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Embriaguez ao volante: realização de exame clínico e comprovação do perigo de lesão são sempre necessárias

Embriaguez ao volante: realização de exame clínico e comprovação do perigo de lesão são sempre necessárias

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Mesmo com a mudança da Lei Seca pela Lei nº 11.705/2008, são necessários três requisitos para a conduta típica: exame de sangue ou bafômetro, exame clínico e criação de risco relevante.

Resumo: Trata-se de algumas reflexões referentes à direção de veículo automotor em suposto estado de embriaguez após o advento da Lei 11.705/2008, que alterou o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro. Nesse breve estudo, visa-se a demonstrar a necessidade de três requisitos básicos e fundamentais para a demonstração da conduta típica, mesmo com alteração daquele dispositivo legal. Os requisitos são: a) teste de aferição numérica de dosagem alcoólica (exame de sangue ou etilômetro), b) exame clínico (médico) e c) criação de risco relevante (perigo de lesão a bem jurídico).

Palavras: direção, embriaguez, veículo, exame clínico, perigo, lesão.


1. Dos requisitos da tipicidade formal

É certo que, até 2008, o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) vigia com a seguinte redação:

Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem.

Desse modo, exigia-se naquele tempo apenas a influência do álcool na capacidade psicomotora de quem estivesse conduzindo veículo automotor.

A partir da vigência da Lei 11.705/2008, o texto típico-legal do art. 306 do CTB passou a viger no seguinte sentido:

Art. 306.  Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Parágrafo único.  O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.

É dizer: o texto formal do art. 306 não fala mais em "influência de álcool", apenas menciona a quantidade a ser encontrada no organismo do agente.

O parágrafo único determina ao Poder Executivo que estabeleça norma de equivalência entre os distintos testes de alcoolemia. Expediu-se então o Decreto 6.488/08, equiparando a quantidade de 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue a quantidade de 0,3 (três décimos) miligramas por litro de ar expelidos dos pulmões.

Eis o teor do Decreto 6.488/08:

Decreto 6.488/08: Art. 2º. Para os fins criminais de que trata o art. 306 da Lei nº 9.503, de 1997 – Código de Trânsito Brasileiro, a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia é a seguinte: I - exame de sangue: concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue; ou II - teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro): concentração de álcool igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões. (grifos nossos).

Destaca-se, por conseguinte, que não há necessidade de expedição de laudo pericial de conversão dos índices de alcoolemia. Não existe essa tal "conversão". É mera invencionice, data venia. Haja vista que não existe perícia de norma. Existe, sim, equivalência típica expressa no parágrafo único e caput do art. 306 c/c o art. 2º, II, do Decreto 6.488/08.

A análise da tipicidade formal do art. 306 do CTB, com a abertura que lhe dá o seu parágrafo único, decorre diretamente do inciso II do art. 2º do Decreto 6.488/08. Basta, com isso, olhar o valor do resultado emitido no teste do etilômetro e ver se é superior a "três décimos de miligrama". Se for superior a esse quantum, aí, sim, ter-se-á a tipicidade formal revelada.

No caso de embriaguez alcoólica, há duas formas de tipificação, a depender da modalidade da prova angariada: a) uma coisa é a tipificação do art. 306, caput, ab initio, que exige exame de sangue; b) outra coisa é a tipificação do art. 306, caput e parágrafo único, do CTB c/c art. 2º, II, do Decreto 6.488/08, que exige exame com etilômetro. Não existe conversão pericial de tipicidade legal.

Assim, numa primeira leitura, apenas para determinação da tipicidade formal, pode-se consignar:

  1. Álcool: é indispensável a demonstração do dado numérico de 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue (somente se demonstra por meio de exame de sangue) ou 0,3 (três décimos de) miligrama por litro de ar expelidos dos pulmões (só se afere mediante utilização de etilômetro – "bafômetro").
  2. Qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: não será exigida a aferição de nenhum requisito numérico, mas apenas o exame clínico (médico), para a constatação do estado ébrio do motorista.

Nesse sentido, a dispensa do exame de sangue ou do etilômetro só é viável para qualquer outra substância psicoativa que determine dependência (que não seja o álcool). Se houver suspeita de que a embriaguez decorreu de ingestão de bebida alcoólica, a demonstração numérica, de acordo com a legislação vigente, será imprescindível. Afastar essa exigência elementar típica para fins de proceder à prisão em flagrante ou condenação judicial configura notado abuso.

Está consagrado no Direito Penal o princípio da legalidade, de acordo com o qual não se pode considerar crime nenhuma conduta senão em virtude de lei (art. 5º, XXXIX, da CRFB/88, art. 8º, nº 2, do Pacto de San Jose da Costa Rica, art. 9º do Tratado internacional de Direitos Civis e Políticos e art. 1º do Código Penal).

Art. 5º, XXXIX, da CRFB. Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

Art. 1º do CP. Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.

Art. 7º do PSJCR. 2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.

Art. 9º do TIDCP. 1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. Ninguém poderá ser preso ou encarcerado arbitrariamente. Ninguém poderá ser privado de sua liberdade, salvo pelos motivos previstos em lei e em conformidade com os procedimentos nela estabelecidos. [...] 5. Qualquer pessoa vítima de prisão ou encarceramento ilegal terá direito à reparação.

