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A análise sistemática da sucessão do cônjuge e do companheiro na perspectiva civil-constitucional

A análise sistemática da sucessão do cônjuge e do companheiro na perspectiva civil-constitucional

Publicado em . Elaborado em .

Aborda-se a questão da inconstitucionalidade do tratamento sucessório dado ao companheiro se comparado aquele dado ao cônjuge.

"O conhecimento, no fundo, não faz parte da natureza humana. É a luta, o combate, o resultado do combate e, consequentemente, o risco e o acaso que vão dar lugar ao conhecimento."

FOUCAULT


RESUMO

O presente trabalho aborda a questão da inconstitucionalidade do tratamento sucessório dado ao companheiro se comparado aquele dado ao cônjuge. Tomando por base o processo de constitucionalização do Direito Civil e, por conseguinte, do Direito de Família e das Sucessões, é traçado um panorama histórico da legislação pertinente à união estável, perpassando a evolução dos valores sociais e constitucionais que culminaram na promulgação da Constituição de 1988 e na edição das Leis nº 8971/94 e 9278/96. Em seguida, é analisado o regime sucessório do cônjuge no Código Civil de 2002 para ser comparado ao do companheiro. Constatam-se a desigualdade de tratamento, os equívocos e os retrocessos. Em seguida são analisados os Projetos de Lei que tramitam no Congresso Nacional, objetivando a alteração do artigo 1790 do CC. Por fim, propõe-se um Projeto de Lei que supere as críticas daqueles.

PALAVRAS-CHAVE: União estável. Concorrência Sucessória. Inconstitucionalidade. Proposta de reforma do artigo 1790 do CC.


ABSTRACT

The present work approaches the issue of unconstitutionality of the successory treatment devoted to the friend if compared to the one devoted to the spouse. Having the constitutionalization of the Civil Right as the basis and therefore family and succession rights, a historical overview of the applied legislation to the stable union is presented going through the social and constitutional values which culminated in the acting of the 1988 Constitution and in the acting of the laws numbers 8971/94 and 9278/96. Next, it is analyzed the successory process of the spouse in the Civil Code of 2002 in order to be compared to the friend. It was verified the different treatments, the mistakes and drawbacks. Then it is analyzed the Law Projects which are under analysis in the National Congress, aiming at the change of the article 1790 of the CC. Finally, it is suggested a Law Project that overcomes the criticism addressed to the previous ones.

KEY-WORDS: Stable Union. Successory Concurrence. Unconstitutionality. Proposal for a change in article 1790 of the CC.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO . 1 A FAMÍLIA ENQUANTO CONSTRUÇÃO SOCIAL . 2 A GARANTIA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS DE FAMÍLIA . 2.1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS . 3 A FAMÍLIA NA CF DE 88 E A CLÁUSULA GERAL DE INCLUSÃO . 3.1 NÃO TAXATIVIDADE DO ROL CONSTITUCIONAL . 3.2 ELEMENTOS CARACTERIZADORES DA FAMÍLIA . 3.3 A FUNÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA . 4 UNIÃO ESTÁVEL . 4.1 BRECHAS DA LEI E TRATAMENTOS DESIGUAIS PARA SITUAÇÕES IGUAIS . 4.2 APONTAMENTOS DE UMA ADEQUADA COMPREENSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL 4.3 HISTÓRICO DAS LEGISLAÇÕES . 4.4 ANÁLISE DO ART. 226, § 3º DA CF E O PRINCÍPIO DO NÃO RETROCESSO . 4.5 EFEITOS PATRIMONIAIS DA UNIÃO ESTÁVEL . 4.5.1.O regime de bens e o direito à meação . 5 DA SUCESSÃO DO CÔNJUGE . 5.1CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS . 5.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA SUCESSÃO DO CÔNJUGE. 5.3 NORMATIZAÇÃO NO CC DE 2002 . 5.3.1 Partilha . 5.4 DIREITO REAL DE HABITAÇÃO E USUFRUTO VIDUAL . 5.5 ARTIGO 1830 DO CC: ANÁLISES E CRÍTICAS . 6 DA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO . 6.1 LEIS Nº 8971/94 E 9278/96 . 6.2 CC DE 2002: UMA ANÁLISE COMPARATIVA COM O CÔNJUGE . 6.3 CONSTATAÇÕES ACERCA DA ANÁLISE COMPARATIVA DAS SUCESSÕES DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO . 7 DA BUSCA PELO TRATAMENTO ISONÔMICO PERANTE O CASO CONCRETO .8 ENQUADRAMENTO DO COMPANHEIRO COMO HERDEIRO NECESSÁRIO . 9 PROJETOS DE LEI . 10 PROPOSTA DE REFORMA . CONCLUSÃO . REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


INTRODUÇÃO

A experiência constitucional brasileira reflete a extraordinária transformação ocorrida na tutela jurídica da família ao longo do séc. XX. Do ponto de vista formal, passa-se de acanhada menção ao casamento civil na Constituição de 1891 à ampla determinação dos princípios fundamentais do Direito de Família na Constituição atual. Do ponto de vista substancial, parte-se da previsão na Constituição de 1934, de um modelo único de família – fundado no casamento indissolúvel – à pluralidade de entidades familiares.

A proteção jurídica que era dispensada com exclusividade à "forma" familiar (solenidade do casamento) foi substituída, em conseqüência, pela tutela jurídica atualmente atribuída ao "conteúdo" (substância): o que se deseja ressaltar é que a relação estará protegida não em decorrência de possuir esta ou aquela estrutura, mesmo quando prevista constitucionalmente, mas em virtude da função que desempenha – isto é, como espaço de troca de afetos, assistência moral e material, auxílio mútuo, companheirismo ou convivência entre pessoas humanas.

A proteção à família consubstancia-se na proteção à relação familiar, ao vínculo solidário-afetivo estabelecido entre os membros, este elo identifica a ratio da família constituída pelo casamento ou pela união estável. De fato, a família se apresenta, hoje, como relacional e individualista.

É relacional na medida em que se respeita e vivencia a lógica do grupo. É também democrática, e democracia "significa igualdade, social e civil, e a rejeição de qualquer discriminação e preconceito". Inclui-se aí as noções de liberdade, pluralismo, integração e solidariedade.

A família constitucional tem no casamento e na união estável a mesma ratio de construção conjunta do grupo, portanto, naquilo em que se identificam, exige-se o mesmo tratamento. Do contrário estar-se-á a tratar com preconceito e discriminação, conteúdos intrínsecos da família, e, portanto, integrantes de todo o modelo de família, como o direito sucessório dos membros que integram o núcleo familiar.

Neste aspecto, não há interpretação possível a qualificar a união estável como hierarquicamente inferior. O fato de o texto constitucional ter expressado no art. 226, § 3º acerca da facilitação, em norma regulamentadora, da conversão da união estável em casamento, não lhe retira a igualdade em relação a este, enquanto entidade familiar. Diferencia-se em situações específicas apenas, mas jamais quanto a sua natureza de comunidade solidário-afetiva com fins de permanência.

O direito sucessório, direito fundamental, previsto constitucionalmente, concilia a liberdade individual, garantida pela sucessão testamentária, e a solidariedade social, resguardada através da sucessão legítima.

Em coerência ao sistema jurídico, justifica-se a necessária readequação da sucessão legítima do companheiro, prevista no Código Civil de 2002, igualando-o em direitos, pela identidade familiar, ao cônjuge. Busca-se a isonomia, posto que essa sucessão seja deferida aos membros da família em virtude da presunção na contribuição, formação do patrimônio familiar, em relações mútuas que se estabeleceram com o falecido.

Diante da valorização de cada membro da família, individualmente considerado, relevante para o conteúdo sucessório considerar aqueles que devem ocupar patamar hierárquico diferenciado na ordem de sucessão, pela proximidade afetiva, pelos direitos-deveres de uns para com os outros, pela construção de vida e patrimônio em comum, objetivando-se equilíbrio no quantum patrimonial designado a cada integrante. Há que se atentar para a relação que se forma na família e se considerar os membros individualmente, numa lógica de equilíbrio.

Ao se proceder à propositura de projeto de lei no tópico 10 (Proposta de reforma), busca-se um equilíbrio da divisão patrimonial. Através da análise da figura do sucessor, individualmente considerada, para além do viés patrimonial, atenta-se para o regime de bens. No que diz respeito à figura do companheiro, garante-se-lhe um patamar hierárquico diferenciado, consoante sua importância na vida do de cujus.

Neste sentido, o projeto revoga o artigo 1790 do CC e altera os artigos 1829, 1831, 1832, 1.836, 1.837, 1.838, 1.839, 1.845 e 2.003 do CC, para que tenham uma maior clareza e conste em suas redações, de forma expressa, a extensão de seus comandos para os companheiros. Ao ser proposto um tratamento único para sucessão do cônjuge e do companheiro, elimina-se o problema da inconstitucionalidade pela falta de isonomia.

Espera-se que esse projeto seja o propulsor de profundas reflexões, tomando-se por base a Constituição Federal de 1988, de maneira que a tutela sucessória do cônjuge e do companheiro se revista em um mecanismo potencial de libertação das necessidades, como meio de concretização de uma vida digna.


1.A FAMÍLIA ENQUANTO CONSTRUÇÃO SOCIAL

O ser humano nasce inserto no seio familiar – estrutura básica social – de onde se inicia a moldagem de suas potencialidades com o propósito da convivência em sociedade e da busca da realização pessoal. No âmbito familiar vão suceder os fatos elementares da vida do ser humano, desde o nascimento até a morte. É nesta ambientação que o homem se distingue dos demais animais, pela possibilidade de escolha de seus caminhos e orientações, formando grupos onde desenvolverá sua personalidade em busca da felicidade.

O fenômeno familiar não é uma totalidade homogênea, mas um universo de relações diferenciadas, pretendendo atender às expectativas da própria sociedade e às necessidades do próprio homem em cada lugar e em cada época.

Com o mesmo pensar Bilac (apud Farias e Rosenvald, 2008) afirma que "a variabilidade histórica da instituição família desafia qualquer conceito geral".

Destarte, não há como fixar um modelo familiar uniforme, sendo necessário compreendê-lo conforme os movimentos que constituem as relações sociais ao longo do tempo. Seus elementos fundantes variam de acordo com os valores e ideais predominantes em cada momento histórico.

Tomando como marco o modelo patriarcal, hierarquizado e transpessoal da família, decorrente das influências da Revolução Francesa sobre o CC de 1916, temos que naquela época imperava o vínculo do casamento até sua dissolução pelo fato morte. Neste mesmo período da Revolução Industrial a família era unidade de produção, através da qual se formava o patrimônio a ser transmitido aos herdeiros num momento posterior, pouco importando os laços afetivos. Daí a impossibilidade de dissolução do vínculo, o que corresponderia à desagregação da própria sociedade.

Com o passar dos anos a sociedade avançou, passando a viger novos valores. O desenvolvimento científico atingiu limites nunca dantes imaginados, a exemplo da concepção artificial do ser humano. Nessa perspectiva, em que o elemento sexual pôde até ser deixado de lado, ganhou evidência a preocupação com a pessoa humana em detrimento do ter. A partir de então a função precípua da família passou a ser a realização das pessoas humanas que compõem seu núcleo, inclusive porque suas relações interpessoais e sociais no seio familiar passaram a se basear mais no afeto.

Os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea rompem com a concepção tradicional de família. A sociedade moderna foi construindo um modelo de família descentralizado, democrático, igualitário e desmatrimonializado. O escopo principal da família passa a ser a solidariedade social e demais condições necessárias ao progresso e aperfeiçoamento humano, regido o núcleo essencial pelo afeto, como mola propulsora.

Na lição precisa de Tepedino (apud Farias e Rosenvald, 2008), a preocupação central do ordenamento é com

(...) a pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o elemento finalístico da proteção estatal, para cuja realização devem convergir todas as normas de direito positivo, em particular aquelas que disciplinam o direito de família, regulando as relações mais íntimas e intensas do indivíduo no social.

A tese aqui defendida já está sendo utilizada em nossos tribunais, especialmente na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em passagens como esta:

A Lei 8009/90 precisa ser interpretada consoante o sentido social do texto. Estabelece limitações à regra draconiana de o patrimônio do devedor responder por suas obrigações patrimoniais. Impenhorabilidade do bem de família. O incentivo à casa própria busca proteger as pessoas, garantindo-lhes o lugar para morar. Família, no contexto, significa instituição social de pessoas que se agrupam, normalmente por laços de casamento, união estável ou descendência. Não se olvidem os ascendentes. Seja o parentesco civil, ou natural. Compreende ainda a família substituta. Nessa linha, conservada a tecnologia da norma, o solteiro deve receber o mesmo tratamento. Também o celibatário é digno desta proteção. E mais. Também o viúvo, ainda que seus descendentes hajam constituído outras famílias, e como, normalmente acontece, passam a residir em outras casas. Data vênia, a lei 8009/90 não está dirigida a número de pessoas. Ao contrário – à pessoa. Solteira, casada, viúva, desquitada, divorciada, pouco importa. O sentido social da norma busca garantir um teto para cada pessoa. Só essa finalidade, ‘data vênia’ põe sobre a mesa a exata extensão da lei. Caso contrário, sacrificar-se-á a interpretação teleológica para prevalecer a insuficiente interpretação literal. (STJ, Ac. 6ª T. REsp. 182.223/SP, rel.Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 19.9.99, DJU 10.5.99)

Diante de personalidades multifacetadas, natural dos seres humanos, a família contemporânea apresenta-se sob diversas formas quantas forem as possibilidades de se relacionar, ou melhor, de expressar amor, afeto. Impõe-se traçar o novo eixo fundamental da família, não apenas consentâneo com a pós-modernidade, mas igualmente afinado com os ideais de coerência filosófica da vida humana.

O eixo fundamental da família moderna não é mais o modelo institucional, compreendido como núcleo econômico e reprodutivo (entidade de produção), mas sim o modelo sócio-afetivo, propiciando novos arranjos familiares.

A outra conclusão não pode se chegar à luz do texto constitucional, sendo fundamental compreender a possibilidade de que do afeto decorram efeitos jurídicos dos mais diversos possíveis.

Neste viés, o casamento deixa de ser ponto referencial necessário e a família (considerada em seu aspecto plural) torna-se meio para a promoção da pessoa humana e não uma finalidade em si mesma. A família é o refúgio das garantias fundamentais reconhecidas a cada um dos cidadãos. É a busca da dignidade humana, sobrepujando valores meramente patrimoniais.

A nova tábua axiológica, reflexo de uma democratização social e política, também reflete nas relações privadas, substituindo o ambiente familiar centralizador e patriarcal por um espaço aberto ao diálogo entre seus membros, concretizando os princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e da isonomia substancial (arts. 1º e 3º da CF).

Assim, aquela família do CC de 1916, matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, heteroparental, biológica, de caráter institucional, constituída com base na produção e na reprodução dá lugar à família da CF de 1988 e do CC de 2002, pluralizada, democrática, igualitária substancialmente, hetero ou homoparental, biológica ou sócio-afetiva, de caráter instrumental, constituída com base na relação sócio-afetiva.

O CC atual não determina um conceito único de família, utilizando-se de vários sentidos da expressão para designar as relações familiares. Considerando que o ordenamento infraconstitucional não define a família, é preciso lembrar a superioridade do conceito constitucional, decorrente do art. 226, que abraçou uma concepção múltipla e aberta de entidade familiar, permitindo a sua constituição pelas mais diferentes formas, todas elas merecedoras de igual proteção do Estado.

Assim, nenhuma concepção utilizada em sede legal, e em qualquer outra norma infraconstitucional, pode colidir com a opção ideológica inclusiva e aberta da Lei Fundamental de 1988. A família deixou de ser encarada sob a ótica patrimonialista e passou a ser meio de desenvolvimento e proteção da pessoa humana, não podendo ser utilizada com função restritiva _ subtrair direitos de seus componentes, violar a dignidade do homem, sua liberdade e sua forma peculiar de expressar o amor _ por apego a formalismos legais.

Pode-se dizer, parafraseando Soares (apud Farias e Rosenvald, 2008), que a família na contemporaneidade decorre da abertura do campo jurídico aos novos valores e fatos sociais, tais como a liberalização dos costumes, a flexibilização da moralidade sexual, a equiparação social de homens e mulheres e a perda da gradativa influência religiosa na organização familiar. Nela não são cabíveis mais dogmas absolutos e inquestionáveis, que durante muito tempo obstaculizaram o acompanhamento das novas concepções de mundo. Por isso faz-se mister interpretações e previsões jurídicas para temas inafastáveis como as uniões homoafetivas. Hoje a família é espaço aberto ao diálogo, voltado para o desenvolvimento espiritual e físico do ser humano e para uma convivência harmoniosa, pautada no amor.

Nota-se, portanto, que em decorrência do avanço da sociedade e com as novas conquistas e descobertas da humanidade, a família contemporânea é realidade viva, submetida a valores vigentes e não a idéias estáticas, presas a valores pertencentes a um passado distante, nem a suposições incertas de um futuro remoto. A família, portanto, caracteriza uma realidade presente e transcendente ao fenômeno exclusivamente biológico. Busca uma dimensão mais ampla, fundada no afeto, na ética, na realização pessoal de seus membros, na solidariedade recíproca e na dignidade de seus membros. É o alicerce fundamental para o alcance da felicidade.


2.A GARANTIA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS DE FAMÍLIA

Com a promulgação da CF de 88 deu-se início ao que os juristas entendem como a "constitucionalização do direito civil", que superou a separação entre os ramos do Direito Público e Direito Privado e, informou que toda a legislação infraconstitucional deve ser lida (ou melhor, relida) à luz dos preceitos determinados pela Carta Magna.

Enquanto fundamento de validade do ordenamento jurídico, o texto constitucional subordina todas as demais normas de tal modo que é possível notar uma necessária força normativa em sua estrutura, condicionando todo o tecido normativo infraconstitucional.

Com senso crítico, Barroso (2002) demonstra a efetividade de suas normas:

A Constituição, liberta da tutela indevida do regime militar, adquiriu força normativa e foi alçada, ainda que tardiamente, ao centro do sistema jurídico, fundamento e filtro de toda a legislação infraconstitucional. Sua supremacia, antes apenas formal, entrou na vida do país e das instituições.

Dessa supremacia normativa constitucional decorreu uma verdadeira reconstrução da dogmática jurídica, se fazendo necessária uma releitura dos conceitos e institutos jurídicos clássicos (como, o casamento e a filiação), uma elaboração e desenvolvimento de novas categorias jurídicas (como a união de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar), uma interação maior entre os diversos ramos do conhecimento, possibilitando uma visão multidisciplinar do Direito.

O Direito Constitucional afastou-se da preocupação exclusiva com a organização política de Estado para se ocupar também das necessidades humanas reais ao disciplinar direitos individuais e sociais (nos arts. 226 e227, por exemplo, a Constituição disciplina a organização da família).

Assume a Carta Magna um verdadeiro papel reunificador do sistema, passando a demarcar os limites do Direito Civil, inclusive no que concerne à proteção dos núcleos familiares.

