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A reforma política e o voto em trânsito

A reforma política e o voto em trânsito

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Os eleitores que, por se encontrarem fora de sua circunscrição eleitoral no dia das eleições, têm os seus direitos políticos "cassados" pelo TSE.

A pretensa Reforma Política tem tratado dos mais diversos temas, como o fim da reeleição, o financiamento público de campanha, o voto facultativo, a possibilidade de candidatura avulsa, o voto em lista fechada, a cota de 50% para mulheres, o fim das coligações partidárias, as mudanças nas regras de suplentes.

Entretanto, nenhuma Reforma Política que se preze poderá chegar a bom termo se não tocar em tema grave, que passa ao largo das discussões, sob a conveniência do Tribunal Superior Eleitoral: a questão dos eleitores que, por encontrarem-se fora de sua circunscrição eleitoral no dia das eleições, têm os seus direitos políticos "cassados" pelo TSE.

Vale dizer que os direitos políticos e de cidadania são os mais protegidos pela Constituição, esculpidos em diversos pontos da Carta Magna. O art. 1º, § 1º, declara que "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição." O art. 5º, § 1º determina que "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata." Em seguida, o artigo 14º declara a universalidade do voto, com as ressalvas ali colocadas (sendo que a circunstância do cidadão estar "em trânsito" não é uma delas). Mais adiante, o art. 14º, § 1º prevê a obrigatoriedade do voto para todos os maiores de dezoito anos. Finalmente, o art. 60, § 4º, II consagra que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir o voto direto, secreto, universal e periódico."

A "cassação" dos direitos políticos dos cidadãos em trânsito, no dia das eleições, pelo TSE, somada à omissão ou leniência do Congresso Nacional na matéria, decorre de uma série de circunstâncias. Citamos algumas.

O TSE tem a relevante missão de fazer concretizar a Constituição, em matéria eleitoral. Na falta de uma lei específica, cabe a esse Tribunal expedir as instruções necessárias ao cumprimento dos direitos de cidadania previstos na Carta Magna. Enfim, cabe àquela Corte Eleitoral viabilizar o cumprimento da Constituição "de ofício" ou quando provocado. No caso do voto em trânsito, o TSE foi provocado em vários momentos, como:

a) no MS 3273/2004, impetrado em 25/10/2004;

b) no MI 04/2006, impetrado em 03.07.2006;

c) na Petição 2488, de 17/10/2006, da ASPRA – Associação dos Praças da Policia Militar do Estado do Rio Grande do Norte.

Após o advento da urna eletrônica, considerado por alguns como uma panaceia, eis que se transformou num fim em si mesmo, o TSE cruzou os braços e se acomodou em relação ao exercício dos direitos políticos dos eleitores em trânsito, literalmente ignorando-os, excluindo deliberadamente das eleições um contingente eleitoral que corresponde a aproximadamente 8% dos votos válidos (percentual de eleitores que apresentaram justificativa eleitoral). É o caso concreto do (suposto) remédio cuja dose matou o paciente.

Nas eleições gerais de 2006, 104,8 milhões de eleitores compareceram às urnas, sendo que 8,02 milhões de cidadãos apresentaram justificativa eleitoral.

Para que se tenha uma idéia do que representa esse número (tomando por base as estatísticas de 2006), que desequilibra qualquer eleição no mundo, o contingente de cidadãos impedidos de votar pelo TSE forma o quarto maior contingente eleitoral do Brasil, atrás apenas de São Paulo (23,7 milhões de eleitores), Minas Gerais (11,2 milhões), Rio de Janeiro (9,2 milhões). Está à frente de todos os demais estados, a começar pela Bahia (7,2 milhões de eleitores).

Representa, ainda, mais que todo o eleitorado que compareceu às urnas, nas regiões Norte (7,1 milhões) e Centro-Oeste (7,5 milhões).

Naquele ano a abstenção total atingiu 21,09 milhões de eleitores. Portanto, aproximadamente 40% da abstenção foi provocada por eleitores em trânsito.