Se a lei define as elementares do tipo, não poderá o aplicador do Poder Executivo ou do Judiciário indeterminá-las, ampliando a abrangência do tipo. O art. 14, I, do CP também é expresso nesse sentido: Diz-se o crime consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal. Se não estiverem presentes e evidenciadas todas as elementares, não poderá o Estado, em qualquer de suas funções de Poder, se insurgir contra qualquer pessoa, no que se relaciona à matéria criminal (exceto se tratar-se de tentativa – art. 14, II, do CP –, tema que não vem ao caso na presente explanação).

Conforme bem elucida Luiz Flávio Gomes:

[...] a desformalização do Direito penal, ao consentir com a eliminação de garantias tradicionais, nada mais representa que uma das vias de possibilidade de sua expansão antigarantista, fundada na indeterminação da norma, [...] na discricionariedade do juiz na delimitação do injusto e da pena, no incremento dos delitos de perigo abstrato [...] [1].

Se a lei exige o requisito numérico para embriaguez ao volante, em nenhuma ocasião poderá um delegado de Polícia, juiz ou tribunal afastar essa exigência.

Embora isso possa parecer óbvio, faz-se essa ponderação em razão de que tanto o STJ quanto o STF, em alguns julgados, fizeram entender que, se a embriaguez for notória, ficaria prescindido o exame para a constatação numérica exigida pelo tipo legal. Notado absurdo, uma vez que, sem que se prove a elementar do tipo, não se pode dar ensejo a presunções.

Veja a inferência aludida pelo STJ no HC 178.882/RS:

No caso, não há falar em deficiência da prova da materialidade apresentada pela acusação (teste de alcoolemia – "bafômetro") para justificar a inépcia da denúncia, uma vez que a jurisprudência desta Corte é firme em que "A prova da embriaguez ao volante deve ser feita, preferencialmente, por meio de perícia (teste de alcoolemia ou de sangue), mas esta pode ser suprida (se impossível de ser realizada no momento ou em vista da recusa do cidadão), pelo exame clínico e, mesmo, pela prova testemunhal, esta, em casos excepcionais, por exemplo, quando o estado etílico é evidente e a própria conduta na direção do veículo demonstra o perigo potencial a incolumidade pública, como ocorreu no caso concreto." (RHC 26.432/MT, Quinta Turma, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe de 22/2/10). (HC 178.882/RS, Min. Jorge Mussi, publicado em 29/08/2011).

Data venia, é inadmissível que um ato do poder público (condenação ou efetuação de prisão em flagrante) seja levado a cabo em detrimento de alguém, por suposta incursão em conduta típica, sem que haja todos os elementos necessários para caracterizar as elementares típicas da conduta. Isso deve ser rechaçado de plano, pela comunidade acadêmica e pelos demais atores do cenário jurídico-normativo.

Entretanto, em julgado recente, o STJ proferiu decisão no sentido de que não se pode reconhecer a prática do crime previsto no art. 306 do CTB sem que se tenha, no mínimo, a medição do teor numérico a que se refere o tipo legal:

A nova redação do crime de embriaguez ao volante exige, para caracterizar a tipicidade da conduta, seja quantificado o grau de alcoolemia. Essa prova técnica é indispensável e só pode ser produzida, de forma segura e eficaz, por intermédio do etilômetro ou do exame de sangue. 3. Insta observar, aliás, que o parágrafo único do referido art. 306 remete ao Decreto n.º 6.488/08, que, por sua vez, regulamentou a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia, sem mencionar a aferição meramente clínica. 4. Desse modo, em face do princípio da legalidade penal, revejo minha posição, a fim de reconhecer a atipicidade da conduta por ausência de elementar objetiva do tipo penal. (AgRg 1291648/RS, Min. Laurita Vaz, publicado em 10/10/2011).

Até aqui, fica evidente que o exame para demonstrar numericamente o teor alcoólico é indispensável. Mas isso não basta para satisfação de todos os requisitos típicos penais (formais, materiais e subjetivos), como se verá a seguir.


2. Perigo concreto e influência do álcool – a relação de causalidade

Como se observou no início do texto, antes da alteração feita pela Lei 11.705/2008, o art. 306 do CTB trazia a expressamente a elementar expondo a dano potencial a incolumidade de outrem:

Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem.

Sabe-se que as teorias estratificadas do delito demandam inúmeras etapas de análise: tipicidade, ilicitude, culpabilidade e punibilidade. Todas essas teorias analíticas reclamam, ao menos, a tipicidade e a ilicitude como seus requisitos essenciais.

As novas doutrinas, que pensam o Direito Penal conformado com as constituições democráticas e com os novos métodos interpretativos dos dias de agora, não mais se contentam com os substratos formais e subjetivos do tipo penal. Depois de se avaliar o tipo formal, parte-se para o julgo do tipo material [2] (desvalor da conduta, desvalor do resultado, imputação objetiva, tipo conglobante [3]). E, a seguir, ao exame do tipo subjetivo (dolo ou culpa [4]). Subsequentes serão as apreciações da ilicitude e da culpabilidade, partindo-se depois para os critérios de aplicação da pena.

A doutrina atual tem assentado o princípio da ofensividade [5] como um dos principais esteios normativos do Direito Penal. A reprimenda penal é intervenção estatal de ultima ratio, demandando requisitos muito mais sublimes do que aqueles exigidos em outras searas do Direito.

Na obra de Claus Roxin, encontra-se a seguinte exposição: a imputação ao tipo objetivo é também de negar-se nos casos em que o autor, ainda que não tenha diminuído o risco de uma lesão a bem jurídico, não o aumentou em medida juridicamente relevante [6].

