A legitimidade ativa para a ação de depósito é do próprio depositante ou de seu sucessor. Passivamente, são legítimos o depositário, bem como seus herdeiros e sucessores. O jurisconsulto, Sílvio de Salvo Venosa (2009, p. 251), salienta que terceiros sem relação negocial com o depositante, não estão legitimados para figurar como réus na ação de depósito. Nesta situação, se há esbulho de posse, incumbe ingressar com os remédios possessórios.

O procedimento da ação de depósito é simples. Na petição inicial, será feita prova do negócio, a estimativa do valor do bem e o pedido de citação do réu. O pedido de prisão de até um ano já poderia constar na inicial, na forma do parágrafo único do artigo 904, no entanto, a Corte Suprema já se posicionou pela inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel.

O réu, ao ser citado, conforme o artigo 902 do CPC, terá o prazo de cinco dias para entregar a coisa, depositá-la em juízo, ou consignar o equivalente em dinheiro; ou contestar a ação. Contestada a ação, observar-se-á o procedimento ordinário (art. 903, CPC).

Em sentença favorável ao autor, o juiz determinará a expedição de mandado para a entrega da coisa ou equivalente em dinheiro no prazo vinte e quatro horas (art. 904, CPC). O descumprimento do mandado pelo depositário, atualmente, segundo o entendimento do Supremo, não mais enseja sua prisão.

O autor pode promover a busca e apreensão da coisa, sem prejuízo do depósito. Encontrada a coisa, ou sendo voluntariamente entregue pelo réu cessa a prisão e será devolvido o equivalente em dinheiro (art. 905, CPC).

Por fim, não satisfeito o credor pela entrega da coisa ou seu equivalente em dinheiro, o autor poderá prosseguir nos próprios autos, para receber o que lhe foi reconhecido na sentença, observando-se o procedimento da execução por quantia certa.

Além das hipóteses de contrato de depósito colacionadas no Código Civil, há outras em que o legislador equipara ao depósito, com todas as situações daí decorrentes. O doutrinador, Carlos Roberto Gonçalves, infra, cita algumas delas:

[...] é o que sucede nos contratos de alienação fiduciária em garantia, quando o bem alienado fiduciariamente não é encontrado ou não se encontra na posse do devedor, caso em que o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão em ação de depósito, nos mesmos autos (Dec.-Lei n. 911/69, art. 4º). Também é considerada depositária, nos termos da Lei n. 8.866/94, a pessoa a quem a legislação tributária ou previdenciária imponha a obrigação de reter ou receber de terceiro, e recolher aos cofres públicos impostos, taxas e contribuições, inclusive à Seguridade Social (GONÇALVES, 2010, p. 404)

Assim, são equiparados ao contrato de depósito a alienação fiduciária em garantia. e também a relação existente entre a pessoa encarregada de reter ou receber de terceiro, assim como recolher aos cofres públicos impostos, taxas e contribuição, em relação à Fazenda Pública, por exemplo.


3 TRATADOS INTERNACIONAIS

A prisão civil do depositário infiel foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal e um de seus principais argumentos foi o fato de o Brasil ter ratificado o tratado internacional do Pacto de São José da Costa Rica.

O Pacto de São José da Costa Rica somente excepciona a possibilidade de prisão civil ao devedor de alimentos, enquanto a nossa Constituição admite ainda a prisão civil do depositário infiel.

Entretanto, o referido tratado não foi incorporado pelo quórum necessário previsto no § 3º do artigo 5º da Constituição Federal, introduzido pela EC nº 45/04. Desse modo, se considerados os rigores técnicos estabelecidos na Constituição, o tratado não adquiriu status de emenda constitucional.

Diante disso, o Supremo Tribunal Federal conferiu ao Pacto de São José da Costa Rica o status de "supralegalidade". Nesse contexto, o constitucionalista Alexandre de Moraes esclarece a posição do Tribunal Supremo, nos seguintes termos:

A Corte decidiu, em relação a vedação da prisão civil do depositário infiel, que a circunstância de o Brasil ter subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7º, 7), conduz a inexistência de balizas visando a eficácia do que previsto no art. 5º, LXVII, da CF, concluindo que com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel (MORAES, 2009, p. 741).

Pelo exposto, faz-se necessária a análise do que são e como funcionam os tratados internacionais, na medida em que o conflito sobre a prisão do depositário infiel decorre da sua proibição por um tratado, documento este, que o Brasil se comprometeu a cumprir.

3.1 Conceito

Tratado é um acordo, ajuste, arranjo, convenção, declaração formal entre pessoas jurídicas de direito internacional público, que firmam um compromisso de cumprimento e respeito às cláusulas e condições concluídas por escrito, com a finalidade de produzir efeitos jurídicos nas relações exteriores, criando preceitos de direito positivo, regidos pelas regras de direito internacional (MALHEIRO, 2008, p. 61).

Sidney Guerra acentua que a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969, em seu art. 2º, a, trouxe a definição de "tratado", nos seguintes termos:

[...] tratado significa um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica (GUERRA, 2009, p. 53).

Carlos Roberto Husek e Hee Moon Jo, citados por Malheiro (2008, p. 62), defendem a forma oral dos tratados. No entanto, tal posição, segundo aduz o autor, importa impossibilidade de cumprimento das formalidades exigidas e de sua precária executoriedade no caso concreto. O entendimento prevalente é que os tratados devem ter forma escrita, tendo em vista o que dispõe o art. 2º da Convenção de Havana e o art. 2º, § 1º, alínea "a" da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969.

Importa estabelecer a diferença entre contrato interestatal e tratado.

Quando uma parte se sujeita ao direito interno de outra teremos um contrato interestatal. O tratado, por sua vez, exige que a criação de preceitos de direito positivo se submeta às regras do direito internacional e nunca a uma legislação no plano interno de um dos co-pactuantes (MALHEIRO, 2008, p. 62).

3.2 Relação entre direito internacional público e direito interno do Estado

3.2.1 Monismo e dualismo

Em discussões que envolvem tratados internacionais é indispensável abordar as teorias que tentam explicar sua relação com o direito interno do Estado. Trata-se da relação entre direito internacional público e o direito interno de cada país.

A doutrina traz questionamentos em torno da possibilidade de confronto entre tais ramos, que em caso afirmativo, visa esclarecer qual deve prevalecer.

Segundo as lições de Emerson Penha Malheiro (2008, p. 47), em geral, os jurisconsultos admitem duas teorias elementares que explicam a prevalência do direito interno ou do direito internacional: o dualismo e o monismo.

3.2.2 Teoria dualista

A teoria dualista, estabelecida no final do século XIX, teve como principal expoente o alemão Carl Heinrich Triepel. Caracteriza-se pela apresentação de duas ordens jurídicas independentes que, de acordo com Celso Roberto Duvivier, "podem ser tangentes, mas não secantes, isto é, são independentes, não possuindo qualquer área em comum" (apud MALHEIRO, 2008, p. 47).

Nesse passo, o dualismo defende que o direito interno cuida das relações jurídicas intra-estatais, enquanto o direito internacional regulamenta as relações jurídicas entre os Estados soberanos. Desta forma, não há conflito entre elas.

O dualismo adota uma concepção estrutural das ordens jurídicas. O direito interno é caracterizado pela subordinação, pois depende exclusivamente da vontade unilateral do Estado. Por outro lado, o direito internacional depende da vontade comum de vários Estados, estabelecendo-se uma relação de coordenação.

Para essa teoria, para que uma norma de direito internacional tenha validade no direito interno de cada Estado, ela deve passar por um processo de recepção, o que recebe o nome de teoria da incorporação. O direito internacional é indiferente quanto ao método adotado para a introdução da norma internacional no ordenamento jurídico do Estado.

A Constituição Federal brasileira de 1988 adota a teoria dualista, conforme ensina Ricardo Cunha Chimenti, et al, no excerto a seguir transcrito:

Entre nós, portanto, adota-se a teoria dualista, pela qual o tratado depende de aprovação por norma de direito interno (decreto legislativo) editada pelo Congresso Nacional e subsistem dois ordenamentos jurídicos distintos, o direito internacional e o direito interno. Não foi adotada a teoria monista, pela qual os tratados são válidos desde o momento em que o Chefe do Poder Executivo os assina e se sobrepõem à ordem interna (CHIMENTI, et al., 2009, p. 287).

Ferraz Júnior citado por Malheiros, em estreita síntese, assevera que desde que aprovados no âmbito interno conforme procedimentos prescritos pelas respectivas constituições, os tratados adquirem o status legal, imperam como leis internas, de tal modo que, se são incompatíveis com leis ordinárias do país, as tornam revogadas conforme a regra estrutural da lex posterior. Submetem-se, não obstante, à hierarquia e não podem contrariar disciplinas constitucionais (MALHEIRO, 2008, p. 48).

3.2.3 Teoria monista

O monismo trata o direito internacional e o direito interno como um sistema único.

Essa teoria apresenta duas vertentes, ambas sustentando a unicidade da ordem jurídica, sendo que uma estabelece a supremacia do direito internacional a que se ajustariam as normas do direito interno, cujo principal defensor foi Hans Kelsen; e a outra estabelece a primazia do direito interno de cada Estado, em que cabe a este determinar livremente suas obrigações estatais.

3.3 Condições de validade

Para que um tratado internacional seja considerado válido e possa produzir efeitos jurídicos devem ser observados alguns requisitos.

Entre as condições de validade dos tratados internacionais destacam-se: a capacidade das partes; a habilitação dos agentes signatários; o consentimento mútuo e o objeto lícito e possível (GUERRA, 2009, p. 56)

A capacidade das partes é o reconhecimento internacional de que uma pessoa pode adquirir direitos e exercer por si mesma, por meio de seus representantes, os atos consignados no documento que será criado. Emerson Malheiro (2009, p. 65) observa que essa recognição é ínsita dos entes que possuem personalidade jurídica de direito internacional público, isto é, apenas os Estados e às Organizações Internacionais Intergovernamentais.

Outra condição de validade dos tratados internacionais é a habilitação dos agentes signatários. A regra para essa habilitação é ditada pelo direito interno do Estado e, eventualmente, pelo estatuto de uma organização internacional. Assim, diz-se que a habilitação é feita pelos "plenos poderes" que dão aos negociadores o poder de negociar e concluir o tratado.

O consentimento mútuo dos pactuantes é indispensável, visto ser o tratado um acordo de vontades.

Exige-se, por fim, que as partes convencionem sobre um objeto lícito e possível. Entende-se por "lícito" o objeto que está conforme as regras do direito internacional e "possível" é aquele que tem a faculdade de ser realizado. Sidney Guerra (2009, p. 58) salienta que "em havendo violação de normas imperativas (jus cogens) o tratado não poderá produzir efeitos, como por exemplo, a celebração de tratados que violam direitos humanos".

