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Do interesse público como instrumento de relativização do direito fundamental à intimidade

Do interesse público como instrumento de relativização do direito fundamental à intimidade

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O indivíduo, no plano pessoal, não terá interesse na limitação de sua intimidade, mas terá interesse individual na existência de limitações à intimidade de todos, sob pena de se impossibilitar aspectos necessários à harmonia social.

1. VIDA PRIVADA E INTIMIDADE

1.1 Conceito

Mister se faz, primeiramente, trazer à baila a distinção entre vida privada e vida pública, consoante as lições de Carnelutti destacadas por Renato Bernardi:

"público deriva provavelmente de povo; o vocábulo alude ainda à reunião de pessoas. Privado, contrário de público, exprime, ao invés, a idéia de separação; privado é o homem enquanto se separa dos outros; privar quer dizer exatamente separar alguma coisa de alguém." [01]

Entretanto, a delimitação de contornos se torna mais complexa quando da análise dos aspectos da vida privada e intimidade. Afirmam os doutrinadores que essa problemática existe em face do caráter cultural e relativo inerente aos conceitos de vida privada e intimidade, bem como pela sua apresentação flexível e dinâmica nos meios sociais. [02]

A maior parte da doutrina faz referência à Teoria Alemã dos Círculos Concêntricos na tentativa de elucidar melhor os conceitos em testilha. Ressalte-se que inicialmente a teoria foi formulada de modo a estabelecer três esferas: esfera da vida pública; esfera da vida privada (Privatsphäre), consubstanciada pelo campo protegido de intromissões externas; e esfera da vida individual (Idividualsphäre), envolvendo o direito ao nome, à imagem e à reputação. Com a evolução da teoria, os autores alemães subdividiram a esfera da vida privada em três outras esferas: esfera privada em sentido estrito, esfera da intimidade ou confidencial e esfera do segredo. Esse desdobramento seria representativo da extensão dos círculos da vida privada. [03]

Na esfera privada em sentido estrito, estariam, portanto, os dados e informações afastados do domínio público, mas pertinentes a um número determinado de pessoas. Na esfera da intimidade, haveria maior limitação do número de pessoas que participam das informações do indivíduo, abarcando-se apenas os acontecimentos mais íntimos, relativos às pessoas de confiança, formadoras de um subgrupo dentro do grupo determinado de que trata a esfera privada em sentido estrito.

E, por fim, num último movimento de circunscrição, encontramos a esfera do segredo, relacionada às informações que pertencem unicamente ao indivíduo e das quais não participam sequer as pessoas da intimidade do sujeito, ficando sob seu exclusivo critério a comunicação excepcional a terceiros sobre os quais deposite a mais extrema confiança.

Bernardi, por sua vez, declara que o direito à intimidade se traduz no poder jurídico de limitar a divulgação, ou subtrair do conhecimento alheio aspectos da vida privada, com conteúdo variável de acordo com tempo e lugar, mas sempre com o traço distintivo de configurarem o núcleo que a cada pessoa interessa manter sob reserva. [04]

Covello não distingue substancialmente intimidade e privacidade, ainda que da maneira abstrata que o fazem os outros autores, apenas se posiciona pela preferência da utilização da expressão "intimidade" para significar "a parte mais recôndita da personalidade, a zona de existência não comunicável por ser estritamente pessoal." Enfatiza não haver problema algum no fato de a expressão intimidade exprimir mais um estado de ânimo individual do que o conjunto de aspectos que compõem a vida particular, porque o que se visa tutelar com o direito à intimidade é exatamente um estado de ânimo, a saber, a tranqüilidade pessoal. [05]

Celso Bastos assinala que o conceito de vida privada, bem como o de intimidade, se diversifica na medida em que variam, episodicamente, os regimes políticos e proporcionalmente à variação da ética social dominante. [06]

Observa-se, portanto, que os autores interligam constantemente os conceitos de vida privada e intimidade. Isso nada mais é do que a conseqüência da problemática imposta pela variabilidade dos conceitos quando contrapostos a culturas diversas, bem como pela dificuldade lingüística de se determinar contornos entre objetos que se estabelecem numa relação de continente e conteúdo.