Em conformidade com a lição do italiano Luigi Ferrajoli, a lei penal tem o dever de prevenir os mais graves custos individuais e sociais representados por estes efeitos lesivos e somente eles podem justificar o custo das penas e proibições. Não se pode nem se deve pedir mais ao direito penal [7].

E como se trata de princípio constitucional que resvala diretamente no status libertatis do indivíduo, não se pode deixar de afirmar que seja um princípio constitucional fundamental. Ainda que não esteja mais posto no texto legal do art. 306 do CTB, deve ser tido como um direito pressuposto [8] do ordenamento constitucional vigente. Na linha do italiano Gustavo Zagregelsky, o que é verdadeiramente fundamental, pelo simples fato de sê-lo, não pode ser posto, tendo em vista que deve ser sempre pressuposto (tradução nossa) [9].Assim, plenamente exigível o requisito de perigo de lesão concreto, mesmo depois da alteração legislativa que não mais o prevê.

É dizer, se não há perigo concreto de lesão, não se pode utilizar o Direito Penal como panacéia de todos os males. Há outros instrumentos hábeis para isso, como a suspensão do direito de dirigir, com o consequente recolhimento da CNH em processo administrativo, as respectivas multas, recolhimento do veículo etc.

Nesse viés, além do exame de sangue ou do teste com etilômetro, é fundamental que haja direção anormal geradora de perigo ("concreto") de lesão a qualquer bem jurídico (individual ou coletivo, pessoal ou material, público ou privado). E esse perigo deve ser consequência do estado de embriaguez – relação de causalidade que só ficará evidenciada com a realização do exame clínico (médico).

Nada obstante, de acordo com entendimento atual das cortes superiores, para a configuração do crime de embriaguez ao volante, basta a comprovação do fator numérico (seis decigramas de álcool por litro de sangue ou três décimos de miligrama de álcool por litro de ar expelido dos pulmões).

Eis o conteúdo do HC 109269/MG (STF):

Mostra-se irrelevante, nesse contexto, indagar se o comportamento do agente atingiu, ou não, concretamente, o bem jurídico tutelado pela norma, porque a hipótese é de crime de perigo abstrato, para o qual não importa o resultado. Precedente. III – No tipo penal sob análise, basta que se comprove que o acusado conduzia veículo automotor, na via pública, apresentando concentração de álcool no sangue igual ou superior a 6 decigramas por litro para que esteja caracterizado o perigo ao bem jurídico tutelado e, portanto, configurado o crime. IV – Por opção legislativa, não se faz necessária a prova do risco potencial de dano causado pela conduta do agente que dirige embriagado, inexistindo qualquer inconstitucionalidade em tal previsão legal. (HC 109269/MG, Min. Rel. Ricardo Lewandowski, publicado em 10/10/2011).

Como se pode perceber, esses tribunais não tem reconhecido a necessidade de constatar também se aquela quantidade de álcool foi suficiente para alterar sensivelmente a capacidade psicomotora do agente (exame clínico – médico). Nem tampouco se exige que a eventual alteração no sistema neuropsíquico tenha sido apta a gerar perigo concreto de dano. Consideram, por enquanto, que se trata de crime que não exige perigo a bem jurídico (crime de perigo abstrato [10]).

Mas a questão está longe de se pacificar. Mesmo porque os dois tribunais não se manifestaram acerca dos arts. 1º e 7º da Lei 11.705/08, para apreciação da tipia conglobante – para usar a expressão de Zaffaroni [11], também utilizada pelo STJ, uma vez que adotou essa teoria expressamente em mais de oitenta julgados recentes para crimes de outra natureza [12].

Essa linha de interpretação recebe reforçadas críticas da doutrina, como ensina Luiz Flávio Gomes:

Essa conclusão, de outro lado, além de autoritária, revelaria uma ignorância incomensurável nesse tema da influência do álcool nas pessoas. Isso é muito variável, conforme a altura e o peso da pessoa, o sexo etc. [...]. Nem sempre o dirigir com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas significa conduzir anormalmente. Em algumas pessoas seis decigramas de álcool (que equivale em geral a uma lata de cerveja ou a dois chopes) não produzem nenhum efeito perturbador em sua conduta. [13]

Realmente, não parece correta a idéia de se ter intervenções no âmbito do Direito Penal sem que haja vinculação a um bem jurídico concreto, ainda que indiretamente. Em paráfrase ao ensinamento de Hassemer, um Direito Penal que não esteja amparado em bens jurídicos seria terror estatal [14].

Assim, além das elementares do tipo legal (formal) – teste para medir o teor numérico de álcool – e da geração do perigo concreto, deve estar presente a influência do álcool na coordenação motora do agente que dirige em via pública. Essa influência do álcool deve estar diretamente relacionada com o perigo (concreto) de lesão gerado, atuando como verdadeiro liame da relação causal.

A demonstração da quantidade de álcool no organismo serve, é claro, para auferir a tipicidade formal e também como triagem [15] para a confecção do laudo clínico exarado por perito (oficial ou não). Mas o crivo formal é apenas um dos substratos da tipicidade penal. Faz-se necessário, como visto acima, preencher a exigência da tipicidade material, seguindo a linha perfilhada por Roxin [16], Zaffaroni [17], Hassemer [18], Frish, Alagia [19], Slokar [20], García-Pablos de Molina, Luiz Flávio Gomes [21], Damásio de Jesus [22] e outros.