3.4 Interpretação dos tratados internacionais

Alguns tratados trazem normas contraditórias entre si, ou ainda podem ensejar dúvidas quando a sua interpretação. Para solucionar tais situações, a doutrina apresenta alguns critérios de interpretação dos tratados.

Em primeiro lugar, não é demais salientar que o tratado deve ser interpretado de acordo com a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, para tanto, segundo Sidney Guerra, devem ser levados em consideração os seguintes aspectos:

a) o tratado deve ser interpretado de boa-fé; b) deve ser levado em consideração o preâmbulo e anexos; c) deve ser levado em consideração ainda: qualquer acordo entre as partes relativas à interpretação; qualquer norma relevante do DIP aplicável nas relações entre as partes; d) se a aplicação das normas não conduz a sentido claro ou conduz a um resultado absurdo, pode se recorrer a outros meios de interpretação; e) em um tratado autenticado em duas ou mais línguas diferentes, estes textos tem a mesma autenticidade.(GUERRA, 2009, p. 73).

O autor supracitado também relaciona alguns critérios para a aplicação dos tratados com normas contraditórias, quais sejam:

1) a regra geral é que o mais recente prevalece sobre o anterior quando as partes contratantes são as mesmas nos dois tratados; 2) quando os dois tratados não têm como contratantes os mesmos Estados: a.) entre um Estado-parte em ambos os tratados e um Estado-parte somente no tratado mais recente se aplica o mais recente. b.) entre um Estado-parte em ambos os tratados e um Estado-parte somente no tratado anterior se aplica o tratado anterior. c.) entre os Estados-parte nos dois tratados só se aplica o anterior no que ele não for compatível com o novo tratado. (GUERRA, 2009, p. 72 e 73).

Sidney Guerra afirma que a doutrina manifesta outros aspectos relativos a interpretação dos tratados internacionais além dos já mencionados, dentre eles destaca:

a) o tratado deve ser interpretado no sentido de produzir efeito útil, isto é, realizar o objetivo por ele visado (princípio da efetividade); b) as palavras devem ser compreendidas com o sentido que tinham ao tempo da celebração do tratado; c) o tratado deve presumir-se como um todo cujas partes se completam umas as outras; d) nos casos de tratados que restringem a soberania estatal ou ônus, é necessária a interpretação restritiva, quando houver dúvida, isto é, deve predominar a interpretação que impuser menos ônus e restringir menos a liberdade; e) não é permitido interpretar o que não necessita de interpretação, isto é, não se pode afastar de um texto claro (GUERRA, 2009, p. 73).

Os critérios de interpretação dos tratados internacionais são importantes, sobretudo, para o alcance do objetivo por ele pretendido quando da sua elaboração. Ressalte-se que as cláusulas não devem ser interpretadas isoladamente, mas em seu conjunto, levando-se em consideração o preâmbulo e anexos, e ao interpretar deve ser respeitado princípio da boa-fé. Prosseguindo-se com os critérios já elencados, torna-se possível uma interpretação mais fiel e justa.

3.5 Previsão dos tratados na atual Constituição brasileira

A Constituição da República Federativa do Brasil, em vigor, expressamente prevê os tratados internacionais em seu art. 5º, §§ 2º e 3º, e arts. 84 e 85, in verbis:

Art. 5º, § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Art. 84 Compete privativamente ao Presidente da República: VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional.

Art. 49 É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.

Pelo exposto conclui-se que, não obstante os direitos e garantias previstos na Constituição, aliados a estes se encontram os direitos advindos do regime e princípios por ela adotados, e ainda os decorrentes dos tratados internacionais que o Brasil aderir. Em sendo assim, conforme a dicção do § 2º do art. 5º da CF, os tratados ratificados pelo Brasil não excluem o que já se encontra expresso na Constituição.

O § 3º do art. 5º da CF, acrescentado pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, definiu o processo de incorporação dos tratados internacionais sobre direitos humanos no direito interno brasileiro, os quais, respeitado tal procedimento, são equiparados às emendas constitucionais.

Os artigos 84 e 49 da CF, respectivamente, reserva ao Presidente da República a celebração e ao Congresso Nacional a resolução dos tratados internacionais. Segundo o Min. Nelson Jobim, citado por Ricardo Cunha Chimenti (2009, p. 287), "acaso o Chefe da nação se encontre impossibilitado, é convocado um plenipotenciário, termo para designar o representante oficial".

3.5.1 Procedimento de ratificação dos tratados no Brasil

Os tratados internacionais para ter eficácia no direito interno brasileiro, como já mencionado, devem passar por um processo de aprovação. Desse modo, portanto, foi adotada pelo Brasil a teoria dualista, conforme a qual subsistem dois ordenamentos jurídicos distintos: o direito internacional e o direito interno.

Em que pese não estarem expressamente incluídos no rol do art. 59 da CF, que dispõe acerca do processo legislativo, os tratados internacionais são submetidos a um processo legislativo específico para serem inseridos no ordenamento jurídico nacional.

Conforme os artigos 49, I e 84, VIII da CF, anteriormente citados, no direito brasileiro cabe ao Congresso Nacional aprovar o tratado e ao Presidente da República ratificá-lo.

Nesse contexto, observa Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari, citado por Emerson Malheiro (2008, p. 88), que "a vinculação do Brasil a tratado internacional é decisão que depende, portanto, do concurso de dois Poderes: o Executivo e o Legislativo".

Alexandre de Moraes separa o processo de incorporação de um ato ou tratado internacional no direito interno brasileiro em três fases, são elas:

1ª fase: compete privativamente ao Presidente da República celebrar todos os tratados, convenções e atos internacionais (CF, art. 84, VIII);

2ª fase: é da competência exclusiva do Congresso Nacional resolver definitivamente sobre os tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (CF, art. 49, I). A deliberação do Parlamento será realizada através da aprovação de um decreto legislativo, devidamente promulgado pelo Presidente do Senado Federal e publicado;

3ª fase:edição de um decreto do Presidente da República, promulgando o ato ou tratado internacional devidamente ratificado pelo Congresso Nacional. É nesse momento que adquire executoriedade interna a norma inserida pelo ato ou tratado internacional, podendo, inclusive, ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade (MORAES, 2009, p. 691).

É possível, com base na doutrina de Emerson Malheiro (2008, p. 89 e 90), fazer uma análise das principais fases do procedimento em questão.

A princípio, o Presidente da República, após a assinatura do tratado por ele ou por um plenipotenciário, envia ao Congresso Nacional uma cópia do instrumento, em versão oficial, acompanhada de uma mensagem, requerendo sua aprovação.

Francisco Rezek citado por Emerson Malheiro (2008, p. 89) adverte que "tanto a Câmara quanto o Senado possuem comissões especializadas ratione materiae, cujos estudos e pareceres precedem a votação em plenário".

Destarte, a Câmara dos deputados vota. Em caso de aprovação, há seguimento para o Senado. Se negado, comunica-se o fato ao Presidente da República, caso em que não existirá a ratificação.

Após a aprovação pela Câmara dos deputados, o instrumento será enviado ao Senado que também o analisará e votará. Desta vez, se aprovado, é de competência do Presidente do Senado Federal, na qualidade de Presidente do Congresso Nacional, promulgar o decreto legislativo. O próprio decreto, além de conter a aprovação do instrumento, autoriza o Presidente da República a ratificá-lo em nome da República Federativa do Brasil (MORAES, 2009, p. 690).

Em relação ao quorum para a aprovação dos tratados internacionais, segundo a Constituição vigente tem-se, de acordo com o artigo 49, I da CF, que os tratados serão aprovados por maioria simples. Todavia, quanto aos tratados e convenções relativos a direitos humanos que forem votados em cada Casa do Congresso, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, eles serão equivalentes às emendas constitucionais.

A discussão em torno do status normativo dos tratados internacionais no direito brasileiro será analisada mais especificamente no próximo tópico.

Por conseguinte, com o recebimento do decreto pelo Presidente da República, haverá a edição de decreto presidencial e a promulgação do tratado, publicando seu texto no Diário Oficial da União. Entretanto, o Presidente da República não está obrigado a promover a ratificação, seja porque o tratado não mais serve aos interesses nacionais, já foi executado integralmente, ou qualquer outro motivo (MALHEIRO, 2008, p. 90).

3.5.2 Posicionamento dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro

Com fulcro nas normas constitucionais vigentes, temos duas situações previstas quanto ao posicionamento dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro.

1º) os tratados internacionais que não tratem sobre direitos humanos, os quais serão aprovados por maioria simples, tendo, portanto, status de lei ordinária (art. 49, I, CF);

2º) os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, os quais serão equivalentes às emendas constitucionais (§ 3º, art. 5º, CF, acrescentado pela EC nº 45/2004).

Não obstante as situações trazidas pela Constituição brasileira há ainda aquela referente aos tratados internacionais que tratem sobre direitos humanos que não foram aprovados pelo quorum exigido pelo § 3º do art. 5º do CF, por serem tratados ratificados anteriormente à Emenda Constitucional nº 45 de 2004. Neste caso, segundo o Supremo Tribunal Federal, em decisão a ser analisada no próximo capítulo, os tratados internacionais terão status de norma "supralegal", isto é, estão situados acima das leis, porém abaixo da Constituição.

O Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada pelo Brasil através do Decreto Legislativo n. 27, de 25/09/1992, e promulgada pelo Decreto nº 678 de 6/11/1992) está inserido na hipótese do parágrafo anterior, assim como a Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT), cujo texto em vigor foi ratificado pelo Brasil em 13 de abril de 1948, conforme Decreto de Promulgação n. 25.696, de 20 de outubro de 1948.

Para parte da doutrina, o § 2º do artigo 5º da Constituição Federal confere caráter constitucional material às normas internacionais de direitos humanos ratificadas pelo Brasil, seja qual for o quorum de aprovação (PORTELA, 2010, p. 741).

Entretanto, esse entendimento torna desnecessário o § 3º do mesmo artigo, visto que a norma internacional de direitos humanos já teria status constitucional com a sua incorporação no ordenamento jurídico interno. Por isso, não haveria razão para uma aprovação nos moldes do § 3º para que a norma adquirisse status constitucional, pois ela já seria constitucional por força do § 2º. Esse foi o entendimento do Ministro Carlos Ayres Britto em voto proferido no HC 87.585-8.

Para PORTELA (2010, p. 746), ao adotar-se o entendimento de que as normas internacionais de direitos humanos são constitucionais, o § 3º do artigo 5º limitar-se-ia a distinguir as normas de direitos humanos materialmente constitucionais daquelas material e formalmente constitucionais. Lembra, porém, que sendo norma constitucional, tais tratados não poderão violar cláusula pétrea (PORTELA, 2010, p. 745).

O Pretório Excelso, de forma não unânime, porém majoritária, adotou a tese da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos não aprovados de acordo com o § 3º do artigo 5º da Constituição.