A título de ilustração, eis os dados de alguns estados (eleitores que apresentaram justificativa eleitoral): São Paulo (1,88 milhões), Minas Gerais (902 mil), Rio de Janeiro (716 mil), Bahia (545 mil), Paraná (488 mil), Rio Grande do Sul (439 mil), Santa Catarina (319 mil), Pará (306 mil), Pernambuco (279 mil), Ceará (259 mil), Maranhão (182 mil), Rio Grande do Norte (102 mil), Alagoas (76 mil), Rondônia (71 mil).

O máximo que o TSE faz por esse contingente de cidadãos é oferecer a pífia justificativa eleitoral, em flagrante violação constitucional, face ao cerceamento causado pela própria Corte Eleitoral, do mais importante dos direitos políticos e de cidadania: o voto.

Para justificar o injustificável, o TSE alega questões de "ordem técnica" para acolher o voto em trânsito, pois a urna eletrônica, no estágio em que se encontra, não ofereceria condições de segurança para esse tipo de voto. A propósito, a próxima panacéia chama-se urna biométrica. Com a conjugação do meio eletrônico e a urna biométrica, a situação tenderá a ser agravar. Mais eleitores não poderão votar. No Brasil, pelo visto, não é a Justiça Eleitoral que serve ao Povo, mas este que serve àquela

Ocorre que é omitido, conveniente e intencionalmente, relevante questão. O advento do voto eletrônico não aboliu o voto em cédula ou cártula eleitoral. Eis o que diz a Lei 9.504/97, em seu art. 62:

"Nas Seções em que for adotada a urna eletrônica, somente poderão votar eleitores cujos nomes estiverem nas respectivas folhas de votação, não se aplicando a ressalva a que se refere o art. 148, § 1º, da Lei 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral." (negritamos)

Ora, em principio, como o TSE dotou todas as seções de urna eletrônica, o espírito mais desavisado poderia concluir, equivocadamente, que da leitura daquele texto ninguém poderá votar fora de sua seção eleitoral, uma vez que, óbvio, o seu nome não vai constar das folhas de votação de outra seção, o que impediria (ou proibiria, em tese) o voto em trânsito. Todavia, não consta que a Constituição – muito menos a Lei - impôs exclusividade do uso de meio eletrônico nas eleições.

Qualquer entendimento diverso desse constitui-se em grave equívoco, eis que a resposta (ou solução) ao problema está no próprio texto do art. 62. Da leitura da expressão "nas seções em que for adotada a urna eletrônica", entende-se, sem qualquer dificuldade, que podem existir seções onde não serão adotadas as urnas eletrônicas. Por óbvio, nestes casos poderão votar eleitores cujos nomes não estão nas respectivas folhas de votação. Como? Por meio da velha e boa cédula eleitoral, plenamente vigente da Legislação. Confirmando esse fato, façamos uma leitura dos arts. 82 e 83 (Lei 9.504/97 ou Lei "das Eleições"):

Art.82. "nas Seções Eleitorais em que não for usado o sistema eletrônico de votação e totalização de votos, serão aplicadas as regras definidas nos arts. 83 a 89 desta Lei e as pertinentes da Lei 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral."

Art.83. "as cédulas oficiais serão confeccionadas pela Justiça Eleitoral, que as imprimirá com exclusividade para distribuição às Mesas Receptoras, sendo sua impressão feita em papel opaco, com tinta preta e em tipos uniformes de letras e números, identificando o gênero na denominação dos cargos em disputa."

Por sua vez, o art. 59 que estabeleceu a votação eletrônica traz o seguinte texto:

Art. 59. "a votação e a totalização dos votos serão feitas por sistema eletrônico, podendo o Tribunal Superior Eleitoral autorizar, em caráter excepcional, a aplicação das regras fixadas nos arts. 83 a 89 da Lei 9.504/97 (grifamos).

O texto fala por si só. O problema é que nunca ocorre essa autorização, lembrando que é por demais evidente que o voto em trânsito é uma situação excepcional.