Tudo isso, para fazer inferir que a concentração de álcool tenha sido suficiente para influenciar na coordenação motora do agente, completando, assim, o requisito segundo o qual o agente deve estar sob a influência de álcool. Para que, dessa maneira, se perfaça a segunda exigência da tipicidade penal. Não apenas a tipicidade formal, como se disse, mas impreterivelmente a tipicidade material, seguindo essa linha doutrinária. É a lição de Luiz Flávio Gomes:

Esse entendimento, aliás, tem apoio em vários outros dispositivos legais da mesma Lei 11.705/2008, a começar pelo seu art. 1º, que diz: "Esta lei (...) obriga estampar (nos estabelecimentos que vendem ou oferecem bebida alcoólica) aviso de que constitui crime dirigir sob a influência de álcool". [...]. Se persistisse ainda alguma dúvida, bastaria ler o art. 7º da nova lei, que agregou o art. 4º-A à Lei 9.294/1996, com a seguinte redação: "Na parte interna dos locais em que se vende bebida alcoólica, deverá ser afixado advertência escrita de forma legível e ostensiva de que é crime dirigir sob a influência de álcool, punível com detenção". [23]

A razão o assiste. Conforme a própria Lei 11.705/08 dispõe em seus arts. 1º e 7º, deve haver influência de álcool:

Art. 1º  Esta Lei altera dispositivos da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro, com a finalidade de estabelecer alcoolemia 0 (zero) e de impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência do álcool, e da Lei nº 9.294, de 15 de julho de 1996, que dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do § 4º do art. 220 da Constituição Federal, para obrigar os estabelecimentos comerciais em que se vendem ou oferecem bebidas alcoólicas a estampar, no recinto, aviso de que constitui crime dirigir sob a influência de álcool. [...]

Art. 7º  A Lei nº 9.294, de 15 de julho de 1996, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 4º-A: "Art. 4º-A.  Na parte interna dos locais em que se vende bebida alcoólica, deverá ser afixado advertência escrita de forma legível e ostensiva de que é crime dirigir sob a influência de álcool, punível com detenção". (grifos nossos).

Além disso, até a sanção administrativa exige que o infrator esteja sob a influência de álcool. Exigir mais do tipo administrativo e menos do tipo penal seria evidente incongruência de face à qualidade que tem o jus puniendi de ultima ratio. Do contrário, o Direito Penal estaria se antecipando a outras modalidades punitivas.

Esse é o texto da infração administrativa:

Art. 165.  Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Infração - gravíssima; Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses; Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação. Parágrafo único. A embriaguez também poderá ser apurada na forma do art. 277.

Não reconhecer a necessidade de se provar que a quantidade de álcool foi suficiente para influenciar no sistema neuropsíquico do motorista, para fins de aplicação do art. 306, pode levar a incongruências de aplicabilidade prática. Um motorista, cujo organismo não oferece resistência ao álcool, poderia estar com níveis alcoólicos abaixo dos limites estabelecidos e ainda assim estar gerando perigo de lesão. Obviamente não responderia pelo art. 306 do CTB, por não preencher os requisitos do tipo formal, restando apenas a aplicação do art. 34 da Lei de Contravenções Penais (veremos abaixo) e da infração administrativa (art. 165 do CTB). Veja que até a contravenção penal do art. 34 da LCP exige que o motorista esteja pondo em perigo a segurança alheia (perigo "concreto").

Por outro lado, um motorista que tenha maior tolerância orgânica ao álcool e esteja com índice de alcoolemia acima do limite tolerado, pode não estar com as condições do sistema neuropsíquico alterado a ponto de causar perigo (não estar sob a influência do álcool). A se adotar a posição dos tribunais superiores, mesmo assim, esse motorista responderia pelo art. 306 do CTB, mas não chegaria nem sequer responder pela infração administrativa, uma vez que esta exige expressamente a influência do álcool no motorista. Incongruência notória!

Nessa vereda, importante é a interpretação sistemática do ordenamento. Leituras isoladas de texto legais podem induzir a equívocos. Para Zaffaroni, a interpretação se dá a partir do trabalho hermenêutico de todo o sistema normativo (Constituição, leis, regulamentos, doutrina, jurisprudência, normas postas ou pressupostas) e não pela frágil literalidade pontual de um texto legal [24].

Deve-se, portanto, requisitar o exame clínico (médico-legal) do motorista que não tenha sido aprovado no teste do etilômetro. Caso o laudo médico não demonstre que, clinicamente, o investigado esteja sob a influência de álcool, não se poderá efetuar sua prisão em flagrante e nem tampouco concluir pela sua condenação.

Sustentando a necessidade do exame clínico, a literatura médico-legal corrobora a tese de que se deve comprovar que o teor de álcool aferido com o etilômetro é suficiente para influenciar na coordenação motora do agente. E isso, por inúmeros motivos, sobretudo pelo caráter personalíssimo da resistência que cada um apresenta em relação ao álcool e, igualmente, para constatar se realmente houve ingestão de bebida alcoólica, tendo em conta a possibilidade de o etilômetro atestar um resultado "falso positivo".