Cabe destacar o ensinamento de Portela a respeito da supralegalidade no campo dos direitos humanos:

[...] a supralegalidade parte da premissa de que os tratados de direitos humanos trazem normas que estão diretamente vinculadas à proteção da dignidade humana e que, por isso, têm importância superior no ordenamento jurídico, não podendo ser derrogadas por outras leis ordinárias simplesmente por serem estas mais novas ou especiais (PORTELA, 2010, p. 744).

Embora os tratados internacionais sobre direitos humanos não possam ter suas normas derrogadas por leis ordinárias, em função de sua posição hierárquica supralegal, eles estão, inevitavelmente, sujeitos ao controle de constitucionalidade.

Ainda a esse respeito, pronunciou-se José Afonso da Silva:

Esse § 3º inserido pela Emenda Constitucional 45/2004 regula ou interpreta a segunda parte do § 2º quando admite a incorporação dos tratados e convenções sobre direitos humanos ao direito constitucional pátrio - recepção, essa, que gerou controvérsia quanto a saber em que termos se dava essa incorporação. Parte da doutrina – que tinha meu apoio - sustentava que essa incorporação se dava já com a qualidade de norma constitucional; outra entendia que assim não era, porque esses acordos internacionais não eram aprovados com o mesmo quorum exigido para a formação de normas constitucionais. Não é o caso de discutir, agora, o acerto ou o desacerto dessas posições, uma vez que a Emenda Constitucional 45/2004, acrescentando esse § 3º ao art. 5º, deu solução expressa à questão no sentido pleiteado por essa última corrente doutrinária. Temos aí um § 3º regulando interpretativamente cláusula do § 2º, a dizer que os tratados e convenções sobre direitos humanos só se incorporarão ao Direito interno com o status de norma constitucional formal se os decretos legislativos por meio dos quais o Congresso Nacional os referenda (art. 49, I) forem aprovados com as mesmas exigências estabelecidas no art. 60 para a aprovação das emendas constitucionais […]. A diferença importante está aí: as normas infraconstitucionais que violem as normas internacionais acolhidas na forma daquele § 3º são inconstitucionais e ficam sujeitas ao sistema de controle de constitucionalidade na via incidente como na via direta; as que não forem acolhidas desse modo ingressam no ordenamento interno no nível de lei ordinária, e eventual conflito com as demais normas infraconstitucionais se resolverá pelo modo de apreciação da colidência entre lei especial e lei geral (SILVA apud FELICIANO, 2009, grifo meu).

Nesse diapasão, há que se concluir que os tratados internacionais sobre direitos humanos, não aprovados pelo quorum previsto no § 3º do artigo 5º da Constituição Federal, têm status de lei ordinária. Logo, o Pacto de São José da Costa Rica é lei ordinária, não obstante entendimento contrário do Supremo. Assim sendo, na ocorrência de colisões entre este tratado e demais normas infraconstitucionais deve ser aplicado o critério da especialidade.


4 PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL

4.1 A previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel

A prisão civil do depositário infiel está prevista no artigo 5º, inciso LXVII da CF/88 cujo texto dispõe que "não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel".

A Constituição Federal de 1988 manteve o texto das Constituições anteriores, suprimindo apenas a expressão "na forma da lei", que remetia à legislação infraconstitucional a regulamentação deste dispositivo.

Nesse contexto, o art. 153, § 17, da Constituição Federal de 1969 dispunha que: "não haverá prisão civil por dívida, multas ou custas, salvo o caso de depositário infiel ou do responsável pelo inadimplemento alimentar, na forma da lei" (SANTOS JÚNIOR, 2010, p. 143).

Conclui-se, portanto, que o constituinte originário não remeteu a matéria para regulamentação infraconstitucional. Destarte, a prisão civil do depositário infiel está prevista na Constituição Federal de 1988, sendo norma de eficácia plena, de aplicação imediata e integral.

Optou o legislador por disciplinar de forma clara e precisa a vedação da prisão por dívidas e autorizar essa prisão em duas situações excepcionais: nos casos do depositário infiel e do devedor de alimentos.

De acordo com SANTOS JÚNIOR (2010, p. 135), a legislação ordinária que temos a respeito não regulamenta a matéria, por desnecessário e até mesmo inconstitucional. A legislação ordinária existente apenas traz regras procedimentais, não a respeito das hipóteses de cabimento e de vedação, mas apenas as relativas ao cumprimento do preceito constitucional, como procedimento para se chegar a esta sanção, o regime da pena, a sanção, dentre outros aspectos procedimentais.

Ademais, insta salientar que o artigo 5º, inciso LXVII da CF/88 está inserido no título II, isto é, trata-se de direito e garantia fundamental que, conforme o § 1º do citado artigo tem aplicação imediata.

Além disso, o citado artigo está localizado, mais especificamente, no Capítulo I que se refere aos direitos individuais e coletivos. Consequentemente, o artigo 5º, inciso LXVII da CF/88 é cláusula pétrea, protegido pelo que dispõe o artigo 60, § 4º da Constituição, ipsis litteris:

Art. 60

§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.

Sendo assim, questiona-se a possibilidade da revogação do direito fundamental previsto no dispositivo supra. Direito fundamental que protege o exequente, trabalhador que busca na execução trabalhista satisfação de seus salários (SANTOS JÚNIOR, 2010, p. 147).

Entretanto, vem decidindo o Supremo Tribunal Federal que o dispositivo constitucional que prevê a prisão civil do depositário infiel não foi revogado. Tornou-se apenas inaplicável, devido à derrogação das normas infraconstitucioanais que disciplinam a matéria, resultado da ratificação pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica. Questão essa a ser analisada no próximo tópico.

Vale destacar o entendimento de Sarlet, citado por Santos Júnior (2010, p. 148), ao enfatizar que o problema da hierarquia constitucional entre o tratado incorporado (equivalente às emendas) e a Constituição Federal ainda não foi resolvido, advertindo que as emendas constitucionais podem ser declaradas inconstitucionais caso conflitantes com as cláusulas pétreas.

Assim, há na verdade um conflito entre direitos fundamentais. De um lado o direito fundamental do depositário infiel, reconhecido por parte da doutrina e jurisprudência, consistente no direito de não ser preso, decorrente do direito à liberdade e à dignidade. De outro lado, está o direito fundamental do credor trabalhista, do recebimento do seu salário, estando presentes nesta situação, seu direito à vida, aos alimentos e à sua própria dignidade.

4.2 Posição do Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal (STF) possuía jurisprudência pacificada admitindo a possibilidade da prisão do depositário infiel, litteratim:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. DEPOSITÁRIO INFIEL. PRISÃO CIVIL. CONSTITUCIONALIDADE. 1. Prisão civil de devedor fiduciário que, sem justificativa, não cumpre ordem judicial para entregar a coisa ou seu equivalente em dinheiro. Legitimidade. Recebido o Decreto-lei nº 911/69 pela ordem constitucional vigente, não há falar que a equiparação do devedor fiduciário ao depositário infiel ofende a Carta da República. Precedente do Pleno deste Tribunal. 2. Legalidade da prisão civil do depositário infiel. Matéria apreciada pelo Tribunal "a quo", que não afastou a possibilidade de prisão do devedor, se não cumpridas as condições por ele impostas para o adimplemento da obrigação. Não-observância dos fundamentos do acórdão recorrido pelo recorrente. Conseqüência: não-conhecimento do extraordinário. Agravo regimental não provido.

(STF. AI 345114 AgR, Relator(a): Min. Maurício Corrêa, Segunda Turma, julgado em 20/11/2001, DJ 01-03-2002 PP-00043 EMENT VOL-02059-09 PP-01887).

EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PRISÃO CIVIL. ORDEM DE PRISÃO QUE TEM COMO FUNDAMENTO A CONDIÇÃO DE SER O PACIENTE DEPOSITÁRIO JUDICIAL INFIEL: POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. HABEAS CORPUS INDEFERIDO. 1. A jurisprudência predominante deste Supremo Tribunal firmou-se no sentido da viabilidade da prisão civil do depositário judicial infiel. Precedentes. 2. Habeas corpus indeferido.

(STF. HC 92257, Relatora: Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgado em 26/02/2008, DJe-065 Divulg 10-04-2008 Publicado em 11-04-2008 Ement Vol-02314-05 PP-00872 LEXSTF v. 30, n. 354, 2008, p. 429-438)

Ao defender a prisão, o Supremo tinha por base a Constituição Federal que admite expressamente esta possibilidade.

Nesse contexto, foi editada a súmula 619 dispondo que "a prisão do depositário infiel pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura da ação de depósito".

A contenda acerca da possibilidade ou não desta espécie de prisão se deu a partir de 1992, ano em que o Brasil ratificou, através do Decreto 678, o Pacto de São José da Costa Rica, o qual, ao tratar sobre a liberdade pessoal em seu artigo 7º, item 7, dispõe o seguinte: "Ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar".

No mesmo ano foi ratificado, pelo decreto nº 592, de 6 de julho de 1992, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, cujo artigo 11 declara que "ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir uma obrigação contratual".

Mesmo com a ratificação desses tratados o Supremo continuou a proferir decisões insistindo na legitimidade da prisão.

A Corte tradicionalmente seguia a tendência que reconhece o status de lei ordinária aos tratados de direito internacional. Consoante o Ministro Menezes Direito, em voto proferido no HC 87.585-8/TO, essa vertente foi acolhida a partir do julgamento do RE nº 80.004/SE. Entretanto o Ministro assevera:

[...] naquele caso não se cuidava propriamente de um tratado internacional sobre direitos humanos, mas sobre títulos de crédito. Além disso, o seu julgamento remonta do ano de 1977, antes, portanto, da promulgação da atual Constituição Federal. De qualquer forma, a tese então fixada foi reiterada em seguidos precedentes desta Corte, posteriores a 1988, e que versavam inclusive sobre tratados internacionais sobre direitos humanos (STF. HC 87585 / TO, Relator: Min. Marco Aurélio. Tribunal Pleno, julgado em 03/12/ 2008, DJe-118, Divulg 5-06-2009, Publicado em 26-06-2009)

Após várias discussões sobre a matéria o Supremo mudou sua posição para fixar entendimento de que a prisão civil do depositário infiel não é mais possível no ordenamento jurídico brasileiro diante do que dispõe o citado pacto.

Tal discussão mostra-se patente no HC 87.585-8/TO, no qual podem ser vistos diferentes entendimentos entre os ministros sobre o tema, além dos principais fundamentos que a Colenda Corte se utiliza para concluir pela inadmissibilidade da prisão.

Diante de sua repercussão no âmbito jurídico, o acórdão do HC 87.585-8/TO merece destaque nesta pesquisa e será, portanto, objeto de análise.

Primeiramente, vale ressaltar que o acórdão em questão trata de caso específico de ação de depósito em que a prisão depositário infiel foi decretada em razão do descumprimento do contrato de depósito, tendo o depositário impetrado com o habeas corpus. Não se trata de alienação fiduciária, como também não guarda relação com a figura do depositário judicial.