Vale dizer que a omissão do TSE, além de violar a Constituição e a Lei, é contraria a sua própria missão, conforme pode ser lido no site do Tribunal:

Assegurar os meios efetivos que garantam à sociedade a plena manifestação de sua vontade, pelo exercício do direito de votar e ser votado.

A jurisprudência do STF é firme no sentido de que no campo dos direitos de cidadania é vedada a imposição de restrição não contemplada na Lei. Confira-se decisão do Ministro Marco Aurélio (RE nº 128.518-4), a respeito da interpretação de normas constitucionais que envolvem direitos políticos:

"É de sabença geral que não cabe imprimir a texto constitucional assegurador de direitos, especialmente políticos, interpretação estrita, o que se dirá quanto à restrita. A aplicação respectiva há que se fazer tal como previsto no preceito..." Mais adiante o Ministro, em magistral lição, complementa com "tanto vulnera a lei aquele que exclui do campo de aplicação hipótese não contemplada, como o que incluiu exigência não prevista" (Marco Aurélio, RE 128.518-4-DF).

Pergunta-se: por que, então, persiste a omissão do TSE em tema de tamanha relevância? São várias as possibilidades. A uma, a evidente acomodação com o advento da urna eletrônica; a duas, mera conveniência de ordem técnica; a três, marketing ("imagem") eleitoral.

Com relação a essa última hipótese, verifica-se que do site institucional do próprio TSE, sob o titulo "A justiça eleitoral no Brasil – votar é um privilégio", extrai-se o seguinte texto:

"A ousadia resultou em números que impressionam: nas eleições de 2008, mais de 130 milhões de eleitores usaram 480 mil urnas eletrônicas. Em apenas três horas após o fim da votação estavam definidos os vitoriosos entre os 379,5 mil candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador em todos os 5.560 municípios brasileiros. Um feito de dimensão mundial."

De fato, a apuração em apenas três horas, de uma eleição gigante como a brasileira, é de causar grande admiração em qualquer nação no mundo. Entretanto, pode até ser um "feito mundial", mas se omite a esse mesmo mundo que esse "feito de dimensão mundial" foi obtido às custas dos direitos políticos de quase 10% do eleitorado, cerceado e impedido de votar por outro meio que não o voto eletrônico, por mera conveniência técnica do TSE.

É evidente que a apuração dos votos colhidos por cédula eleitoral tenderá a retardar um pouco a finalização das eleições, inclusive onerando-a um pouco mais. Sempre foi dito que a Democracia é o mais caros dos regimes. Consta que estamos numa Democracia e certamente não faltariam os recursos necessários para a Justiça Eleitoral acolher os votos em trânsito por meio de cédula eleitoral.

Muitos desses cidadãos em trânsito estavam a serviço (obrigatório) da própria Justiça Eleitoral, como os cidadãos policiais militares, destacados para proteger o direito de terceiros, em sacrifício de seu próprio direito.

Enquanto isso em outros países vota-se até por meio de carta. Um astronauta norte-americano votou do espaço. Não queremos e nem precisamos chegar a tanto, pois temos boa e velha cédula eleitoral que, bem usada, resolve o problema.

Vale dizer que nos idos de 2003, excelente editorial (25/12/2003) do jornalista Ilimar Franco, no jornal O Globo (coluna Panorama Político), intitulado "Inclusão Eleitoral", afirmava que

"o Brasil é hoje uma das maiores democracias do mundo, as eleições são informatizadas e o ato de voar foi simplificado com o uso da urna eletrônica. Há problemas localizados de abuso do poder e de fraudes, mas o país nada deve em matéria de lisura eleitoral. Mas está na hora de o Congresso tomar providências para que todos os brasileiros possam exercer o direito de votar."