Com efeito. O mero teste com etilômetro pode dar ensejo a uma conclusão não satisfatoriamente idônea – o chamado "falso positivo" –, diante da possibilidade de o próprio corpo humano produzir metabólitos do álcool, como os corpos cetônicos. Esses metabólitos podem fazer com que o medidor registre álcool no organismo humano, sem que o motorista tenha consumido nenhuma gota de álcool. Veja as palavras de Ancillotti:

O exame com o bafômetro é espécie de inspeção de "alcoolemia", possuindo como restrições: A) Medir apenas o teor alcoólico ao longo do aparelho respiratório (pulmões, traquéia, laringe faringe e boca) no ar expirado, e não da corrente sanguínea. B) A possibilidade do falso positivo, pois determina a concentração de um dos metabólitos do álcool (corpos cetônicos), que podem ser, via de regra, produzidos em prolongado jejum, dietas específicas e diabéticos metabolicamente descompensados. C) Por último, em razão da tolerância que é personalíssima, pode gerar equívocos. Concluímos, que o exame do etilômetro, só é válido como triagem, ou seja, indivíduos "reprovados" devem ser em caso de fundada suspeita, ser submetidos ao exame clínico. [25]

Aliado a isso, a submissão a exame clínico (médico) tem previsão legal expressa, albergada pelo art. 277 do CTB:

Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.

No intuito de certificar o tal estado de embriaguez, para fim de prisão em flagrante ou condenação com base no art. 306 do CTB, não se pode abrir mão do exame clínico (feito por médico – profissional habilitado para tanto). Pois, como se viu acima, o etilômetro não é suficiente para preencher as exigências técnicas e legais, além da possibilidade de se ter uma aferição com resultado "falso positivo".

Nos casos de prisão em flagrante, se não houver médico oficial disponível, o investigado poderá ser conduzido ao Pronto Socorro local, para que se expeça ficha médica com a finalidade de se constatar a situação ébria do investigado, em termos clínicos. O médico de plantão, após ser nomeado pela autoridade policial, não poderá recusar o encargo, conforme se depreende do art. 277 do CPP:

Art. 277.  O perito nomeado pela autoridade será obrigado a aceitar o encargo, sob pena de multa de cem a quinhentos mil-réis, salvo escusa atendível. Parágrafo único.  Incorrerá na mesma multa o perito que, sem justa causa, provada imediatamente: a) deixar de acudir à intimação ou ao chamado da autoridade; b) não comparecer no dia e local designados para o exame; c) não der o laudo, ou concorrer para que a perícia não seja feita, nos prazos estabelecidos. Art. 278.  No caso de não-comparecimento do perito, sem justa causa, a autoridade poderá determinar a sua condução.

Estamos ainda que, para fins de prisão em flagrante, não é necessário que dois médicos não oficiais assinem juntos a ficha médica ou o auto de constatação de embriaguez clínica. Pois o art. 159, §1º, do CPP traz essa exigência no campo das provas (que são produzidas em contraditório, em processo judicial – art. 155 do CPP), e não no campo dos elementos informativos (produzidos no inquérito policial). Todavia, a cópia da ficha médica ou o auto de constatação de embriaguez clínica deverá ser encaminhado ao médico-legista (oficial) para que este proceda a exame oficial, ainda que indireto, de modo que se possa instruir o futuro processo judicial, observando-se, assim, as formalidades do art. 158 do CPP.

Na lavratura dos autos do flagrante, a ficha médica tem natureza de exame preliminar (elemento informativo – para flagrante). Com isso, reitere-se, para fins de prova (para processo judicial), poderá ser expedido laudo indireto do médico oficial, conforme dispõe o art. 158 e 159 do CPP, que se referem a provas, pois estão dispostos no Título "Das Provas" (lembre-se: prova – para processo judicial).

O art. 158 do CPP dispõe que, se a infração deixar vestígios, deverá proceder-se à realização de exame pericial (no tema em questão, o exame clínico de constatação de embriaguez por ingestão de bebida alcoólica). Nem mesmo a confissão do investigado/réu será suficiente para supri-lo.

Excepcionalmente, pode-se admitir que testemunhas revelem o estado de embriaguez de alguém [26]. Porém, essa prova se revestirá de notada fragilidade na maioria dos casos. A constatação do estado ébrio demanda apontamentos clínicos (técnicos), cuja análise a olhos leigos pode trazer tamanhos enganos.

Em apreço à doutrina que não se contenta com os simples exames de constatação numérica de álcool (exame de sangue ou etilômetro) pode-se pensar que, além desses, bastaria uma direção anormal aliada ao exame de constatação numérica com resultado positivo. Ou seja, constatação numérica e perigo de dano.

Atente-se à linha perfilhada por Luiz Flávio Gomes, quando afirma que deve haver a comprovação de uma direção anormal (zig-zag, v.g.), que espelha o chamado perigo concreto indeterminado (ou seja: basta a comprovação da direção anormal, não se requerendo uma vítima concreta). [27]

E aduz ainda aquele autor: Não basta, assim, constatar a embriaguez (seis ou mais decigramas de álcool por litro de sangue). Mais do que isso: no art. 306 é sempre fundamental verificar como o sujeito dirigia (normal ou anormalmente). [28]

Damásio discorre no mesmo sentido, ilustrando que diante da letra da lei nova, não há crime de embriaguez ao volante se estava dirigindo corretamente (condução normal). [29], entendendo que só ficará caracterizado o crime se houver quantidade numérica aferida pelos testes preliminares (exame de sangue e bafômetro) conjugado com uma "barbeiragem", por exemplo. E diz mais:

Numa blitz, um motorista, dirigindo corretamente na via pública, é submetido ao exame do bafômetro, apurando-se teor alcoólico superior a seis decigramas (taxa de alcoolemia). Autuado por crime de embriaguez ao volante, vem a ser punido com seis meses de detenção e mais as conseqüências legais. Certo ou errado? Errado. Diante da letra da lei nova, não há crime de embriaguez ao volante se estava dirigindo corretamente (condução normal). [30] (Grifos nossos).