Segundo o entendimento do Ministro Marco Aurélio, relator do acórdão, não mais subsiste, após a subscrição do Pacto de São José da Costa Rica, a regulamentação dessa prisão mediante texto estritamente legal, e, não havendo essa regulamentação, o preceito da Constituição Federal não é auto-aplicável, porque nem sequer delimita o tempo de custódia (HC 87585/TO, rel. Min. Marco Aurélio, 2008).

O Ministro Menezes Direito em seu voto ensina que a respeito do status normativo dos tratados internacionais sobre direitos humanos, conforme o voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes no RE nº 466.343/SP, existem quatro correntes principais:

[...] a) a vertente que reconhece a natureza supraconstitucional dos tratados e convenções em matéria de direitos humanos;

b) o posicionamento que atribui caráter constitucional a esses diplomas internacionais;

c) a tendência que reconhece o status de lei ordinária a esse tipo de documento internacional;

d) por fim, a interpretação que atribui caráter supralegal aos tratados e convenções sobre direitos humanos (HC 87585/TO, rel. Min. Marco Aurélio, 2008, voto do Min. Menezes Direito, p. 20).

Desta feita, trata-se de uma relação de subordinação hierárquica na qual o depositário assume, por delegação, uma função pública. O depositário judicial não assume uma dívida, mas, apenas um encargo judicial, envolvendo a própria dignidade do processo judicial(HC 87585/TO, rel. Min. Marco Aurélio, 2008, p. 331).

O Ministro Ricardo Lewandowski afirma que a prisão "se afigura absolutamente desproporcional, irrazoável, ao meu ver, pois não atinge os seus objetivos, além de ser ofensiva ao princípio da dignidade da pessoa humana" (HC 87585/TO, rel. Min. Marco Aurélio, 2008, p. 349).

O Ministro Cézar Peluso defende o status constitucional, pois "é possível extrair da conjugação dos §§ 2º e 3º do art. 5º que o que temos aí é, pura e simplesmente, uma distinção entre tratados sem status de emenda constitucional, que são materialmente constitucionais, e os do § 3º, que são material e formalmente constitucionais" (HC 87585/TO, rel. Min. Marco Aurélio, 2008, p. 353).

A Ministra Ellen Grace acompanhou por inteiro o voto do Ministro Celso de Melo. Para ela, os tratados de direitos humanos firmados antes da EC nº 45 integram, por força do § 2º do art. 5º da CF/88, o bloco de constitucionalidade. Os demais, firmados a partir desta emenda se submeterá ao procedimento previsto no § 3º do art. 5º da CF/88 (HC 87585/TO, rel. Min. Marco Aurélio, 2008, p. 359).

Por fim, nesse sentido, o Informativo nº 531 do Supremo Tribunal Federal:

Prisão Civil e Depositário Infiel - 3

Em conclusão de julgamento, o Tribunal concedeu habeas corpus em que se questionava a legitimidade da ordem de prisão, por 60 dias, decretada em desfavor do paciente que, intimado a entregar o bem do qual depositário, não adimplira a obrigação contratual — v. Informativos 471, 477 e 498. Entendeu-se que a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7º, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do que previsto no art. 5º, LXVII, da CF ("não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;"). Concluiu-se, assim, que, com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel. Prevaleceu, no julgamento, por fim, a tese do status de supralegalidade da referida Convenção, inicialmente defendida pelo Min. Gilmar Mendes no julgamento do RE 466343/SP, abaixo relatado. Vencidos, no ponto, os Ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau, que a ela davam a qualificação constitucional, perfilhando o entendimento expendido pelo primeiro no voto que proferira nesse recurso. O Min. Marco Aurélio, relativamente a essa questão, se absteve de pronunciamento.

(HC 92566/SP, rel. Min. Marco Aurélio, 3.12.2008).

Destarte, ante todos os argumentos acima expostos, o Supremo Tribunal Federal concluiu pela inadimissibilidade da prisão civil do depositário infiel, seja qual for a modalidade de depósito. Para tanto, conferiu ao Pacto de São José da Costa Rica o caráter de norma supralegal, e, por via de consequência, restaram derrogadas as normas regulamentadoras desta espécie de prisão.

4.3 Posição do Superior Tribunal de Justiça

O histórico jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acerca da prisão civil do depositário infiel tem início, tal qual no Supremo, com a permissibilidade da prisão, ipsis litteris:

PRISÃO CIVIL. DEPOSITÁRIO INFIEL. DESCUMPRIMENTO VOLUNTÁRIO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO DEPÓSITO. RECURSO IMPROVIDO.

- É legal a prisão de depositário judicial que, apesar de intimado a entregar os bens penhorados, deixa de fazê-lo. Precedentes.

- Descumprido, de forma voluntária, o dever de guarda e conservação dos bens arrolados, caracteriza-se a infidelidade, o que legitima a prisão civil.

- O processo de habeas corpus não há campo para exame de matéria controvertida, e que enseja produção de prova.

(STJ. HC 88283 MS 2007/0180629-1. Relator: Min. Humberto Gomes de Barros. Terceira Turma. julgado em 09/10/2007, publicado no DJ em 25/10/2007, p. 166).

Igualmente, permitia-se a prisão civil do depositário judicial infiel, sob a alegação de inaplicabilidade quanto a ele do Pacto de São José da Costa Rica, in verbis:

HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO. PRISÃO CIVIL. DEPOSITÁRIO INFIEL. PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA. INAPLICABILIDADE.

1. A vedação à prisão civil encartada no Pacto Internacional de San José da Costa Rica não se aplica às hipóteses de descumprimento de depósito judicial. Aplicação da Súmula n. 619/STF.

2. Recurso ordinário improvido.

(STJ. RHC 22156 SP 2007/0236815-7. Relator: Min. João Otávio de Noronha. Quarta Turma, julgado em 12/02/2008. Publicado no DJ em 25/02/2008).

Antes de alterar o seu entendimento, em razão da decisão do STF analisada no tópico anterior, já havia vedação no STJ da prisão civil decorrente de contrato de alienação fiduciária, como se segue:

AGRAVO REGIMENTAL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA - PRISÃO CIVIL - NÃO-CABIMENTO - JURISPRUDÊNCIA PACIFICADA DO STJ NESSE SENTIDO.

É assente a jurisprudência desta Corte no sentido de que é cabível a prisão civil do depositário infiel nas hipóteses de contrato de depósito típico, não se estendendo, entretanto, essa permissão legal aos devedores que possuem débito calcado em contrato de alienação fiduciária. Agravo regimental improvido. (STJ. AgRg no Ag 887742 PR 2007/0072788-6. Relator: Min. Sidnei Beneti. Terceira Turma, julgado em 11/03/2008, publicado no DJe em 01/04/2008).

Todavia, com um estreito placar de três votos a dois, a Quarta Turma do STJ modificou sua jurisprudência, que já estava pacificada, para adotar o posicionamento da Corte Suprema. Apesar da decisão tomada, houve resistência de alguns ministros para acompanhar o Supremo, é o que se depreende do excerto abaixo:

[...] o relator do caso, ministro Aldir Passarinho Júnior, propôs a mudança de entendimento, mas encontrou resistência do ministro Otávio de Noronha e do desembargador convocado Carlos Mathias. Segundo Noronha, "essa doutrina dá fim aos meios de coação da Justiça" e ameaça o prestígio da instituição. "As pessoas pagam o contrato de leasing por três meses, usam o carro por cinco anos, entregam ele totalmente deteriorado e não se pode fazer nada?", afirmou. Para Carlos Mathias, a posição do Supremo é permissiva com o devedor e faz "tábula rasa" da Constituição Federal. O próprio relator, Aldir Passarinho, observou que os juízes precisarão buscar novas saídas para as penhoras, como nomear o próprio credor responsável pelo bem ou levar as garantias para um depósito judicial (TEIXEIRA, 2008).

Não obstante, a Corte Especial fixou jurisprudência seguindo o entendimento do STF:

HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL DE DEPOSITÁRIO JUDICIAL. ILEGALIDADE. PRECEDENTES

1. Conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal, é inconstitucional a prisão civil do depositário infiel e do alienante fiduciário (RE n. 466.343/SP). 2. Ordem concedida.

(STJ. HC 156878 MG 2009/0242579-0. Relator: Min. João Otávio de Noronha. Quarta Turma, julgado em 23/03/2010, publicado no DJe em 05/04/2010).

Advogados atuantes na área de cobrança para instituições financeiras manifestaram-se contrariamente a decisão do STJ:

Segundo Solano de Camargo, do escritório Dantas, Lee, Brock e Camargo Advogados, a decisão do STJ é um "retrocesso terrível" e as saídas apontadas para o problema, como nomear o credor como responsável pela garantia ou levar os bens para um depósito, são inviáveis na prática. "Enquanto o Legislativo tenta melhorar a recuperação de crédito, aprovando a reforma da execução civil, o Judiciário vai na contramão", diz.

Em uma auditoria feita na carteira de créditos em recuperação de um cliente da área financeira, com 114 processos, o advogado afirma que 60% dos bens penhorados eram imóveis ou veículos e outros 40% eram bens do ativo fixo das empresas, ou seja, máquinas e equipamentos. No caso do ativo fixo, ele acredita o fim da prisão deve levar à perda total das garantias.

Segundo Fabíola de Toledo Machado, sócia do escritório Perez de Rezende Advogados, o fim da prisão civil no caso da alienação fiduciária já está gerando preocupação há algum tempo no mercado, e a confirmação do resultado do julgamento no Supremo certamente terá impacto sobre a oferta de crédito (TEIXEIRA, 2008).

Em que pesem as controvérsias ainda existentes sobre o tema, é pacífica a posição do STJ quanto à inaplicabilidade da prisão civil do depositário infiel, seja qual for a modalidade, ainda que se trate da contrato de alienação fiduciária em garantia. A corte, portanto, segue por inteiro a decisão ultimada pelo STF.


5 PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL NA JUSTIÇA DO TRABALHO

A possibilidade da prisão civil do depositário infiel prevista expressamente pela Constituição Federal é, como ensina o magistrado Mauro Schiavi, exceção ao princípio da patrimonialidade da execução (art. 591 do CPC), in verbis:

[...] tendo por escopo a prisão que é de índole processual, e não penal, forçar o depositário a entregar o bem que está sob sua guarda, garantindo-se a dignidade do processo e a efetividade da jurisdição (SCHIAVI, 2010, p. 967).

Ressalte-se que não cabe ao juiz decretar a prisão do depositário sem antes ensejar-lhe o direito de defesa e o esclarecimento sobre o desaparecimento dos objetos penhorados, sendo-lhe garantido o contraditório e a ampla defesa e até mesmo a possibilidade de depositar o preço do bem penhorado como medida para evitar a prisão (THEODORO JÚNIOR apud SCHIAVI, 2010, p. 967).

A prisão poderá ser determinada pelo Juiz do Trabalho por tempo não superior a um ano (§ 1º, art. 902, CPC).