Convém salientar, contudo, que a importância prática do tema reside tão somente na necessidade de se alargar o âmbito de proteção da vida privada em quaisquer de suas manifestações [07], em face de sua participação no desenvolvimento da identidade pessoal e da personalidade humana.

Ressalte-se, inclusive, a necessidade especial de garantia da intimidade e vida privada nos dias atuais, como defesa do homem contra as investidas da crescente expansão de técnicas de comunicação, proporcionadas pelo avanço tecnológico contínuo, [08] sob pena do mundo informatizado devassar indiscriminadamente os aspectos de exclusividade dos indivíduos.

Dessa feita, limitar-nos-emos a afirmar que a intimidade constitui uma esfera mais restrita da vida privada, e que os contornos dos dois institutos se mostram demasiado complexos para se determinar conceitos que os distingam de maneira substancial. Ademais, uma eventual diferenciação seria de pouca utilidade prática para os nossos estudos.

Entendemos que mesmo os trabalhos acadêmicos não se dissociam de uma mínima pragmaticidade, mormente no caso dos estudos jurídicos, que se conectam ao embasamento de institutos justificáveis por sua função social, uma vez que o Direito não constitui finalidade em si mesmo, e sim instrumento à consecução de outros fins. [09] O Direito busca, por excelência, a garantia das prerrogativas e liberdades previstas pelo ordenamento positivo, com vistas a efetivar um sistema liberal e democrático. Dessa feita, como a maior parte dos autores, utilizaremos ambas as expressões, vida privada e intimidade, sem maiores distinções.

1.2 A intimidade como direito fundamental

Passemos à análise do direito fundamental à vida privada e intimidade. É pacífico o entendimento de que o direito à vida privada e intimidade constituem espécies de diretos da personalidade, entendidos como os que "garantem ao sujeito o domínio sobre uma parte essencial da própria personalidade", ou "aqueles que tem por objeto os modos de ser, físicos ou morais da pessoa", ou ainda, como os "direitos que concedem um poder às pessoas para proteção da essência da personalidade e suas qualidades mais importantes" [10].

Segundo Caio Mário, os direitos da personalidade contribuem para a verificação de que os direitos economicamente apreciáveis não são os únicos suscetíveis de amparo e proteção da ordem jurídica. Muito pelo contrário, a essencialidade dos direitos da personalidade para a própria natureza humana impõe abrangente tutela desses direitos. [11]

Bittar, por sua vez, define direitos da personalidade como os atinentes à pessoa humana considerada em si mesma e em suas "projeções na sociedade", prescritos pela ordem jurídica para preservar os valores inatos do homem, tais como "a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos" [12].

Nesse sentido, conclui por um duplo dimensionamento dos direitos da personalidade, a saber:

"Como se observa, esses direitos referem-se, de um lado, à pessoa em si (como ente individual, com seu patrimônio físico e intelectual)" e, de outro, a sua posição frente a outros seres na sociedade (patrimônio moral), representando, respectivamente, o modo de ser da pessoa e suas projeções na coletividade (como ente social)." [13]

Em conformidade com a melhor doutrina, pode-se afirmar que configuram caracteres dos direitos da personalidade sua inclusão na categoria de direitos subjetivos, [14] e sua definição como direitos absolutos, indisponíveis, irrenunciáveis, imprescritíveis, intransmissíveis e extrapatrimoniais.