2.1.PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

A idéia que se tem sobre princípios é que deles se extraem as verdades primeiras, constituindo as premissas fundamentais de um sistema que se desenvolve. Exatamente por isso revestem-se de grande relevância, pois são o substrato sobre o qual é construído todo o sistema jurídico. Eles conferem coerência e unidade ao sistema jurídico, impedindo que a esperada harmonia seja desmantelada. Isso porque os princípios não oferecem solução única, como as regras jurídicas, mas ao contrário, permitem uma adaptação do direito à evolução dos valores da sociedade, sem que, para isso, tenham que mudar ou revogar as normas jurídicas.

A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. Dependendo do escalão do princípio atingido tem-se a insurgência contra estrutura mestra do ordenamento, subversão de seus valores fundamentais.

O texto constitucional atual estabelece os princípios gerais interpretativos do sistema, possuindo induvidosa força normativa, superando a crença de que teriam apenas uma dimensão ética ou valorativa, desprovidos de eficácia e força jurídica. Desta forma, é reconhecido um caráter normativo aos princípios, sendo permitida sua aplicação direta e imediata. Disso resulta que a norma constitucional também vale como lei, dirigindo condutas, vinculando o tecido infraconstitucional, as decisões judiciais, as interpretações e a colmatação do direito.

Nesse sentido da força normativa dos princípios com caráter de regras jurídicas abertas foram de grande valia as contribuições de Dworkin (apud Farias e Rosenvald, 2009) e Alexy (apud Farias e Rosenvald, 2009) em sede alienígena e de Barroso (apud Farias e Rosenvald, 2009) em sede nacional, dentre outros.

É possível que os princípios sejam base para que o magistrado delibere diante de um caso concreto e que sejam influenciadores de regras jurídicas, conferindo-lhes novo conteúdo, devido suas proposições genéricas e abstratas.

Diante das idéias expostas é possível inferir que dada a sua generalidade e abstração os princípios inspiram uma interpretação pautada nas diretrizes constitucionais, vinculando todo o sistema jurídico infraconstitucional, inclusive no que tange ao Direito de Família, conferindo nova essência às regras positivadas nos mais diferentes diplomas normativos.

Princípios norteadores das relações familiares (garantidores de igual tratamento às famílias, independentemente do nome que recebam):

Princípio da dignidade da pessoa humana: segundo Kant a moralidade resume-se no que ele denominou de imperativo categórico, que seria a exigência de o ser humano ser visto como um fim em si mesmo. Assim as normas decorrentes da atividade legisladora precisam ter como finalidade o homem. O imperativo categórico orienta-se pelo valor básico da dignidade da pessoa humana. Ela tornou-se o maior princípio fundante do Estado Democrático de Direito brasileiro, sendo firmado já no primeiro artigo da Constituição Federal de 1988.

Isto vem a significar uma completa transformação do Direito Civil, que não encontra mais seu fundamento no individualismo, mas na proteção da pessoa humana. De um modo geral, pode se dizer que ao ser elevada como fundamento da ordem jurídica, a dignidade da pessoa humana provocou a despatrimonialização e a personalização dos institutos, de modo a colocar a pessoa humana no centro protetor do direito.

Como afirma Dias (2009, p. 59-60) "a dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial proteção independentemente de sua origem".

É possível afirmar, portanto, que a dignidade da pessoa humana desdobra-se em quatro postulados, quais sejam, a um, o sujeito reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele; a dois, merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; a três, é dotado de vontade livre, de autodeterminação e; a quatro, é parte do grupo social, em relação ao qual tem garantia de não vir a ser marginalizado.

Corolários desta elaboração são os princípios jurídicos da igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade e da solidariedade. De fato, quando se reconhece a existência de outros iguais, daí emana o princípio da igualdade; se estes iguais merecem idêntico respeito à sua integridade psicofísica, é preciso construir um princípio que proteja tal integridade; sendo a pessoa dotada de vontade livre, é preciso garantir, também juridicamente, esta liberdade; enfim, fazendo ela, necessariamente, parte do grupo social, disso decorre o princípio da solidariedade social.

Sendo assim, diante de situações jurídicas conflitantes e amparadas por cada um desses princípios, a medida de ponderação determina-se em favor da dignidade da pessoa humana, que não pode ser relativizada, estimada com relação aos demais.

No âmbito da família a dignidade da pessoa humana se apresenta como o princípio ético jurídico a dar fundamento às estruturas familiares, respeitando-se a autonomia e a solidariedade de cada indivíduo membro da família.

Princípio da Liberdade: juntamente com a igualdade, a liberdade foi um dos primeiros princípios reconhecidos como direitos humanos fundamentais, e integrou a primeira geração de direitos a garantir o respeito à dignidade da pessoa humana.

O princípio da liberdade consubstancia-se hoje na possibilidade de poder realizar, sem qualquer interferência, as próprias escolhas e projetos de vida, sob pena de se incorrer numa tutela paternalista, característica de sistemas não democráticos.

Paradoxalmente, diante da análise do papel do Direito _ que tem como finalidade própria assegurar a liberdade _ pode-se depreender a necessidade de coordenação, organização e limitação da própria liberdade para garantir a liberdade individual.

Conforme Dias (2009), "só existe liberdade se houver, em igual proporção e concomitância, igualdade. Inexistindo o pressuposto da igualdade, haverá dominação e sujeição, não liberdade."

Portanto, o direito de liberdade da pessoa existe para ser exercido no contexto social, principalmente no âmbito familiar, no qual ocorrem as interações entre as pessoas, guardando relação com os demais princípios, marcado pelo dever de solidariedade pessoal.

Princípio da igualdade: "Todos são iguais perante a lei", assim prevê o art. 5º, caput da CF. Depreende-se que a dimensão deste princípio é a generalização, significando que todas as pessoas estão equiparadas diante do Estado, merecendo tratamento isonômico no âmbito social. Confunde-se com a isonomia formal, no sentido de que a lei e sua aplicação tratam a todos igualmente, sem levar em conta distinções de grupos.

No entanto, a compreensão do princípio da igualdade previsto constitucionalmente não deve ser tão estreita. A Constituição de 1988 nos informa, no capítulo referente aos direitos individuais, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º caput). Este princípio não pode ser reconhecido apenas no seu sentido formal e encontra reforço em muitas outras normas que buscam a igualização dos desiguais pela outorga de direitos sociais substanciais. (Exemplo de tratamento desigual entre os desiguais consta no artigo 7º, XX da CF. Por ter sido muito discriminada, inclusive no mercado de trabalho, o legislador resolveu proteger este em relação à mulher, garantindo, através de um tratamento desigual, uma igualdade substancial com os homens.).

Sob o enfoque do Direito de Família, Dias (2009) pensa que "a relação de igualdade nas relações familiares deve ser pautada não pela pura e simples igualdade entre iguais, mas pela solidariedade entre seus membros, caracterizada da mesma forma pelo afeto e amor".

É principalmente com base neste princípio que se pauta esta monografia. Assim como a constituição equiparou em direitos todos os filhos, não existindo mais a classificação em espúrios, incestuosos, naturais, adulterinos e legitimados (art. 227§ 6º da CF c/c 1596 do CC), o fez também em relação às diferentes formas de constituição de família. O problema reside na legislação infraconstitucional, mais especificamente, no CC, já que manteve o tratamento igualitário entre os filhos, independentemente do tipo de relação pela qual foram concebidos, mas não o manteve quanto ao direito sucessório na união estável se comparado ao casamento.

Princípio da Solidariedade: atualmente, a acepção do vocábulo solidariedade, mais consentânea com o Estado Democrático de Direito, se apóia num viés sociológico. O indivíduo, como tal, não existe, mas sim coexiste, juntamente com os demais. Sua relação com os semelhantes passou a ser considerada como essencial à sua existência e, sendo assim, não pôde ele mais ser estimado como uma pequena "totalidade" auto-suficiente e auto-subsistente.

Tal princípio encontra terreno fértil no Direito de Família, tendo em vista que os interesses dos membros se sobrepuseram ao interesse da instituição, deixando de lado rígidas hierarquizações, baseadas na preservação do patrimônio, a favor da realização pessoal dos indivíduos que compõem a família.

A solidariedade pode ser vista tanto no plano fático, uma vez que no ambiente familiar compartilham-se afetos e responsabilidades, como no plano jurídico, na medida em que os deveres de cada um para com os outros impuseram a definição de novos direitos e deveres jurídicos. Assim é, por exemplo, a obrigação alimentar recíproca entre os membros da família, garantindo-se condições mínimas de subsistência do ser humano. Desta forma, na análise de terceiros envolvidos, pondera-se sobre a disponibilidade ou indisponibilidade do direito protegido, ora pendendo para a liberdade, ora para a solidariedade.

Na medida em que o homem é um ser essencialmente social, que está em constante interação com os demais é preciso que todos tenham a consciência da dignidade do outro. Nesta perspectiva, a construção de uma sociedade solidária, que busque erradicar a pobreza e a marginalização e a reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como promover o bem de todos, sem discriminações (CF/88, art. 3º, III e IV), preconiza não que sintamos algo de bom pelo outro, mas que nos comportemos como se sentíssemos. Tem-se, portanto, o que podemos chamar de solidariedade objetiva, ou, em outras palavras, dever de solidariedade.

A sucessão hereditária no âmbito familiar é instrumento de concretização do princípio da solidariedade constitucional, principalmente as regras da sucessão legítima necessária, pois estabelecem uma possibilidade de distribuição de valores materiais entre os familiares e, dessa forma, um mecanismo em potencial de libertação das necessidades, como meio de concretização de uma vida digna.

Ao contrário do que ocorre, para que a solidariedade constitucional tenha ampla realização no âmbito do Direito Sucessório, é preciso que as regras da sucessão legal observem a pessoa do sucessor, em suas variadas e diversas necessidades, interesses, exigências, qualidades individuais, condições econômicas e posições sociais, não havendo discriminação quanto à entidade familiar a qual pertence o chamado à sucessão.

Princípio da afetividade: a CF abriga princípios implícitos que através de sua interpretação sistemática conduz ao reconhecimento dos mesmos. A Lei Maior, assim como o CC, não utilizam da palavra "afeto", embora, em alguns dispositivos, seja possível entrever esse elemento caracterizador de situação merecedora de tutela. Exemplo claro disso se deu no momento em que a Constituição admitiu outras formas de união, constituídas sem o selo do casamento, como tipos de família juridicamente tuteladas, prova de que abdicou de valores que justificavam a norma de exclusão, passando a privilegiar o fundamento comum a todas as entidades familiares, qual seja, a afetividade.


3.A FAMÍLIA NA CF DE 88 E A CLÁUSULA GERAL DE INCLUSÃO

Com efeito, o conceito de família trazido pelo art. 226 é plural e indeterminado, firmando uma verdadeira cláusula geral de inclusão. O cotidiano, as necessidades e os avanços sociais concretizam os tipos familiares, merecendo, todos eles, igualmente, proteção legal.

Conforme lição de Lôbo e Matos (apud Serrão, 2009, p. 28 e 29):

Não é a família per se que é constitucionalmente protegida, mas o locus indispensável de realização e desenvolvimento da pessoa humana. Sob o ponto de vista do melhor interesse da pessoa, não podem ser protegidas algumas entidades familiares e desprotegidas outras, pois a exclusão refletiria nas pessoas que as integram por opção ou por circunstâncias da vida, comprometendo a realização do princípio da dignidade humana.

Ademais, sobreleva considerar que a norma constitucional deve ser interpretada de forma a se lhe emprestar a maior eficácia possível. Assim, podendo se extrair diferentes tipos de leitura de algum dispositivo constitucional deve prevalecer o que determine maior alcance social, conferindo eficácia ao princípio da dignidade de cada um dos que integram o núcleo familiar (§8º do art, 226 da CF).

3.1.NÃO TAXATIVIDADE DO ROL CONSTITUCIONAL

Ponto crucial sobre as entidades familiares circunda a enumeração do art. 226 da CF. Seria ele um rol exemplificativo ou rol taxativo?

Para responder esta questão, faz-se necessário esclarecer a importância do preâmbulo de nossa Constituição, pois é um compromisso antecipado que, juntamente com os princípios fundamentais formam as cláusulas pétreas da Constituição.

No preâmbulo fica estabelecido que instituído o Estado Democrático de Direito, este se destina a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Resta claro, portanto que a interpretação do texto constitucional deve ser pautada nos princípios da liberdade, igualdade e justiça, e na ausência de preconceito, visando à concretização do macroprincípio da dignidade da pessoa humana, assegurado pelo art. 1º, III, como princípio fundamental da República.

Desta forma, como a pessoa humana é o elemento finalístico da proteção estatal, as normas de direito positivo em geral e em especial as que disciplinam o direito de Família devem convergir para regular as relações mais íntimas e intensas do indivíduo no social.

Isto posto, a conclusão que se chega é no sentido da não taxatividade do rol contemplado no art. 226 da CF, senão desprotegeríamos inúmeros agrupamentos familiares não previstos ali. A exclusão das outras formas de entidades familiares por este artigo decorre de um problema de interpretação literal, pois uma interpretação sistemática e teleológica dos preceitos constitucionais conduz, seguramente, à idéia de inclusão de outros modelos familiares.

Segundo Bobbio (apud Farias e Rosenvald, 2008), o raciocínio a ser feito diante das entidades familiares é no sentido de se entender o rol não taxativo da Constituição, posto que se depreende de sua leitura o reconhecimento do status privilegiado de liberdade, solidariedade, responsabilidade. A família se apresenta como um núcleo solidário-afetivo, valorizando-se a estrutura em detrimento de modelos previamente consubstanciados.

O raciocínio jurídico implícito a este posicionamento pode ser inserido entre aqueles que compõem a chamada teoria da "norma geral exclusiva" segundo a qual, resumidamente, uma norma, ao regular um comportamento, ao mesmo tempo exclui daquela regulamentação todos os demais comportamentos [01]. Como se salientou em doutrina, a teoria da norma geral exclusiva tem o seu ponto fraco no fato de que, nos ordenamentos jurídicos, há outra norma geral (denominada inclusiva), cuja característica é regular os casos não previstos na norma, desde que semelhantes a ele, de maneira idêntica [02]. De modo que, frente a uma lacuna, cabe ao intérprete decidir se deve aplicar a norma geral exclusiva, usando o argumento a contrario sensu, ou se deve aplicar a norma geral inclusiva, através do argumento a simili ou analógico.

Sem abandonar os métodos clássicos de interpretação [03], verificou-se que outras dimensões, de ordem social, econômica, política, cultural etc., mereceriam ser consideradas, muito especialmente para a interpretação dos textos das longas Constituições democráticas que se forjaram a partir da segunda metade deste século [04]. Sustenta a melhor doutrina, modernamente, com efeito, a necessidade de se utilizar métodos de interpretação que levem em conta tratar-se de dispositivo constante da Lei Maior e, portanto, métodos específicos de interpretação constitucional devem vir à baila [05].

Pela passagem acima exposta, numa comparação entre o previsto no artigo 226 da CF e as outras realidades fáticas familiares, chegamos à conclusão, através do argumento analógico, que o rol do artigo 226 da CF não é taxativo.

No tocante à união estável, diante de um raciocínio teleológico-sistemático, tem-se uma identidade de ratio com a causa da inclusão do cônjuge como herdeiro necessário na sucessão, a exigir, portanto, uma interpretação consoante à norma inclusiva _ perante uma mesma ratio deve-se dar tratamento idêntico.

3.2.ELEMENTOS CARACTERIZADORES DA FAMÍLIA

Não havendo mais que se falar em taxatividade das modalidades familiares, torna-se interessante determinar os caracteres que identificam a família e que produzirão efeitos jurídicos, independentemente da previsão legal.

Segundo Matos (apud Serrão, 2009, p.15), que segue o pensamento desenvolvido por Lôbo, são características comuns a todas as famílias:

A estabilidade, excluindo-se os relacionamentos casuais, episódicos ou descomprometidos, sem comunhão de vida; a ostensibilidade, o que pressupõe uma unidade familiar que se apresente assim publicamente; a afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com desconsideração do novel econômico.

Na esteira do que aqui se sustenta, nossos tribunais têm reconhecido que a presença do caráter afetivo como mola propulsora de algumas relações, a caracteriza como entidade familiar (independentemente de previsão constitucional), merecendo a proteção do Direito de Família, como afirmado pela Corte gaúcha no seguinte aresto: TJ/RS, Ac. 8ª Câm. Cív., AgInstr. 599075496, rel. Des. Breno Moreira Mussi, j. 17.6.99, in RTDC 2:155.

Temos assim como inadmissível um sistema familiar fechado, eis que atentaria contra a dignidade da pessoa humana, assegurada constitucionalmente, contra a realidade social viva e presente da vida e, igualmente, contra os avanços da contemporaneidade, que restariam tolhidos, emoldurados numa ambientação previamente delimitada. Por isso, estão admitidas no Direito de Família todas as entidades fundadas no afeto, na ética e na solidariedade recíproca, mencionadas, ou não, expressamente pelo comando do art. 226 da Carta Maior.

3.3.A FUNÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA

A norma jurídica, somente pode ser vista e admitida como instrumento posto à disposição para implementar decisões justas e adequadas, solucionando os mais variados problemas e conflitos emergidos de uma sociedade aberta, plural e multifacetária.

Por isso, com a colaboração do texto Constitucional, é inquestionável que a ciência jurídica como um todo (aí está incluído o Direito de Família) é um sistema aberto de valores, fundado em princípios a serem seguidos, em busca da concretização da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social, da igualdade e da liberdade.

Dessa nova visão que se tem sobre o ordenamento jurídico, inexiste dúvida de que todo e qualquer instituto, necessariamente, tem que cumprir uma função, uma determinada finalidade que deve ser observada na sua aplicação, sob pena de desvirtuá-lo da orientação valorativa constitucional que norteia todo o ordenamento jurídico. E não pode ser diferente com o Direito de Família. A aplicação da norma familiarista tem de estar sintonizada com o tom garantista e solidário da Constituição Federal, garantindo funcionalidade de seus institutos. É o que se chama de função social da família.

Guerra (apud Farias e Rosenvald, 2008) comenta bem sobre essa funcionalidade:

Os institutos de Direito de Família como um todo (casamento, união estável, parentesco, alimentos, etc.) devem observar uma determinada finalidade, sob pena de perderem a sua razão de ser. Assim, deve-se buscar, nos princípios constitucionais, o que almejou o constituinte para a família, de forma a bem entender sua normatização.

Afirmada a imprescindibilidade do cumprimento de uma função social (nos mesmos moldes da função social da propriedade, da posse, do contrato e da empresa) pelo Direito de Família, vale destacar, inclusive, a premente necessidade de adaptação do conteúdo de seus clássicos institutos aos valores constitucionais, podendo implicar modificação de situações históricas, como se nota da admissibilidade de união estável entre pessoas ainda casadas, mas separadas de fato.

Nessa perspectiva, o não atendimento da função social da família poderá implicar efeitos jurídicos negativos entre as partes interessadas.


