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Protesto por novo júri: análise de seu cabimento após o advento da Lei nº 11.689/2008

Protesto por novo júri: análise de seu cabimento após o advento da Lei nº 11.689/2008

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Embora não restem dúvidas quanto à necessidade e propriedade da extinção do Protesto por Novo Júri, diante de todo o já explicitado, tal modificação trouxe também novas celeumas jurídicas situadas no campo do Direito Intertemporal.

RESUMO

Por ocasião da Lei 11.689/2008, advieram várias transformações no Tribunal do Júri, dentre elas a extinção do Protesto por Novo Júri.  Devido à relevância deste instituto processual ainda hoje, mesmo após sua abolição, realizamos uma pesquisa bibliográfica qualitativa, buscando solucionar a seguinte problemática: é possível continuar-se admitindo o protesto por novo júri em crimes praticados antes da Lei 11.689/2009, e processados sob a égide deste novo diploma normativo? Teremos assim, como objetivo geral a análise do cabimento do Protesto por Novo Júri após o surgimento da nova lei, e especificamente: indicar seu conceito e peculiaridades e, sob a perspectiva do Direito Intertemporal, estabelecer sua natureza jurídica e efeitos, bem como as doutrinas e jurisprudências acerca do tema, além de apresentar nossas próprias considerações sobre suas repercussões em nosso ordenamento jurídico.

Palavras-chave: Protesto por Novo Júri. Crimes praticados antes da Lei 11.689/2008 Processos e posteriormente processados. Direito Intertemporal. Natureza Jurídica.


INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, especificamente após a promulgação da Constituição Federal de 1988, vem se discutindo a razoável duração do processo, bem como os meios para se lograr este objetivo. É neste contexto que os recursos ganham relevância, haja vista a complexidade da sistemática recursal pátria.

Em se analisando esta questão sob a ótica do Processo Penal, a discussão apresenta contornos bem mais preocupantes, posto que tal disciplina versa sobre direitos inalienáveis e indisponíveis do indivíduo, tais como a liberdade, a vida, e a integridade física, entre outros. Em decorrência destas novas preocupações e anseios, é que foi editada a Lei 11.689/2008, trazendo consideráveis alterações para o Processo Penal e, especificamente para o Tribunal do Júri.

Por ocasião desta nova lei, foi extinto o Protesto por Novo Júri, recurso que sempre trouxe muita inquietação à doutrina, frente às suas peculiaridades processuais, e à sociedade como um todo, cuja revolta se dirigia à possibilidade que o dito recurso criava a possibilidade de um novo julgamento em casos de crimes desumanos, amplamente divulgados pela imprensa.

Diante da relevância que este instituto processual possuía para o Tribunal do Júri, e da repercussão reavivada pelo recente julgamento do casal Nardoni, entendemos essencial a reflexão acerca dos efeitos sociais e jurídicos provenientes desta alteração.

Assim, situa-se como problemática o seguinte questionamento: é possível continuar-se admitindo o Protesto por Novo Júri em crimes praticados antes da Lei 11.689/2009, e julgados sob a égide deste novo diploma normativo? Apresenta-se, assim, como objetivo geral, a análise do cabimento do Protesto por Novo Júri após o advento da nova lei, e especificamente: indicar seu conceito e peculiaridades e, sob a perspectiva do Direito Intertemporal, estabelecer sua natureza jurídica e efeitos.

Desta feita, sem a pretensão de esgotar a polêmica deste assunto, através do método de pesquisa bibliográfica qualitativa, nos dedicaremos ao longo deste artigo a abordar sinteticamente as transformações operadas em nosso ordenamento jurídico pela Lei 11.689/2008, com enfoque específico para o Protesto por Novo Júri, apontando as disposições doutrinárias e entendimentos jurisprudenciais referentes ao mesmo, além de nossas próprias considerações sobre suas implicações no sistema judiciário brasileiro.