Absolutos porque oponíveis erga omnes, como dever de respeito imposto à generalidade dos homens. [15] Indisponíveis porque o titular não pode deles se privar;. Irrenunciáveis por estarem vinculados à pessoa, [16] sob determinação do comando da norma de ordem pública que os institui, e imprescritíveis por não se sujeitarem às situações de aquisição ou perda por decurso de tempo, não podendo ser objeto de expropriação. [17] Intransmissíveis porque é inválida a cessão a outrem, seja a título oneroso ou a título gratuito [18] e, por fim, extrapatrimoniais porque não se reduzem a dimensionamento de interesses nem a aferições econômicas. [19] Configuram, assim, a "primeira e fundamental das categorias de bens da pessoa." [20]

No que tange ao âmbito de abrangência da vida privada, Dotti aponta como componentes os direitos ao nome, imagem, voz, intimidade, honra, reputação, esquecimento e desenvolvimento da própria biografia. [21]

Parte-se, assim, de um extenso núcleo de abrangência da vida privada, demonstrando-se a necessidade imperiosa de garantir a não ingerência externa nos aspectos exclusivos do indivíduo para a consolidação de um Estado efetivamente democrático, que paute sua atuação pelo respeito às liberdades individuais encaradas sob seu aspecto mais amplo.

A intimidade e vida privada são, por conseguinte, elementos essenciais para a garantia da dignidade humana. Vinculam-se à personalidade do homem como imposição de sua existência singular frente à coletividade. Podemos concluir que contribuem, sobremaneira, para a formação do plexo de atributos que projeta a individualidade do homem no seu meio social.

Dessa feita, a intimidade e vida privada concorrem para o desenvolvimento do caráter singular dos indivíduos, daquilo que os identifica de maneira particular - a sua personalidade. É nesse sentido que o direito à intimidade e vida privada está ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois eles são fundamentais para a formação da própria essência do indivíduo.

Exatamente por se tratar de desdobramento do princípio da dignidade é que o legislador constituinte reconheceu a intimidade e a vida privada como direitos fundamentais, disciplinando sua inviolabilidade no art. 5º, X, da Constituição da República.

São, portanto, parte do conjunto de direitos e garantias individuais aos quais a Constituição expressamente atribuiu a condição de cláusulas pétreas, a configurar óbice à eventual intenção de revogabilidade por meio de reformas constitucionais. Por outro lado, seu núcleo essencial resta salvaguardado, garantindo-se que a restrição do direito só ocorra nas hipóteses autorizadas, mediante o atendimento do princípio da proporcionalidade. [22] Senão vejamos o art. 60 da Constituição da República:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;

II - do Presidente da República;

III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

§ 1º - A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.

§ 2º - A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

§ 3º - A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem.

§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais. (Grifos nossos)

Ademais, na orientação das características dos direitos fundamentais, a intimidade e vida privada revestem-se de uma dupla perspectiva. A negativa impõe ao Estado e a terceiros a impossibilidade de invasões na esfera da vida privada do cidadão, o qual possui a liberalidade de decidir acerca de eventual comunicação das informações que lhes são exclusivas. E, em contrapartida, a perspectiva positiva permite a liberdade do cidadão de promover o desenvolvimento de sua personalidade de acordo com suas convicções pessoais, livre das imposições externas do meio social.

Outrossim, a proteção constitucional dos direitos fundamentais, com ênfase na impossibilidade de o constituinte reformador suprimir as garantias institucionalizadas, atribui a estes direitos a condição de parâmetro para construção de toda a seara legislativa. [23] Em outras palavras, os direitos fundamentais não só merecem proteção jurisdicional diferenciada devido ao status constitucional das normas que os prevêem, como também são responsáveis pela identificação dos bens jurídicos a serem tutelados pela ordem positiva, já que constituem o próprio eixo de um Estado constitucional e democrático.

Dessa dimensão é que advém a dupla importância do respeito aos direitos fundamentais. Afora sua consagração histórica como valores essenciais a serem garantidos aos homens, uma vez institucionalizados pela ordem positiva, sevem de diretriz para toda a produção legislativa, não havendo como dissociar a atividade do legislador infraconstitucional de seus conteúdos valorativos.

Por essa razão, o respeito à esfera da vida privada e intimidade dos cidadãos, assim como à toda a sistemática dos direitos fundamentais, é imprescindível a um Estado Democrático de Direito, sob pena de a legitimidade de sua própria ordem jurídica restar maculada.