4.UNIÃO ESTÁVEL

4.1.BRECHAS DA LEI E TRATAMENTOS DESIGUAIS PARA SITUAÇÕES IGUAIS

Temos no Direito várias situações de brechas da lei e de tratamento desigual para situações iguais e é com base nisso que é pautada essa monografia. A título ilustrativo mostraremos duas ocorrências, dentre inúmeras outras: a situação da conta de água e luz do inquilino em relação ao locatário _ o inquilino é obrigado a pagar conta de luz, mas não o é quanto a de água, ou seja, se não pagar quem será cobrado é o proprietário e a situação das causas suspensivas, aplicáveis ao casamento e não aplicáveis à união estável _ apesar de os impedimentos matrimoniais serem aplicáveis à união estável, as causas suspensivas não embaraçam a sua caracterização, o que, de algum modo, pode gerar uma perplexidade: pessoas que celebram casamento com inobservância das causas suspensivas ficam submetidas, obrigatoriamente, ao regime da separação de bens, enquanto que aquelas que constituem união estável com inobservância das mesmas causas suspensivas, não sofrem da mesma restrição patrimonial. É o que emana do § 2º do art. 1723 do CC, registrando que "as causas suspensivas do art. 1523 não impedirão a caracterização da união estável." Torna-se necessário, portanto, aplicar as causas suspensivas igualmente à união estável. Não se trata de estar criando interpretações extensivas em normas restritivas de direito, mas sim, de se redimensionar os sujeitos a que se destinam as causas suspensivas de uma relação familiar. Essas causas não são atributos do casamento, mas conseqüências restritivas de um relacionamento.

Nota-se, pelos casos acima, que no direito muitas vezes não prevalece a regra segundo a qual onde há a mesma razão há o mesmo direito.

É neste tratamento injusto e desigual que se enquadra a tutela diferenciada entre cônjuge e companheiro no que tange à sucessão, tema deste trabalho.

4.2.APONTAMENTOS DE UMA ADEQUADA COMPREENSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL

Conforme demonstrado no tópico 3.1 ("Não taxatividade do rol constitucional"), a união estável, através do artigo 226 §3º da CF de 1988, passou a ser tutelada constitucionalmente como entidade familiar sem o vínculo do casamento.

Pode-se dizer que ela é uma relação afetivo-amorosa entre um homem e uma mulher, não impedidos de casar entre si, com estabilidade, durabilidade, notoriedade, convivência sob o mesmo teto ou não. Seu elemento principal é o ânimo de constituir família, isto é, a intenção de estar vivendo como se casados fossem (convivência more uxório). O intuito familiae ou affectio maritalis é visível socialmente pelos mesmos sinais exteriores de um casamento, como, a soma de projetos afetivos, pessoais e matrimoniais, de empreendimentos financeiros com esforço comum, de contas conjuntas bancárias, declarações de dependência em imposto de renda, em planos de saúde e em entidades previdenciárias, o carinho, a dedicação e a abnegação diante de alguma doença contraída por algum dos companheiros, a frequência em eventos sociais e familiares, eventual casamento religioso (conhecido como evento eclesiático), dentre outros...

Observa-se, portanto, que hoje não é elemento exigido para a união estável um lapso temporal mínimo de convivência e de relacionamento sob o mesmo teto.

Em sede jurisprudencial já se disse que o companheirismo é qualificado

(...) pela dedicação, colaboração e aplicação do homem e mulher nas tarefas da comunhão de vida e de interesses para construir o progresso moral e material unificados, não pela união efêmera da concubinagem firmada só para intercâmbio sexual. O direito de participação nos bens radica na dissolução da sociedade, fincada na relação jurídica permanente da affectio maritalis intuitu familiae, por isso não se compra o amor e nem o sexo se indeniza". (TJ/RS, Ac. 8ª Câm. Cív., ApCív 591059126, rel. Des. Clarindo Favretto, j. 14.11.91.)

A possibilidade de constituição de união estável com pessoa casada, separada judicialmente ou de fato _ independentemente do prazo _ a despeito do que afirmam os artigos 1642, V e 1830 do CC é exemplo claro da importância dos elementos "afetividade" e "atualidade" para a caracterização de uma família no Direito contemporâneo. É a demonstração da união estável suplantando os efeitos do casamento, merecedora da mesma tutela deste por ser uma realidade viva na sociedade.

Ora, se o indivíduo está separado de fato e já até constituiu outra entidade familiar é porque o vínculo afetivo com a família anterior não é suficiente mais para ainda gerar efeitos após sua desconstituição. Ainda mais quando já se constituiu uma nova família em que esta (presunção absoluta) passou a ser responsável pela aquisição do patrimônio após a sua constituição.

Esse é o entendimento patrocinado pelo STJ:

(...) tratando-se de aquisição após a separação de fato, à conta de um só dos cônjuges, que tinha vida em comum com outra mulher, o bem adquirido não se comunica ao outro cônjuge, ainda quando se trate de casamento sob o regime de comunhão universal. (STJ, Ac. 3ª T., REsp. 67.678/RS, rel. Min. Nílson Naves, DJU 14.8.00).

Desta forma, quanto aos bens adquiridos durante o casamento, o ex cônjuge é que faz jus à meação. Quanto aos adquiridos depois da separação de fato e da constituição da união estável será o companheiro quem fará jus à meação.

4.3.HISTÓRICO DAS LEGISLAÇÕES

A expressão concubinato significa comunhão de leito. Ela carregava duplo sentido. O primeiro se refere à união entre homem e mulher extraconjugal. O segundo diz respeito a uma comunhão de fato que se reflete no convívio duradouro entre duas pessoas como se casadas fossem.

Com a Carta de 1988 o ordenamento jurídico brasileiro passou a designar esta última acepção do termo como união estável.

Contudo, um longo e sinuoso caminho foi trilhado até a legitimação da união estável como entidade familiar capaz de produzir efeitos jurídicos, já que o direito brasileiro sempre considerou as relações não conjugais como imorais.

O Código Civil de 1916 acolhia, unicamente, como ente familiar aquela estrutura oriunda do casamento, considerada a base da sociedade e, desse modo, tida como sendo o único laço legítimo e legal de se constituir família, merecedora de amparo do Estado.

Assim, face ao conservadorismo (leia-se e entenda-se como machismo) existente na sociedade coube aos doutrinadores e aos julgados dos Tribunais admitirem e reconhecerem a união estável, como uma espécie de relação familiar, até que ela fosse reconhecida pela Carta Magna de 1988, visto que não existia previsão legal anterior à Constituição. Todavia, tal reconhecimento - por parte dos Tribunais - apesar de um avanço significativo, admitia, tão-somente, a partilha dos bens adquiridos pelo esforço comum dos conviventes, isto é, tão-só a extensão de sua contribuição. De outro lado, em não sendo possível ser atribuída parte dos bens pelo esforço em comum (leia-se "provado", pois o companheiro tinha que provar que o patrimônio fora adquirido em comum esforço), a jurisprudência concedia apenas indenização à concubina, a título de serviços domésticos prestados.

Artigo 226,§ 3º da CF.: Com a Constituição Federal de 1988, o Estado passou a reconhecer a união estável como entidade familiar, passando inclusive a facilitar sua conversão em casamento.

Após o reconhecimento da união estável como entidade familiar pela constituição federal de 1988, não demorou muito para que passasse a ser regulamentada legalmente. Surgiram assim as leis 8971/94 e 9278/96.

Lei 8971/94: veio disciplinar os direitos dos companheiros a alimentos, impondo como requisitos para configuração da união estável que os companheiros fossem solteiros, separados judicialmente, divorciados ou viúvos e que houvesse uma convivência mínima de cinco anos ou a existência de prole. Garantiu ao companheiro participação na herança, mediante usufruto parcial em concorrência com os descendentes ou ascendentes, e recebimento de todos os bens na falta destes herdeiros. Tratou, ainda, do direito à meação post mortem.

Lei 9278/96: veio regular também a união estável, mas não ab-rogando a lei anterior. Estabeleceu diferentes requisitos dos acima mencionados, como a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família, afastando de uma vez por todas, a exigência temporal. De forma explícita, assegurou o direito de meação em virtude do condomínio decorrente da presunção de colaboração na aquisição onerosa de bens durante o tempo da união. No âmbito sucessório, estendeu ao companheiro o direito real de habitação.

Tais direitos sucessórios foram concebidos a partir da observação do que a lei deferia ao cônjuge e com o óbvio intuito de equiparar, tanto quanto possível, as duas situações.

Observou-se, contudo, que admitida a convivência parcial da lei mais antiga após a entrada em vigor da lei mais recente, a coexistência de todos aqueles direitos sucessórios acabava por situar o companheiro em posição mais favorecida que o próprio cônjuge, a quem não se permitiria jamais cumular o usufruto vidual (art. 1611,§ 1º do CC de 1916) com o direito real de habitação (art. 1611,§ 2º do CC de 1916). Procurou-se, então, corrigir este resultado mediante raciocínio segundo o qual, diante da precedência, na CF, do casamento sobre a união estável, as vantagens asseguradas ao companheiro deveriam ser estendidas ao cônjuge: assim passou-se a permitir a cumulação do usufruto vidual com o direito real de habitação.

Desse panorama legislativo nota-se que aquele comportamento moralista, advindo da Igreja Católica, e patrimonialista, foi afastado a partir da CF Cidadã ao ser equiparada a união estável com o casamento.

Artigos 1723 a 1727 do CC de 2002: passou a regular as uniões estáveis que iniciaram antes da vigência do CC de 2002 e se desdobraram sob sua égide, bem como as que se iniciaram após.

Inicialmente o relacionamento livre entre homem e mulher em nosso país não era tratado como crime ou ato ilícito, mas suas conseqüências se projetavam apenas no âmbito do Direito das Obrigações, não produzindo efeitos no âmbito do Direito de Família. Ou seja, este tipo de relacionamento submetia-se às regras das sociedades de fato, não familiaristas, sendo-lhe reconhecido efeitos meramente patrimoniais (indenização pelos serviços prestados entre as partes), uma vez que essas famílias não faziam jus a alimentos, por exemplo. As lides deste tipo de relacionamento eram dirimidas perante o Juízo Cível. Apenas com o advento da Constituição Cidadã e conseqüente elevação da união estável ao status de entidade familiar que se firmou a competência das Varas de Família para conhecer e julgar as causas relativas à união estável através do art. 9º, da lei nº 9278/96.

Foi nesse viés discriminatório que se posicionou o CC de 1916 ao reconhecer apenas o casamento como entidade familiar. O casamento era a única forma de se constituir uma "família legítima", ainda que outras formas familiares fossem caracterizadas pelo afeto. Daí a distinção e tratamento desigual garantido pelo Direito da época entre "filhos legítimos" e "filhos ilegítimos" (nascidos de pessoas não casadas entre si).

Não pode se aceitar que em pleno século XXI o Direito de Família se feche para a realidade da vida moderna, não abarcando ou protegendo situações da nossa realidade, consagrando regras inclusive inconstitucionais.

Ademais, a liberdade do cidadão representado pelos direitos fundamentais constitui seu núcleo mínimo de proteção, precisando ser reconhecida a aplicabilidade dessa liberdade na constituição das entidades familiares.

O texto constitucional atribui especial proteção à família, independentemente de sua forma de constituição. Mas a proteção não se dá com o fim nela mesma, mas sim porque busca-se garantir a dignidade de seus membros (caráter instrumental da família). Daí que a norma infraconstitucional deve respeitar e garantir igual tratamento às famílias em geral, independentemente da forma como foi constituída. Qualquer tratamento discriminatório ferirá a proteção da pessoa humana, contrariando a intenção do constituinte originário que busca se adequar às novas tendências.

O que se busca tutelar é a vida em comum, independentemente da forma como se dê, pois se presume que qualquer família está fundada no afeto.

Onde há a mesma razão deve haver o mesmo direito, as realidades idênticas devem ser tratadas de maneira igual. Não pode o ordenamento jurídico ser incoerente e não reconhecer o amor e a solidariedade que permeiam as relações familiares. As convenções não se sobrepõem à realidade. Quando vemos uma família a consideramos como tal sem questionarmos se ela se constituiu de papel passado ou não. Até mesmo as que assim se constituíram, antes da formalidade, foi necessário ter havido a presença daqueles ingredientes comuns a todas elas, como a solidariedade, o amor e o respeito.

É um limitador das liberdades do indivíduo ele ter que se casar para adquirir mais direitos.

4.4.ANÁLISE DO ART. 226, § 3º DA CF E O PRINCÍPIO DO NÃO RETROCESSO

No art. 226, § 3º da CF alguns argumentam no sentido de que o legislador quis estabelecer níveis de importância entre as famílias ao dizer que a lei facilitará a conversão da união estável em casamento. Contudo, esse raciocínio é forçoso para justificar um pensamento preconceituoso, pois se assim realmente fosse, o constituinte estaria sendo contraditório com seus princípios constitucionais fundamentais da igualdade entre as pessoas, liberdade e dignidade da pessoa humana (arts. 5º caput e 1º, III da CF) [06].

Já que o Estado zela pela construção de uma sociedade livre, justa e solidária, deve promover a igualdade social, vedada qualquer forma de discriminação, não podendo privilegiar uma forma de constituição de família em detrimento de outra, sob pena de cercear a liberdade individual, afrontando os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.

Ao facilitar a conversão da união estável em casamento, o constituinte almejou tão somente facilitar a conversão através de menores solenidades, tudo em consonância com o viés que tem adotado de diminuição do formalismo e prevalência das relações fáticas e/ou da autonomia da vontade.

Note-se que casamento e união estável são formas diferentes de constituir e provar a existência da família, mas que devem receber os mesmos efeitos protetivos em relação aos seus componentes, tanto pelos motivos até aqui expostos como por uma realidade brasileira na qual mais da metade da população vive em regime de união estável [07], inclusive pelas despesas financeiras que um casamento exige [08].

Exatamente por isso é de se notar a inconstitucionalidade da norma legal que dispõe sobre o direito sucessório do companheiro (art.1790 do CC), pois defere a este proteção inferior aos direitos garantidos ao cônjuge. Negam-se, assim, os princípios da solidariedade, igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana, uma vez que o companheiro é preterido por uma questão meramente formal, reveladora de uma origem preconceituosa atinente à moral e à religião, e não jurídica propriamente dita.

Júnior (apud Farias e Rosenvald, 2008), eminente civilista do Amazonas também defende que o tratamento sucessório dispensado ao companheiro

(...) é ofensivo ao Texto Constitucional, porque agride a igualdade da proteção que a lei deve deferir a todas as espécies de família, uma vez que não aceitamos a alegada superioridade de qualquer das espécies familiares sobre as demais. E, mais adiante é direto ao asseverar que o art.1790 do CC "deve ser destinado à lata do lixo, sendo declarado inconstitucional e, a partir daí, simplesmente ignorado, a não ser para fins de estudo histórico da evolução do Direito.

Tendo o mesmo posicionamento, encontra-se Madaleno (apud , Silva, p. 22), ao dizer que "o art. 1790 é ofensivo ao texto constitucional, porque agride a igualdade de proteção que a lei deve deferir a todas espécies de família , uma vez que não aceitamos a alegada superioridade de qualquer das espécies familiares sobre as demais."

Em sede jurisprudencial, nota-se uma tendência no sentido do posicionamento aqui defendido. Veja-se ilustrativamente:

Sucessão – União estável – Inconstitucionalidade do art. 1790 do CC diante o tratamento paritário entre a união estável e o casamento por força do art 226 da CF. (...) as regras sucessórias previstas para a sucessão entre companheiros no novo Código Civil são inconstitucionais. Na medida em que a nova lei substantiva rebaixou o status hereditário do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite, violou os princípios fundamentais da igualdade e da dignidade. (TJ/RS, Ac. Unân. 8ª Câm. Cív., AgInstr.70009524612, rel. Des. Rui Portanova, j.18.11.04).

Não sendo razoável a legislação infraconstitucional distinguir o que não foi diferenciado pelo constituinte, o mesmo raciocínio deve ser aplicado a qualquer dispositivo legal que trate a união estável de forma distinta em relação ao casamento, ou seja, deve ser expurgado pela incompatibilidade com os valores apregoados pela Carta Magna – que possuem induvidosa força normativa [09].

Contudo, o CC 2002, contrariando o princípio do não retrocesso, passou a tratar de forma pior a sucessão do companheiro se comparada a que as leis 8971/94 e 9278/96 lhe garantiam, bem como se comparada à do cônjuge. Quanto ao princípio, convém lembrar a lição de Ingo Wolfgang Sarlet (Tartuce apud Silva, 2009, p.32) que, ao fazer referência à doutrina portuguesa de Vital Moreira e José Joaquim Gomes Canotilho, afirma que a proibição do retrocesso

(...) pode ser considerada uma das conseqüências da perspectiva jurídico-subjetiva dos direitos fundamentais sociais na sua dimensão prestacional, que, nesse contexto, assume condição de verdadeiros direitos defesa contra medidas de cunho retrocessivo, que tenham por objeto a sua destruição ou redução.

4.5.EFEITOS PATRIMONIAIS DA UNIÃO ESTÁVEL

Não há dúvida que de qualquer entidade familiar, como reflexo dasrelações pessoais, decorrem variados efeitos jurídicos que repercutem tanto no campo pessoal como no econômico, independentemente da vontade das partes. Isso se dá porque a vida em comum exige esforço conjunto no tocante às despesas da residência comum, à mantença da própria família e ao impulso natural de adquirir patrimônio que assegure melhores condições econômicas para a união que se formou.

Destarte, a união estável dá origem a um conjunto de efeitos de ordem pessoal que acabam por refletir na esfera patrimonial, necessitando da regulamentação do Direito. Nesse sentido dispõe o artigo 1724 do CC: "As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos."

No âmbito patrimonial, a união estável assemelha-se ao casamento em muitos aspectos, pois se sujeita no que couber, ao regime da comunhão parcial de bens, conforme disposto no art. 1725 do CC. Por conseguinte, os bens adquiridos onerosamente durante a convivência são de propriedade comum, exceto os adquiridos com o produto da venda de bens particulares. Além disso, as partes podem estipular a incomunicabilidade dos bens por contrato escrito.

Os efeitos patrimoniais da união estável dependerão se a sua dissolução ocorreu por ato inter vivos ou causa mortis. Se por ato inter vivos, decorrerá o direito à meação e aos alimentos. Se por ato causa mortis, o sobrevivente terá direito além de sua meação, o direito à herança (inclusive podendo pleitear a inventariança: art. 1797, I do CC _ "até o compromisso do inventariante, a administração da herança caberá, sucessivamente ao cônjuge ou companheiro, se com o outro convivia ao tempo da abertura da sucessão"), à habitação e aos eventuais benefícios previdenciários, tudo isso sem prejuízo da sub-rogação no contrato de locação de imóvel urbano (Lei 8245/91: Lei de locação de imóveis urbanos, em seu artigo 11 disciplina a hipótese de que ocorrendo o óbito do locatário na constância da relação locatícia, o seu cônjuge ou companheiro, assim como os dependentes, sobreviventes ficarão sub-rogados automaticamente nos direitos e obrigações concernentes ao contrato, desde que residentes no imóvel. E em seu artigo 47, III, pela mesma lógica, garante, nos contratos de locação por prazo indeterminado, o direito de retomada do imóvel para uso próprio do locador ou de seu cônjuge – estendendo-se também ao companheiro – ascendente ou descendente, que não disponha de imóvel residencial próprio.)