Sem prejuízo do depósito ou da prisão do réu, pode o autor promover a busca e apreensão da coisa. Caso esta seja encontrada ou entregue voluntariamente pelo réu, cessará a prisão, sendo devolvido o equivalente em dinheiro (art. 905, CPC).

Nesse contexto, adverte Júlio César Bebber que esse procedimento trata-se, na verdade, de uma "técnica processual de coerção", e explica:

A prisão civil (ou ameaça de prisão) embora constitua medida privativa de liberdade de locomoção física, não tem natureza jurídica de penalidade. Trata-se de técnica processual de coerção adotada com o escopo de constranger o depositário a restituir os bens depositados (BEBBER apud SCHIAVI, 2010, p. 967).

Corrobora com esse entendimento Marcelo Cerveira Gurgel que entende ser a prisão civil um instituto de coerção pessoal que pode ser usado pelo Poder Judiciário em situações excepcionais e plenamente justificadas, afirmando em poucas linhas que: "A prisão civil não possui natureza sancionatória e é um importante instrumento de coerção pessoal que deve ser utilizado pelo Poder Judiciário na consecução de sua missão constitucional" (GURGEL, 2007, p. 158).

Diante dos esclarecimentos até então expostos nesta obra, os tópicos deste capítulo direcionam a análise do tema à Justiça do Trabalho, levando-se em consideração as peculiaridades inerentes a ela.

5.1 Posição do Supremo Tribunal Federal

Conforme já citado no item 4.1 do capítulo anterior, o STF, mesmo após a ratificação do Pacto de São José da Costa Rica, admitia a prisão civil do depositário infiel.

Posteriormente, o Supremo alterou seu posicionamento ao fixar jurisprudência no sentido da proibição da referida prisão de acordo com os fundamentos já discutidos. Em consequência, foi cancelada a súmula nº 619, e editada a súmula vinculante nº 25 com o seguinte teor: "É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito".

Não obstante o entendimento pacificado do STF, há discordância de parte dos magistrados e doutrinadores acerca do tema, seja no que pertine ao status dos tratados sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil sem obediência ao quorum previsto no § 3º do art. 5º da CF/88, seja em relação à falta de discussão da matéria sob a óptica trabalhista.

Note-se que de todas as lides analisadas pelo Supremo para a adoção dessa posição, nenhuma trata de prisão civil de depositário infiel em processo em trâmite na Justiça do Trabalho.

Georgenor de Souza, juiz do trabalho, salienta ainda a questão da repercussão geral, requisito para o exame de recursos extraordinários. Segundo ele, "no caso do depositário infiel, a repercussão geral dada foi apenas para a hipótese de alienação fiduciária" (FRANCO FILHO, 2010). Acrescenta também o magistrado que:

[...] no dia 5 de outubro de 2009, antes da aprovação da Súmula Vinculante n. 25, o Min. Carlos Ayres Britto, apreciando o HC 100.888, concedeu o remédio por entender que o Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil, prevalece como norma supralegal na norma jurídica interna e, assim, proíbe a prisão civil por dívida. De acordo com o decisório, não é norma constitucional, mas a sua hierarquia intermediária de norma supralegal autoriza afastar regra ordinária brasileira que possibilite a prisão civil por dívida. Este foi o primeiro caso de exame do tema em matéria trabalhista. E a ementa do HC 95.170, base desta decisão, é a mesma do HC 94.013, citado acima, e, o tema era de depositário infiel em processo de execução de título extrajudicial na Justiça estadual comum do Rio Grande do Sul, evidentemente sem qualquer ligação com crédito trabalhista e decisão proferida em processo oriundo da Justiça do Trabalho ou crédito trabalhista. A Súmula Vinculante n. 25 segue a esteira desse julgado (FRANCO FILHO, 2010, grifo meu).

Nesse contexto, na decisão do STF que culminou na edição da súmula vinculante nº 25, algumas questões não foram consideradas, fato que enseja a discussão da aplicabilidade dessa decisão na justiça do trabalho. Por isso, tais assuntos necessitam de esclarecimento e serão, no decorrer deste capítulo, paulatinamente discutidos, são eles: a natureza alimentar dos créditos trabalhistas; a Constituição da OIT; o direito à vida; o andamento das execuções trabalhistas no Brasil.

5.2 Natureza jurídica dos créditos trabalhistas (art. 100, §1º - A da CF)

A Constituição Federal de 1988 atribui privilégio especial ao crédito trabalhista, indubitavelmente considerado alimentar, in verbis:

Art. 100

§ 1º-A – Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou invalidez, fundadas na responsabilidade civil, em virtude de sentença transitada em julgado.

Conforme se depreende do citado artigo, os créditos trabalhistas da mesma forma que as pensões, são considerados débitos de natureza alimentícia.

Por conseguinte, discute-se a razão pela qual a prisão civil do depositário infiel é vedada na seara trabalhista, já que o respectivo débito em questão tem natureza alimentar. De outro lado, permite-se a prisão do devedor de prestação alimentícia.

Nesse passo, Georgenor de Sousa traz o seguinte entendimento acerca dessa questão:

[...] o crédito trabalhista tem natureza alimentar, por isso é privilegiado em relação a todos os demais, sem exceção. E por que? Porque o direito à contra prestação pelo trabalho prestado abrange, por igual, o direito à alimentação. Pois bem! Ao negar o direito de prender o depositário infiel, estará sendo negado o direito de o credor trabalhista (de natureza alimentar), que tem direito também à alimentação, e a alimentação é vida, obrigar o cumprimento de uma tarefa que judicialmente foi atribuída a outrem: ao fiel (agora infiel) depositário (FRANCO FILHO, 2010).

A alimentação é um direito social, além de ser direito fundamental do cidadão. Está diretamente relacionado ao direito à vida, à sobrevivência e à dignidade, previstos no art. 1º, III, e 6º da Constituição Federal. O qual requer a devida proteção.

Em outro plano de argumentação, SANTOS JÚNIOR (2010, p. 146) sustenta que o Pacto de São José da Costa Rica não é direcionado ao devedor de alimentos, não está voltado à proteção do depositário de um bem que visa satisfazer uma obrigação alimentícia, oriunda do trabalho prestado por uma pessoa à outra. Tem como embasamento a própria exposição de motivos daquele tratado e o artigo 7º, 7 do mesmo que dispõe: "Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar". Assim, o autor traz a seguinte ressalva:

Uma interpretação sistemática a respeito dessa norma sinalizará a impossibilidade da proteção do depositário infiel de um bem que visa a satisfazer uma dívida de natureza alimentícia, como ocorre nas execuções trabalhistas de um modo geral. Não há como se inverter a lógica do sistema concebido no próprio Pacto, que visava proteger justamente o hipossuficiente e não desproteger o trabalhador que vendeu sua força de trabalho e não recebeu o correspondente pagamento (SANTOS JÚNIOR, 2010, p. 146).

Destarte, não é certo negar a proteção ao trabalhador, no que tange à sua sobrevivência, em face do depositário infiel cuja obrigação é a satisfação de uma dívida alimentícia, o que vai de encontro aos preceitos do próprio Pacto de São José da Costa Rica.

Flávia Piosevan, citada por Santos Filho (2010, p. 147), leciona que na ocorrência de eventual conflito entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito interno, adota-se o critério da prevalência da norma mais favorável à vítima. Isto é, prevalecerá a norma que melhor proteja, em cada caso, os direitos da pessoa humana. Nessa situação, deve-se avaliar quem é a vítima, isto é, se a vítima seria o depositário infiel (normalmente o empregador) do bem que serviria para o pagamento de uma dívida de natureza alimentícia, ou o trabalhador que ficou sem o recebimento desses alimentos, apesar do trabalho prestado em favor do empregador.

Outro argumento a ser analisado é aquele defendido pelo Ministro Menezes Direito em voto proferido no HC 87.585-8/TO, estudado no capítulo anterior. Segundo ele, a impossibilidade de prisão com base no Pacto de São José da Costa Rica não abrange o depositário judicial, pois neste caso não se trata de dívida, como se refere o tratado, mas sim de um múnus público assumido pelo depositário.

Mauro Schiavi corrobora o entendimento do Ministro, defendendo que:

O art. 7, item 7, da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos proíbe a prisão civil por dívidas. O depositário tem uma obrigação processual de natureza pública para entrega do bem penhorado que está sob sua guarda. Não se trata, no nosso sentir, de prisão por dívida, mas pelo não cumprimento de um encargo público (SCHIAVI, 2010, p. 971).

Importa acrescentar outro posicionamento no sentido da aplicação da prisão civil oriunda de dívida alimentar, não adimplida por ato voluntário e inescusável, aos devedores de créditos trabalhistas de natureza salarial (SOUTO MAIOR; TOLEDO FILHO, p. 1). Esta posição fundamenta-se, além do caráter alimentar do salário, na similitude entre o rito preconizado pela Lei nº 5.478/68, que dispõe sobre a ação de alimentos, e à dívida trabalhista, litteratim:

a) o pedido pode ser externado verbalmente, com sua redução a termo pelo escrivão (Lei 5.478, art. 3º, §s primeiro e segundo; CLT, art. 840, § 2º);

b) a segunda via da petição ou do termo será remetida ao demandado no prazo de 48 horas (Lei 5.478, art.5º; CLT, art. 841);

c) a citação é em regra postal (Lei 5.478, art. 5º, § 2º; CLT, art. 841, § 1º);

d) o autor é notificado da data da audiência já no ato de recebimento da petição ou da lavratura do termo (Lei 5.478, art. 5º, § 6º; CLT, art. 841, § 2º);

e) na audiência, deverão estar presentes autor e réu, independentemente da presença de seus representantes (Lei 5.478, art. 6º; CLT, art. 843);

f) a ausência do autor importará em arquivamento e a do réu em revelia e confissão (Lei 5.478, art. 7º; CLT, art. 844);

g) as testemunhas, até o máximo de três para cada parte, comparecerão espontaneamente à audiência, na qual ademais serão apresentadas eventuais outras provas (Lei 5.478, art. 8º; CLT, arts. 821, 825 e 845);

h) audiência deverá ser contínua, salvo motivo de força maior (Lei 5.478, art. 10; CLT, art. 849);

i) as alegações finais serão verbais, no prazo de 10 minutos, após o que será renovada a proposta conciliatória, seguindo-se, caso esta resulte frustrada, a prolação da decisão (Lei 5.478, art. 11 ; CLT, art. 850);

j) as partes reputar-se-ão intimadas da sentença na própria audiência (Lei 5.478, art. 12; CLT, art. 852) (SOUTO MAIOR; TOLEDO FILHO, p. 2).

Assim, para a referida corrente, o instituto da prisão civil por dívidas de cunho alimentar, que, embora detenha expressa previsão constitucional, é por completo desconhecido no âmbito trabalhista.

Diante dos argumentos expostos no presente tópico, conclui-se: que é inegável a natureza alimentar dos créditos trabalhistas; que o Pacto de São José da Costa Rica está mais voltado para a proteção do trabalhador do que para a proteção do depositário infiel que não cumpre uma obrigação de caráter alimentar; e que o depositário judicial assume um encargo público, e não uma dívida, sendo passível de prisão.