Pouco depois o Senador Valdir Raupp (PMDB/RO) apresentou o PLS 207/2004, disciplinando o voto para os eleitores que se encontram fora de seu domicilio eleitoral, no dia das eleições, de forma progressiva, começando pela eleição do Presidente da República e depois, para os demais cargos. Aprovado em DEZ/2005 por unanimidade no Senado Federal, passou a tramitar como o PL 6.349/2005 na Câmara dos Deputados, porém mumificado em algum sarcófago embolorado na sua Comissão de Constituição e Justiça - CCJ, desde 04/2007 (mais de quatro anos, apesar de seu regime de prioridade), após a apresentação de Parecer do Relator, deputado Rubens Otoni (inacreditavelmente relatando pela inconstitucionalidade do Projeto), porém com brilhante voto em separado do Deputado Paes Landim (favorável). Tudo por eficiente lobby de zelosos e eficientes servidores da Secretaria de Informática do TSE (Memorando nº 1.257/05-SI da Secretaria de Informática do TSE), conforme as suas "impressões digitais" detectadas no relatório de Rubens Otoni, conforme consta em trecho de "seu" Parecer, ora reproduzido:

"A determinação constante do art. 62 da Lei nº 9.504/97 foi adotada por solicitação de técnicos da área de informática do Tribunal Superior Eleitoral que, quando da elaboração do citado diploma legal, esclareceram ao Relator da matéria nesta Casa que o sistema eletrônico de votação não admitia os votos em separado.

Como não houve, desde aquela data, alteração significativa do sistema eletrônico adotado pelo TSE, o obstáculo persiste, impedindo o voto de qualquer eleitor fora de sua seção eleitoral, como condição básica de segurança da urna de votação.

Nesse sentido o Memorando nº 1.257/05-SI da Secretaria de Informática do Tribunal Superior Eleitoral juntado aos autos por determinação da Presidência desta Casa, cabendo transcrever algumas das diversas razões nele elencadas para manutenção dos parâmetros que levaram à retirada, da legislação em vigor, do voto em trânsito: (grifamos)

Relevante dizer que a ilação que consta no antijurídico Parecer do Deputado Rubens Otoni, sobre a suposta "retirada da legislação em vigor do voto em trânsito" – fato que jamais ocorreu, conforme se verifica por meio da simples leitura e análise do próprio teor do art. 62 (Lei das Eleições) - é a prova cabal (Memorando 1.257/05-SI da Secretaria de Informática do Tribunal Superior Eleitoral) da tentativa de cerceamento dos direitos políticos dos cidadãos em trânsito, por parte do TSE. Com sucesso, até o momento, em razão de séria omissão da Câmara dos Deputados, Casa que, em tese, representa o Povo.

Por sinal, soa inconseqüente acreditar que uma simples "solicitação de técnicos da área de informática do Tribunal Superior Eleitoral" tenha a pretensão de revogar uma lei ou a própria Constituição. Custa a acreditar que uma Casa do Congresso Nacional embarque numa canoa furada, em tamanho absurdo.

Nesse sentido, como já citado, o deputado Paes Landim não concordou com tão despropositado parecer, flagrantemente inconstitucional, apresentando bem fundamentado "voto em separado", de onde se destaca:

"O parecer do eminente Relator se assenta em circunstância ocasional, convenientemente ressaltada, exposta nos fundamentos técnicos em memorando da Secretaria de Informática do TSE. Estaríamos, na espécie, como até agora se tem observado, restringindo o direito do sufrágio em nome de uma conveniência de ordem técnica que atende mais à comodidade da Justiça Eleitoral do que à conveniência dos cidadãos. O voto do cidadão em trânsito pode ser tomado, mesmo que seja em separado, dispensando-se inclusive o uso da urna eletrônica, se necessário, condicionada a sua apuração à constatação da regularidade do eleitor junto ao cadastro eleitoral, hoje inteiramente informatizado e de fácil consulta." (grifamos)

Esse texto, por si só, dispensa maiores comentários.