4.5.1.O regime de bens e o direito à meação

Como dito no tópico anterior, o sistema jurídico criou uma verdadeira presunção de colaboração na aquisição do patrimônio entre os conviventes (entenda-se este termo como sinônimo de qualquer daqueles que convivem numa entidade familiar, independentemente do título que esta receba) ao subentender o esforço recíproco entre eles. E foi nesse sentido que o legislador previu a meação como um direito dos companheiros em relação aos bens adquiridos por esforço comum.

Art. 1725 do CC: "na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime de comunhão parcial de bens."

Nota-se que o dispositivo legal regulamentou as relações econômicas na união estável tomando como modelo os efeitos patrimoniais do casamento, aplicando o regime de comunhão parcial de bens. Por isso, caracterizada a união estável, só não haverá direito em relação aos bens adquiridos antes da convivência e aos provenientes de sucessão hereditária e doação, pois em relação aos bens adquiridos na constância da convivência há presunção absoluta, pela lei, de que houve colaboração recíproca na aquisição.

A presunção absoluta decorre das regras da comunhão parcial de bens em relação ao casamento (de onde as mesmas foram retiradas para a união estável), pois os bens adquiridos onerosamente neste são partilhados entre os cônjuges em presunção absoluta, não se permitindo a qualquer deles demonstrar que o outro não colaborou para a referida aquisição.

Neste viés o Enunciado 115 da Jornada de Direito Civil do CJF (apud Farias e Rosenvald, 2008): "há presunção de comunhão de aquestos na constância da união extramatrimonial mantida entre os companheiros, sendo desnecessária a prova do esforço comum para se verificar a comunhão dos bens".

É importante detalhar que a colaboração não precisa ser material, decorrendo da simples convivência, do clima propício gerado pelo ambiente familiar para aquisição patrimonial.

Quando há contrato de união estável, as relações patrimoniais são regulamentadas conforme o que estiver nele estipulado, afastando, assim, o regime da comunhão parcial determinado por lei (art. 1725 do CC). Embora seja expressão do princípio da liberdade contratual, este pacto é limitado por cláusulas contratuais que afastem direitos e garantias estabelecidos em lei em favor de companheiros.

Este contrato, assim como a natureza da união estável, não requer qualquer solenidade. Apenas exige-se a sua celebração por escrito, podendo ser por escritura pública ou particular, não submetido ao registro público. O pacto convivencial é um ato bilateral, podendo ser celebrado a qualquer tempo, antes ou durante a convivência. Pode ser revogado a qualquer tempo, desde que com a anuência de ambas as partes.

O contrato não basta, por si só, para caracterizar a união estável. Os elementos já ditos é que são essenciais para a caracterização da mesma. O contrato estipula o regime de bens a partir de sua confecção em diante, gerando efeitos ex nunc. Antes de sua confecção o que vale é a regra geral: comunhão parcial de bens (art. 1725 do CC.)


5.DA SUCESSÃO DO CÔNJUGE

5.1.CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS

A CF/88 garante o direito de herança em seu art. 5º, inciso XXX, do Título II, concernente aos direitos e garantias fundamentais. O reconhecimento da sucessão mortis causa constitui um corolário da garantia do direito à propriedade privada (CF/88, art. 5º, caput, XXII e XXIII). Argumenta-se também que a inexistência do direito de herança numa sociedade em que não impera um integral coletivismo da propriedade levaria a um consumo desenfreado, desestimulando a poupança. Ademais, é essencialmente necessária para certeza no tempo quanto ao adimplemento das obrigações.

Sucessão, na etimologia jurídica, conduz sentido de substituição, compreendendo-se a vinda de coisa ou de pessoa para colocar-se no lugar, ou na posição ocupada por outra, investindo-se na mesma situação jurídica, que mantinha a outra coisa, ou a outra pessoa.

E, assim, sucessão pode definir-se como a transmissão de bens (sentido objetivo) e de direitos (sentido subjetivo) de uma pessoa a outra, em virtude da qual esta última, assumindo a propriedade dos mesmos bens e direitos, pode usufruí-los, dispô-los e exercitá-los em seu próprio nome.

Sucessão. Em sentido estrito, porém, como instituição do direito hereditário, sucessão é a transmissão de bens e de direitos a uma ou mais pessoas vivas, integrantes de um patrimônio deixado por uma pessoa falecida.

Na sucessão hereditária, é essencial a morte da pessoa, a quem se sucede, porquanto a sua abertura é subordinada a esse fato jurídico substancial. Não se sucede, isto é, não se pode herdar de pessoa viva. A sucessão hereditária será sempre causa mortis. E por essa razão é igualmente assim denominada: sucessão causa mortis, em distinção à sucessão inter vivos, que se possa manifestar sob outros aspectos. (Silva, 2004, p.1339)

A sucessão causa mortis dá-se por disposição de última vontade ou em virtude de lei, recebendo, respectivamente as denominações de sucessão testamentária (autonomia da vontade) e sucessão legítima (vínculo familiar). A última não pode ser excluída pela vontade do de cujus, dando origem à legítima _ porção dos bens que cabem de pleno direito e obrigatoriamente aos parentes em linha reta do testador e ao seu cônjuge.

Pode-se dizer que a quota necessária é fruto da conjugação dos elementos romano e germânico no Direito Brasileiro. No Direito Romano predominava a liberdade de testar, só se verificando a sucessão legítima quando faltava um ato, válido, de última vontade. Aos poucos, as restrições à liberdade de testar foram surgindo. Primeiro no campo formal, depois no campo material. O desenvolvimento de novos conceitos morais contribuiu para que o chefe de família percebesse que violava deveres sacratíssimos em relação à progênie, quando o pai deixava todo o seu patrimônio a estranhos, esquecido de que, chamando à vida novos seres, contraíra, para com a sociedade, e para com a sua consciência em primeiro lugar, a obrigação de ampará-los. Mais tarde, Justiniano aumentou a porção da legítima dos descendentes do testador.

Já o Direito Germânico tem uma concepção oposta à romana antiga. O direito sucessório estava baseado na família e no parentesco, prevalecendo a sucessão legítima. O testamento só passou a ser reconhecido a partir da interferência da Igreja, que compensava a cessão de bens imóveis com a salvação das almas.

O instituto da legítima, portanto, encontra seu fundamento na conciliação entre a plena liberdade de testar e a proteção da família, devendo-se lembrar que a reserva dos herdeiros necessários é intangível, não podendo ser diminuída na essência ou no seu valor por nenhuma cláusula testamentária _ princípio da intangibilidade da legítima.

O princípio acima mencionado visa proteger a família (com a legítima ela não ficará desamparada _ dignidade humana e solidariedade econômica entre os membros da mesma família); garantir a propriedade privada (autonomia privada de o testador poder dispor metade de seus bens) e a livre iniciativa. Nota-se, portanto, que o referido princípio encontra-se em inteira consonância com o ordenamento constitucional vigente.

Atualmente, grande parte da doutrina fundamenta a sucessão legítima num conceito de interesse superior da família, entendida como instituição de importância social, mas não merecedora de tutela por si mesma, mas sim porque promove o desenvolvimento da pessoa de seus componentes _ visão constitucional da família.

Após breves considerações, cumpre fazer uma análise das normas infraconstitucionais que versaram sobre os direitos sucessórios dos cônjuges ao longo dos tempos.

5.2.EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA SUCESSÃO DO CÔNJUGE

O Direito Romano, a propósito da vocação hereditária passou por diversas transformações. Nas suas origens, não muito bem conhecidas, prevalecia a perpetuidade do culto. O filho era chamado a suceder para dar continuidade à personalidade jurídica do morto. Inicialmente, a mulher não tinha direitos sucessórios, mas gradativamente foi conquistando-os. Na última fase do Direito Romano, da codificação justinianéia, foi reconhecido à mulher direito à sucessão do marido, recolhendo a quarta parte em propriedade na falta de filhos, e em usufruto se os havia até o máximo de três; se fossem em maior número, um direito usufrutuário mais limitado. Na falta de colaterais, os cônjuges eram herdeiros um do outro.

No Direito das Ordenações Filipinas (no qual se baseou nosso direito pré-codificado durante todo o século XIX e início do século XX), o cônjuge estava localizado na quarta posição sucessória, atrás dos descendentes, dos ascendentes e dos colaterais até o 4º grau. Era remota a possibilidade de o cônjuge ser chamado a suceder.

Atendidos os apelos dos juristas e da sociedade para que o cônjuge ficasse numa posição mais favorável na ordem de vocação hereditária, a lei Feliciano Pena (lei 1839/1907) inverteu as posições dos colaterais e do cônjuge, colocando este antes daqueles.

O CC de 1916 manteve o cônjuge na terceira classe sucessória, atribuindo-lhe a herança sob duplo pressuposto (arts. 1603 c/c 1611 do CC de 1916):

• Ausência de descendentes e ascendentes;

• Não estarem os cônjuges legalmente separados.

Desta forma, no sistema original do CC de 1916, descendentes e ascendentes (que integravam, respectivamente, a primeira e a segunda classes de herdeiros legítimos, de acordo com a ordem de vocação hereditária ali prevista: art. 1603) jamais concorriam com o cônjuge sobrevivente, o qual, à falta de testamento e uma vez reconhecida a capacidade sucessória daqueles herdeiros preferenciais, nada recebia na sucessão do de cujus.

Como não era considerado herdeiro necessário, ainda que não existissem descendentes e nem ascendentes, o cônjuge também não recebia nada se o de cujus tivesse disposto de todos os seus bens em testamento.

A lei 883, de 21 de outubro de 1949, ao permitir, em certas circunstâncias, o reconhecimento de filho havido fora do matrimônio, inovou em matéria sucessória, criando hipótese de simultâneo chamamento do filho natural reconhecido e do cônjuge do de cujus, desde que o último fosse casado com o falecido no regime de separação total. A herança era repartida igualmente entre os dois (art. 3º da lei). Instituía-se uma solução discriminatória perante o filho natural, uma vez que com filhos legítimos o cônjuge não poderia concorrer em obediência à ordem de vocação hereditária então em vigor (art. 1603 do CC revogado.)

O Estatuto da Mulher Casada, lei 4121/62, passou a reconhecer à mulher, enquanto durasse a viuvez e se casada em regime que não fosse o da comunhão de bens, o direito de usufruto vidual correspondente à quarta parte dos bens deixados pelo marido quando concorresse com filhos do casal ou do falecido cônjuge, e à metade se não houvesse filhos, embora sobrevivessem os ascendentes do de cujus (artigo 1611, § 1º do CC de 1916).

Com o propósito de amparar o cônjuge supérstite contra eventualidade de ser privado de moradia, o Estatuto da Mulher Casada também inovou criando a possibilidade do direito real de habitação, incluído no art. 1611 §2º CC 1916. O objeto deste direito é o imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar. O direito era aplicado apenas ao regime de comunhão de bens, não ficando prejudicado o direito do cônjuge à sua meação. Este direito real era vitalício e condicional ao estado de viuvez.

No mesmo sentido de proteção ao cônjuge sobrevivente, a lei chamada de "proteção à família" (Decreto-Lei 3200 de 1941) dispôs em seu artigo 17, em favor da brasileira casada com estrangeiro sob regime que exclua a comunhão de bens, o usufruto vitalício da quarta parte dos bens deste, se houver filhos do casal e da metade se não os houver. Este usufruto não está condicionado ao estado de viuvez. A sucessão usufrutuária aqui prevista é diferente da prevista no Estatuto da Mulher Casada (lei 4121/62), não tendo sido, portanto, revogada por esta. Aliás, trata-se de norma especial, de incidência restrita à hipótese ali cogitada, que continua valendo ainda hoje perante a ausência no CC de 2002 de disposição sobre o assunto.

Em seguida, a Nova Lei de Introdução ao Código Civil e, posteriormente a CF de 1946 e atualmente a CF de 1988 estabeleceram que a sucessão de bens de estrangeiros situados no Brasil será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge e dos filhos do casal, salvo se a lei pessoal do de cujus lhes fosse mais favorável (CF/88, art. 5º, inc. XXXI).

5.3.NORMATIZAÇÃO NO CC DE 2002

Antes de partirmos para a análise da sucessão do cônjuge perante o CC de 2002 são necessárias duas observações:

• As regras do novo diploma somente se aplicam às sucessões abertas a partir do dia 11 de janeiro de 2003, conforme apregoa o artigo 2041 do CC. Por isso o histórico das sucessões se faz necessário, pois muitas pessoas morreram na vigência da lei revogada, enquanto o inventário e/ou a partilha se deram na vigência do CC atual. Nesses casos, por força da saisine, as regras a serem observadas serão as da época do óbito (momento em que os direitos hereditários, definitivamente incorporados ao patrimônio dos herdeiros, não podem ser desconstituídos por lei superveniente _ art. 1572 do CC de 1916 e 1784 do CC de 2002).

• Tanto no CC de 1916 quanto no atual, não há confundir o direito de herança, reconhecido ao cônjuge supérstite, com a sua meação. No CC de 1916, a meação era um efeito da comunhão, ao passo que o direito hereditário não dependia do regime de bens; no CC de 2002, todavia, nenhuma das afirmações pode ser feita em caráter absoluto. Em regra, o cônjuge já tem direito à meação em vida do outro, na vigência da sociedade conjugal. A morte do cônjuge, nos regimes de comunhão, apenas põe termo ao estado de indivisão, permitindo sejam discriminados e individuados os bens sobre que incide a metade de cada um. No CC atual, ao contrário do de 1916, a meação pode ser também efeito da sucessão, como no regime de participação final dos aquestos (separação de patrimônios durante a vigência da sociedade conjugal, mas com possibilidade de meação quanto aos bens adquiridos pelo casal, a título oneroso, na vigência da união estável, na hipótese de dissolução da sociedade pela morte de um deles) e no da separação obrigatória de bens (súmula 377 do STF: entendimento de que os aquestos são comuns, existindo meação sobre eles na hipótese de dissolução da sociedade pela morte de um dos cônjuges). Ademais, o regime de bens passou a ter relevância na definição dos direitos hereditários do cônjuge quando concorre com descendentes do de cujus, o que não ocorria no CC de 1916.

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III - ao cônjuge sobrevivente;

IV - aos colaterais.

O CC de 2002 manteve a ordem de vocação hereditária do CC anterior, com algumas modificações: o cônjuge passou a poder concorrer com os descendentes, dependendo do regime de bens em que fora casado com o de cujus e também com os ascendentes, independentemente do regime de bens adotado. Não havendo descendentes e nem ascendentes, o cônjuge é chamado sozinho. Apenas na sua ausência que os colaterais serão chamados, até o quarto grau.

A sucessão, de um modo geral, funciona da seguinte forma: a vocação de descendentes afasta a de ascendentes, quer os primeiros concorram ou não com o cônjuge do autor da herança (art. 1829 do CC) e dentro de cada classe, os parentes de grau mais próximo preferem aos de grau mais afastado.

Em relação ao cônjuge, o CC inovou melhorando a sua situação sucessória. Alteração mais relevante: cônjuge se torna herdeiro necessário (art. 1845 do CC). Outra alteração foi sua colocação nas duas classes preferenciais em concorrência com os descendentes e ascendentes, como apregoa o art. 1829, I e II do CC.

Tem precedência sobre os colaterais, ou seja, não havendo parentes em linha reta, herdará tudo sozinho, desde que não esteja separado judicialmente, nem de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa sua.

Quando o cônjuge concorre com os descendentes, faz-se necessário analisar em qual regime de bens foi realizado o casamento. Regra geral, os descendentes e o cônjuge concorrem à sucessão do de cujus (art. 1829, I, primeira parte, CC), salvo quando o casamento se der nos seguintes regimes (art. 1829, I, CC):

A).Comunhão universal de bens, pois neste caso, o cônjuge já é contemplado com a meação, não sendo necessário protegê-lo com a herança.

B)Separação obrigatória de bens. A lei, ao estabelecer este regime, objetiva a não comunicabilidade de bens entre os cônjuges (pelos motivos do art. 1641, CC). Caso o cônjuge fosse herdeiro, estar-se-ia beneficiando-o com bens que não cabem a ele (pela imposição da incomunicabilidade dos bens no momento da constituição do vínculo matrimonial). A súmula 377 do STF, todavia, entende que os aquestos são comuns, existindo meação sobre eles. Observe: meação, e não herança!

C)Comunhão parcial, quando o de cujus não houver deixado bens particulares. Neste caso, o cônjuge já se beneficiou com a meação, não tendo porque beneficiar-se enquanto herdeiro. Caso fosse considerado herdeiro, estaria ganhando duas vezes do mesmo patrimônio (bis in idem).

O regime de bens que não se encontra nas exceções acima descritas, encontra-se na regra, ou seja, o cônjuge concorre com os descendentes. E isso se dá nos seguintes regimes:

D)Participação final dos aquestos: o cônjuge é herdeiro em relação aos bens particulares do de cujus e meeiro quanto aos bens adquiridos onerosamente durante o casamento.

E)Comunhão parcial com bens particulares deixados pelo de cujus : semelhante ao anterior, o cônjuge é herdeiro em relação aos bens particulares e meeiro em relação aos bens adquiridos onerosamente durante o casamento.

F)Separação convencional de bens: este regime visa à incomunicabilidade dos bens por uma escolha dos nubentes, mas não por imposição legal. Em decorrência disso o cônjuge não é meeiro, mas apenas herdeiro, haja vista existirem apenas bens particulares.

Quando concorre com os ascendentes (art. 1829, II), o faz independentemente do regime de bens, tendo em vista que o cônjuge e os ascendentes encontram-se em iguais condições, não sendo necessário resguardar mais um do que o outro. Aqui, não importa perquirir se há ou não o benefício da meação para o cônjuge, ele e os ascendentes estão no mesmo patamar. Diferentemente é o caso anterior, quando concorre com os descendentes. Presume-se que estes, por serem mais novos e por darem maior continuidade ao patrimônio, necessitam de maior resguardo, não estando em paridade com o cônjuge.

Não havendo descendentes nem ascendentes, o cônjuge não concorre com os colaterais (art. 1829, III). Prevalece em relação a estes, independentemente do regime de bens. Isto porque o cônjuge teve com o de cujus maior afinidade e contribuiu muito mais para a construção do patrimônio do que os colaterais, sendo merecedor, portanto, da totalidade da herança (art. 1838 do CC). Apenas se não houver cônjuge sobrevivente nos termos do art. 1830 é que serão chamados a suceder os colaterais até o 4º grau (art. 1839 do CC).

5.3.1.Partilha

Quando o cônjuge concorre com os descendentes, sua quota dependerá do número destes (art. 1832 CC):

• Quando o número de descendentes não for superior a três, a divisão entre estes e o cônjuge será por cabeça, igual quinhão para todos.

• Na hipótese de se ter mais de três descendentes, filhos em comum do de cujus com o cônjuge sobrevivente, deve-se resguardar este com ¼ da herança, sendo os ¾ restantes divididos por cabeça entre os descendentes. Dentro desta hipótese surge uma questão:

Havendo um ou mais descendentes filhos apenas do de cujus, permanecerá o cônjuge com o resguardo de ¼ ? Tem-se dois entendimentos:

O primeiro compreende a regra do 1832 do CC como restritiva. Estar-se-ia diminuindo o quinhão dos descendentes para beneficiar o cônjuge se permanecesse o resguardo de ¼. Sendo restritiva do direito dos descendentes, a regra não poderia ser estendida para hipótese não prevista. Dessa forma, quando os descendentes não são comuns, a divisão deve ser feita por cabeça.