5.3 A Constituição da Organização Internacional do Trabalho e o Pacto de São José da Costa Rica

Dentre os princípios que norteiam o Direito do Trabalho está o princípio da proteção, cujo propósito consiste em tentar corrigir desigualdades, criando uma superioridade jurídica em favor do empregado, diante da sua condição de hipossuficiente (BARROS, 2008, p. 180).

O princípio da norma mais favorável encontra fundamento na existência de duas ou mais normas em que há polêmica quanto à preferência de aplicação de uma ou de outra. Segundo Alice Monteiro de Barros (2008, p. 180), "esse princípio autoriza a aplicação da norma mais favorável, independentemente de sua hierarquia".

É interessante lembrar que o princípio da aplicação da norma mais benéfica ao trabalhador, conforme ensina Georgenor de Sousa (2010), está consagrado no art. 19, item 8, da Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que dispõe:

Art. 19, 8

Em caso algum, a adoção, pela Conferência, de uma convenção ou recomendação, ou a ratificação, por um Estado-Membro, de uma convenção, deverão ser consideradas como afetando qualquer lei, sentença, costumes ou acordos que assegurem aos trabalhadores interessados condições mais favoráveis que as previstas pela convenção ou recomendação.

A Constituição da OIT foi ratificada pelo Brasil em 13 de abril de 1948, conforme Decreto de Promulgação n. 25.696, de 20 de outubro de 1948. Posteriormente, o Pacto de São José da Costa Rica foi aprovado pelo Brasil através do Decreto Legislativo n. 27, de 25/09/1992, e promulgado pelo Decreto nº 678 de 6/11/1992, prevendo em seu art. 7º, item 7 que "Ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar".

Frise-se que ambos os tratados, relativos à aplicação de direitos humanos fundamentais foram ratificados pelo Brasil antes da EC nº 45, portanto, não obedeceram ao quórum previsto no § 3º da Constituição Federal de 1988, possuindo status supralegal, conforme entendimento do STF.

Sendo assim, Georgenor de Sousa (2010) entende que, considerando tal situação, há um conflito de normas supralegais, quais sejam:

[...] a que privilegia o crédito trabalhista, de natureza alimentar, caso do dispositivo constitucional que permite a prisão do depositário infiel, considerando o tratamento atribuído pelo art. 19 da Constituição da OIT, de um lado; e a regra do Pacto de San José da Costa Rica que não admite a prisão desse depositário, salvo em caso de obrigação alimentícia, que, para esse fim, pode-se limitar ao seu sentido mais estrito, de pensão alimentícia decorrente de processo na Justiça Comum, no âmbito das relações civis (FRANCO FILHO, 2010).

Segundo o autor, aplicando-se o princípio da especialidade, a regra do artigo 19 da Constituição da OIT, permitirá a prisão civil do depositário infiel nos processos trabalhistas.

De acordo com esse raciocínio, Alice Monteiro de Barros (2008, p. 176) preleciona que, em se tratando de conflito entre regras, a solução está na perda da validade de uma delas em favor da outra. Por outro lado, tratando-se de princípios, privilegia-se um deles, sem que o outro seja violado. Por isso, pode-se concluir que os princípios têm como característica a relatividade, posto que eles não são aplicados de forma absoluta. Por fim, a autora acentua que para a conciliação entre princípios, sugere-se a invocação do princípio da proporcionalidade deduzido no art. 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988.

Insta salientar que o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios, são eles: princípio da proporcionalidade em sentido estrito, ou máxima do sopesamento; princípio da adequação e princípio da exigibilidade, ou mandamento do meio mais suave (BARROS, 2008, p. 177).

O princípio da proporcionalidade em sentido estrito assegura que deverá ser empregado o melhor meio possível, sob o prisma jurídico, para ser alcançado o fim de uma determinada disposição normativa.

Por conseguinte, o princípio da adequação estabelece que a partir dele seja atingido o fim legítimo perseguido. Por sua vez, o princípio da exigibilidade institui que a medida sancionadora é exigível quando o legislador não poderia ter escolhido outra, igualmente eficaz, sem o sacrifício dos direitos fundamentais ou o menor grau dos mesmos.

Por tudo, observa-se a possibilidade da prevalência da Constituição da OIT perante o Pacto de São José da Costa Rica, vez que ambos são hierarquicamente considerados como normas supralegais.

Isto enseja a aplicação do princípio da especialidade a fim de que seja aplicada a norma mais favorável ao trabalhador, isto é, a permanência do meio coercitivo da prisão do depositário infiel tendo por fim o recebimento do crédito pelo trabalhador, elemento essencial à sua própria sobrevivência. De igual forma, enseja a aplicação do princípio da proporcionalidade, devendo prevalecer o princípio consagrado na Constituição da OIT, posto que, o não recebimento do crédito pelo trabalhador exequente ou até sua postergação implica em danos morais e materiais a ele e a sua família, comprometendo entre outros fatores, a sua sobrevivência, como já enunciado.

5.4 Direito à liberdade X direito à vida

Ao discutir a aplicabilidade da prisão civil do depositário infiel, é fundamental tratar do conflito de direitos fundamentais que permeia o tema: o direito à liberdade (do depositário infiel) e o direito à vida (do credor trabalhista).

Note-se que trata-se de uma relação em que estão em conflito a liberdade do depositário que tem a obrigação legal de cumprir a ordem judicial, e a vida do credor exequente que normalmente depende do recebimento do seu crédito para a sua própria sobrevivência e de sua família, sua própria dignidade.

Em eventuais colisões entre direitos fundamentais a doutrina encontra solução na ponderação de princípios e valores. Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, habitualmente tem sido adotado o critério da opção mais benéfica à pessoa, nos seguintes termos:

Certo é que aqui haverá de se buscar uma harmonização das posições conflitantes, no âmbito de uma concordância prática (tal como proposta por Konrad Hesse) e que inevitavelmente passa por uma hierarquização dos valores e princípios em pauta (Juarez Freitas). Para não nos omitirmos aqui no que diz com uma tomada de posição pessoal em sem que se possa aqui aprofundar-se a esse aspecto, adotamos o entendimento de que na dúvida impõe-se a opção pela solução mais afinada com a proteção da dignidade da pessoa humana (in dúbio pro dignitate), tal qual nos propõe Juares Freitas, ainda que em outro contexto (SARLET apud SANTOS JÚNIOR, 2010, p. 148).

Dessa forma, a técnica de ponderação de valores e a harmonização de interesses conflitantes é a solução encontrada pela doutrina em situações de contraposição de direitos fundamentais.

Nessa esteira, Marcelo Cerveira Gurgel (2007, p. 155) lembra que não se deve olvidar de outro princípio fundamental inserido na Constituição que é o princípio da máxima efetividade da prestação jurisdicional:

Não podemos esquecer que o próprio constituinte positivou o princípio da inafastabilidade da prestação da tutela jurisdicional efetiva, quando em seu art. 5°, XXXV, dispôs que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito."

Ora, de nada adiantaria impor ao Poder Judiciário uma prestação para evitar a lesão ou ameaça a direito se esta prestação não puder ser efetiva (GURGEL, 2007, p. 155).

Assim, não há como aniquilar as, muitas vezes, remotas hipóteses que o credor trabalhista tem de receber seus direitos, protegendo o depositário do bem de tal forma que ele possa até mesmo vender o bem sem maiores responsabilidades.

5.5 A vedação da prisão civil do depositário infiel e seus reflexos na execução trabalhista

O posicionamento do Supremo Tribunal Federal foi cristalizado na súmula vinculante nº 25 que afirma ser ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito.

Ao fixar esse entendimento, o Supremo não analisou pormenorizadamente o assunto sob os aspectos peculiares da justiça do trabalho, o que gerou consequências na execução trabalhista cujas principais vítimas são os credores exequentes.

Mauro Schiavi, a respeito da definição e objetivo da execução trabalhista, ensina que:

[...] consiste num conjunto de atos praticados pela Justiça do Trabalho destinados à satisfação de uma obrigação consagrada num título executivo judicial ou extrajudicial, da competência da Justiça do Trabalho, não voluntariamente satisfeita pelo devedor, contra a vontade deste último (SCHIAVI, 2010, p. 815).

A execução, portanto, visa a satisfação da obrigação contida no título, a qual não foi satisfeita voluntariamente pelo credor. Em outras palavras, a execução tem como objetivo a efetivação da prestação jurisdicional.

Nesse passo, um dos princípios norteadores da execução trabalhista é o da efetividade, isto é, o máximo de resultado com o menor dispêndio de atos processuais (SCHIAVI, 2010, p. 819).

Araken de Assis explica que o êxito da execução trabalhista pode ser verificado de duas formas:

[...] quando entrega rigorosamente ao exeqüente o bem perseguido, objeto da prestação inadimplida, e seus consectários, ou obtém o direito reconhecido no título executivo. Este há de ser o objetivo fundamental de toda e qualquer reforma à função jurisdicional executiva, favorecendo a realização do crédito (ASSIS apud SCHIAVI, 2010, p. 819).

Destarte, alguns estudiosos do direito entendem que o Supremo Tribunal Federal, ao editar a súmula vinculante nº 25, agiu na "contramão", uma vez que prejudica a efetividade na aplicação da justiça [01].

Assim também compreende André Campello, ao aduzir que "tal decisão é catastrófica, pois quebra o alicerce da prestação jurisdicional: o já combalido processo de execução" (CAMPELLO, 2010).

Para Georgenor de Sousa, com a aprovação da súmula, torna-se profundamente difícil obrigar o depositário a cumprir com diligência o sua missão. Segundo ele, três são os aspectos que mais chamam a atenção:

Primus, a única esperança real de se efetivar a liquidação de um feito ante atos de violação praticado por depositário infiel é a sua possível prisão. E a previsão consta do inciso LXVII do art. 5º da Constituição. Secundo, perderá total motivo de existir o inciso IV do art. 114 da Constituição, eis que ao Juiz do Trabalho só cabe mandar prender depositário infiel. Logo, se não existir mais essa hipótese, evidente que o habeas corpus na competência da Justiça do Trabalho será apenas um enfeite despiciendo. Tertius, a guisa de se invocar direitos humanos, viola-se o novo comando constitucional e se reconhece, como supralegal, tratados dessa natureza, sem que tenha sido observado o quorum exigido, pretendendo ter esse alcance supralegal ter sido reconhecido desde 1988, com o texto primitivo do § 2º do art. 5º constitucional (FRANCO FILHO, 2010).

De fato, uma das consequências da decisão do Supremo é a impossibilidade de o juiz do trabalho decretar prisão, pois a única possibilidade era no caso do depositário infiel.

Conforme recorda André Campello (2010), "a prisão civil também servia como meio dissuatório de tentativa de prática de atos fraudulentos à execução".

