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Análise dos requisitos para a criação de Unidades de Conservação

Análise dos requisitos para a criação de Unidades de Conservação

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A invalidação do ato de criação de Unidade de Conservação somente deve ser adotada em situação extrema, notadamente quando caracterizar abuso de poder e desvio de finalidade do agente público, uma vez que a preservação de áreas com relevância ambiental é fundamental para o alcance do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Sumário: I. Introdução; II. Considerações sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação; III. Os requisitos para a criação de Unidades de Conservação; III.1. Estudos técnicos; III.2. Consulta pública: concretização dos princípios da participação comunitária e do direito à informação; IV. A consequência pela inobservância dos requisitos para a criação de Unidades de Conservação; V. Referências Bibliográficas.


I. Introdução

No Brasil, país que lidera o ranking mundial da megadiversidade, a importância da criação de Espaços Territoriais Especialmente Protegidos – ETEP, nos quais estão incluídas as Unidades de Conservação, ganha especial relevância.

A necessidade de preservar o meio ambiente natural e, assim, atender ao ditame constitucional pelo direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225, caput) é tarefa extremamente desafiadora em um país com tantos conflitos fundiários e sociais, além da desigualdade de renda e do alto grau de concentração de propriedade.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, "para proteger a sua biodiversidade, o Brasil destina mais de 750.000 km² a unidades de conservação (UCs) federais, aproximadamente 9% do território nacional. Por sua vez, as UCs estaduais e municipais abrangem áreas de 422.000 km² e 35.000 km², respectivamente." [01]

Paulo de Bessa Antunes, em estudo específico sobre os Espaços Territoriais Especialmente Protegidos e sua relação com a propriedade privada, assim preleciona:

"Destinar uma área para a proteção especial é retirá-la da circulação econômica imediata. Isso ocorre, evidentemente, com a indicação de áreas destinadas à implantação de Unidades de Conservação do grupo de proteção integral; quanto às Unidades de Conservação do grupo de uso sustentável, há uma retirada parcial do bem da circulação econômica, haja vista que são estabelecidas limitações quanto aos usos permitidos, com uma retirada proporcional do valor econômico do bem. Assim, destinar uma área para especial proteção – qualquer que seja o motivo – é, do ponto de vista jurídico, dotá-la de regime especial que não se confunde com o regime de livre acesso para toda e qualquer atividade ou pessoa. É lógico que a reserva de áreas reflete uma escassez de terras livres – quando se fala em proteção ambiental, de terras com valor ambiental. Em momento de grande apropriação de áreas para a agricultura, a indústria e a urbanização, a questão se torna dramática." [02]

Neste cenário de conflito de interesses, deve ser motivo de especial atenção, com vistas a prevenir a ocorrência de eventuais abusos de poder e desvios de finalidade, a possibilidade de o Poder Público criar Unidades de Conservação a partir de normas infralegais [03] e, assim, interferir direta e indiretamente nos direitos dos cidadãos.

Como será exposto a seguir, a criação de Unidades de Conservação e a escolha por uma de suas doze modalidades (artigos 8.º e 14 da Lei 9.985/2000) é ato que deve ser precedido de embasamento técnico específico e satisfatório, bem como de efetiva participação da população.

Daí a relevância do tema dos requisitos para a criação de Unidades de Conservação.


II. Considerações sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação

Inicialmente, vale destacar a importância da Constituição Federal de 1988 para a tutela do meio ambiente, comumente intitulada de "Constituição Verde", por ser a primeira a trazer dispositivos específicos sobre a preservação ambiental.

Nessa linha, tratou das competências legislativa (artigo 24, incisos VI, VII e VIII e §§ 1.º e 2.º) e administrativa (artigo 23, incisos VI e VII), incluiu a preservação do meio ambiente como princípio das ordens social [04] e econômica (artigo 170, inciso VI), bem como dedicou capítulo exclusivo à tutela do meio ambiente (Capítulo VI).

Certamente, a inclusão da temática ambiental no texto constitucional pode ser considerada como um dos principais marcos brasileiros em relação à evolução legislativa infraconstitucional do Direito Ambiental, ante a necessidade de regulamentação dos direitos e deveres que passaram a contar com previsão expressa na "nova" ordem constitucional.