Já o segundo compreende a regra por um viés teleológico do legislador. A finalidade do artigo é resguardar o cônjuge que contribuiu para a construção do patrimônio. Não é razoável desproteger o cônjuge pelo simples fato de não serem todos os filhos comuns. O fato é o mesmo (mais de três descendentes), não havendo motivos para a mudança do direito.

Penso ser mais correto o segundo entendimento, pois onde há a mesma razão, há o mesmo direito, devendo a regra prevalecer ainda que os filhos não sejam comuns. Até porque, se assim não fosse, quando tivesse filhos incomuns, estes seriam beneficiados pela divisão por cabeça em relação à hipótese em que tivesse apenas filhos comuns. Isso daria um tratamento diferenciado aos filhos _ tratamento inconstitucional (art. 227 §6º da CF).

Quando o cônjuge concorre com os ascendentes, a partilha ocorrerá conforme o artigo 1837 do CC, que deve ser corretamente interpretado diante de sua infeliz redação. Temos três hipóteses que não podem se confundir:

A)Concorrendo com ambos os pais, ao cônjuge tocará 1/3 da herança. É esta a primeira hipótese prevista no art. 1837 do CC, embora redigido de outra maneira. Isso para que não seja confundida esta hipótese com a seguinte. A má redação do artigo acabou por criar zonas de intersecção, embora tivesse o legislador a intenção de atribuir efeitos jurídicos diferentes.

B)Se houver um único ascendente, independente do grau, recolherá ele metade da herança e o cônjuge a outra metade.

C)Se houver mais de um ascendente no mesmo grau (os de grau mais próximo afastam o de grau mais remoto, sem distinção de linhas), sendo este grau superior ao primeiro, metade da herança caberá ao cônjuge e a outra metade será repartida entre os ascendentes por linhas, nos termos do art. 1836,§§ 1º e 2º do CC. Observa-se, portanto, que pela explicação dada, esta hipótese não se confunde com a anterior, embora, a redação da segunda parte do art. 1837 do CC possa gerar a dúvida sobre em qual das duas hipóteses se encaixa a possibilidade de coexistência, numa única pessoa, das qualidades de único ascendente (descrição da hipótese anterior) e de ascendente de grau superior ao primeiro (descrição desta última hipótese).

5.4.DIREITO REAL DE HABITAÇÃO E USUFRUTO VIDUAL

O art. 1831 do CC passou a prever, com maior extensão em relação à lei anterior, o direito real de habitação. Este direito continua sendo em relação ao

imóvel residencial da família, desde que seja o único a inventariar, sem prejuízo da parte que caiba ao cônjuge sobrevivente na herança. Foi ampliado, contudo, pois independe do estado de viuvez e do regime de bens adotado pelo casal.

O direito ao usufruto vidual, anteriormente mencionado, (art. 1611 do CC de 1916) foi extinto com o CC de 2002, somente sendo reconhecido nas sucessões abertas antes de sua entrada em vigor (art. 2041 CC), obedecidos os requisitos da lei à época vigente. A extinção se deu porque ao ser colocado como herdeiro necessário, o cônjuge não estará desprotegido como outrora, não precisando do referido benefício.

5.5.ARTIGO 1830 DO CC: ANÁLISES E CRÍTICAS

Outra impropriedade para a sucessão do companheiro no CC decorre do disposto no art. 1830 do CC, que autoriza a concorrência sucessória entre o cônjuge sobrevivente e o companheiro da união estável contraída após a separação de fato do de cujus, desde que o cônjuge sobrevivente comprove estar separado de fato há menos de dois anos, ou, em caso de separação fática superior ao referido prazo, demonstre que a convivência se tornou impossível por culpa exclusiva do de cujus.

Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.

O art. 1830 do CC de 2002 é além de lacunoso, anacrônico, tendo em vista o atual espírito do Direito de Família.

Ponto menos controvertido na doutrina é o da exclusão da herança do cônjuge sobrevivente, nos casos de separação judicial. Deve-se, no entanto, já ter havido o trânsito em julgado da decisão de separação judicial litigiosa, não podendo o consorte ser privado do direito sucessório, na hipótese, se houver recurso pendente de julgamento. Também é exigido, quando for o caso de separação consensual, que o acordo esteja regularmente homologado. Nesse sentido, Gonçalves (apud, Da Silva, 2009, p.26):

O direito sucessório do cônjuge, todavia, só estará afastado depois de homologada a separação consensual ou passada em julgado a sentença de separação litigiosa ou de divórcio direto, que só produz efeitos ex nunc, ou ainda depois de lavrada a escritura pública de separação ou divórcio consensuais, que produz seus efeitos imediatamente, nos termos do art. 1124-A do diploma processual civil, com a redação dada pela lei nº 11441, de 4 de janeiro de 2007. Morrendo o cônjuge no curso da ação de divórcio direto, de conversão de separação em divórcio ou de separação judicial, extingue-se o processo.

Questão controvertida é quanto à parte do dispositivo que reconhece direito sucessório ao cônjuge se não estivesse separado de fato há mais de 2 anos ou se, separado de fato há mais de 2 anos, não tivesse dado causa à separação. A controvérsia surge quando, nesse período, o de cujus contrai união estável. Neste caso, é discutida a possibilidade de haver a concorrência do ex-cônjuge com o companheiro quando da morte do autor da herança. Por isso existem três posicionamentos doutrinários principais tentando buscar uma solução: atribuir direitos sucessórios apenas ao cônjuge, apenas ao companheiro ou ao companheiro em concorrência com o cônjuge.

A primeira solução pode ser considerada descartada, sendo poucos os doutrinadores adeptos dela. A maior parte da doutrina se divide, portanto, entre as duas últimas soluções.A título de exemplo, Cahali (apud Silva, p.30):

Existe um conflito entre as normas, na medida em que duas pessoas, pela análise fria dos textos, seriam titulares da mesma herança. Para a convivência das regras, caracterizada a união estável, há que se prestigiar o companheiro viúvo, em detrimento do cônjuge, integrante formal de matrimônio falido, apenas subsistente no registro civil. Mas, à evidência, não se privará o cônjuge de eventual meação sobre patrimônio adquirido na constância do casamento, bens estes a cuja comunhão o companheiro não terá direito, pois adquiridos anteriormente à união estável.

Também Dias (apud, Da Silva, 2009, p.28):

Para o cônjuge preservar a qualidade de herdeiro, é necessário que a sociedade conjugal tenha persistido até o falecimento do outro. Indispensável reconhecer que a separação de fato subtrai do viúvo a condição de herdeiro. Admitir a possibilidade de o cônjuge herdar quando o casal já estava separado de fato, é perpetuar os efeitos do casamento para depois de seu fim. Não há como assegurar pelo longo período de dois anos, o direito à herança de quem foi o culpado pela separação. Tal possibilidade afronta princípio petiço dos mais elementares, além de gerar o enriquecimento sem causa, pois herdaria o patrimônio amealhado depois da separação. Também fora de propósito deferir a herança ao cônjuge sobrevivente, independente do prazo da separação, pelo só fato de não ter sido o responsável pelo rompimento da vida em comum. Estes absurdos estão consagrados na lei (CC 1830), não tendo o legislador atentado que a jurisprudência considera rompido o casamento quando cessa a convivência. Não mais persistindo os deveres do casamento, nem o regime de bens, tal subtrai a possibilidade de o sobrevivente ser reconhecido como herdeiro. Nem concorre com os sucessores e nem preserva a qualidade de herdeiro. Recebe a meação dos bens adquiridos a constância do casamento, que não é direito sucessório. Nada mais.

Particularmente penso que se pelo artigo 1830 do CC é reconhecido direito sucessório ao ex-cônjuge sobrevivente que estava separado de fato do de cujus a menos de 2 anos, com muito mais razão é de se conferir igual direito àquele companheiro que conservou o elo afetivo com o de cujus até o fato morte. Aliás, conferir o direito sucessório ao companheiro é muito mais consentâneo com o viés do legislador atual, que prioriza os laços afetivos na caracterização da entidade familiar, do que conferi-lo ao ex-cônjuge, que não mais possui o afectio maritalis. Mas é melhor que tentemos buscar uma solução proporcional, em que cada um fique resguardado com a parte da herança correspondente à sua contribuição.

A segunda parte do art. 1830 comporta dois absurdos:

O primeiro se refere à possibilidade de o ex-cônjuge sobrevivente ter seu direito sucessório reconhecido se estivesse separado de fato do autor da herança a menos de dois anos. O absurdo é em relação ao fato de neste período não se fazer análise da culpa imediata, ou seja, mesmo que o ex-cônjuge sobrevivente tenha sido o culpado pela separação, ele terá direito a herança.

O segundo absurdo é quanto à possibilidade de ser considerado herdeiro se estivesse separado de fato, independente da análise temporal, desde que a convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente. Neste caso o problema se dá quando, suponhamos, num casamento que tenha durado 5 anos, ocorre a separação de fato que perdura por 15 anos, até que um dos ex-cônjuges morre. O ex-cônjuge sobrevivente não teve culpa na separação. E o de cujus, três anos após a separação de fato, constituiu união estável. Nota-se, aqui, que o companheiro sobrevivente pode ter contribuído muito mais na aquisição do patrimônio do de cujus do que o ex-cônjuge sobrevivente, inclusive porque viveu mais tempo com ele. E então? A herança não será do companheiro? Não seria injusto seguir a literalidade do artigo 1830 do CC?

Interessante a sugestão de Almeida (apud Pereira, 2009, p.145), em seu Código Civil Comentado, pág. 217. Propõe que o cônjuge, na hipótese, seja tratado como um dos "parentes sucessíveis" a que se refere o art. 1790, III, do CC, dividindo-se a herança, desigualmente entre ele e o companheiro (tocariam 2/3 ao primeiro e 1/3 ao último).

Brilhante, contudo, é a solução proposta por Pereira. Não poderia ter sido melhor. Aliás, a maioria dos autores nem sempre enfrentam a questão, mesmo quando a identificam. Quando muito, emitem um parecer sobre quem pensam que deveria ser tutelado pelo direito sucessório, mas não põem fim à questão. Assim defende Pereira (2009, p. 146):

Sendo inadmissível ao intérprete ignorar a cláusula final do art. 1830, a despeito das críticas, de lege ferenda, que se possam dirigir à necessidade de indagação sobre culpa (cf. vol. V destas Instituições, nº 405-A), parece-nos que o problema deva ser resolvido mediante a aplicação, em cada período de aquisição patrimonial, das regras sucessórias que lhe são próprias, como se se tratasse de duas sucessões distintas: assim, considerar-se-ão, em primeiro lugar, os bens adquiridos até a separação de fato e, quanto a eles, se fará a partilha segundo o art. 1829, assegurada aí a participação do cônjuge (em concorrência ou não com os parentes do falecido); em seguida, proceder-se-á à partilha dos bens posteriormente adquiridos, de acordo com o art. 1790, recebendo o companheiro o quinhão que, nas circunstâncias, lhe couber.

Este critério não estende injustificadamente os efeitos do casamento para depois de seu fim, pois não assegura uma condição de herdeiro ad eternum a uma pessoa que, dependendo de quando o sucedendo morreu, este já não a sentia mais como ente familiar, merecedora, portanto, do direito de herdar. Evita-se também o enriquecimento ilícito do ex-cônjuge sobrevivente, pois não lhe garante sucessão nos bens adquiridos pelo de cujus posteriormente à separação de fato, a pretexto de não ter sido culpado por ela. Ademais, numa análise bem objetiva, admite-se a sucessão do ex-cônjuge sobrevivente ainda que tenha sido culpado pela separação de fato, pelo fato de se presumir ter contribuído para a aquisição patrimonial do de cujus enquanto estiveram juntos.

O critério proposto por Pereira foi o mais razoável e mais próximo da eqüidade dos que já vi e, até mesmo, dos que pude imaginar, pois contempla proporcionalmente todos os que contribuíram de alguma forma para a aquisição patrimonial do de cujus, em momentos diferentes de sua vida. Eu tinha criado um critério muito subjetivo (com a análise da culpa). O de Pereira, ao revés, é muito objetivo (não faz análise da culpa). Talvez pudéssemos criar um critério cuja base seja o de Pereira, acrescentando um pouquinho de subjetividade quanto à sucessão dos bens adquiridos até a separação de fato, ou seja, acrescentar um critério subjetivo quanto à participação do ex-cônjuge sobrevivente na herança:

Os bens adquiridos até a separação de fato, que serão objeto da partilha segundo o art. 1829, devem assegurar a participação do ex-cônjuge sobrevivente que não tenha sido culpado imediatamente pela separação.(Chamo de culpa imediata ou relevante as causas ensejadoras da separação sanção – adultério, tentativa de morte, sevícia, ou injúria grave, abandono voluntário do lar conjugal durante um ano contínuo, condenação por crime infamante e conduta densonrosa art. 1573 do CC; as causas ensejadoras da revogação da doação pura – donatário atentar contra a vida do doador; cometer crime de homicídio doloso contra ele; cometer ofensa física contra ele; cometer injúria grave ou calúnia contra ele ou recusar ao doador os alimentos de que este necessitava – art. 557 do CC; ou, ainda, as causas ensejadoras da ação de indignidade – herdeiro ou legatário que houver sido autor, co-autor ou partícipe de homicídio doloso ou tentativa deste contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; que houver acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou que incorrer em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro; que por violência ou meios fraudulentos, inibir ou obstar o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade – art. 1814 do CC. A culpa imediata se contrapõe a culpa mediata: esta seria a sucessão de acontecimentos próprios do convívio, que podem anteceder a culpa imediata, embora esta culpa possa existir sem aquela.) Isso por três motivos: primeiro, por se presumir ter contribuído para a aquisição patrimonial do de cujus, segundo, porque faz jus por uma questão de consideração, reconhecimento, gratidão e/ou moral, por ter integrado a família. Neste caso, tem-se consideração seja porque o matrimônio se desfez por culpa mediata de ambos, seja porque quem saiu "devedor" da separação foi o de cujus, sendo a herança uma forma de mitigar sua culpa imediata em ter dado causa à desconstituição de sua família e terceiro, porque, para o direito brasileiro, objetivamente falando, o que é obrigatório legalmente é apenas a meação, uma vez que a jurisprudência subtrai a possibilidade de o sobrevivente ser reconhecido como herdeiro quando rompido o casamento com o fim da convivência.

Por outro lado, não é justo e nem consoante com a idéia de família atual o direito de herdar do ex-cônjuge que não integra mais o núcleo familiar do de cujus, por ter sido ele próprio o causador da separação de fato. A família hoje (pós CF/88) passou a ser protegida somente na medida em que proporciona o desenvolvimento da personalidade de seus membros _ família instrumento _ formação social que tem em vista a pessoa de seus componentes: desenvolvimento e felicidade do outro. Neste tipo de família impera o princípio da igualdade e da solidariedade. Diante desta nova concepção de família, questiona-se: como um cônjuge que abandona o lar, atenta contra a vida de seu consorte ou comete adultério, além de outras causas de culpa imediata..., propicia o desenvolvimento e felicidade dos demais integrantes da família? Se foi ele que não quis continuar sendo integrante daquela família, como pode querer que a solidariedade econômica decorrente da herança o atinja? É inevitável e justificável que os demais integrantes deixem de considerá-lo como membro, já que é ensejador de desarmonia no lar.

O mesmo não pode ser dito do ex-cônjuge que não deu causa à separação de fato, seja porque houve culpa imediata do de cujus, seja porque houve culpa mediata de ambos. Nessa situação, os demais integrantes ainda continuam a considerá-lo como membro e, portanto, merecedor da herança.

Salientou-se, portanto, a questão da culpa relevante como mais um requisito importante para suceder, servindo como mais um critério para constatação de que o sobrevivente pode fazer jus à herança. Isso porque, apesar de alguns dizerem que o exame da culpa trata apenas de causa imediata da ruptura _ não tão importante frente ao resultado de uma sucessão de acontecimentos próprios do convívio, que também dão causa ao rompimento – temos de convir que seria muito mais honesto se separar porque a convivência não é mais possível, sem que se cometa alguma das faltas graves ensejadoras da separação sanção (art. 1573 do CC); da revogação da doação pura (art. 557 do CC) ou, ainda, da ação de indignidade (art. 1814 do CC).Logo, a análise da culpa como requisito para suceder estimula a lealdade, a honestidade e o respeito entre os cônjuges. Do contrário, ou seja, se mesmo culpado o cônjuge sobrevivente pudesse suceder, ficaria desestimulado em agir conforme esses ditames. E é protegendo esses princípios morais que nascem nas relações familiares e repercutem nas relações sociais, que o Direito evita muitos problemas futuros.

Em síntese, podemos dizer que, após ser conferido ao ex-cônjuge (desprovido de culpa relevante na separação) os bens que lhe pertencem na sucessão do de cujus até a separação de fato, proceder-se-á à partilha dos bens posteriormente adquiridos, de acordo com o art. 1790, recebendo o companheiro o quinhão que, nas circunstâncias, lhe couber.


6 DA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO

6.1.LEIS Nº 8971/94 E 9278/96

Antes da regulamentação legal da união estável não era atribuído direito de herança aos companheiros, até então chamados de concubinos. Segundo lição de Oliveira (apud Silva, 2009, p.18):

Na ordem de vocação hereditária, conforme o art. 1603 do Código Civil de 1916 aparecia apenas o cônjuge sobrevivente, para haver a herança depois dos descendentes e dos ascendentes. Na falta do cônjuge, sucediam os colaterais, sem lugar, portanto, para o chamamento de companheiro supérstite.

Conforme entendimento consolidado na Súmula 380 do STF, a jurisprudência atribuía aos concubinos apenas o direito de partilha dos bens adquiridos por esforço comum, em sociedade de fato orientada pelo direito obrigacional. O direito de herança não era assegurado ao companheiro, que recebia apenas a participação no patrimônio em percentual variável, de acordo com sua efetiva contribuição.

A atribuição de herança aos companheiros só era possível através de disposição testamentária, vedada a outorga por homem casado à sua concubina, nos termos dos arts. 1177 e 1719, inciso III do CC de 1916.

Em virtude do art. 226, §3º, da Carta Política de 1988, regulamentado pelas leis da união estável, a sucessão mortis causa entre companheiros foi, enfim, admitida, de forma análoga ao direito consagrado ao cônjuge sobrevivente pelo Código Civil de 1916, em seus arts. 1603, II e 1611. Segundo Oliveira (apud Silva, 2009, p.18) "com implícita alteração da ordem de vocação hereditária, uma vez que, existindo companheiro com direito à herança, afastava-se o chamamento dos colaterais sucessíveis".

Assim, nos termos do art. 2º, da lei nº 8971/94, o companheiro participava da sucessão do falecido em condições muito semelhantes às do cônjuge:

1. Enquanto não constituísse nova união, o convivente teria direito ao usufruto da quarta parte dos bens do falecido, se houvesse filhos deste ou comuns; ou ao usufruto da metade dos bens, se não houvesse filhos, embora sobrevivessem ascendentes; e

2. Na falta de descendentes e de ascendentes, o convivente teria direito à totalidade da herança.

Tais direitos não foram mencionados na lei nº 9278/96, mas também não foram revogados expressa ou tacitamente. A nova lei da união estável limitou-se, em seu art. 7º, parágrafo único, a atribuir mais um direito sucessório ao companheiro supérstite, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, qual seja, o direito real de habitação sobre imóvel destinado à residência da família.