Na falta deste instrumento de coerção poderá o depositário se sentir à vontade para, inclusive, alienar o bem sob sua guarda. De acordo com o citado autor, poder-se-ia até pensar, neste caso, no crime de ato atentatório à dignidade da justiça (art. 593 e art. 600, I, do CPC), com aplicação, no máximo, de multa de 20% (art. 601 do CPC), no entanto, essa não parece ser a melhor solução, como se observa em sua explicação:

[...] se o devedor (que geralmente é o próprio depositário do bem penhorado) não se intimidou com a cobrança da dívida principal, expondo-se à execução, por que se atormentaria com a aplicação de uma pequena sanção pecuniária? De fato, não existe mais nenhuma preocupação para o depositário infiel (CAMPELLO, 2010).

Outra alternativa a ser analisada por André Campello (2010) seria obrigar o devedor a exibir o bem conscrito em certo prazo, sob pena de prática de crime de desobediência, tipificado no art. 330 do Código Penal. Por outro lado, o perecimento da coisa não importaria na prisão.

Santos Júnior (2010, p. 149) salienta que, em geral, nas execuções trabalhistas o proprietário do bem penhorado fica também como depositário fiel, o que lhe possibilita continuar usando e auferindo lucros com o respectivo bem, já que na maioria das situações o depositário vem a ser ex-empregador do trabalhador exequente.

Ademais, ao evitar que o bem conscrito seja recolhido a um depósito judicial, por exemplo, a execução não é onerada, visto que, conforme afirma o citado autor, não há despesas com transporte e nem armazenamento do bem. Nesses termos, a execução se processa de forma menos gravosa para o devedor.

A magistrada TRT da 14ª Região, Luzinália de Souza Moraes (2010), salienta que uma solução seria a retirada do bem da posse do devedor não o deixando com o depositário, porém nesta região, por exemplo, não há depósito judicial para o qual poderia ser levado o bem. Outra solução seria deixar credor como depositário do bem, todavia, no caso de o bem possuir valor superior ao crédito exequendo esse não seria o procedimento mais adequado. Conclui, com isso, que a impossibilidade de prisão gerou o "esvaziamento do processo executivo" [02].

Desse modo, a estrutura da execução trabalhista encontra-se ameaçada, tendo em vista a impossibilidade da decretação da prisão do infiel depositário. Tal é o que conclui, em fortes linhas, Rubens Fernando Clamer dos Santos Júnior:

Esta sistemática terá de obrigatoriamente ser alterada na hipótese de a jurisprudência consagrar o entendimento da impossibilidade da prisão civil do depositário infiel desse bem, porquanto não há como se manter este procedimento se não há meios de se garantir a restituição do bem. Trata-se de medida inútil, ineficaz e fadada ao insucesso. Obrigatoriamente, a fim de se garantir um resultado útil e eficaz à prestação jurisdicional, o bem terá de ser recolhido, deixando de ser depositário o proprietário ou o possuidor do bem. Esta alternativa estará prejudicando e penalizando aquele devedor de boa-fé que pretende entregar o bem penhorado quando instado a tanto ou então satisfazer a obrigação (SANTOS JÚNIOR, p. 149, grifo meu).

Portanto, o que se observa é que com a criação da súmula, retirou-se um instrumento essencial para a efetivação da prestação jurisdicional, o qual não foi substituído por outro melhor e mais eficaz. Ao contrário, procurou-se solucionar a questão de modo a abrandar a punição já estabelecida, gerando impactos na aplicação da justiça laboral.

Segundo CAMPELLO (2010), o Supremo "não observou que, na prática, destruiu um dos principais instrumentos para a constrição do devedor, a penhora, atacando a eficácia da própria prestação jurisdicional".

Denota-se que até a penhora está perdendo sua razão de ser, pois não há meios satisfatórios de garanti-la.

Rubens Fernando Clamer dos Santos Júnior tenta solucionar a questão através de uma possível modificação desse procedimento, tal como a opção de recolhimento do para depósito judicial, como já explanado linhas acima. Mas conforme ele mesmo adverte essa solução acarretará maiores dificuldades à execução trabalhista, onerando-a demasiada e desnecessariamente. Para este autor, não há dúvidas de que "a providência mais útil e econômica seria a possibilidade de prisão desse depositário, como medida coercitiva eficaz para a restituição do bem penhorado" (SANTOS JÚNIOR, 2010, p. 149).

Guilherme Guimarães Feliciano comenta algumas consequências oriundas de uma possível aprovação do Enunciado n. 17 da PSV n. 03, ou seja, da então súmula vinculante nº 25, conforme excerto abaixo:

Alfim, a par do incalculável prejuízo para a efetividade das execuções trabalhistas, a aprovação do enunciado n. 17 da PSV n. 03 representaria, para a Justiça do Trabalho, uma inexplicável supressão hermenêutica de competência constitucional expressa, eis que, afastada a competência penal das varas do trabalho (ADI n. 3684/2006, rel. Min. CEZAR PELUSO) e inviabilizada a prisão civil de depositários judiciais infiéis, não restaria qualquer hipótese possível de constrangimento ao "ius libertatis" perpetrado por juízes do trabalho. Isso significará, na prática, a derrogação oblíqua da norma do artigo 114, IV, da CRFB (quanto à competência material da Justiça do Trabalho para o processo e o julgamento de "habeas corpus") — o que evidencia que, sistematicamente, essa não é uma interpretação constitucional aceitável. (FELICIANO, 2009).

Além de suprimir a competência penal constitucional consagrada no artigo 114, IV da CRFB, como afirma o autor supra, deve salientar que o caso não se resume a mera prisão civil por dívidas, pois tem inegável natureza bifronte:

Não bastasse, a prisão civil do depositário judicial infiel economicamente

capaz, sobre estar autorizada pela norma do artigo 5º, LXVII, in fine, da CRFB, não se resume à mera "prisão civil por dívidas". Tem irrefragável natureza bifronte, consubstanciando também medida de defesa da autoridade pública e da dignidade do Poder Judiciário, à maneira de contempt of court (o que não está vedada, nesses termos, pelo Pacto de San José da Costa Rica) (FELICIANO,2009).

Sendo assim, a inadmissibilidade da prisão civil do depositário infiel nas execuções trabalhistas compromete a efetividade da prestação jurisdicional, pois esta modalidade de prisão serve como instrumento de coerção para que haja a satisfação do crédito exequendo.

5.6 Posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho

Antes da edição da súmula vinculante nº 25, o Tribunal Superior do Trabalho era pacífico quanto à possibilidade da prisão civil do depositário infiel, litteratim:

RECURSO ORDINÁRIO EM -HABEAS CORPUS-. DEPOSITÁRIO INFIEL. A prisão civil do depositário infiel não se caracteriza como pena, mas como coação. Não apresentados os bens cuja guarda fora confiada ao executado, ora paciente, e posteriormente adjudicados pelo exeqüente, correta a determinação de ordem de prisão. Ademais, não se admite, em sede de -habeas corpus- a análise de questão que dependa de dilação probatória. Recurso ordinário a que se nega provimento.

(ROHC - 1004300-31.2008.5.02.0000 , Relator: Min. Pedro Paulo Manus. Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, julgado em 09/09/2008, publicado em 19/09/2008)

Após as decisões do Supremo Tribunal Federal que começaram a conceder ordens de habeas corpus a depositários infiéis, em razão da subscrição pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, o TST ainda mostrava-se favorável à prisão, ante a inexistência de súmula vinculante. É o que se observa na decisão com relatoria do Ministro Ives Gandra Martins Filho, abaixo:

-HABEAS CORPUS- - DEPOSITÁRIO INFIEL - CONFIGURAÇÃO - PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA SOBRE DIREITOS HUMANOS (1969) E POSSIBILIDADE DE PRISÃO CIVIL - RECURSO DESPROVIDO.

1. Em que pese a existência de precedentes turmários do STF, não vinculativos, anatematizando a prisão civil de depositário infiel, a jurisprudência do TST é firme e pacífica quanto à possibilidade jurídica dessa modalidade de constrangimento ao direito de ir e vir, não a título de pena, mas como meio extremo de pressão para resgatar bem recebido em depósito e afetado ao cumprimento de obrigação de caráter alimentício.

2. Paradoxalmente, o mesmo Supremo, que fez letra morta do art. 4.1 do Pacto de São José da Costa Rica, ao referendar lei que autoriza a morte de embriões humanos para fins de pesquisas científicas, quando a referida Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, ratificada pelo Brasil em 1992, garante o direito à vida desde a concepção, vem esgrimir o art. 7.7 da mesma convenção, para afastar do Direito Positivo Brasileiro a prisão civil do depositário infiel.

3. A par da Constituição Federal prever expressamente a prisão civil do depositário infiel (CF, art. 5º, LXVII), o próprio art. 7.7 do Pacto de São José excepciona a prisão por descumprimento de obrigação alimentar, como é o caso dos créditos trabalhistas garantidos por depósitos judiciais. Nesse diapasão, não há de se falar em conflito entre o Acordo Internacional e o Direito Interno.

4. -In casu-, a condição de depositária infiel da Impetrante restou demonstrada tanto nos presentes autos quanto nos da ação trabalhista principal, uma vez que assumiu o -munus publicum- de depositária, nos termos do art. 629 do CC, negligenciando a guarda dos bens penhorados e não os restituindo quando instada a fazê-lo. Daí a legalidade da decretação prisional e a ausência de direito à concessão preventiva do -habeas corpus- impetrado.

Recurso ordinário desprovido.

(ROHC - 31100-86.2008.5.03.0000 , Relator: Min. Ives Gandra Martins Filho, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, julgado em 14/10/2008, publicado em 07/11/2008).

O acórdão acima retrata, inclusive, uma perplexidade do Ministro quanto algumas decisões do Supremo. Faz uma comparação entre aquela decisão que permitiu o uso de embriões para pesquisas científicas e o art. 4º do Pacto de São José da Costa Rica que estabelece a garantia do direito à vida desde a concepção. Além disso, contrasta essa decisão com a proibição da prisão civil do depositário infiel em que o STF passou a discutir o art. 7, item 7 do Pacto para afastar a prisão em questão.

O Ministro Ives Gandra Martins Filho, no citado acórdão, confirmou a tese do TST em relação à matéria. Ademais, segundo seu ponto de vista, em função de os créditos trabalhistas terem natureza alimentar, não há o que se falar em conflito de normais internas e internacionais, pois o Pacto permite a prisão decorrente de descumprimento de obrigação alimentar.

Nesse mesmo sentido votou a Ministra Maria Doralice Novaes em acórdão subsequente:

-HABEAS CORPUS- - DEPOSITÁRIO INFIEL - INVOCAÇÃO DO PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA SOBRE DIREITOS HUMANOS (1969) - IMPOSSIBILIDADE DA PRISÃO CIVIL - DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - CONCESSÃO DA ORDEM.