Exemplo disso é o artigo 225, § 1º, da Constituição Federal, que impõe ao Poder Público, a favor da coletividade, o dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado por meio, entre outros, da definição dos espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos.

Diante dessa disposição constitucional, mostrou-se imperiosa a necessidade de se editar uma lei específica para regulamentar, em adição ao Código Florestal (Lei 4.771/1965), o tema dos Espaços Territoriais Especialmente Protegidos, do que resultou o advento da Lei 9.985, de 18.07.2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC.

Como bem aponta Édis Milaré, "até a promulgação da Lei do SNUC não existia, no ordenamento jurídico, nenhum preceito que estabelecesse, com precisão, o conceito de Unidade de Conservação, e esta falta prejudicava a tutela que tais áreas reclamavam." [05]

Nos termos do artigo 2.º da Lei 9.985/2000, Unidade de Conservação é o "espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção."

Dessa forma, tem-se que as Unidades de Conservação constituem-se em espaços territoriais que, por sua relevância natural, merecem especial tutela por parte do Poder Público e da coletividade.

De acordo com a Lei 9.985/2000, são doze as categorias de Unidades de Conservação que integram o SNUC, divididas em dois grandes grupos, a saber: (i) Unidades de Proteção Integral; e (ii) Unidades de Uso Sustentável.

As Unidades de Proteção Integral, como o próprio nome sugere, são aquelas que têm por objetivo primordial a "manutenção dos ecossistemas livres de alterações causadas por interferência humana, admitido apenas o uso indireto dos seus atributos naturais" (artigo 2.º, inciso VI). Segundo o artigo 8.º da referida Lei, são cinco as categorias inseridas nesse grupo: (i) Estação Ecológica; (ii) Reserva Biológica; (iii) Parque Nacional; (iv) Monumento Natural; e (v) Refúgio de Vida Silvestre.

Já as Unidades de Uso Sustentável são aquelas que, em razão da presença antrópica, têm como objetivo o uso sustentável dos recursos naturais, "mantendo a biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa e economicamente viável" (artigo 2.º, inciso XI). Conforme se depreende do artigo 14 da Lei do SNUC, são sete as categorias pertencentes a este grupo: (i) Área de Proteção Ambiental; (ii) Área de Relevante Interesse Ecológico; (iii) Floresta Nacional; (iv) Reserva Extrativista; (v) Reserva de Fauna; (vi) Reserva de Desenvolvimento Sustentável; e (vii) Reserva Particular do Patrimônio Natural.

Importante destacar, desde logo, que a definição da categoria de Unidade de Conservação a ser criada pelo Poder Público dependerá de diversos fatores, dentre os quais ganham destaque a relevância natural, o grau de ocupação humana e os interesses incidentes sobre a área, tanto em relação à sua preservação, quanto à possibilidade de sua ocupação.


III. Os requisitos para a criação de Unidades de Conservação

Conforme estabelece o artigo 22, § 2º, da Lei 9.985/2000, "a criação de uma Unidade de Conservação deve ser precedida de estudos técnicos e de consulta pública que permitam identificar a localização, a dimensão e os limites mais adequados para a Unidade."

São dois, portanto, os requisitos obrigatórios a serem observados pelo Poder Público quando da criação de Unidade de Conservação: (i) a elaboração de estudos técnicos; e (ii) a realização de consultas públicas.

III.1.Estudos técnicos

Conforme mencionado, o artigo 22, § 2º, da Lei 9.985/2000 estabeleceu expressamente a obrigatoriedade de elaboração prévia de estudos técnicos para a criação de Unidades de Conservação.

Paulo de Bessa Antunes, ao se manifestar sobre o tema, assevera que "é condição de validade da constituição de uma Unidade de conservação que ela seja precedida de estudos técnicos elaborados pelo órgão proponente de sua criação." [06]

Sobre as suas finalidades, Paulo Affonso Leme Machado aduz que "énecessária a elaboração de estudos técnicos para a criação de Unidades de conservação, visando esses procedimentos à localização, à dimensão e aos limites mais adequados para a Unidade. Tais procedimentos, que serão especificados por regulamento, deverão obedecer, entre outros, aos princípios do interesse público, da motivação e da publicidade e, evidentemente, poderão ser objeto de ações judiciais, se desrespeitada a legislação vigente." [07]

Com efeito, a realização de análises técnicas, sociais, econômicas e ambientais é requisito imprescindível para a criação ou para a ampliação de qualquer categoria de Unidade de Conservação justamente pelo fato de que tal ato tem o condão de alterar a dinâmica dos locais envolvidos sob os aspectos ecossistêmico, ecológico, socioeconômico e paisagístico.