Numa leitura apressada desses ensinamentos, poder-se-ia inferir que se algum motorista, por exemplo, fizer uma "barbeiragem" e o teste com etilômetro registrar resultado positivo para o álcool, já seria suficiente para que o delegado de Polícia efetuasse a prisão ou o juiz proferisse condenação, fazendo presumir que a direção anormal é decorrência do suposto consumo de álcool medido pelo teste preliminar do etilômetro.

Essa interpretação não pode prosperar nesse ponto, tendo em vista que o nexo de causalidade entre o fator numérico de álcool e a direção anormal deve ser demonstrado pelo exame clínico (médico). Não se pode dizer que a direção anormal tenha decorrido do quantum (numérico) alcoólico, se não houver um exame clínico apto a visualizar a influência do álcool no organismo do agente. Sobretudo diante da realidade de se obter um "falso positivo" como conclusão do teste com etilômetro e do caráter personalíssimo da tolerância orgânica que possui cada pessoa.

Linhas adiante, Damásio esclarece:

Não é suficiente a causa (embriaguez; requisito biológico). A lei também não se satisfaz como efeito (afetação do sistema nervoso central; requisito psicológico). A norma, sistemática e constitucionalmente interpretada, adotou o sistema biopsicológico, exigindo nexo de causalidade entre a causa e o efeito: é preciso que o sujeito esteja dirigindo o veículo automotor "sob a influência do álcool", com afetação do modo de conduzir, desrespeitando o código de conduta. [...] É preciso que fique demonstrado que o sujeito estava dirigindo de maneira anormal por influência da ingestão de substância de efeito inebriante (sistema biobsicológico). [31]

Delineiam-se, desse modo, os fundamentos que levam a concluir pela indispensabilidade do exame clínico (médico) daquele que se submete a teste com etilômetro, cujo resultado seja positivo. E, atrelado a isso, a criação de um perigo concreto relevante.

Somente haverá elementos informativos ou provas que possam trazer convicção acerca do substrato normativo-material do tipo de embriaguez ao volante previsto no art. 306 do CTB se houver a presença de, no mínimo, três requisitos:

  1. Aferição do teor alcoólico demonstrado numericamente (por exame de sangue ou etilômetro);
  2. Direção anormal geradora de perigo concreto relevante [32];
  3. Exame clínico de constatação de embriaguez decorrente de ingestão de bebida alcoólica, apto a correlacionar o nexo de causalidade entre a influência do álcool no organismo do agente e a direção perigosa por ele realizada.

Quatro situações hipotéticas talvez possam aclarar um pouco as coisas.

Motorista que não ingeriu bebida alcoólica e o exame resultou "falso positivo": Imagine, por exemplo, um hiperglicêmico (diabético) conduzindo seu veículo e que, em razão de um jejum, tenha sido acometido por uma tontura ligeira. O policial percebe que houve um defeito na condução e resolve submetê-lo ao exame com etilômetro. Certo de que não ingeriu nenhuma bebida alcoólica, o motorista se submete ao teste, que constata níveis de metabólitos do álcool em nível superior ao permitido. Viu-se que o diabético ou aquele que procede a certas dietas ou jejum pode produzir naturalmente metabólitos alcoólicos (corpos cetônicos), conforme sedimentado na doutrina médico-legal. Satisfazendo-se apenas com a direção anormal e com o teste do etilômetro, a prisão em flagrante do motorista se efetuaria e este seria levado ao cárcere, caso não dispusesse do valor para o pagamento da fiança. Absurdo intolerável num Estado que se intitula constitucional e democrático.

Motorista que consumiu pequena quantidade de álcool, acima da permitida, e realizou deslize irrelevante, que nem sequer tem relação com a ingestão da bebida: é o exemplo daquele motorista que apresenta maior resistência ao álcool (não está sob a influência). Muitas vezes, a ingestão de uma pequena quantidade de álcool não faz com que certas pessoas tenham prejudicadas suas habilidades motoras essenciais. Um deslize na condução do veículo, como tocar os pneus na guia de uma calçada ao estacionar, pode nada ter a ver com a ingestão de uma taça de vinho consumida horas antes. Por isso, torna-se imprescindível a realização do exame clínico (médico).

Motorista com índice alcoólico superior ao permitido e sob a influência do álcool, mas sem gerar perigo de dano: essa terceira situação pode ser exemplificada na hipótese em que o motorista está com concentração de álcool superior ao limite tolerado, apresenta sinais de embriaguez reconhecidos em laudo clínico (médico), tenha realizado a direção anormal, mas sua conduta se deu em local ermo, onde não há possibilidade de gerar nenhum perigo ("concreto"), direto ou indireto. Suponha-se que uma guarnição policial, realizando treinamentos no topo de uma colina, visualize um motorista em atitude de suposta embriaguez, numa estrada de terra batida, longe dos arredores urbanos e de qualquer residência ou pessoa num raio de quilômetros. Os policiais resolvem encerrar os treinamentos e se deslocar em direção ao motorista. Abordam o veículo. O motorista se submete ao etilômetro, que registra concentração de álcool acima dos limites. É levado à presença do médico-legista, que atesta o estado de embriaguez. Nesse panorama, seria plausível proceder à prisão do motorista? Claro que não. Haja vista que não há falar-se em criação do risco proibido [33], por não ter gerado qualquer perigo relevante a bem jurídico penalmente tutelado.