Nesse diapasão, a tutela da intimidade consistiria, em última análise, desdobramento do interesse público em garantir os direitos fundamentais e, conseqüentemente, uma sociedade livre e pluralista. [24]

1.3 Sujeito do direito à intimidade

Não há unanimidade na doutrina acerca da delimitação dos sujeitos do direito à vida privada e intimidade, em face da resistência de alguns autores em reconhecer as pessoas jurídicas como legítimas titulares.

Dotti define sujeito de direito como "o ser em favor de quem a ordem jurídica assegura o poder de agir contido no direito", delimitando que o sujeito do direito à vida privada é tão somente a pessoa natural, "independentemente de idade, sexo, condição social e atributos que a possam distinguir das demais" [25].

O autor em referência não reconhece às pessoas jurídicas a condição de sujeito de direito da vida privada, porquanto entenda que o aspecto notadamente marcante do ente coletivo é a publicidade da existência de seus atos, o que vem a incompatibilizá-la com a essência do direito à vida privada - as esferas de exclusividade. [26]

A melhor doutrina, todavia, se posiciona pela plena compatibilidade do exercício do direito à vida privada e intimidade pelas pessoas jurídicas, visto que esses entes coletivos também são dotados de personalidade jurídica. [27] Bittar inclusive identifica como atributos essenciais dos entes coletivos os direitos a nome, marca, símbolos e honra, sendo portanto vedada a divulgação das informações de âmbito restrito da empresa. [28]

Belloque, a seu turno, analisa a questão sob a sistemática dos direitos da personalidade em geral (à intimidade, honra, vida privada e imagem), adaptando-os à pessoa jurídica. No que tange, por exemplo, à honra, não faz alusão a sentimentos de dor, angústia ou constrangimento, não havendo o que se falar em honra subjetiva de pessoa jurídica. Não obstante, afirma a possibilidade de violação da sua honra objetiva, representada pelo "abalo a seu nome e credibilidade no meio civil e comercial, bem como entre fornecedores, consumidores e a sociedade em geral" [29].

Nesse contexto, ressalta que operações financeiras, cartas de clientes ou planos metodológicos consistem em aspectos da intimidade da pessoa jurídica que nada tem a ver com a intimidade de seus sócios ou dirigentes, demonstrando que, quando da observância de eventuais lesões, é o desenvolvimento das atividades empresariais que restará prejudicado, e não a vida privada das pessoas físicas envolvidas na atividade. [30]

Nesse mesmo sentido a Súmula 227 [31] do Superior Tribunal de Justiça, que afirma a possibilidade da pessoa jurídica sofrer dano moral. Claro está que à pessoa jurídica assiste o direito de manter sob discrição, ou até mesmo em segredo, aspectos relacionados a suas atividades empresariais, até mesmo como forma de se impor estrategicamente no mercado de negócios, cuja competitividade acirrada demanda um esforço ininterrupto na captação de recursos e clientes com fins de viabilizar a sedimentação da empresa. E isso nada mais é do que a esfera de intimidade da pessoa jurídica.

Obviamente, não há uma identificação do objeto de intimidade da pessoa jurídica com os aspectos que configuram o objeto de intimidade da pessoa física. Conforme já mencionado, a vida privada dos entes coletivos se expressa de maneira diversa e a distinção quanto à abrangência dos conceitos deve ser observada. É fato que a intimidade das pessoas jurídicas é mais restrita, mas abrange nome, imagem frente ao meio sócio-comercial, movimentações financeiras, planos de estratégia comercial, dentre outros, sempre de maneira a garantir seu valor econômico. Assim, incontestável sua posição de sujeito do direito à intimidade e vida privada, bem como imprescindível a salvaguarda jurisdicional dos mesmos.