Com mais razão ainda, conforme dispõe o artigo 22 da Lei do SNUC, a realização de estudos técnicos se justifica para evitar eventuais abusos e arbitrariedades advindos de agentes do Poder Executivo, tendo em vista a possibilidade de criação de Unidades de Conservação por meio de mero ato administrativo, tal como Decreto, Resolução etc.

Nesse sentido, importante trazer à baila os ensinamentos de Maria Luiza Machado Granziera sobre as finalidades e o conteúdo da realização prévia de estudos técnicos, in verbis:

"Os estudos técnicos, de responsabilidade do órgão proponente, constituem o instrumento de apoio a decisões políticas, no ato de criação da UC. Seu escopo mínimo, portanto, deve incluir:

1. a descrição da característica natural mais significativa, que poderá fundamentar a denominação da Unidade, identificando-se, também, quando for o caso, a denominação mais antiga ou as designações indígenas ancestrais;

2. a categoria de manejo a ser proposta, em face dos estudos realizados sobre o espaço; e

3. a caracterização do território, com vistas a auxiliar na definição de suas áreas e seus limites." [08]

Interessante notar que o Ministério do Meio Ambiente disponibiliza um "Roteiro Básico para a Criação de Unidades de Conservação", onde consta, entre outras medidas essenciais, a necessidade de elaboração de estudos técnicos, que devem ter por base algumas providências necessárias, tais como: vistoria da área; levantamento socioeconômico, incluindo a verificação da existência de comunidades indígenas e tradicionais; levantamento de dados planimétricos e geográficos; laudo acerca dos fatores bióticos e abióticos da área; elaboração do diagnóstico fundiário dos imóveis, incluindo verificação de áreas sob proteção; e elaboração da base cartográfica abrangendo limites políticos, fitofisionomia, hidrografia, uso do solo, altimetria etc.

A Jurisprudência pátria vem reconhecendo a relevância da elaboração de estudos técnicos como condição de validade para a criação de Unidades de Conservação. Confira-se dois julgados, que bem representam a orientação jurisprudencial:

"A teor da Lei 9.985/00 e do Decreto 4.340/02, a criação de uma unidade de conservação pode se dar por simples ato do Poder Público, devendo, todavia, ser precedida de estudos técnicos e de consulta pública, cujos objetivos são subsidiar a definição da localização, da dimensão e dos limites mais adequados para a unidade.

Dita cautela se justifica para evitar que o administrador, dentro da sua vontade pessoal discricionária, muitas vezes equivocada ou mesmo arbitrária, crie áreas de conservação ambiental em localização tecnicamente desaconselhável ou inútil, contrária aos interesses da população que venha por ela a ser afetada". [09]

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. CRIAÇÃO DE UNIDADE DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA DO TIPO RESERVA EXTRATIVISTA (LEI 9.985/2000; DECRETO 4.340/2002). ESTUDOS TÉCNICOS E CONSULTA PÚBLICA. OBSERVÂNCIA.

1. No processo de criação de unidades de conservação da natureza, à vista do disposto no artigo 22, § 2º e 3º, da Lei 9.985/2000 e nos artigos 4º e 5 º do Decreto 4.340/2002, a consulta pública à população interessada deve ser precedida dos estudos técnicos que comprovem a viabilidade dela (unidade de conservação).

(...)

5. Agravo de instrumento provido em parte. [10]

Inegável, portanto, a relevância da elaboração de estudos técnicos para a criação de Unidades de Conservação.

III.2.Consulta pública: concretização dos princípios da participação comunitária e do direito à informação

Como se sabe, o princípio da participação comunitária expressa a ideia de que, para a resolução dos problemas do ambiente, "deve ser dada especial ênfase à cooperação entre o Estado e a sociedade, através da participação dos diferentes grupos sociais na formulação e na execução da política ambiental. Isto vale para os três níveis da Administração Pública." [11] E nem poderia ser diferente, uma vez que, pela Constituição Federal, a coletividade é corresponsável pela gestão do Direito do Ambiente (artigo 225, caput).