No sentido da não revogação do direito real de habitação, está o enunciado nº 117, da I Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em 2002 _ "Art. 1831: o direito real de habitação deve ser estendido, seja por não ter sido revogada a previsão da lei nº 9278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1831, informado pelo art. 6º, caput, da CF/88".

Segundo Czajkowski (apud Silva, 2009, p.19) para o reconhecimento do direito real de habitação não se exigia a coabitação, uma vez que esta não era elencada entre os deveres dos conviventes previstos no art. 2º, da Lei nº 9278/96.

Outrossim, o convivente supérstite poderia cumular os direitos de usufruto e de habitação, o que não acontecia com os cônjuges, que teriam direito a apenas um dos benefícios, dependendo do regime de bens adotado no casamento. E à semelhança do cônjuge, o companheiro era reconhecido como herdeiro necessário.

Analisando a regulamentação legal da união estável, Oliveira (apud Silva, 2009, p.19) conclui "que houve um grande avanço em favor dos direitos do companheiro, por sua prática equiparação aos direitos do cônjuge no plano sucessório". No entanto, o autor ressalta que não faltaram críticas ao posicionamento do legislador.

Como veremos, estes avanços foram ignorados pelo legislador quando da edição do Código Civil de 2002, que regulamentou a sucessão dos companheiros em seu art. 1790, de forma, no mínimo, atécnica.

Num primeiro momento, o anteprojeto do CC de 2002 não mencionava a união estável, que só veio a ser definida como entidade familiar em 1988 com a promulgação de nossa atual Constituição.

Foi o senador Nélson Carneiro quem apresentou emenda no sentido de garantir direitos sucessórios aos companheiros. Isso talvez possa explicar a má alocação do tema no CC, bem como o tratamento diferenciado em relação aos dispositivos que cuidam do direito sucessório do cônjuge.

O art. 1790 do CC, que prevê a sucessão dos companheiros, foi inserido no capítulo que versa sobre as disposições gerais da sucessão, fora, portanto, do capítulo que disciplina a ordem de vocação hereditária. O legislador poderia ter evitado esta impropriedade, que consubstancia uma discriminação injustificável frente à nova axiologia constitucional, mencionando o companheiro, juntamente com o cônjuge, nos arts. 1829 a1832, 1836 a 1839 do CC.

Tentando amenizar a desigualdade de tratamento que hoje existe entre cônjuge e companheiro, alguns defendem, com eloquência, que tais leis não foram revogadas na íntegra. Na parte em que o CC foi omisso e que elas tratavam, bem como na parte em que ele retirou direitos, por serem especiais, elas subsistem. Neste sentido, temos a seguinte ementa:

Apelação cível. Ação declaratória. União estável e petição de herança. Direito sucessório. Conflito aparente de normas. Princípio da especialidade. Recurso provido. 1. Uma das conseqüências do reconhecimento da união estável é a aquisição de direitos pelo companheiro sobrevivente sobre a herança deixada pelo outro. 2. Reconhecida a união estável, existe o direito sucessório. 3. O art. 2º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil, dispõe que a lei nova que estabeleça normas gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. 4. Em decorrência do princípio da especialidade mencionado, a Lei nº 8.971, de 1994, que contém normas especiais sobre o direito dos companheiros à sucessão, prevalece sobre o Código Civil, que é lei geral, ainda que posterior. 5. A companheira sobrevivente, na falta de descendentes e ascendentes, ainda que não tenha contribuído para a aquisição onerosa de bens durante a união estável, tem direito à totalidade da herança. 6. Apelação cível conhecida e provida para reformar em parte a sentença e reconhecer o direito da apelante à totalidade da herança do ex-companheiro. (TJMG, Ac. Proc. 1.0209.04.040904-4/001(1). Rel. Ministro Caetano Levi Lopes, j. 22/09/2009, DJ 07/10/2009)

6.2.CC DE 2002: UMA ANÁLISE COMPARATIVA COM O CÔNJUGE

Conforme Pereira (2009, p. 137):

Chama a atenção do intérprete, desde logo, a inadequada inserção do artigo 1790 do CC em Capítulo dedicado às "Disposições Gerais", do Título I (Da Sucessão em Geral), e não, como teria sido próprio, naquele pertinente à ordem de vocação hereditária, no Título II ("Da Sucessão Legítima"), em prejuízo à sistematização das regras sobre o assunto. Acrescente-se que o companheiro não poderia ter deixado de configurar, a rigor, na lista dos herdeiros legítimos (art. 1829 do CC), conforme sublinhado em monografia específica (Guilherme Calmon Nogueira da Gama, O Companheirismo, cit., pág. 463). Nota-se, portanto, que o dispositivo em comento é um corpo estranho no sistema do novo código civil, pouco à vontade na companhia de outras normas originalmente concebidas para um sistema que simplesmente desconhecia a figura do companheiro, no campo sucessório.

Ainda, o CC 2002:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I - se concorrer com filhos comuns terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis terá direito a um terço da herança;

IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

Toda a matéria pertinente à vocação hereditária do companheiro encontra-se regulada no artigo ora em estudo. Segundo o seu caput, a vocação do companheiro encontra-se limitada aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Os demais bens adquiridos pelo falecido antes de constituída a união estável, ou durante ela, a título gratuito, não serão objeto de sucessão pelo companheiro. Isso representa um retrocesso se comparado a lei 8971/94 e também um retrocesso social: basta considerar a situação dos companheiros que não chegaram a formar patrimônio comum e que, por conseguinte, estariam reciprocamente excluídos da sucessão, à luz do art. 1790 do CC. A lei acabaria frustrando o objetivo de amparar o companheiro sobrevivente, que não somente não faria jus à meação, como ainda não seria chamado a suceder o de cujus.

Exatamente para se evitar semelhante resultado é que se deve interpretar a expressão herança, constante dos incisos III e IV, em seu sentido próprio, mais abrangente do que "bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável" (caput). Na realidade, sobre este ponto há no mínimo três posições sobre a palavra herança.

A primeira delas considera o rigor da boa técnica, submetendo todos os incisos do artigo 1790 do CC ao seu caput, nesta hipótese a palavra herança se limitaria aos bens comuns (conforme determina o caput), gerando a possibilidade de o companheiro sobrevivente ser lançado à própria sorte na hipótese já comentada de ausência de meação e de herança.

A segunda prevê também um tratamento único para todos os incisos, tratamento ilegal, porém constitucional, qual seja: conferir a herança ao companheiro sobrevivente em todas as hipóteses previstas do artigo 1790 do CC, ou seja, o companheiro seria meeiro quanto aos bens onerosos adquiridos na constância da união estável e herdeiro quanto aos demais _ tratamento semelhante ao que é dado ao cônjuge na comunhão patrimonial de bens. Dessa forma o companheiro seria herdeiro independentemente de existirem bens adquiridos onerosamente na constância da união estável (bens comuns). Pelas regras atuais, no entanto, se não existirem os bens comuns, o companheiro não será herdeiro nem meeiro.

Por fim, a terceira, queconta com muitos adeptos na doutrina,prevê que a limitação do caput se aplica apenas aos incisos I e II, mas não às demais hipóteses, onde a palavra herança deve ser tomada em seu sentido próprio.

Após essa prévia, passemos à análise dos dispositivos concernentes à vocação hereditária do companheiro.

Descendentes e companheiro (art. 1790, I e II)

O companheiro de que fala o novo Código Civil, na hipótese de concorrer com os descendentes do de cujus, somente terá direito sucessório sobre os bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável (art. 1790, caput, CC): os demais bens adquiridos pelo falecido antes de constituída a união estável, ou durante ela, a título gratuito, serão objeto de sucessão apenas pelos descendentes. Reside aí a primeira desigualdade entre a sucessão do companheiro se comparada a do cônjuge, pois na sucessão deste quando concorre com os descendentes (a depender do regime de bens), na parte em que não for meeiro, será herdeiro, independentemente de os bens terem sido adquiridos na constância do casamento ou não e independentemente de terem sido adquiridos a título gratuito ou oneroso. Na sucessão do companheiro, ao revés, não existe essa possibilidade ampla de ser herdeiro, pois o âmbito de incidência de seu direito sucessório é apenas quanto aos bens adquiridos na constância da união estável e a título oneroso. Os que foram adquiridos antes de constituída a união estável, ou após ela, a título gratuito, não serão objeto de herança para o companheiro. Na realidade, o companheiro nunca será herdeiro (sentido próprio e amplo da palavra), pois ainda que tenha adotado, por pacto de união estável, o regime da separação total, os bens adquiridos onerosamente durante a união estável, são aqueles que presumidamente o companheiro contribuiu para a aquisição, juntamente com o de cujus. E se este regime tivesse sido adotado na hipótese de casamento, além dos bens adquiridos onerosamente, teria direito também, a título sucessório, aos bens particulares.

Na parte em que concorram descendentes e o companheiro, os bens (adquiridos onerosamente na vigência da união estável) serão partilhados da seguinte maneira:

A) Se houver filhos comuns, faz-se a partilha por cabeça, tocando a estes e ao companheiro idênticas frações (art. 1790, I do CC);

Faz-se necessária uma observação quanto ao emprego da expressão "filhos comuns" no inciso I. Na realidade, o legislador só pôde ter querido dizer "descendentes comuns", tanto pela contraposição estabelecida com o inciso seguinte (no qual é usada a expressão "descendentes não comuns"), como pelo fato de que, se assim não for, os descendentes comuns mais remotos (netos, bisnetos, etc.) acabariam por enquadrar-se entre aqueles "outros parentes sucessíveis" de que fala o inciso III do mesmo artigo, produzindo resultados absurdos. Basta imaginar que o cônjuge, se concorrer com muitos netos (quatro ou mais), terá direito a ¼ da herança (artigo 1832 do CC), enquanto o companheiro, na mesma situação, receberia a fração (maior) de 1/3 (art. 1790, III) _ a lei teria, em iguais circunstâncias, conferido mais direitos ao companheiro que ao cônjuge. Ademais, esses descendentes mais remotos seriam relegados à 2ª ordem de vocação hereditária juntamente com o companheiro, pois na 1ª estariam os filhos do de cujus (comuns ou não) concorrendo com o companheiro. Nessa mesma situação, em se tratando de cônjuge, os descendentes mais remotos (através do direito de representação) concorreriam com os filhos do de cujus e também com o cônjuge, ou seja, todos ficariam na 1ª ordem de vocação hereditária.

Nota-se, portanto, que entender "filhos comuns" como sinônimo de "descendentes comuns" é um imperativo constitucional baseado no tratamento isonômico entre as várias formas de constituição de família _ isso se coaduna com o objetivo deste trabalho que é justamente combater as interpretações e eventuais tratamentos desiguais dados em situações iguais.

A segunda desigualdade entre a sucessão do companheiro se comparada à do cônjuge, é que aquele não terá direito a quota mínima de ¼ dos bens se concorrer com mais de três filhos comuns.

B) Se o companheiro concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um dos descendentes chamados por cabeça (art. 1790, II do CC).

Aqui também se faz necessária uma observação. "... metade do que couber a cada um daqueles" _ assim diz literalmente o CC, referindo-se aos descendentes com a palavra "daqueles". A redação é defeituosa, pois nem todos os descendentes chamados terão, forçosamente, direito a frações idênticas. Isso porque é possível que ao lado do companheiro, concorram, por exemplo, filhos e netos do autor da herança, quando os últimos sejam convocados por direito de representação e, conseqüentemente, dividam a quota do filho pré-morto (arts. 1835 e 1855 do CC). A "metade", a que se refere o texto legal, deve ser, pois, calculada sobre a fração que couber aos descendentes chamados por direito próprio: havendo a simultânea vocação de filhos e netos do de cujus, que não sejam descendentes também do companheiro, a parte deste deverá corresponder à metade do que tocar singularmente a cada filho e às estirpes dos filhos pré-mortos.

A terceira desigualdade é que na hipótese desses filhos serem só do autor da herança, terá direito apenas à metade do que couber a cada um deles, enquanto o cônjuge quando concorre com descendentes que são exclusivos do de cujus, terá direito, no pior dos posicionamentos resultantes da controvérsia da segunda parte do art. 1832, a quota igual a que caberia a cada um dos herdeiros ( tópico 5.1.3.1. Partilha ).

Questão que o CC deixa de fornecer explícita solução é a situação de o companheiro ser chamado a suceder concomitantemente com descendentes comuns e não comuns. Esta situação também se repete na sucessão do cônjuge, na mencionada controvérsia da segunda parte do art. 1832 do CC.

Com base num tratamento isonômico, teríamos duas soluções:

1ª) Adota-se o tratamento do inciso I (divisão em quotas iguais entre o companheiro e os descendentes chamados por direito próprio) ou;

2ª) Adota-se o tratamento do inciso II (ao companheiro metade da quota atribuída aos descendentes chamados por direito próprio).

Jamais poderíamos cogitar de solução com base na união dos critérios dos incisos I e II, uma vez que geraria tratamento desigual entre os filhos, contrariando o preceito constitucional disposto no art. 227§6º da CF. Para satisfazer os dois critérios simultaneamente, o companheiro teria de receber quota idêntica a dos filhos comuns e, ao mesmo tempo, esta quota teria de corresponder à metade daquela atribuída aos não comuns. As frações dos filhos comuns e não comuns seriam desiguais, gerando um tratamento, portanto, inconstitucional.

Dentre as duas soluções possíveis, inclino-me por adotar a posição mais favorável ao companheiro, pelos mesmos motivos expostos quando surgiu a mesma controvérsia em relação ao cônjuge (art. 1832 do CC). Se o legislador quis resguardar o cônjuge com a reserva da quota mínima de ¼, por ter contribuído para a construção do patrimônio do de cujus, igualmente deve querer resguardar o companheiro. E resguardar o companheiro, neste caso, seria a partilha por cabeça, em igualdade de condições, para todos aqueles chamados por direito próprio _ tratamento do inciso I. Seria a posição que mais atenua a diferença de tratamento entre cônjuge e companheiro, uma vez que o CC reservou apenas ao cônjuge a quota mínima na hipótese de descendência comum e, até na de descendência não comum, conforme posição adotada neste trabalho, embora não pacificada na doutrina. Seria também uma forma de não agravar a desigualdade gerada ao companheiro, que tem participação na herança do de cujus incidente apenas sobre os bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável (art. 1790, caput), e não sobre toda a herança.

Ascendentes e companheiro (art. 1790, III)

A concorrência do companheiro com os ascendentes está disciplinada no art. 1790, III do CC. Na realidade, a literalidade do inciso fala em concorrência com outros parentes sucessíveis. Mas já está pacificada na doutrina que a vocação desses outros parentes obedece a ordem do art. 1829, em que os ascendentes precedem os colaterais. A concorrência com outros parentes sucessíveis se dá da seguinte forma:

A) Sendo concomitantemente chamados ascendentes e o companheiro, ao último caberá 1/3 da herança, repartindo-se os 2/3 remanescentes entre os ascendentes, segundo as regras que lhe são próprias (partilha por linhas; exclusão dos parentes mais remotos pelos de grau mais próximo, sem distinção de linha; ausência de direito de representação);

B) Não havendo ascendentes, são chamados a suceder os colaterais em concorrência com o companheiro, cabendo ao último 1/3 da herança, repartindo-se os 2/3 remanescentes por cabeça ou por estirpe entre os colaterais do de cujus, podendo haver o direito de representação na hipótese do art. 1840 do CC.

A quarta desigualdade entre a sucessão do companheiro se comparada à do cônjuge se dá quando concorrem com os ascendentes do de cujus. A regra é a mesma para companheiro ou cônjuge que concorrem com ambos os pais do de cujus, ou seja, recebem 1/3 da herança. Mas se houver um único ascendente (independente do grau) ou se houver mais de um ascendente no mesmo grau, sendo este grau superior ao primeiro, metade da herança caberá ao cônjuge. Em relação ao companheiro, o legislador não previu tratamento igual para as mesmas hipóteses, pelo contrário, foi silente ao estabelecer uma regra única, qual seja, concorrendo com outros parentes sucessíveis, terá direito a 1/3 da herança. Este tratamento não isonômico subsiste independentemente da interpretação que se dê à palavra herança (totalidade dos bens do de cujus ou apenas os bens comuns) no inciso III do artigo 1790.

Colaterais e companheiro (art. 1790, III)

A quinta desigualdade entre a sucessão do companheiro se comparada à do cônjuge ocorre em relação ao tratamento conferido aos colaterais do de cujus. Enquanto o cônjuge recebe a integralidade da herança diante a ausência de descendentes e ascendentes sucessíveis, ou seja, configura sozinho na terceira ordem de vocação hereditária, o companheiro ainda terá que concorrer com os colaterais (integrantes da categoria outros parentes sucessíveis), para, somente na ausência deles, herdar sozinho (art. 1790, IV do CC). Isso sem entrar no mérito do absurdo de os colaterais receberem uma quota maior que a do companheiro, sendo que, provavelmente, não contribuíram para a aquisição patrimonial do de cujus na mesma proporção que o companheiro contribuiu.

Ao autorizar a participação dos colaterais em concorrência com o companheiro, atribuindo-lhes a maior parte do patrimônio deixado pelo falecido, o legislador infraconstitucional privilegiou de forma equivocada laços sanguíneos remotos (sendo que muitas vezes tais parentes mal se conhecem, raramente se encontram), em detrimento dos laços de afeto (em relação àquele que manteve comunidade de vida com o falecido), hoje tão valorizados pelo Direito, e, por conseguinte, promoveu uma injustificável discriminação entre cônjuges e companheiros.

Inúmeros autores, além de apontarem as injustiças do atual regime sucessório do companheiro, afirmam mais uma inconstitucionalidade do artigo 1790, que seria o inciso ora em análise, seja pela excessiva valorização do parentesco biológico, seja pela violação a princípios constitucionais.

Abordando o aqui defendido quanto à excessiva valorização do vínculo sanguíneo, a Juíza Maria Luiza Póvoa Cruz (apud, Silva, 2009, p. 34) leciona:

Limitar o direito sucessório dos companheiros aos bens adquiridos a ‘título oneroso’ na vigência da união estável e estabelecer um sistema de fixação das quotas hereditárias em supremacia aos vínculos sanguíneos (colaterais até o 4º grau) é inconstitucional e representa retrocesso, abandonando os direitos que as Leis 8971/94 e 9278/96 haviam concedido aos companheiros.

Companheiro como herdeiro único (art. 1790, IV)

Se, porém, não houver parentes sucessíveis, o companheiro terá direito à totalidade da herança. Conforme defendido alhures, não parece razoável considerarmos a palavra herança utilizada neste inciso como sinônima de bens comuns, tendo os bens particulares do de cujus como vacantes, destinando-os ao ente estatal. De duas possíveis interpretações de um dispositivo acerca da sucessão legítima, há de se dar preferência àquela que maior proteção confira à família (em especial, aos familiares mais próximos, como é o caso).