1 PROTESTO POR NOVO JÚRI: SISTEMÁTICA ANTERIOR

O recurso é uma garantia do indivíduo ao Duplo Grau de Jurisdição, com previsão implícita na Constituição Federal, com a finalidade precípua de assegurar que as decisões proferidas pelos órgãos de primeiro grau do Poder Judiciário não sejam únicas e imutáveis, mas que possam ser submetidas a um juízo de reavaliação por uma instância superior.

Convém ressaltar que o Brasil, ao ratificar a Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto 678/92)[1], garantiu  status constitucional ao Duplo Grau de Jurisdição, vez que existe previsão expressa da garantia individual de ter as decisões judiciais reavaliadas por instância superior, embora não seja uma garantia absoluta, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal.

É nesta esteira que a discussão sobre os recursos ganha relevância, haja vista as peculiaridades de cada instrumento recursal e as repercussões sociais que porventura possam acarretar para a sociedade.

Dentro deste tema, surge a figura do Protesto por Novo Júri[2], fazendo-se necessário analisar suas peculiaridades, por ser um recurso que sempre gerou controvérsias doutrinárias em virtude de suas características atípicas. Vale ressaltar que esse recurso foi extinto com o advento da Lei n°11.689/2008 que alterou a sistemática do Tribunal do Júri.

O PNJ era um recurso especial contra decisões tomadas pelo Tribunal do Júri, que terminavam por impor uma nova oportunidade de julgamento, anulando-se o anterior, sendo introduzido na legislação pátria, com o Código de Processo Criminal de 1832. Posteriormente, em 1941, as alterações introduzidas na legislação processual afetaram o PNJ, restringindo-o aos crimes sancionados com penas de morte ou galés perpétuas.

Esse recurso, cujo uso, ao invés de ser eliminado na era republicana quando se proscreveram aquelas penas extremas, foi ampliado, passando a ser utilizado para casos considerados de suma gravidade, isto é, de condenação pelo Tribunal do Júri à pena igual ou superior a 20 (vinte) anos.

Tratava-se, assim, de um recurso privativo da defesa que somente era admitido quando a sentença condenatória estabelecia pena de reclusão por tempo igual ou superior a vinte anos, não podendo ser utilizado mais de uma vez, consoante os termos do revogado art. 607 do Código de Processo Penal.

Estavam legitimados a oferecer o PNJ tanto o réu, diretamente, quando tomava ciência da sentença, como seu defensor, através de petição ou oralmente, após a leitura da sentença penal condenatória. Não havia necessidade de mencionarem-se razões, bastando aduzir o inconformismo do réu, requerendo novo julgamento, verificando-se, portanto, que os pressupostos de admissibilidade desse recurso eram meramente objetivos, não vislumbrando qualquer questão de mérito; recebido o pedido, o juiz limitava-se a verificar os pressupostos de admissibilidade, para então designar nova data para o julgamento, intimando-se as partes. Da mesma forma, não havia necessidade de fundamentar a decisão judicial, haja vista a anulação do primeiro julgamento, com designação de um segundo, já que tinha expressa previsão legal.

Saliente-se que no segundo julgamento havia impedimento à participação dos jurados que atuaram no primeiro, requisito lógico, já que se faz necessário assegurar a imparcialidade dos jurados, conforme o entendimento manifestado na Súmula 206 do Supremo Tribunal Federal.

O PNJ era, deste modo, um recurso sui generis, vez que era apreciado pelo mesmo órgão julgador que proferiu a sentença, caracterizando-se por ser um recurso de juízo a quo para a quo. Contrariava, portanto, o próprio conceito do termo recurso, já que este pressupõe a apreciação por uma instância jurisdicional superior ao juízo que proferiu a sentença recorrida, diferentemente do que ocorria com o recurso em epígrafe, que era apreciado pelo mesmo órgão julgador.

Com o advento da Lei n.º 11.689/2008, que acabou por provocar alterações significativas na legislação processual penal, em especial quanto ao procedimento do Tribunal do Júri, foi extinto o PNJ.