2.4 Limitações ao direito à intimidade: interesse público

Na orientação da própria sistemática dos direitos fundamentais, mormente no que se refere à limitabilidade, "restrição no âmbito material de incidência da norma concessiva", não se pode afirmar o direito à intimidade como direito absoluto, em face da necessidade de se harmonizar os direitos de diferentes indivíduos ou grupos, bem como estes últimos com os bens coletivos [32].

Com efeito, os direitos fundamentais hão de ser vistos atualmente sob a ótica das necessidades coletivas, e não apenas dentro da perspectiva de uma ética individual. Dessa feita, limitações aos direitos fundamentais fazem-se necessárias para a consagração dos interesses de toda a comunidade social. Dotti, inclusive, afirma que a limitação das esferas das liberdades é condição de coexistência dessas últimas. [33]

Belloque salienta a complicada tarefa de compatibilizar com equilíbrio a proteção da intimidade e outros interesses jurídicos. Afirma que de modo pioneiro Warren e Brandeis apontaram a dificuldade de delimitação da "fronteira na qual a dignidade individual deva ceder às exigências do interesse público", findando por concluir que a intimidade não tem o poder de impedir divulgações que se coadunem com o legítimo interesse da sociedade. [34]

Da reflexão acerca da coexistência de direitos diversos, é que a doutrina brasileira majoritária sustenta sustenta a supremacia do interesse público em detrimento do privado, sob a égide de princípio constitucional implícito. Ao nos remeter a essa análise, Binenbojm deixa claro que a dicotomia púbico-particular, para aqueles que a defendem, só é efetiva "quando a Administração se vê diante de interesses legítimos de parte a parte", que imprimirão a necessidade de balanceamento dos interesses em tela "na busca de uma solução constitucional e legalmente otimizada" [35].

Percebe-se que o elemento relevante na análise das restrições aos direitos fundamentais é essencialmente o interesse público, ainda que ele venha a se expressar por meio de diferentes nuances a depender das situações concretas. Mister se faz, por conseguinte, a análise do postulado da supremacia do interesse público sobre o privado na estruturação jurídico-democrática.

Com efeito, a problemática se expande quando da constatação de que definir interesse público também não é das tarefas mais simples. Medina Osório chama a atenção para o fato de a expressão "interesse público" não traduzir nenhuma "fórmula mágica que a tudo pode abarcar", vide sua possibilidade de controle pelo Judiciário. Alerta, ainda, para a dificuldade de se determinar um conceito apriorístico e substancial, dada a multiplicidade de conteúdos que um interesse público comporta, bem como a variedade de situações nas quais pode incidir e operar funcionalmente, destacando que interesse público não se confunde com o que se entende por bem comum. [36]

Em que pesem as considerações a seguir acerca da supremacia do interesse público, convém colacionar o magistério de K. C. Wheare, enfatizado por Dotti, para que reflitamos acerca dos limites das restrições, sob pena de as exceções se imporem à regra e os direitos fundamentais restarem indiscriminadamente violados, o que poria abaixo toda uma história de evolução de direitos e garantias essenciais a um Estado Democrático de Direito. Assim entende Wheare:

"Nenhum intento realista que defina os direitos dos cidadãos pode, com efeito, deixar de incluir limitações. Mas quando vemos o resultado, é difícil resistir à tentação de perguntar: o que resta, em substância, depois que as limitações tenham entrado em vigor?" [37]

Com esta reflexão em mente, passemos à análise do interesse público. Alves da Frota enumera quatro espécies de interesse público, a saber: interesse coletivo, interesse difuso, interesse público secundário e interesse público primário, sendo este último a acepção pura, rigorosamente técnica de interesse público, repousado no "interesse geral da sociedade e na soberania popular" [38].

Escola, por sua vez, atribui um sentido teleológico ao interesse público, de modo que as restrições ou limitações impostas por este último se fazem justamente para possibilitar o próprio interesse particular, as liberdades e direitos protegidos pelo sistema jurídico. [39] Ou seja, o interesse público tem por finalidade última o atendimento dos interesses particulares.