6.3.CONSTATAÇÕES ACERCA DA ANÁLISE COMPARATIVA DAS SUCESSÕES DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO

O CC de 2002 modificousensivelmente as regras sucessórias do companheiro para pior, comparativamente às leis 8971/94 e 9278/96.

O art.1790 do CC estabeleceu as regras próprias para o direito à herança do companheiro, distinguindo das regras aplicáveis ao cônjuge.

Suas regras são tão graves que admitindo a formação de uma união estável entre uma mulher e um homem, o qual já possuía um vasto patrimônio adquirido antes da convivência e veio a falecer após quinze anos de relacionamento, não adquirindo bens durante o mesmo, não deixará à companheira sobrevivente nada, uma vez que ela não fará jus à meação (nada fora adquirido) e tampouco à herança (que depende de bens adquiridos a título oneroso).

Ademais o companheiro se encontra em uma posição inferior até mesmo em relação aos colaterais de 4º grau do falecido, já que somente terá direito ao recebimento integral da herança se eles não existirem. Uma situação quase impossível. Exemplificando: se imaginarmos um homem que vem a morrer deixando um sítio que possuía antes de iniciar a união estável e onde residia e retirava o sustento com a sua companheira, com quem dividiu a vida durante mais de trinta anos, não tendo deixado qualquer outro bem, nem deixado descendentes ou ascendentes, tem-se, segundo o CC (art. 1790), que os seus colaterais (imagine-se seus primos) ficarão com o sítio, enquanto que a companheira não fará jus a nada! Esse absurdo precisa ser repelido.

No mesmo sentido a lição de Veloso (apud, Silva, 2009, p. 33)

Na sociedade contemporânea, já estão muito esgarçadas, quando não extintas, as relações de afetividade entre parentes colaterais de 4º grau (primos, tios-avós, sobrinhos-neto). Em muitos casos, sobretudo nas grandes cidades, tais parentes mal se conhecem, raramente se encontram. E o novo Código Civil brasileiro... resolve que o companheiro sobrevivente, que formou uma família, manteve uma comunidade de vida com o falecido, só vai herdar, sozinho, se não existirem descendentes, ascendentes nem colaterais até o 4º grau do de cujus. Temos de convir: isto é demais! Para tornar a situação mais grave e intolerável, conforme a severa restrição do caput do art. 1790..., o que o companheiro sobrevivente vai herdar sozinho não é todo o patrimônio deixado pelo de cujus, mas, apenas, o que foi adquirido na constância da união estável.

Ao contrário do cônjuge, que recebe o status de herdeiro necessário, a regulamentação da sucessão para o companheiro sobrevivente deixa brechas para que possa ser afastado da sucessão por testamento, sem necessidade de qualquer justificação, assim como ocorre com os colaterais.

Por tudo isso resta declarar a inconstitucionalidade do art. 1790 do CC, valorizando a relação afetiva, conforme a proteção da família consagrada no art. 226 da CF, e defendendo os princípios da igualdade (sucessória entre cônjuge e companheiro) e da proibição do retrocesso social, concretizando assim o princípio da justiça, acimentado no art. 3º, I da CF.

Enquanto não declarada a inconstitucionalidade, exige-se do jurista uma interpretação conforme a Constituição, cobrando dos tribunais uma pronta atuação, corrigindo o grave equívoco cometido pelo legislador de 2002. Em sede jurisprudencial já é possível encontrar precedentes relevantes, acolhendo a prevalência da norma constitucional:

Sucessão – União estável – Inconstitucionalidade do art. 1790 do CC diante do tratamento dado à sucessão entre companheiros no novo Código Civil. Na medida em que a nova lei substantiva rebaixou o status hereditário do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite, violou os princípios fundamentais da igualdade e da dignidade. (TJ/RS, Ac.unân. 8ª Câm Cív., Ag Instr. 70009524612, rel. Des. Rui Portanova, j.18.11.04).


7.DA BUSCA PELO TRATAMENTO ISONÔMICO PERANTE O CASO CONCRETO

Com o objetivo de estabelecer regras e critérios de aplicação do novo Código Civil aos casos concretos, no ano de 2006, magistrados paulistas reunidos no I Encontro dos Juízes de Família do Interior de São Paulo resolveram, por maioria de 2/3 dos presentes e após extensos debates, formular enunciados, norteadores de sua atuação em questões sobre o Direito da Família e das Sucessões.

Silva (2009, p.35) destaca:

Enunciado 49. O art. 1790 do Código Civil, ao tratar de forma diferenciada a sucessão legítima do companheiro em relação ao cônjuge, incide em inconstitucionalidade, pois a Constituição não permite diferenciação entre famílias assentadas no casamento e na união estável, nos aspectos em que são idênticas, que são os vínculos de afeto, solidariedade e respeito, vínculos norteadores da sucessão legítima.

Enunciado 50. Ante a inconstitucionalidade do art. 1790, a sucessão do companheiro deve observar a mesma disciplina da sucessão legítima do cônjuge, com os mesmos direitos e limitações, de modo que o companheiro, na concorrência com descendentes, herda nos bens particulares, não nos quais tem meação.

Enunciado 51. O companheiro sobrevivente, não mencionado nos arts. 1845 e 1850 do Código Civil, é herdeiro necessário, seja porque não pode ser tratado diferentemente do cônjuge, seja porque, na concorrência com descendentes e ascendentes, herda necessariamente, sendo incongruente que, tornando-se o único herdeiro, possa ficar desprotegido.

Enunciado 52. Se admitida a constitucionalidade do art. 1790 do Código Civil, o companheiro sobrevivente terá direito à totalidade da herança deixada pelo outro, na falta de parentes sucessíveis, conforme o previsto no inciso IV, sem limitação indicada na cabeça do artigo.

Como se vê, boa parte da magistratura brasileira vem posicionando-se a favor da declaração de inconstitucionalidade do artigo 1790 do CC, em virtude do tratamento desigual dispensado ao companheiro em relação ao cônjuge, verdadeira afronta à proteção jurídica reservada pela Constituição à união estável.

Enfrentando tal questão, temos o julgado abaixo que considera, assim como esta monografia, a inconstitucionalidade do artigo 1790 do CC:

Agravo de Instrumento 6334724900

Relator(a): Caetano Lagrasta

Comarca: São Paulo

Órgão julgador: 8ª Câmara de Direito Privado

Data do julgamento: 27/05/2009

Data de registro: 08/06/2009

Ementa: União estável. Sucessão. Aplicação do art. 1829, do CC. Inconstitucionalidade do artigo 1790, do CC. Recurso provido.

Diante da controvérsia, as palavras da Juíza Rita de Cássia Andrade (apud, Silva, 2009, p. 38) servem de respaldo para o último capítulo:

Diante dessa nova concepção do Código Civil, tarefa de maior urgência é a alteração legislativa, ou a declaração de inconstitucionalidade erga omnes do seu art. 1790, haja vista a igualdade de tratamento dado pela CF/88, a união estável e ao casamento. Pois apesar dos julgamentos de inconstitucionalidade de forma incidental, relativamente a casos concretos e isolados, tal situação não se mostra satisfatória para a produção de uma justiça ordenada e lógica, havendo sempre decisões controvertidas para situações jurídicas iguais, na intimidade da família brasileira, uma vez que o legislador ordinário quis se sobrepor às disposições da própria Constituição, pois apesar de se tratar de uma lei nova, a mesma passou por muitos anos de espera no Congresso Nacional, vindo a entrar em vigência já de forma totalmente ultrapassada, preconceituosa, e distante da evolução dos fatos sociais, especificamente em relação a família e sucessões.

Se inexiste consenso a respeito da inconstitucionalidade do art. 1790 do CC, fato é que a reforma da atual codificação afigura-se indispensável, motivo pelo qual se propõe uma nova redação sobre a matéria, a ser inserida no mesmo capítulo da sucessão do cônjuge, conforme exposto no tópico 10 ("Proposta de reforma").


8.ENQUADRAMENTO DO COMPANHEIRO COMO HERDEIRO NECESSÁRIO

Insere-se o companheiro entre os chamados herdeiros necessários ou não passa ele de mero herdeiro legítimo, cuja vocação pode ser afastada por via testamentária? A indagação faz-se pertinente diante o silêncio do artigo 1845 do CC e, também, por entender alguns, tratar-se de norma restritiva, uma vez que cerceia a liberdade de testar. Para esses, o testador estaria sujeito a respeitar a legítima apenas quando tivesse perante qualquer dos herdeiros ali mencionados, e não na presença de outros [10].

Apesar dosilêncio do art. 1845, numa interpretação teleológica, sistemática, equânime e constitucional, o companheiro deve ser tratado como herdeiro necessário, assim como o cônjuge o é. Isso porque:

a) O artigo 1790 do CC, ao disciplinar o direito sucessório do companheiro estabelece que o "companheiro participará" e não que "poderá participar", impossibilitando, portanto, a exclusão do mesmo pelo autor da herança.

b) Separada a eventual meação do companheiro, o testador poderá suprimir por ato de última vontade tão somente a metade disponível da totalidade de seus bens (art. 1789 do CC) e, sobre o remanescente incidirão, de maneira inevitável, as regras relativas à sucessão intestada (art. 1788 do CC). Como a lei chama simultaneamente descendentes e companheiro (art. 1790, incisos I e II do CC), ao último caberá forçosamente uma participação na legítima dos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável (art. 1790, caput do CC). Não se pode deixar de reconhecer, portanto, herança necessária do companheiro.

c) Quando o companheiro concorre com outros parentes sucessíveis, independentemente da base de cálculo incidir sobre toda a herança (interpretação literal desta palavra no inciso III) ou apenas sobre os bens adquiridos onerosamente (submissão do inciso III ao caput), não seria lícito permitir ao testador que, além de testar sobre sua parte disponível, ainda pudesse invadir a legítima e dispor do 1/3 destinado ao companheiro: se o fizesse, estaria certamente dispondo de mais da metade de seu patrimônio. A conclusão que se chega é que também no inciso III o companheiro é herdeiro necessário.

d) No último inciso (inciso IV), se não for reconhecida a condição de herdeiro necessário do companheiro, ele poderá ser completamente excluído da herança e os efeitos de tal interpretação seriam catastróficos. Basta imaginar a situação em que não tenha sido constituído patrimônio comum para que incida o direito à meação, ou então, na hipótese de tê-lo constituído em um valor cuja meação seja inexpressiva, comprometendo a sobrevivência do mais próximo de seus familiares. Nesse caso, a proteção à família estaria sendo relegada a segundo plano por força de interpretação literal e exclusiva do artigo 1845 do CC, sendo esquecida a função da sucessão legítima, em particular, a necessária. Deve-se ter em mente que em caso de dúvida quanto a um dispositivo legal, tanto mais eficaz será a proteção à família quanto mais favorável for a interpretação dada a ela, devendo o intérprete preferir a interpretação que realize essa função. Na exegese de normas sobre sucessão, não se pode perder de vista o conceito de família, tal como resulta do ordenamento atual. E é por isso que na hipótese do inciso IV do art. 1790 do CC, o companheiro deve ser considerado herdeiro necessário, uma vez que a união estável constitui modalidade de família à qual se estende a especial proteção do Estado prometida no artigo 226, caput c/c §3º da CF.

e) Ademais, não faria nenhum sentido reconhecer a participação do companheiro na legítima quando concorresse com outros sucessores, e negá-la no caso dele ser chamado na condição de herdeiro único.

No direito comparado, os ordenamentos nos quais foram disciplinados os efeitos jurídicos das relações convivenciais reconhecem a qualidade hereditária do companheiro ao lado do cônjuge [11].


9.PROJETOS DE LEI

Diante de todo o exposto nesta monografia, faz-se necessária uma alteração quanto às regras sucessórias do companheiro, visando, assim, um tratamento isonômico em relação ao cônjuge.

Observando as críticas explicitadas e os anseios da sociedade brasileira, o legislador brasileiro já propôs alguns projetos de lei objetivando corrigir as controvérsias geradas pelo art. 1790 do CC, dentre os quais comentarei os que tramitam atualmente no Congresso Nacional.

Projeto de lei 6960/2002. Situação: arquivado desde 17/03/2008. Objetivava a alteração do artigo 1790 do CC, mas não tratava de forma igual a sucessão do cônjuge e do companheiro .

Projeto de lei 4944/2005. Situação: arquivado desde 22/02/2008. Diferia do anterior por alterar os dispositivos do CC, estabelecendo total igualdade de direitos sucessórios entre cônjuges e companheiros, que seriam disciplinados por apenas um único dispositivo, qual seja, o artigo 1829 do CC, com a revogação do artigo 1790 do CC.

Projeto de lei 508/2007: CCJC. Situação: Aguardando Designação de Relator desde 17/02/2011.

Altera dispositivos do Código Civil, dispondo sobre igualdade de direitos sucessórios entre cônjuges e companheiros de união estável.

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na seguinte ordem:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente ou com o companheiro sobrevivente;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente ou com o companheiro sobrevivente;

III – ao cônjuge sobrevivente ou ao companheiro sobrevivente;

IV – aos colaterais.

Parágrafo único. A concorrência referida nos incisos I e II dar-se-á, exclusivamente, quanto aos bens adquiridos onerosamente, durante a vigência do casamento ou da união estável, e sobre os quais não incida direito à meação, excluídos os sub-rogados.

Dentre outras modificações trazidas por este projeto, no campo sucessório ficou revogado o artigo 1790 do CC e alterado o 1829 do CC para que este último conferisse um tratamento único ao cônjuge e companheiro. Ademais, eliminou a concorrência do companheiro com os colaterais e com o Poder Público, as diferenças entre a filiação híbrida, comum ou exclusiva na hipótese de concorrência do companheiro com descendentes.

O parágrafo único, no entanto, representa verdadeiro retrocesso, ao menos em relação ao cônjuge, que não poderá herdar os bens do falecido adquiridos a título gratuito durante, ou antes, da vigência da relação.

Projeto de lei 674/2007: Situação: aguardando deliberação de recursos desde 15/02/2011.Regulamenta o artigo 226 §3º da Constituição Federal, união estável e institui o divórcio de fato.

Art.16 - Dissolvida a união estável por morte de um dos consortes o sobrevivente participará da sucessão do companheiro como herdeiro necessário.

§1º- Para efeito de direitos sucessórios o consorte é equiparado, no que couber, a figura do cônjuge.

Art.17- O consorte sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto do imóvel destinado à residência da família.

Art. 18- Toda a matéria relativa à união estável é de competência do juízo da Vara da Família assegurado o segredo de justiça.

Este projeto elimina por completo a diferença de tratamento sucessório entre o cônjuge e o companheiro por força de seu artigo 16. Ainda que no §1º deste artigo tenha usado a expressão "no que couber" quanto à equiparação da figura do companheiro à do cônjuge, na prática sempre caberá a equiparação, uma vez que o casamento se diferencia da união estável apenas quanto ao aspecto formal, e o que vale na análise da sucessão é o aspecto substancial, aspecto este, idêntico em ambos os casos.

Já o artigo 17 deste projeto confere um direito ao companheiro que não é conferido ao cônjuge _ o usufruto vidual.Este direito, previsto no CC de 1916, foi extinto com o CC de 2002, somente sendo reconhecido nas sucessões abertas antes de sua entrada em vigor (art. 2041 CC), obedecidos os requisitos da lei à época vigente. A extinção se deu porque ao ser colocado como herdeiro necessário, o cônjuge não estará desprotegido como outrora, não precisando do referido benefício. Tornando-se com este projeto, o companheiro, um herdeiro necessário, não haveria por que ressuscitar a figura do usufruto vidual, gerando, inclusive, um tratamento desigual ao prevê-lo apenas para o companheiro.

Projeto de lei do Senado 267/2009: Situação: Remetido para a Câmara dos Deputados onde aguarda parecer. Na Câmara é conhecido como PL-7583/2010. Objetiva assegurar a ampliação dos direitos civis dos companheiros na união estável.

Art. 1.829-A. O companheiro participará da sucessão do outro na forma seguinte:

I - em concorrência com descendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes, salvo se havia:

a) comunhão de bens durante a união estável e inexistiam bens particulares do autor da herança; ou

b) impedimento para o casamento, ou motivo para, se celebrado, reger-se pela separação obrigatória de bens (art. 1.641);

II - em concorrência com ascendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes;

III - em falta de descendentes e ascendentes, terá direito à totalidade da herança.

Parágrafo único. Ao companheiro sobrevivente, enquanto não constituir nova união ou casamento, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.

Este projeto resolve o problema do deslocamento da norma insculpida no art. 1.790 do Código Civil, que trata da sucessão hereditária dos companheiros no Capítulo I (Disposições Gerais) do Título I (Da Sucessão em Geral), quando o adequado seria tratar esse tema no Capítulo I (da Ordem da Vocação Hereditária) do Título II (Da Sucessão Legítima) do Livro V (Do Direito das Sucessões) do Código Civil, ao incluí-la no art. 1.829-A e revogar o artigo 1790 do CC de 2002.

Pelo artigo 1790 do CC atual, ao companheiro somente cabe reclamar a legítima em relação aos aquestos, isto é, os bens adquiridos a título oneroso durante a união estável. Essa restrição quanto à participação sucessória do companheiro do falecido não existia na legislação anterior ao Código Civil de 2002. O artigo do projeto em análise permite que o companheiro participe dos bens de cujus, independentemente do título (gratuito ou oneroso) que este tenha adquirido, bem como da época (antes ou durante a vigência da união estável.)

O projeto também acaba com o problema da filiação híbrida dos incisos I e II do artigo 1790 do CC, não diferenciando os descendentes "comuns" e "apenas do autor da herança" no inciso I do artigo 1829-A. Aliás, este inciso do artigo do projeto tenta imitar a regra insculpida no inciso I do artigo 1829 do CC de 2002 no que tange à vinculação da sucessão com o regime de bens adotado pelo casal. Contudo, difere quanto à quota recebida pelo companheiro, pois no CC o cônjuge recebe quota igual ao dos descendentes que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer (artigos 1829, I c/c 1832 do CC). Já pelo artigo do projeto, o companheiro recebe metade do que couber a cada um dos descendentes, não lhe sendo reservada nenhuma quota especial caso seja ascendente dos herdeiros com que concorrer.

O inciso II do artigo 1829-A também não veio para conferir um tratamento isonômico entre cônjuge e companheiro. Isso porque o companheiro recebe metade do que couber a cada um dos ascendentes, enquanto o cônjuge, na pior das hipóteses receberá 1/3 da herança, caso concorra com ambos os pais do de cujus ou receberá metade, nas demais hipóteses (artigo 1829, II c/c 1837 do CC doe 2002).

O projeto elimina a concorrência entre o companheiro e os parentes colaterais do falecido, o que representa um avanço social tanto por conferir, neste sentido, igual tratamento ao que é dado ao cônjuge, como por dar maior importância ao elo afetivo que ao consangüíneo.

O novo Código Civil não contempla os companheiros com o direito real de habitação, antes previsto nas Leis nºs 8.971, de 1994, e 9.278, de 1996. Quanto ao cônjuge, ao contrário, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família está assegurado no art. 1.831 do CC, inclusive de modo mais amplo do que no antigo Código Civil de 1916, uma vez que agora não se extingue com o novo casamento do beneficiário, como antes ocorria (art. 1.611, § 2º, do Código Civil de 1916). Solucionando tal injustiça, o parágrafo único do artigo 1829-A determina idêntica proteção jurídica ao companheiro, assegurando-lhe o direito real de habitação.