Por ocasião da mini-reforma eleitoral de 2009, apresentada sob a forma do Projeto de Lei Complementar PLC-141/2009, o Congresso Nacional reproduziu a parte inicial do PLS 207/2004, do Senador Valdir Raupp, determinando o voto em trânsito para Presidente da República, mas restringindo-o apenas aos eleitores em trânsito nas capitais.

Entretanto, quando o PLC 141/2009 chegou ao Senado, o diligente senador rondoniense apresentou na Comissão de Constituição e de Justiça (CCJ) a emenda 47 (acesso in http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/64816.pdf) na tentativa de resgatar na integridade a intenção do PLS 207/2004, ou seja, o voto em trânsito para todos os eleitores em trânsito e todos os cargos. Apesar de receber considerações meritórias, a Emenda 47 não foi aprovada (novamente por gestões do TSE), prevalecendo na ocasião tão somente a possibilidade do voto para Presidente da República e somente nas capitais.

Por mais incrível que possa parecer, mesmo após a aprovação de texto tão reduzido e cerceador, o próprio presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Carlos Ayres Britto, não satisfeito, pediu que o presidente da República (Lula) vetasse o voto em trânsito, por ocasião da sanção presidencial. Logo o Presidente do TSE, Corte que tem como missão zelar pelos direitos políticos dos cidadãos!

Esse fato inédito e deprimente foi noticiado por toda a imprensa brasileira, nos idos de set/2009. Sua justificativa, segundo a imprensa, é que

"Manifestei expectativa de que o presidente da República, estudando os temas, venha a vetá-los. São esses dois pontos do projeto de lei que mais nos trazem dificuldades operacionais irremovíveis".

Dessa forma, presenciamos, com muita preocupação, o fato de que ministros do TSE estejam reféns da Secretaria de Informática daquele Tribunal. Não há qualquer "dificuldade operacional irremovível" no caso, pois, repita-se, as cédulas eleitorais podem e devem ser utilizadas para o voto em trânsito, nos precisos termos dos arts. 59 c/c 62 c/c 82 c/c 83 e seguintes, da Lei 9.504/97, na impossibilidade técnica do uso das urnas eletrônicas, por incompetência, justamente, da Secretária de Informática do próprio Tribunal.

Mais. Ainda que houvesse a tal "dificuldade operacional irremovível", nem mesmo essa alegação pode justificar o descumprimento da Constituição, pois como muito bem assinalou o deputado Paes Landim, trata-se de "mera conveniência de ordem técnica, que atende mais à comodidade da Justiça Eleitoral do que à conveniência dos cidadãos".

Vale dizer que a defesa da Constituição

"não se expõe, nem deve submeter-se, a qualquer juízo de oportunidade ou de conveniência, muito menos a avaliações discricionárias fundadas em razões de pragmatismo governamental." ADI 2010 MC/DF, Min. Celso de Mello, STF.

Caso contrário, a integridade do sistema político e a proteção das liberdades públicas estarão profundamente ameaçadas.

O presidente Lula não vetou a possibilidade do voto em trânsito, pois a considerou como reivindicação "mais do que justa", conforme entrevista na coluna "O Presidente Responde", de 05.01.2010, inclusive citando o PLS 207/2004.

Porém o TSE, mais uma vez, impôs outra forma de "cassar" os direitos políticos dos cidadãos em trânsito, exigindo que o eleitor se habilitasse previamente, registrando a sua ausência do domicílio eleitoral e indicando a capital da unidade da federação em que estaria presente, no dia das eleições. Em outras palavras, na prática o TSE exigiu que o eleitor fosse um adivinho (como prever onde se estará dentro de alguns meses?), implicando noutro cerceamento inconstitucional. Sempre por conta do famigerado voto eletrônico, a "panacéia", que como dito antes, se tornou um fim em si mesmo.

Reitere-se: por razões absolutamente desconhecidas, fazem de conta que a cédula eleitoral não existe.