Para Escola é a presença dos interesses individuais coincidentes e compartilhados por um grupo, preponderante do ponto de vista quantitativo, que dá lugar a um interesse público. Ou seja, é a soma dos interesses individuais da maioria que forma o interesse público. Dessa feita, alega que por ter o interesse público a mesma entidade substancial do interesse privado, não há verdadeira contraposição entre eles, tampouco exata prevalência de um em detrimento do outro. [40]

Ademais, justifica sua perspectiva de interesse público no princípio de igual distribuição e participação nos efeitos, exigências e resultados do querer social, os quais para ele são "exteriorizações do sentimento de solidariedade e integração" [41]. Outrossim, esclarece Escola que não há o que se confundir interesse do Estado, do governo, da administração pública, com o interesse público, notadamente em regimes totalitários, que têm por hábito falar em interesse do povo como uma totalidade ideal.

Com efeito, as considerações do autor em referência hão de ser vistas com reservas. De início, ressalte-se que a perspectiva de que o interesse público é a soma dos interesses individuais não nos parece acertada. Perfilhamos a linha de orientação de Bandeira de Mello, que, ao tratar da matéria, esclarece que é mais adequado identificar interesse público com o interesse do conjunto social, e não com a soma dos interesses dos indivíduos que formam esse conjunto. [42]

Sustenta Bandeira de Mello que o interesse público não é autônomo, nem desvinculado das partes que compõem o todo social. O interesse público não se dissocia, pois, completamente, dos interesses individuais, apenas configura uma função qualificada dos mesmos. O interesse público é, portanto, uma forma de manifestação, a dimensão pública dos interesses individuais. [43]

Ou seja, Bandeira de Mello nega a existência de um interesse público contraposto ao interesse de cada um dos membros da sociedade, mas desde que se observe o indivíduo como partícipe de uma coletividade maior, e não sua condição pessoal singularizada.

Assim, ainda que eventual limitação recaia sobre o direito do cidadão A, é de seu interesse, para o bom desenvolvimento do meio social, do bem estar de cada um, que limitações sejam estabelecidas a todos. O exercício pessoal de seu direito restará restrito para que seja possível o atendimento do interesse de todos os membros formadores da sociedade.

Convém relacionar a conclusão de Bandeira de Mello acerca dessa dimensão do interesse público:

"Não é, portanto, de forma alguma, um interesse constituído autonomamente, dissociado do interesse das partes e, pois, passível de ser tomado como categoria jurídica que possa ser erigida irrelatamente aos interesses individuais, pois, em fim de contas, ele nada mais é que uma faceta dos interesses dos indivíduos: aquela que se manifesta enquanto estes - inevitavelmente membros de um corpo social - comparecem em tal qualidade. Então, dito interesse, o público - e esta já é uma primeira conclusão -, só se justifica na medida em que se constitui em veículo de realização dos interesses das partes que o integram no presente e das partes que o integrarão no futuro. Logo, é destes que, em última instância, promanam os interesses chamados públicos" [44].

Dessa feita, transportando a conceituação para o estudo específico do direito à intimidade e vida privada, impõe-se que o indivíduo, obviamente no plano pessoal, não terá interesse na limitação de sua intimidade, mas terá interesse individual na existência de limitações à intimidade de todos, sob pena de se impossibilitar aspectos necessários à harmonia social, exemplificados pela garantia da segurança, promoção de persecuções penais, liberdade de informação, dentre outros. É a supremacia do interesse público sobre o privado, portanto, "verdadeiro pressuposto lógico do convívio social" [45].

Entretanto, conforme já mencionado, há autores que renegam a existência de uma supremacia do interesse público sobra o privado, sob a alegação de que ambos são formados pela mesma entidade substancial. [46]

Compartilhamos, conforme já exposto, do entendimento do interesse público como uma dimensão dos interesses privados, na orientação da doutrina de Bandeira de Mello, mas não julgamos despiciendo afirmar sua supremacia. Entendemos que o posicionamento pela supremacia do interesse público sobre o privado visa alcançar as situações em que interesses de particulares, analisados singularmente no plano concreto, restam restritos em face do interesse da sua comunidade orgânica.