É o que determina o Princípio 10 da Declaração do Rio, de 1992. Confira-se:

"A melhor maneira de tratar questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo deve ter acesso adequado a informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar de processos decisórios. Os Estados irão facilitar e estimular a conscientização e a participação pública, colocando a informação à disposição de todos. Deve ser proporcionado acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que se refere à compensação e reparação de danos".

Aliás, interessante observar que o Sistema Nacional de Informações Sobre Meio Ambiente – SINIMA é instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, já que inserido no rol previsto pelo artigo 9.º da Lei 6.938/1981 (inciso VI).

Nos dizeres de Édis Milaré, "o direito à participação pressupõe o direito de informação e está a ele intimamente ligado. É que os cidadãos com acesso à informação têm melhores condições de atuar sobre a sociedade, de articular mais eficazmente desejos e ideias e de tomar parte ativa nas decisões que lhes interessam diretamente." [12]

Ademais, o princípio da publicidade é indicado pelo artigo 37, caput, da Carta Magna, como um dos princípios basilares da atuação da Administração Pública.

Em suma, nenhum processo político-administrativo pode ser desencadeado sem a participação da comunidade envolvida se quiser obter legitimidade.

Neste contexto, ao tratar das diretrizes do SNUC, o artigo 5º da referida Lei 9.985/2000 dita que o SNUC será regido por diretrizes que "assegurem a participação efetiva das populações locais na criação, implantação e gestão das unidades de conservação" (inciso III) e "assegurem que o processo de criação e a gestão das unidades de conservação sejam feitos de forma integrada com as políticas de administração das terras e águas circundantes, considerando as condições e necessidades sociais e econômicas locais." (inciso VIII)

A importância da participação comunitária para a criação e para a ampliação de Unidades de Conservação foi bem delineada na decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal – 4ª Região, in verbis:

"EMENTA: AMBIENTAL. ADMINISTRATIVO. CRIAÇÃO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO. CONSULTA PÚBLICA. ESTUDOS TÉCNICOS. PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. MATA ATLÂNTICA. PARQUE NACIONAL DOS CAMPOS GERAIS. RESERVA BIOLÓGICA DAS ARAUCÁRIAS. REFÚGIO DE VIDA SILVESTRE DO RIO TIBAGI.

A participação popular no procedimento administrativo de criação das unidades de conservação (Lei nº 9.985/00, arts. 5º e 22 e Dec. 4.340/02, art. 5º), além de concretizar o princípio democrático, permite levar a efeito, da melhor forma possível, a atuação administrativa, atendendo, tanto quanto possível, aos vários interesses em conflito.

Não há, porém, obrigatoriedade: a) da intimação pessoal de todos os proprietários atingidos; b) da realização de reuniões em todos os Municípios atingidos; c) da realização de reuniões públicas, desde que seja assegurada a oitiva da população e demais interessados (Dec. 4.320/02, art. 5º, § 1º)." [13]

O Supremo Tribunal Federal, nos autos do Mandado de Segurança n.º 24.184-5/DF, em que figurou como Relatora a Ministra Ellen Gracie, também já teve a oportunidade de se manifestar sobre o tema, ao apreciar pedido de declaração de nulidade do Decreto Presidencial de 27.09.2001, que ampliou os limites do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros sem a observância dos pressupostos legais pertinentes. Confira-se o voto da Ministra Relatora:

"Quando da edição do Decreto de 27.09.2001 impugnado no presente mandamus, a Lei n.º 9.985/00 – que dispõe sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza SNUC – ainda não havia sido regulamentada. A necessidade de sua regulamentação só foi implementada em 22 de agosto de 2002, com a edição do Decreto n.º 4.340/02.

Por outro lado, a Lei n.º 9.985/00, em seu art. 22, §§ 2.º e 6.º, exige que o processo de criação e ampliação das unidades de conservação deve ser precedido de estudos técnicos e consulta pública. As informações prestadas não comprovam o atendimento da exigência quanto ao adequado procedimento de consulta pública. O parecer emitido pelo Conselho Consultivo do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, instituído pela Portaria IBAMA n.º 82/01, não pode substituir a consulta exigida na lei, pois aquele Conselho não tem poderes para representar a população local.