Por ocasião do segundo turno das eleições de 2010, o novo presidente do TSE, Ricardo Lewandowski, destacou o dever cívico e fez decidido apelo para que os eleitores, de modo geral, votassem no segundo turno. Nesse sentido, ele afirmou que

"O comparecimento do eleitor às urnas é um dever cívico, não é uma formalidade burocrática. É um compromisso que o cidadão tem com a democracia. Eu faço um apelo para que todos compareçam às urnas e pelo voto consciente, o voto que é dado com razão e sentimento a um determinado candidato".

Ao menos o novo Presidente do TSE reconheceu esse compromisso do cidadão com a democracia, por meio do voto, e o próprio Ministro Lewandowski votou em trânsito, conforme afirmou em entrevista para a imprensa.

O problema é que as amarras, restrições e obstáculos impostos pelo TSE implicaram no fato de que apenas 80 mil eleitores votaram em trânsito.

Ante todo o exposto, resta ao Congresso Nacional intervir diretamente na questão da concretização dos direitos políticos dos cidadãos que estão fora de sua circunscrição eleitoral, no dia das eleições (em trânsito), em razão da delegação que lhe foi conferida pela Carta Magna no art. 44 (exercício do Poder Legislativo), aproveitando o momento oportuno dos trabalhos relacionados à Reforma Política.

Relevante dizer que as conseqüências da inclusão eleitoral de um universo aproximado de 8% dos eleitores, atualmente excluídos das eleições, vão muito além da concretização de seus direitos políticos, o que, por si só, já justificaria a pretendida intervenção. São várias conseqüências.

A uma, a maior legitimidade das eleições e dos eleitos;

A duas, o fortalecimento partidário em razão da elevação do coeficiente eleitoral; quanto maior o número de eleitores (votos válidos), maior o coeficiente eleitoral, com impacto direto no coeficiente partidário;

A três, garantia de maior participação popular na escolha de seus representantes, com relevância para algumas categorias que experimentam abstenções elevadas, como o caso dos policiais militares em serviço, no dia das eleições.

Nesse sentido, a Assembléia Legislativa de São Paulo aprovou a Moção 28/2010, apresentada pelo deputado estadual Major Olimpio, encaminhando em DEZ/2010 o Ofício SGP nº 7.127/2010 ao Presidente do TSE, para que regule o voto dos policiais militares e civis que se encontrarem em serviço, no dia das eleições.

O Congresso Nacional tem a rara oportunidade de fazer a sua parte, durante a Reforma Política. Pode aproveitar a tramitação do PL 6.349/2005, já aprovado no Senado Federal e que tramita em regime de prioridade, dando seguimento e celeridade ao mesmo. Ou pode incorporar a presente discussão na Reforma Política, por conta de seus efeitos, sem excluir a possibilidade anterior.

Numa ou noutra situação, o exercício do voto tem que ser assegurado a todos os cidadãos, com ou sem urna eletrônica, independente de quaisquer conveniências ou comodidades circunstanciais, por mais graves pareçam ser.

A Constituição não é mero amontoado de bons conselhos, particularmente no que tange aos direitos políticos.

O que está em jogo é a defesa do primeiro dos Princípios Fundamentais, início e base de tudo: "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".


Autor

  • Milton Cordova Junior

    Advogado, Mestrando em Estudos Jurídicos Avançados, pós-graduado em Direito Público, com Extensão em Defesa Nacional pela Escola Superior de Defesa, extensões em Direito Constitucional e Direito Constitucional Tributário. Empregado de empresa pública federal. Recebeu Voto de Aplauso do Senado Federal por relevantes contribuições à efetivação da cidadania e dos direitos políticos (acesso in http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2007/09/26/ccj-aprova-voto-de-aplauso-ao-advogado-milton-cordova-junior). Idealizador do fundo de subsídios habitacional denominado FAR - Fundo de Arrendamento Residencial, que sustenta o Programa Minha Casa Minha Vida, implementado por meio da Medida Provisória 1.823/99, de 29.04.1999.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORDOVA JUNIOR, Milton. A reforma política e o voto em trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2940, 20 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19587. Acesso em: 28 mar. 2024.