Um ponto interessante a ser destacado são os motivos que levaram à extinção desse recurso da sistemática jurídica pátria. Vejamos os fundamentos levantados por René Ariel Dotti, responsável pela elaboração do Anteprojeto:

Trata-se de uma imposição dos tempos modernos e da necessidade de se aplicar a pena justa ao caso concreto. Historicamente o protesto se impunha em face do sistema criminal do Império cominar as penas de morte e galés perpétuas, justificando a revisão obrigatória do julgamento. Nos tempos modernos a supressão já foi sustentada por Borges da Rosa e pelo mais fervoroso defensor do tribunal popular: o magistrado Magarinos Torres que, presidindo durante tantos anos o Conselho de Sentença, averbou este recurso de supérfluo e inconveniente. Quanto ao aspecto da pena justa, forçoso é reconhecer que embora condenados por homicídio com mais de uma qualificadora, muitos réus são beneficiados com a pena de reclusão inferior a 20 anos. Tal estratégia tem o claro objetivo de impedir o novo Júri que se realizará mediante o simples protesto, sem necessidade do processo chegar ao tribunal de apelação. Procura-se, com esse expediente, fugir dos ônus de um novo julgamento, com a fatigante reencenação da vida e da morte dos personagens do fato delituoso. (DOTTI, 1994). (grifo nosso)

 Cumpre destacar que a mídia teve importante papel na abolição desse recurso, posto que, nos últimos anos, deu destaque a casos de crimes bárbaros, cujo disposto na legislação penal, paralelamente às condições em que o crime foi praticado, levaria o réu a ser condenado a uma pena gravosa, surgindo, por outro lado, a oportunidade de ser julgado novamente e, talvez, reverter essa condenação.

 Destaca-se como caso emblemático que casou estrema revolta em toda população, com repercussão internacional, o julgamento de Vitalmiro Bastos de Moura, o ‘‘Bida’’, fazendeiro que foi acusado de ser um dos mandantes e mentor intelectual da morte da missionária Dorothy Stang, no ano de 2005. A acusação alegava que a missionária foi assassinada porque defendia a implantação de assentamentos para trabalhadores rurais em terras públicas que eram reivindicadas por fazendeiros e posseiros da região.

O que causou espanto e revolta foi que no primeiro julgamento o réu foi condenado a 30 anos de reclusão por tal acusação e, após o PNJ, em novo julgamento, foi surpreendentemente absolvido, ficando a pergunta: o que teria acontecido para uma mudança tão drástica? A sociedade clamava há muito pela extinção do PNJ, em virtude do aumento dos índices de violência em todo país e da revolta de ver os  acusados absolvidos em segundo julgamento.

A reforma foi pautada também no anseio de tornar o processo mais célere, o que justifica a extinção do PNJ, haja vista que a modernidade do sistema recursal não comportava mais um recurso que só obstaculizava o término da prestação jurisdicional, já que o primeiro julgamento era totalmente modificado, mesmo que não houvesse nenhuma irregularidade. Assim, os critérios de admissibilidade do recurso também geravam polêmica, por serem meramente objetivos, sem a necessidade de fundamentação.

Outro ponto defendido é que o PNJ seria um instrumento inconstitucional, não proporcionando direito ao Contraditório e, muito menos, à igualdade das partes, pois a defesa não pode ter, sozinha, direito a impetrar recurso exclusivo, não podendo haver a concessão unilateral de direitos ou faculdades.

Assim, mesmo com a extinção do PNJ, surgiu uma nova problemática, em virtude da intertemporalidade da lei, vez que casos em que o crime fora cometido antes da Lei 11.689/2008, mas cujo julgamento se deu ou aconteceria após o advento desta Lei, traziam a celeuma jurídica acerca do cabimento ou não do PNJ para aqueles acusados, caso preenchessem os requisitos dos revogados artigos acerca desta revogada previsão jurídica, o que trataremos no decorrer deste artigo.