É certo que o interesse dessa comunidade é, em última instância, uma qualificação dos interesses privados, mas apenas enquanto os indivíduos são vistos como membros de um todo orgânico. Acaso seja o indivíduo considerado tão somente dentro de sua perspectiva particular, obviamente que, no plano concreto, ele sofrerá limitações em alguns dos seus direitos fundamentais, justamente para que seja atendido o interesse da coletividade. É nesse sentido que afirmamos a supremacia do interesse público, que pode até ser identificado com o interesse privado institucionalizado, mas não com o interesse particular mais imediato.

Todavia, é inviável delimitar um conceito concreto de interesse público. Bandeira de Mello preconiza que os interesses qualificáveis como públicos são aqueles determinados pelo próprio Direito Positivo, em especial a Constituição. [47] Entretanto, dita afirmação não esclarece muito o que se pode determinar como conteúdo do interesse público.

Partindo para uma reflexão do que seria o interesse público apto a limitar especificamente o direito fundamental por ora em estudo, qual seja a intimidade e vida privada, Bittar apresenta considerações um pouco mais precisas. Assim, estabelece como interesse público idôneo a limitar a intimidade o seguinte:

"exigências de ordem histórica, científica, cultural ou artística; exigências de cunho judicial ou policial, inclusive com o uso de aparatos tecnológicos de detectação de fatos; exigências de ordem tributária ou econômica; exigências da informação, pela constituição de bancos, empresas, ou centros, públicos ou privados, de dados, de interesse negocial, e de agências de divulgação comercial (de elementos de cunho patrimonial); exigências de saúde pública e de caráter médico-profissional e outras." [48]

Obviamente que essas circunstâncias deverão ser apreciadas em cada caso concreto, sob pena de acarretar o sacrifício indevido do direito do particular.

Dotti, na mesma orientação, noticia um rol cujo conteúdo se justifica, em essência, pelo interesse público. A relatividade da intimidade, para este autor, se dá em função dos interesses de segurança nacional, de investigação criminal, de saúde pública, da História, interesse sobre as figuras públicas, da Administração Pública, da crônica policial ou forense, da crítica, da cultura, do exercício do direito de ação e do consentimento do interessado. [49]

Afora o consentimento do interessado - que inclusive nem julgamos apropriado identificar como restrição, já que não deriva de imposição externa -, todas as outras hipóteses de limitação à intimidade relacionadas por Dotti só se justificam quando configuram, no caso concreto, legítimo interesse público. O mesmo ocorre com a relação apresentada por Bittar, que representa um conteúdo vazio e nulo ao que se propõe acaso não se revista da imperiosa presença do interesse público.

Diante desse fato, nos permitimos dizer que, embora listada por diversos autores uma gama de situações que ensejam a limitação do direito à vida privada e intimidade, elas se resumem basicamente às imposições determinadas pela supremacia do interesse público, portanto, só restam possíveis quando da presença concreta deste último. São, em última instância, tão somente dimensões concretas do interesse público.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notas