Dessa forma, quer em razão do decreto impugnado ter sido editado antes da regulamentação da lei, quer pela ausência da consulta popular na forma do art. 22, § 2.º, da Lei n.º 9.985/00, concedo a segurança para declarar nulo o Decreto de 27.9.2001, que ampliou os limites do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, ressalvada a possibilidade da edição de novo decreto."

Assim, nota-se que a utilização de instrumentos que tenham como finalidade a ampla divulgação das propostas de criação de Unidades de Conservação e a realização de reuniões preliminares com as comunidades locais e os setores interessados é exigência legal que deve ser efetivamente atendida para que se confira legitimidade ao processo de criação de Unidade de Conservação.


IV. A consequência pela inobservância dos requisitos para a criação de Unidades de Conservação

Conforme dito acima, "as Unidades de Conservação são criadas por ato do Poder Público" (artigo 22, caput, da Lei 9.985/2000), o que significa dizer que normas emanadas do Poder Executivo podem criar uma Unidade de Conservação, como vem ocorrendo na prática; mesmo porque o processo de criação de normas infralegais se mostra muito menos moroso do que o processo legislativo.

Em primoroso estudo sobre os efeitos dos vícios do ato administrativo, Ricardo Marcondes Martins assevera que "o vício consiste numa contrariedade ao Direito, e, assim, ato viciado significa ato praticado em desconformidade com a ordem jurídica, reflete uma violação em maior ou menor medida ao Direito, globalmente considerado. Como regra geral, o Direito não tolera o vício: os atos viciados devem ser regularizados, saneados ou eliminados." [14]

Dessa forma, a manutenção da ordem jurídica e a higidez do sistema dependem da correção do vício percebido no ato administrativo. Nos dizeres de Weida Zancaner, "a Administração Pública tem o dever de restaurar o princípio da legalidade toda a vez que o tiver violado em razão da edição de atos viciados." [15]

Como se sabe, a correção do vício em casos de ilegalidade pode se dar de duas formas: a invalidação ou a convalidação. A primeira "é a eliminação, com eficácia ex tunc, de um ato administrativo ou da relação jurídica por ele gerada ou de ambos, por haverem sido produzidos em dissonância com a ordem jurídica." [16] Já a segunda "é um ato, exarado pela Administração Pública, que se refere expressamente ao ato a convalidar, para suprir seus defeitos e resguardar os efeitos por ele produzidos." [17]

Mas, afinal, quando adotar a invalidação e quando proceder com a convalidação de atos administrativos?

Sobre o tema, o artigo 55 da Lei 9.784/1999, que disciplina os processos administrativos na esfera federal, estabelece que, "em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração."

Por oportuno, observe-se que, a despeito do termo "poderão", contido no referido dispositivo, a doutrina é assente ao afirmar que a convalidação de atos administrativos não consiste em mera faculdade da Administração Pública, mas sim, em poder-dever, quando verificada a hipótese de seu cabimento. Sobre o tema, vale trazer a esclarecedora doutrina de Sérgio Ferraz e Adílson de Abreu Dallari:

"O art. 55 da Lei 9.784/1999 não transformou em faculdade da Administração a operação de convalidação. A flexão verbal ‘poderão’, nele utilizada, significa a expressa atribuição de um poder-dever: ‘expressa’ porque sempre existiu, mesmo antes da aludida lei; ‘poder-dever’ porque a convalidação é emanação direta dos princípios da legalidade e da segurança jurídica, não restando aberta, para o agente administrativo, a avaliação de dever, ou não, trilhar esse caminho, na forma do magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello. O dever de convalidar sempre existiu, porque a convalidação é emanação direta dos princípios da legalidade e da segurança jurídica, não remanescendo, destarte, margem de violação para o agente administrativo." [18]

Assim, na hipótese de haver vício sanável de menor gravidade, bem como constatado, no caso concreto, o menor potencial lesivo da convalidação em relação à invalidação, é poder-dever da Administração a manutenção do ato, com a correção do vício. Do contrário, isto é, em se tratando de vício insanável e/ou de hipótese em que a convalidação implicar graves prejuízos a terceiros ou ao interesse da coletividade, o ato deverá ser invalidado.

É exatamente essa a orientação que deve ser observada no caso dos requisitos para a criação de Unidades de Conservação.