Motorista que ingeriu bebida alcoólica e realizou manobra perigosa (relevante), mas o perigo da manobra nada tem a ver com seu estado psíquico: esse último caso é do motorista que ingeriu quantidade superior ao limite do art. 306, não estava sob a influência do álcool, mas realizou manobra perigosa. É mencionado pela doutrina inclusive. Conforme ressalta Damásio: Suponha-se que, não obstante tenha ingerido bebida alcoólica, um mal súbito tenha causado a manobra perigosa. O fato não se enquadra no tipo penal. [34] O motorista responderia, se preenchidas as condições, pela contravenção do art. 34 da LCP ou pelo crime do art. 309 do CTB (ver o item 4 deste texto). E não pelo crime do art. 306 do CTB. Estamos, porém, que, a depender do caso, se for significativa a alteração psicomotora do motorista (sob a influência de álcool) e ele estiver conduzindo veículo automotor em via pública, nas proximidades de habitações ou pessoas, não se poderá afirmar que a condução tenha sido normal, podendo perfazer, ao menos em tese, a tipicidade da conduta, visto que haverá perigo indireto (mas, concreto) de lesão [35].

Não se tem por fim, nesse breve ensaio, a propagação de rigorismos técnicos ilusórios, distante das realidades postas ao alcance das mãos. Por outro lado, não se pode abandonar a idéia de que o Direito Penal se prende, inevitavelmente, à legalidade. Contra a pessoa, não há de se tolerar gambiarras pseudodogmáticas. As valorações, baseadas em conceitos e preceitos pressupostos, só são admitidas a fim de reduzir o campo de aplicabilidade do Direito Penal. Jamais para ampliá-lo [36]. Para que um Estado constitucional atue em desfavor de alguém em matéria criminal, não se devem olvidar premissas que levem à máxima proteção de garantias substanciais, que, não raras vezes, se fogem da memória dos práticos.


3. Do direito de não fazer prova contra si – Nemo tenetur se detegere

Vige no Direito brasileiro um princípio que proíbe o Estado de compelir as pessoas a fazerem prova contra si mesmas. Esse princípio tem previsão expressa constitucional, estampada no art. 5º, LXIII, da CRFB, que, apesar de se referir apenas ao direito de permanecer calado, deve ser interpretado ampliativamente:

Art. 5º, LXIII, da CRFB/88: o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.

O Pacto de São José da Costa Rica e o Tratado Internacional de Direitos Civis e Políticos também trazem dispositivos semelhantes:

PSJCR: Art. 8º. 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: [...] g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada. [...]. 3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.

TIDCP: Art. 12. 3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: [...] g) a não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.

Nessa esteira, tem o investigado/réu o direito de não se submeter ao teste com etilômetro ou exame de sangue. E isso não é nenhuma excrescência do ordenamento nem exagero de interpretação. É direito fundamental elencado na Carta Política de 1988 e em tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil é signatário e aos quais deve rigorosa observância.

Do exercício de um direito não pode decorrer uma sanção, mormente quando se trata de um direito humanista e fundamental. Daí concluir-se que a norma inserida no texto do art. 277, §3º, do CTB está parcialmente eivada de inconstitucionalidade, pois poderá o investigado/réu se eximir, sim, dos procedimentos que dependam de sua participação ativa:

Art. 277, §3º, CTB.  Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.

O §3º traz eloqüência persuasiva que, além de ser desnecessária, é inconstitucional. O disposto no art. 277, §2º, do CTB, dirigido à prova da infração administrativa, como regra, é adequado para que o servidor estatal angarie os indícios reveladores da embriaguez.

Art. 277, §2º, CTB. A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor.

Com isso, ao ser submetido ao teste de aferição de teor alcoólico, o fiscalizado tem o direito de ser informado de seu direito. Não poderá ser obrigado a fazer o teste, nem mesmo poderá ser ludibriado pelo servidor estatal, sobremodo quando se trata de pessoas com baixo grau de escolaridade. No caso de infração administrativa (art. 165 CTB) e da contravenção penal (art. 34 da LCP), que não exigem prova corporal (sangue ou ar dos pulmões), incumbirá ao agente estatal demonstrar por outros meios a embriaguez (exame clínico – médico).

A prova corporal angariada só será válida se feita sem coação ou engodo, assim como acontece com a confissão do acusado. Eis o teor do art. 8º, nº 3, do PSJCR: A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.

Se o investigado for coagido, ludibriado ou mantido em erro por servidor estatal a fim de que se colha prova corporal, esse elemento informativo (no caso de inquérito) ou essa prova (em caso de processo) deverão ser repudiados pelas autoridades competentes.

Então surge o questionamento. Por que foi inserido um número no texto legal cuja prova dependa de coleta de material corporal, que pode ser negado pelo investigado? A resposta mais plausível é a de que houve falta de técnica legislativa. A redação anterior era evidentemente mais viável de ser aplicada.

O exame clínico era bastante, no antigo texto. E mesmo que realizado sem o consentimento do investigado, o exame clínico não gera nenhuma ilegalidade, vez que não depende de qualquer participação ativa do examinado. Quem produz a prova ou elemento informativo é única e exclusivamente o médico (perito), simplesmente observando o comportamento do examinado.

De lege ferenda, o melhor caminho seria abolir a elementar numérica do texto legal, fazendo com que a tipicidade se satisfizesse apenas com a influência do álcool, sem índices matemáticos que demandassem prova corporal ou que dependessem de ato do investigado/réu.

O bafômetro ou o exame de sangue podem ficar à disposição daquele que por ventura queira se valer desses instrumentos, a fim de auxiliar sua defesa. O que seria de todo legítimo.