  1. BERNARDI, Renato. A Inviolabilidade do Sigilo de Dados. São Paulo: Fiúza Editores, 2005, p.51.
  2. Por todos BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Sigilo Bancário e Privacidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005, p.23.
  3. BALTAZAR, Júnior, 2005, p.26.
  4. BERNARDI, Renato. 2005, p. 52.
  5. COVELLO, Sergio Carlos. As Normas de Sigilo como Proteção à Intimidade. São Paulo: Editora Sejac, 1999, pp. 7-8.
  6. BASTOS, Celso. Estudos e Pareceres: direito público, constitucional, administrativo, municipal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p.64.
  7. DOTTI, René Ariel. Proteção da Vida Privada e Liberdade de Informação: possibilidades e limites. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1980, p. 22.
  8. BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade, Rio de Janeiro: Forense Universitária, Biblioteca Jurídica, 1989, p. 103.
  9. ESCOLA, Héctor Jorge. El Interés Público: como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1989, p 252.
  10. DOTTI, René Ariel, 1980, p. 22.
  11. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 20ª Ed., 2004, p.237.
  12. BITTAR, Carlos Alberto. 1989, p. 01.
  13. BITTAR, Carlos Alberto, 1989, p. 17.
  14. DOTTI, René Ariel, 1980, pp. 24-25.
  15. DOTTI, René Ariel, 1980, p. 26.
  16. PEREIRA, Caio Mário da Silva, 2004, p. 242.
  17. DOTTI, René Ariel, 1980, p.26.
  18. PEREIRA, Caio Mário da Silva, 2004, p. 242.
  19. BERNARDI, Renato, 2005, p. 49.
  20. BITTAR, Carlos Alberto, 1989, p.23.
  21. DOTTI, René Ariel, 1980, p.76.
  22. BALTAZAR Júnior, José Paulo, 2005, p.40.
  23. BALTAZAR Júnior, José Paulo, 2005, p.43.
  24. BELLOQUE, Juliana Garcia, Sigilo Bancário: Análise Crítica da LC 105/2001. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 73.
  25. DOTTI, René Ariel, 1980, p.92.
  26. DOTTI, René Ariel, 1980, pp. 94-95.
  27. Por todos BITTAR, Carlos Alberto, 1989, p.13.
  28. BITTAR, Carlos Alberto, 1989, p.13.
  29. BELLOQUE, Juliana Garcia, 2003, p. 35.
  30. BELLOQUE, Juliana Garcia, 2003, p. 35.
  31. Súmula 227 STJ. "A pessoa jurídica pode sofrer dano moral".
  32. SCHÄFER, Jairo Gilberto. Direitos Fundamentais: proteção e restrição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001 apud BERNARDI, Renato, 2005, p. 39.
  33. DOTTI, René Ariel, 1980, p. 184.
  34. WARREN, Samuel e BRANDEIS, Louis. The Right to Privacy. Harvard Law Review, n.5, vol. 4, Dec. 1890 apud BELLOQUE, Juliana, 2005, p. 52.
  35. BINENBOJM, Gustavo. Da Supremacia do Interesse Público ao Dever de Proporcionalidade: um Novo Paradigma para o Direito Administrativo. Revista de Direito Administrativo, n. 239. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, jan.-março 2005, pp. 8-11.
  36. OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma Supremacia do Interesse Público sobre o Privado no Direito Brasileiro?. Revista de Direito Administrativo, n. 220. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, abril-junho 2000, p. 73.
  37. DOTTI, René Ariel, 1980, p. 183.
  38. FROTA, Hidemberg Alves. O Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado no Direito Positivo Comparado: Expressão do Interesse Geral da Sociedade e da Soberania Popular. Revista de Direito Administrativo, n. 239. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Renovar, jan.-março 2005, pp. 45-49.
  39. ESCOLA, Héctor Jorge, 1989, p. 235.
  40. ESCOLA, Héctor Jorge, 1989, pp. 243-244.
  41. ESCOLA, Héctor Jorge, 1989, pp. 240-241.
  42. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 17ª ed. rev. e atual., 2004, p. 50.
  43. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, 2004, p. 51.
  44. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, 2004, pp. 52-53.
  45. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, 2004, p. 87.
  46. Por todos, ESCOLA, Héctor Jorge, 1989, pp. 243-244.
  47. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, 2004, pp. 58-59.
  48. BITTAR, Carlos Alberto, 1989, pp. 106-107.
  49. DOTTI, René Ariel, 1980, pp. 194-220.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAIS, Marcela de Oliveira Cordeiro. Do interesse público como instrumento de relativização do direito fundamental à intimidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3111, 7 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20802. Acesso em: 24 abr. 2024.