Como pôde ser observado, todos os projetos analisados apresentam avanços e recuos sociais no que tange à tentativa de melhor amparar o companheiro. São melhores do que o tratamento legal atualmente conferido ao companheiro, mas não garantem às pessoas em união estável igual tratamento legal dispensado às pessoas casadas, infringindo o paralelismo traçado pela constituição federal (artigo 226§ 3º da CF).

Diante do constatado faz-se necessária uma proposta de reforma que igualmente contemple cônjuge e companheiro quanto aos direitos sucessórios.

Projeto de Lei 699/2011: CDEIC. Situação: Aguardando Designação de Relator desde 27/04/2011. Altera o Código Civil, instituído pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

Art. 1.790. O companheiro participará da sucessão do outro na forma seguinte:

I - em concorrência com descendentes terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes, salvo se tiver havido comunhão de bens durante a união estável e o autor da herança não houver deixado bens particulares, ou se o casamento dos companheiros se tivesse ocorrido, observada a situação existente no começo da convivência, fosse pelo regime da separação obrigatória (art. 1.641);

II - em concorrência com ascendentes terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes;

III – em falta de descendentes e ascendentes terá direito à totalidade da herança.

Parágrafo único. Ao companheiro sobrevivente, enquanto não constituir nova união ou casamento, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar".

Observe que a proposta do artigo acima tem a mesma redação da proposta do artigo 1829-A no projeto de lei do Senado 267/2009. Logo, as análises lá feitas se aplicam aqui também.


10.PROPOSTA DE REFORMA

Projeto de lei nº

Confere tratamento único na sucessão hereditária do cônjuge e do companheiro.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º. Esta lei regula a sucessão do cônjuge e do companheiro, alterando as disposições da Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002.

Art. 2º. O art. 1.829 da Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge ou o companheiro sobrevivente, salvo se existirem bens comuns entre qualquer destes e o falecido, decorrentes de comunhão ou condomínio;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge ou o companheiro sobrevivente;

III – ao cônjuge ou ao companheiro sobrevivente;

IV – aos colaterais".

Art. 3º. O art. 1.831 da Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 1.831. Ao cônjuge ou ao companheiro sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação, relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único desta natureza a inventariar, quando houver bens imóveis comuns entre os consortes ou o sobrevivente for herdeiro; não havendo ditos bens comuns, ou não sendo o cônjuge ou o companheiro supérstites herdeiros, o direito real de habitação incidirá sobre o imóvel que era destinado à residência da família, independentemente do número de imóveis presentes no acervo hereditário."

Art. 4º. O artigo 1.832 da Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, I) caberá ao cônjuge ou ao companheiro quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, sendo ou não ascendente de todos os herdeiros com que concorrer."

Art. 5º. O artigo 1.836 da Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 1.836. Na falta de descendentes, são chamados à sucessão os ascendentes em concorrência com o cônjuge ou o companheiro sobrevivente."

Art. 6º. O artigo 1.837 da Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 1.837. Concorrendo com ambos os ascendentes em primeiro grau, ao cônjuge ou ao companheiro tocará um terço da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, independentemente do grau, ou se concorrer com ascendentes em grau superior ao primeiro".

Art. 7º. O art. 1.838 da Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 1.838. Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida sucessão por inteiro ao cônjuge ou ao companheiro sobrevivente".

Art. 8º. O artigo 1.845 da Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes, o cônjuge e o companheiro".

Art. 9º. O artigo 2003 da Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 2003. A colação tem por fim igualar, na proporção estabelecida neste Código, as legítimas dos descendentes e do cônjuge ou companheiro sobreviventes, obrigando também os donatários que, ao tempo do falecimento do doador, já não possuírem os bens doados".

Art. 10º. Revoga-se o art. 1.790 da Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002.

Art. 11. Esta lei entra em vigor na data da sua publicação.

JUSTIFICATIVA

O presente Projeto de Lei tem por objetivo corrigir as referidas distorções no âmbito da sucessão legítima, de forma a harmonizar a tutela sucessória do cônjuge e do companheiro, consoante os valores propugnados pela Constituição da República Federativa do Brasil. E inicia essa correção estabelecendo uma ordem de vocação hereditária única para o cônjuge e o companheiro e revogando o artigo 1790 do CC.

Modifica o inciso I do artigo 1829, conferindo-lhe uma melhor redação ao estabelecer a sucessão do cônjuge ou companheiro em concorrência com os descendentes com base na existência ou não de bens comuns. Esse sistema resolveria, inclusive, uma questão pouco aventada, a saber, os casos em que os cônjuges não optam por regimes disciplinados na lei, valendo-se do princípio da liberdade de convenção para a celebração do pacto antenupcial (art. 1.639, caput, CC).

Além disso, trata-se de um sistema que pode ser aplicado com facilidade tanto na sucessão no casamento como naquela na união estável, já que tanto entre os cônjuges como entre os companheiros existem relações patrimoniais orientadas por regras semelhantes. Para os primeiros, há as normas pertinentes ao regime de bens adotado pelo casal, enquanto para os segundos incide uma presunção de patrimônio comum, que pode ser afastada por expressa manifestação de vontade ou por outros meios de prova.

Modifica o direito real de habitação previsto no artigo 1831 do CC de 2002 e passa a conferi-lo também ao companheiro, já que se trata de instrumento de proteção aos membros da família, não sendo justificável concedê-lo a uma forma de entidade familiar e não concedê-lo à outra.

Quanto aos requisitos para a concessão do referido direito, é importante ressalvar a pertinência de se exigir a existência de um único imóvel residencial no monte a inventariar quando o cônjuge ou o companheiro são herdeiros em propriedade plena, meeiros ou condomínios, uma vez que, nestes casos, havendo outros bens imóveis a inventariar, ao cônjuge ou ao companheiro caberá parte de ditos bens a título de herança, meação ou condomínio.

O mesmo não pode ser dito quanto às hipóteses em que o cônjuge ou o companheiro sobrevivente não é herdeiro, meeiro ou condômino. Nestes casos, não se pode condicionar o direito real de habitação à existência de um único imóvel residencial a ser inventariado, uma vez que o consorte supérstite não receberá nada a título de herança, meação ou condomínio. Por conseguinte, nestas hipóteses, o direito real de habitação deverá incidir independentemente do número de imóveis no monte a inventariar.

Por meio da modificação do artigo 1832 do CC de 2002, o projeto resolve o problema da filiação híbrida dos incisos I e II do artigo 1790 do CC e tutela o cônjuge e o companheiro de maneira igual quanto à quota de reserva ¼ da herança. O artigo do projeto concretiza o viés teleológico do legislador do CC de 2002 ao resguardar de uma maneira mais benéfica aqueles que contribuíram para a construção do patrimônio objeto da herança.

Ademais, o artigo proposto não faz distinção entre descendentes comuns e não comuns do autor da herança como faz o atual 1832 do CC de 2002, permitindo a reserva de ¼ quando o cônjuge ou companheiro concorre com qualquer dos dois tipos de descendentes. Esta nova regulamentação visa corrigir um tratamento diferenciado dado aos filhos _ tratamento inconstitucional (art. 227 §6º da CF). O fato é o mesmo (mais de três descendentes), não havendo motivos para tratamentos diferentes.

Os artigos 1836 e 1837 do CC, pela proposta de reforma, passaram a dispor da concorrência do companheiro com os ascendentes do de cujus, da mesma forma como dispõem sobre a do cônjuge, garantindo um tratamento isonômico.

O artigo 1838 passa a prever a figura do companheiro, ao lado da do cônjuge, na terceira ordem de vocação hereditária para que herde sozinho na ausência de descendentes e ascendentes, combatendo, assim, a velha polêmica do inciso III do artigo 1790 do CC que obrigava o companheiro a concorrer com os colaterais para apenas na ausência deles ter deferida a sucessão por inteiro. Consagra desta forma, a prevalência dos laços afetivos sobre os laços consangüíneos.

Com a reforma do artigo 1845 do CC de 2002 proposta por este projeto, tem-se por encerrada a discussão gerada pela literalidade do artigo, que não prevê a figura do companheiro como herdeiro necessário, afastando assim, qualquer possibilidade de exclusão do mesmo pelo autor da herança, através do testamento.

Diante das modificações acima indicadas, é preciso que os artigos 1829, 1831, 1832, 1.836, 1.837, 1.838, 1.839, 1.845 e 2.003 do Livro do Direito das Sucessões sejam alterados, para que conste em suas redações, de forma expressa, a extensão de seus comandos para os companheiros.


CONCLUSÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil concebeu a família de forma plural, prevendo outros modos de constituição da entidade familiar além do casamento. O Código Civil de 2002, ao revés, foi projetado prevendo tão-somente o matrimônio como único núcleo legitimador da comunidade familiar. Daí, ao ser incluída a união estável no Projeto do Código Civil de 2002, não houve uma real apreensão do instituto, com todas as suas peculiaridades e diferenciações em relação ao casamento.

Por conseguinte, encontram-se distorções quando são comparados os estatutos jurídicos da união estável e do casamento, havendo diferenciações que não encontram guarida na especial proteção dispensada pelo Estado à família (art. 226, caput, da CF/88) e que não se coadunam com o elemento principal que diferencia as referidas entidades familiares, a saber, a existência de um ato formal constitutivo, que confere publicidade ao casamento.

Ao abraçar mais de uma forma de constituição de família, a Carta Magna reconheceu que o desenvolvimento da pessoa também se dá em outras formações sociais em que predominam os vínculos de afetividade e solidariedade. Passou-se, portanto, da família instituição, protegida por si só, pelo simples fato de ter sido constituída através do casamento, para a família instrumento, entendida como formação social que tem em vista a pessoa de seus componentes. Sem dúvida, esta nova concepção da entidade familiar irradia-se para o Direito Sucessório, que deve, portanto, apreendê-la, em especial nas regras concernentes à sucessão legítima.

No ordenamento civil, informado pelos princípios constitucionais, não há lugar para regras diferenciadas quanto à sucessão hereditária no casamento e na união estável. A consideração de uma hierarquia axiológica entre as entidades familiares é inconstitucional, porque a dignidade da pessoa humana, alçada a fundamento da República no art. 1º, inciso III, da Carta Magna, confere conteúdo à proteção atribuída pelo Estado à família: "é a pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o elemento finalístico da proteção estatal, para cuja realização devem convergir todas as normas do direito positivo, em particular aquelas que disciplinam o direito de família, regulando as relações mais íntimas e intensas do indivíduo no social" [12]. Ademais, todos os organismos sociais que constituem a família têm a mesma função, qual seja, promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros.

Não se discute que cada entidade familiar estabelece uma situação diversa da outra: o casamento se diferencia da união estável, que por sua vez se diferencia da família monoparental, que é diversa do casamento. Tal fator diferenciador, porém, pode ensejar um tratamento diverso para essas comunidades familiares?

A resposta é sim, claro. A questão é saber qual é o fundamento (e a lógica) de tal diferenciação, analisando se o mesmo tem pertinência quanto aos valores constitucionais. Como afirmado, o fundamento para a referida diferenciação não pode estar assentado numa suposta superioridade do casamento.

Casamento e união estável diferenciam-se, em especial, na maneira de sua constituição. Enquanto o casamento é constituído a partir de um ato formal e solene, do qual derivam inúmeros efeitos, a união estável é uma situação de fato, verificada a posteriori. O ato formal do matrimônio gera uma maior segurança para as relações jurídicas na sociedade, tanto em relação aos partícipes da relação conjugal, quanto em relação aos terceiros que com eles venham a contratar. Isso porque estabelece a priori os seus efeitos, bastando que o ato seja celebrado: a partir desse momento estão definidas todas as relações entre os cônjuges e todos os atos que um cônjuge não poderá celebrar sem a autorização do outro.

As normas informadas pelos princípios relativos à solenidade do matrimônio, ou melhor, que decorrem do ato solene do casamento, não podem ser estendidas à união estável. Ao contrário, aquelas informadas por princípios próprios da convivência familiar, vinculada à solidariedade dos seus componentes, devem ser aplicadas à união estável, sob pena de ser contrariado o ditame constitucional de proteção a essa entidade familiar [13].

Por esse modo, pode-se dizer que as relações familiares geradas pelo casamento e pela união estável são idênticas em sua essência, baseadas em semelhantes vínculos de afeto, solidariedade e respeito. No entanto, são diversas quanto à sua constituição e, por esta razão, a regulamentação de cada uma deverá conter diferenciações.

Na orientação do dever de solidariedade entre os membros da família, estão as regras da sucessão legítima, especialmente aquelas que consagram a sucessão necessária, pois estabelecem uma possibilidade de distribuição de valores materiais entre os familiares e, dessa forma, um mecanismo em potencial de libertação das necessidades, como meio de concretização de uma vida digna. A forma de constituição da entidade familiar que fazia parte o de cujus é irrelevante para a sucessão legítima, pois esta só vai ter lugar uma vez constituída a família e, evidentemente, se até a abertura da sucessão permanecerem existentes aqueles vínculos familiares.

Pode-se dizer que as relações entre os cônjuges e aquelas entre os companheiros são idênticas em sua essência, baseadas em semelhantes vínculos de amor, solidariedade e respeito. Internamente, portanto, cônjuge e companheiro ocupam a mesma posição, estabelecendo uma relação de comunhão de vida e espírito, a partir da partilha de esforços, alegrias e sofrimentos na construção de uma vida em comum.

Assim, em que pese casamento e união estável constituírem situações diversas, este fato não é suficiente para que a tutela na sucessão hereditária seja discrepante, conferindo-se mais direitos sucessórios a uma ou outra entidade familiar, pois ambas constituem família, base da sociedade, com especial proteção do Estado (CF/88, art. 226, caput) e é a família o organismo social legitimador do chamamento de determinada pessoa à sucessão, em virtude do dever de solidariedade que informa as relações familiares. Conclui-se, portanto, que, o tratamento sucessório dado a ambos deve ser o mesmo.

O Projeto de Lei proposto nesta monografia leva em consideração as qualidades específicas do cônjuge e companheiro, bem como as relações dessas pessoas com o autor da herança no seio da convivência familiar, objetivando corrigir as referidas distorções no âmbito da sucessão legítima, de forma a harmonizar a tutela sucessória dada a ambos, consoante os valores propugnados pela Constituição da República Federativa do Brasil.

A equiparação de direitos, portanto, dá-se em virtude do princípio da igualdade substancial, cânone do sistema constitucional, cuja aplicação garante a atuação do princípio fundador do ordenamento jurídico brasileiro: a dignidade da pessoa humana.


REFERÊNCIAS

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Notas

  1. E.Zittelman, Lücken im Recht, (1903) e D.Donati, Il problema delle lacune dell’ordinamento giuridico (1910) apud N. Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, (1994), Brasília-São Paulo, Ed. UNB-Polis, 1989, p. 132 e ss.
  2. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 4 ed. Brasília: Ed. UNB, 1994. p. 135.
  3. Dentre os métodos clássicos de interpretação, elaborados a partir da doutrina de F. Von Savigny, muito cedo compreendeu-se que o método lógico-racional era apenas um dos raciocínios jurídicos e, certamente, não o de maior peso. Além dele, foram concebidos os raciocínios teleológico e sistemático que obtiveram, ainda nos momentos áureos do positivismo jurídico, relevo maior sob a concepção de que a ratio legis se revestiria de função específica que deveria servir à adequada interpretação da norma (interpretação teleológica), norma esta que, estando inserida em ordenamento jurídico, não poderia ser interpretada isoladamente (interpretação sistemática).
  4. V.P. Barretto, "Da Interpretação à Hermenêutica Constitucional" in M.Camargo (org.), 1988-1998 – Uma Década de Constituição, Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 1999, p. 377.
  5. Sobre esta temática, v, de recente, entre tantos, L.R. Barroso, Interpretação e Aplicação da Constituição, São Paulo, Saraiva, 1998, 2ª ed., passim; V.P. Barretto, "Da Interpretação à Hermenêutica Constitucional" cit., pp. 369-394, passim; M.Peixinho, A Interpretação da Constituição e os Princípios Fundamentais, Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 1998.
  6. Nessa esteira, Maria Berenice Dias : "inexiste hierarquia entre os dois institutos (união estável e casamento). O texto constitucional lhes confere a especial proteção do Estado, sem ambos fontes geradoras de família de mesmo valor jurídico, sem qualquer adjetivação discriminatória", cf. Manual de Direito das Famílias, cit., p.165.
  7. Gustavo Tepedino advoga no sentido de que não se justifica qualquer hostilidade entre as uniões estáveis, especialmente em um país "onde mais da metade da população vivia e vive sob regime de união livre", cf. Temas de Direito Civil, cit., p. 328.
  8. Luiz Edson Fachin lembra que as uniões extramatrimoniais se difundem também pelo " manto da injusta estrutura socioeconômica, fomentada em largas faixas da população pobre, como uma expressão das condições reais nas quais não casar é menos uma vocação de ruptura e mais uma opção tácita imposta pela dureza da vida", cf. Direito de Família, cit., p. 93.
  9. O constitucionalista baiano Dirley da Cunha Júnior elucida que "os princípios, sejam explícitos, sejam implícitos, são normas jurídicas e, por conseguinte, obrigam, vinculam, têm positividade e eficácia, deixando claro que o ordenamento jurídico atual é de conteúdo aberto, modelando-se melhor no caso concreto". Cf. "O princípio da segurança jurídica e a anterioridade especial como condição mínima para o cumprimento da anterioridade tributária", cit., p. 101.
  10. "Art. 1.845, CC/2002. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge."
  11. Veja-se a exemplo o Código da Família boliviano: "art. 168. Sí la unión termina por muerte de uno de los convivientes, el que sobrevive toma la mitad que le corresponde en los bienes comunes, y la otra mitad se distribuye entre los hijos, si los hay' pero no habiéndolos se estará a las reglas del Código Civil en materia sucesoria. En los bienes propios tiene participación el sobreviviente, en igualdad de condiciones que cada uno de los hijos. El testamento, si lo hay, se cumple en todo lo que no sea contrario a lo anteriormente prescrito. Los beneficios y seguros sociales se rigen por las normas especiales de la materia".
  12. Tem-se, ainda, as leis panamenha e mexicana: "art. 1635. La concubina y el concubinario tienen derecho a heredarse reciprocamente, aplicandose las disposiciones relativas a la sucesion del conyuge, siempre que hayan vivido juntos como si fueran conyuges durante los cinco anos que precedieron inmediatamente a su muerte o cuando hayan tenido hijos en comun, siempre que ambos hayan permanecido libres de matrimonio durante el concubinato. Si al morir el autor de la herencia le sobreviven varias concubinas o concubinarios en las condiciones mencionadas al principio de este articulo, ninguno de ellos heredara".

  13. G. Tepedino, "Novas Formas de Entidades Familiares: efeitos do casamento e da família não fundada no matrimônio", Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 1999, p. 326.
  14. G. Tepedino, ob. cit., p. 339.

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AVELAR, Karen Hellen Esteves de. A análise sistemática da sucessão do cônjuge e do companheiro na perspectiva civil-constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2941, 21 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19594. Acesso em: 19 abr. 2024.