4. Dos tipos subsidiários em caso de recusa em realizar os testes de aferição alcoólica

Caso o motorista esteja supostamente embriagado e se recuse a realizar o teste com etilômetro ou exame de sangue, não resta alternativa senão aplicar tipos penais subsidiários.

Se gerar perigo na condução de veículo automotor e não for habilitado, não tiver permissão para dirigir ou esse direito houver sido cassado, poderá ser amoldada sua conduta ao previsto no art. 309 do CTB:

Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano: Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.

Se for habilitado ou não estiver nas condições previstas no art. 309 do CTB, mas praticar direção perigosa de veículo, se recusando a se submeter aos testes de aferição numérica, caberá então a aplicação do art. 34 da Lei de Contravenções Penais:

Art. 34. Dirigir veículos na via pública, ou embarcações em águas públicas, pondo em perigo a segurança alheia: Pena – prisão simples, de quinze das a três meses, ou multa, de trezentos mil réis a dois contos de réis.

O art. 34 da LCP também se aplica àquele que não foi reprovado no exame de sangue ou no etilômetro, apresentando índice numérico de álcool inferior ao estabelecido no tipo do art. 306 do CTB ou até mesmo índice zero, mas que esteja gerando perigo de dano.

Já art. 32 da LCP ficou derrogado na parte que se refere à direção de veículo automotor, pois o art. 309 do CTB versa agora sobre a matéria e exige que haja ato gerador de perigo. Essa a posição firmada pelo STF, conforme o Enunciado 720 de sua Súmula de jurisprudência:

Súm. 720. O art. 309 do Código de Trânsito Brasileiro, que reclama decorra do fato perigo de dano, derrogou o art. 32 da Lei de Contravenções Penais no tocante à direção sem habilitação em vias terrestres.

O que não se pode é afastar requisitos legais e constitucionais, ao arrepio da técnica interpretativa, para amoldar condutas a determinados tipos legais que sejam elegidos arbitrariamente pelo aplicador.


Conclusão

No diapasão versado nessas breves linhas, só se pode denotar efetivamente a tipicidade do crime previsto no art. 306 do CTB se ficarem aclarados os elementos referentes a: 1) tipo formal (teor numérico de álcool no sangue ou no ar expelido dos pulmões), 2) tipo material: a imputação objetiva da conduta desvaliosa (dirigir sob a influência de álcool) e o necessário resultado desvalioso (gerando perigo concreto de lesão) e o 3) tipo subjetivo (dolo).

Em hipótese de não demonstração de todos os elementos da tipicidade formal, material e subjetiva, e também de ilicitude [37], não se torna legítimo o convencimento de que se possa efetuar a prisão em flagrante de alguém. Haja vista que a Constituição é expressa em assentar: Ninguém será preso senão em flagrante delito. Não se fala em prisão em flagrante de fato formalmente típico. Mas, sim, flagrante delito. E, no caso de condenação, tornam-se obrigatórias as análises da culpabilidade e da punibilidade. E, conforme pontifica Roxin, da necessidade concreta de pena [38].

Percebe-se que há alguns desencontros interpretativos sobre o tema. Nesse percurso, é natural que o responsável pelo expediente a ser analisado adote corrente que reputa ser a mais acertada, ainda que haja corrente discordante nesse cenário jurídico. E como se disse em outra oportunidade, divergência não é infringência [39]. Portanto, a divergência não legitima o eventual divergido a insurgir-se contra o divergente. Sobretudo quando se visa a acuá-lo, em notada ingerência no esteio de suas atribuições legais e constitucionais. A divergência faz parte do processo democrático de formação do Direito.

Destaque-se ainda: notícias popularescas e punitivistas não podem levar o aplicador do Direito a atuar em desconformidade com o ordenamento jurídico e contra seu convencimento devidamente fundamentado. Como doutrina Zaffaroni,

[...] a comunicação de massa, de formidável poder técnico, está empenhado numa propaganda völkisch [40] e vingativa sem precedentes; [...]. Este contexto não pode deixar de influir sobre nenhum teórico do direito e, por mais que se oculte sob os mais reluzentes enfeites jurídicos, a reação que suscita a presença descarnada do inimigo da sociedade no direito penal é de caráter político, porque a questão que se coloca é – e sempre foi – dessa natureza. [41]

Pode-se reafirmar, por fim, que o conceito de delito é aberto. São as teorias sobre o seu conceito analítico é que nos dizem o que ele é. Por conseguinte, cabe ao aplicador do Direito adotar qualquer uma das teorias quando da apreciação dos autos sobre os quais delibera [42]. Isso integra o campo de sua discricionariedade, na apreciação dos autos de flagrante, no caso dos delegados, ou no processo criminal, em relação aos juízes. Mas sempre fundamentadamente, de forma técnica, doutrinária, legal e constitucional.

É isso.


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Autor

  • Eduardo de Camargo Loberto

    Eduardo de Camargo Loberto

    Delegado de Polícia de Minas Gerais. Especialista em Ciências Penais pelo Curso de Pós-Graduação Lato Sensu com Formação para Magistério Superior da Pós-Uniderp/MS. Graduado pela Unisal-Lorena/SP. Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Penal da Faculdade de Direito e Ciências Sociais do Leste de Minas – Fadileste. Professor de Legislação Penal Especial no Curso Especial de Formação de Sargentos da Polícia Militar de Minas Gerais. Autor de artigos jurídico-científicos. Palestrante.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOBERTO, Eduardo de Camargo. Embriaguez ao volante: realização de exame clínico e comprovação do perigo de lesão são sempre necessárias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3143, 8 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21045. Acesso em: 19 abr. 2024.