1. Trata-se de recurso ordinário em -habeas corpus-, em face de decreto de prisão expedido pelo juízo da execução, em virtude da condição de depositário infiel decorrente da não-apresentação dos bens penhorados, como decidido pelo acórdão do 2º TRT.

2. De plano, verifica-se que restou configurada a condição de depositário infiel do Paciente, tanto nos presentes autos quanto nos da ação trabalhista principal, uma vez que assumiu o -munus publicum- de depositário, nos termos do art. 629 do CC, negligenciando a guarda dos bens penhorados e não os restituindo devido ao seu desaparecimento, o que revelaria a legalidade da decretação prisional e a ausência de direito à concessão do -habeas corpus- impetrado.

3. A par de a Constituição Federal prever expressamente a prisão civil do depositário infiel (CF, art. 5º, LXVII), o próprio art. 7.7 do Pacto de São José excepciona a prisão por descumprimento de obrigação alimentar, -verbis-: -ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar-.

4. Vê-se, de forma clara, que o dispositivo em tela admite exceções, em relação ao descumprimento de obrigação alimentar, nas quais se enquadra o crédito judicial trabalhista. Daí a inexistência de conflito entre o art. 7.7 do Pacto de São José e o art. 5º, LXVII, da CF, que prevê expressamente a prisão civil do depositário infiel.

5. No entanto, com ressalva de entendimento pessoal, adoto a decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal firmada no processo RE-466.343/SP, relatado pelo Min. Cezar Peluso e julgado na sessão de 03/12/08 e publicado no Diário de Justiça Eletrônico de 12/12/08, para conceder a ordem, calcado no Pacto de São José da Costa Rica.

Recurso ordinário provido para conceder a ordem de -habeas corpus-.

(ROHC - 1339200-64.2008.5.02.0000, Relatora: Min. Maria Doralice Novaes, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, julgado em 15/09/2009, publicado em 25/09/2009, grifo meu).

Tanto a Ministra Maria Doralice Novaes quanto o Ministro Ives Gandra Martins Filho entendem que o crédito trabalhista garantido por depósito enquadra-se na hipótese de obrigação alimentar, e, assim sendo, não há proibição da prisão nem pelo Pacto de São José da Costa Rica e nem pela Constituição Federal de 1988.

Os Ministros Alberto Bresciani e Renato Paiva também concordam com esse entendimento. Todavia os Ministros Barros Levenhagem, Emmanoel Pereira, José Simpliciano, Pedro Manus e Moura França, preferiram não contrariar a tese que estava sendo perfilhada pelo STF (ANAMATRA, 2009).

Com a entrada em vigor da súmula vinculante nº 25, o TST passou a decidir conforme a mesma, tal como se verifica no seguinte julgado:

-HABEAS CORPUS- PREVENTIVO SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. DEPOSITÁRIO INFIEL. Não obstante o anterior entendimento desta Corte acerca da legalidade da prisão do depósitário fiel, não há como não se curvar à decisão do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que devem ser observadas as convenções e os tratados internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil é signatário - e por ele ratificado -, como é a hipótese do Pacto de São José da Costa Rica. Nesse pacto, está previsto que, apenas na hipótese de devedor de alimentos, pode ser considerada legal a prisão civil. -Habeas corpus- concedido.

(HC - 3331-19.2010.5.00.0000, Relator: Min. Pedro Paulo Manus, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, julgado em 27/04/2010, publicado em 07/05/2010, grifo meu)

E assim, seguem-se os julgados do TST sempre em conformidade com a referida súmula vinculante, embora existam ministros que discordam dessa decisão.

5.7 Posicionamento da ANAMATRA

O presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (ANAMATRA) à época da decisão do Supremo, Cláudio José Montesso (cujo mandato se deu entre os anos de 2007 e 2009), apesar de posicionar-se de acordo com o decidido pelo STF, reconhece que foi retirada uma "arma" do poder dos magistrados (MONTESSO apud CRISTO, 2008).

Para o ex-presidente, a proibição da prisão gera um círculo vicioso, uma vez que "Terão de ser abertos processos de execução contra os depositários, paralelos aos processos de execução das dívidas trabalhistas" (MONTESSO apud CRISTO, 2008).

Apesar desses empecilhos, Cláudio José Montesso ressalta que há quem entenda que a prisão persiste em relação aos empregadores devedores dos salários de empregador, em razão da natureza alimentícia, embora não concorde com esse entendimento (MONTESSO apud CRISTO, 2008).

O magistrado acrescenta ainda que "Em muitos casos, o oficial de Justiça não encontra ninguém no local e nomeia um dos funcionários como depositário. Se o bem é vendido, ele pode ser preso injustamente" (MONTESSO apud CRISTO, 2008).

É certo que esse seria a priori um ponto negativo da prisão. No entanto, o magistrado não decreta a prisão arbitrariamente, no processo é garantido ao depositário o contraditório e a ampla defesa, a fim de que sejam evitados abusos. Como já mencionado no início deste capítulo, não cabe ao juiz decretar a prisão do depositário sem antes ensejar-lhe o direito de defesa e o esclarecimento sobre o desaparecimento dos objetos penhorados.


6 CONCLUSÃO

A prisão civil do depositário infiel proveniente da execução trabalhista é um tema pouco discutido na doutrina e jurisprudência, seja em virtude da súmula vinculante nº 25, seja em razão do não despertar de doutrinadores e julgadores.

Ao adentrar nessa interessante questão, percebe-se a importância do tema que repercute seriamente na eficácia do processo trabalhista, e que não foi lembrada pelo Pretório Excelso.

Assim, diante dos estudos realizados no decorrer desta obra, conclui-se pela constitucionalidade da prisão civil do depositário judicial infiel na justiça do trabalho, tanto em aspectos técnicos quanto em aspectos materiais.

O Pacto de São José da Costa Rica, ao contrário do que entendem alguns Ministros do Supremo, é lei ordinária, posto que fora aprovado pelo quórum simples, e não pelo quórum previsto no § 3º do art. 5º da CRFB/88. Sendo assim, não derrogou normas infraconstitucionais que regulam a prisão civil do infiel depositário.

Ademais, o artigo 5º, LXVII da CRFB/88, que autoriza de prisão civil do infiel depositário, é norma de eficácia plena, de aplicação imediata e integral. A legislação infraconstitucional sobre a matéria não dispõe acerca de cabimento ou vedação, mas tão somente sobre aspectos procedimentais. O § 1º do mesmo artigo, também lhe confere aplicação imediata. Além disso, trata-se de cláusula pétrea, conforme preceitua o § 4º do artigo 60 da CRFB/88.

Por outro lado, a prisão aqui discutida, como se trata de processo executório, é a do depositário judicial infiel. Desse modo, apresenta-se como uma técnica processual de coerção e não como uma penalidade. Não se trata de prisão por dívidas, mas em virtude do descumprimento de um encargo público, do descumprimento de uma ordem judicial. Tem natureza bifronte, uma vez que também constitui medida de defesa da autoridade pública e dignidade do poder judiciário, o que não está vedado pelo Pacto de São José da Costa Rica.

A aprovação da súmula vinculante nº 25 representou uma derrogação oblíqua do artigo 114, IV da CRFB, posto que foi afastada a competência penal dos juízes das varas do trabalho e, com a vedação da prisão civil dos depositários judiciais infiéis não há mais hipóteses de constrangimento do ius libertatis por parte dos juízes do trabalho.

Não bastasse, os créditos trabalhistas tem natureza alimentar, o que reforça a tese da possibilidade jurídica e implica, entre outras coisas, na necessidade de celeridade e efetividade da prestação jurisdicional. À falta desse crédito, resta prejudicado o trabalhador, pois, na ausência de fontes alternativas de renda, depende dele para a sua sobrevivência e da sua família, e para uma vida digna.

Inegavelmente, há nessa questão um conflito de direitos fundamentais: o direito à vida e o direito à liberdade. Nessa esteira, o direito à vida do trabalhador em busca da satisfação de seu crédito deve prevalecer em contraponto com o direito à liberdade conferido ao depositário de má-fé que não cumpre com sua obrigação. Ao contrário do que se pensa, o Pacto de São José da Costa Rica não visa proteger o depositário infiel, mas sim aquele cidadão de boa-fé.

Ainda que fosse correto o entendimento pela supralegalidade, atente-se que deve ser aplicada a norma mais favorável ao trabalhador, independentemente da hierarquia da norma.

A aceitação do Pacto de São José da Costa Rica como norma supralegal derrogando normas infraconstitucionais em relação à matéria aqui abordada, prejudicou a execução trabalhista na busca da satisfação do crédito do trabalhador. Trabalhador este que está protegido pela Constituição da OIT que seria, igualmente, uma norma supralegal, e que pelo critério da especialidade deve prevalecer para beneficiá-lo. Mesmo assim, não se deve olvidar do que dispõe o artigo 19, 8 daquela Constituição que afirma que o Estado-membro não poderá adotar qualquer convenção que afete qualquer lei, sentença, costumes ou acordos que assegurem aos trabalhadores condições mais favoráveis.

O objetivo da execução é a efetivação da prestação jurisdicional. A prisão servia como meio dissuatório de atos fraudulentos à execução. Sem esse instrumento, o depositário não se sente intimidado a realizar atos que dificultem a satisfação dos direitos do credor exequente.

Se não há meios eficazes de se garantir a restituição do bem, uma solução seria o seu recolhimento para um depósito judicial, porém essa medida prejudica o devedor de boa-fé e onera demasiadamente a execução. Destarte, qualquer outra solução para esse caso, que não a prisão, somente serviria como mais um meio protelatório do processo de execução trabalhista.

Por conseguinte, ao fim de todas as convicções até aqui expostas infere-se que a súmula vinculante nº 25 retirou do judiciário trabalhista o único recurso efetivo para satisfazer direitos sonegados por devedores e depositários de má-fé. Medida esta que vai de encontro à própria concepção de jurisdição, enfraquece a segurança e a autoridade dos julgados, revoga a competência penal da justiça do trabalho, além de comprometer a dignidade do credor.

Insta esclarecer que a inconstitucionalidade da prisão civil resume-se nas hipóteses decorrentes de obrigações contratuais. Entretanto, não permeia aquela que é um instrumento fundamental para a eficácia das sentenças judiciais maliciosamente resistidas, e, especialmente, das sentenças trabalhistas.


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Notas

  1. Comunicação pessoal em entrevista concedida por Luzinália de Souza Moraes ao programa Justiça e Cidadania em 14 de fevereiro de 2010. Disponível em: <http://www.trt14.jus.br/ascom/videos/justica ecidadania_2010.asp>.
  2. Comunicação pessoal da autora em entrevista concedida ao programa Justiça e Cidadania em 14 de fevereiro de 2010. Disponível em: <http://www.trt14.jus.br/ascom/videos/justicaecidadania_2010 .asp>.

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VILANOVA, Vanessa Mendonça. A prisão civil do depositário infiel proveniente da execução trabalhista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2796, 26 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18570. Acesso em: 25 abr. 2024.