Caso o defeito do ato de criação da Unidade de Conservação seja motivadamente considerado sanável e a sua correção não implicar graves prejuízos, há que se manter a sua validade, com o saneamento do vício.

Do contrário, isto é, mostrando-se insanável o vício ou sendo constatada a possibilidade de ocorrência de prejuízos a terceiros ou à coletividade, impõe-se a invalidação do ato de criação da Unidade de Criação.

Quanto a esta hipótese, não se pode deixar de ponderar que a invalidação do ato de criação de Unidade de Conservação somente deve ser adotada em situação extrema, notadamente quando a constatação do vício ensejar a caracterização de abuso de poder e desvio de finalidade do agente público, uma vez que a preservação de áreas com relevância ambiental é fundamental para o alcance do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, tal como previsto no artigo 225, caput, da Constituição Federal, além de atender ao já mencionado ditame constitucional pela criação de Espaços Territoriais Especialmente Protegidos.


IV. Referências bibliográficas

ANTUNES, Paulo de Bessa. "Áreas protegidas e propriedade constitucional." São Paulo: Atlas, 2011.

ANTUNES, Paulo de Bessa. "Direito Ambiental."11.ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.

FERRAZ, Sérgio; e DALLARI, Adílson de Abreu. "Processo Administrativo." 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

GRANZIERA, Maria Luiza Machado. "Direito Ambiental."São Paulo: Atlas, 2009.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. "Direito Ambiental Brasileiro."16.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

MARTINS, Ricardo Marcondes. "Efeitos dos Vícios do Ato Administrativo."São Paulo: Malheiros, 2008.

MILARÉ, Édis. "Direito do Ambiente."7.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

NERY JÚNIOR, Nelson; e NERY, Rosa Maria de Andrade. "Código de Processo Civil Comentado." 10.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

ZANCANER, Weida. "Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos."3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.


Notas

  1. http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1703&id_pagina=1http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/recursosnaturais/ids/ids2010.pdf
  2. "Áreas protegidas e propriedade constitucional." São Paulo: Atlas, 2011, p. 9.
  3. Nesse ponto, invocamos lição de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, in verbis: "O jurista tem a grave tarefa de promover a melhor aplicação do direito, aumentando, com sua atividade, o grau de certeza da ciência do direito. A tarefa do jurista é a luta contra o arbítrio. Tudo o que ele escreve e exterioriza serve de norte para ações futuras, motivo pelo qual não pode interpretar o direito contra os preceitos éticos, morais e principalmente, democráticos." In: "Código de Processo Civil Comentado". 10ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 692.
  4. A partir da inclusão do Capítulo VI ("Do Meio Ambiente") no Título VIII ("Da Ordem Social").
  5. "Direito do Ambiente." 7.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 908.
  6. "Direito Ambiental."11ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 557.
  7. "Direito Ambiental Brasileiro." 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 814.
  8. "Direito Ambiental." São Paulo: Atlas, 2009, p. 375.
  9. Apelação Cível em Mandado de Segurança n.º 2005.035384-1. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. DJ. 25.05.2006.
  10. Agravo de Instrumento n.º 2006.01.00.015900-0/BA. TRF 1ª Região. Sexta Turma. DJ 24.11.2006.
  11. MILARÉ, Édis. Ob. cit., p. 1080.
  12. Idem, p. 1081.
  13. Agravo de Instrumento n.º 2005.04.01.020976-0/PR. TRF 4ª Região. Terceira Turma. DJ 22.03.2006.
  14. "Efeitos dos vícios do ato administrativo." São Paulo: Malheiros, 2008, p. 269.
  15. "Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos."3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 85.
  16. Idem, p. 124.
  17. Idem, Ibidem.
  18. Processo Administrativo. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 257.

Autor

  • Mauricio Guetta

    Mauricio Guetta

    Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestrando em Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado do escritório Milaré Advogados - Consultoria em Meio Ambiente, com atuação em Direito Ambiental, Direito Processual Civil e Direito Administrativo. Professor-assistente voluntário da graduação em Direito na matéria de Direito Ambiental da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor convidado do Curso de Direito Ambiental da ESA – Escola Superior da Advocacia no Rio de Janeiro – OAB/RJ.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUETTA, Mauricio. Análise dos requisitos para a criação de Unidades de Conservação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3145, 10 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21049. Acesso em: 23 abr. 2024.