2 DIREITO INTERTEMPORAL

Quando uma norma é posta em vigência, esta ingressa no mundo jurídico para que produza seus efeitos num determinado lapso de tempo e um determinado local, ensejando, portanto, a força normativa que o torna eficaz. Ressalta-se que em regra uma norma jurídica encontra-se vigente até o momento em que outra norma a revogue.

Todavia, as relações humanas que o ordenamento jurídico visa regular se encontram em constantes câmbios históricos e sociais e, deste modo, deve a ordem jurídica acompanhar as contínuas mudanças nos anseios da sociedade.

É nesta circunstância que surge a problemática do Direito Intertemporal, caracterizado pelo conflito de leis no tempo, ou seja, quando diante de uma sucessão de normas no tempo, uma determinada ação é praticada anteriormente da promulgação da nova lei, passando esta a disciplinar a conduta inicialmente realizada.

É, pois neste ponto que surge o conflito entre dois dogmas jurídicos: de um lado, encontra-se a segurança jurídica das relações constituídas sob o amparo da lei revogada, e de outro, a nova lei que externa as novas necessidades sociais, a progressão do regime diante da evolução da realidade social.

Logo, podemos destacar que é nesse ponto que se situa a problemática do manifesto trabalho, a qual consiste em esclarecer se para os delitos praticados anteriormente à promulgação da lei nº. 11.689/2008, que extinguiu o PNJ, e que somente foram ou serão julgados posteriormente a este advento, ainda existe a possibilidade de interposição do meio recursal supracitado, uma vez presentes todos os requisitos.

Para responder tal questionamento, faz-se necessário definir a natureza jurídica da norma revogada, ou seja, cabe indagar-se se a norma que estabelece o PNJ possui natureza puramente processual ou híbrida – penal e processual.

Faz-se mister,  no entanto, que preliminarmente ao exame da natureza jurídica do PNJ, façamos uma análise sobre as diferenças entre uma norma jurídica de natureza penal e uma norma jurídica de natureza processual, apontando seus respectivos efeitos.

As normas jurídicas de natureza penal (material) caracterizam-se pela relação que estabelecem, mesmo que indiretamente, com o jus puniendi, ou seja, aquelas que criam, ampliam, reduzem ou extinguem a pretensão punitiva estatal, alterando, desse modo, a situação de direito material frente ao jus puniendi do Estado, inclusive as que derivam do poder de disposição do conteúdo material dado ao particular, como por exemplo, o indulto, graça, prescrição, entre outros. Assim dispõe o ilustre professor Fernando Capez:

Desse modo, normas que criam tipos penais incriminadores têm natureza penal, pois estão gerando direito de punir para o Estado, em relação a essas novas hipóteses. Normas que disciplinam novas causas extintivas da punibilidade têm conteúdo penal, pois estão extinguindo o direito de punir. As que aumentam ou diminuem as penas trazem novas causas de aumento ou diminuição, estabelecem qualificadores, agravantes ou atenuantes, modificam a pretensão punitiva, reduzindo ou elevando a sanção penal. As que proíbem a concessão de anistia, graça ou indulto, ou aumentam o prazo prescricional, também possuem caráter penal, visto que fortalecem a pretensão punitiva do Estado, tornando mais difícil a sua extinção. Leis que criam mais causas interruptivas ou suspensivas da prescrição também dificultam o perecimento do jus puniendi, retardando o término do lapso prescricional, razão pela qual são penais. (CAPEZ, 2008, p. 48).

Diante de tais considerações sobre as normas penais, estabelece a Constituição da República de 1988, em seu art. 5º, inciso XL[3], a regra de que a lei penal não retroagirá, excetuando os casos que forem para beneficiar o acusado, do mesmo modo dispõe o art. 2º do Código Penal Brasileiro, in verbis: “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Parágrafo Único – A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.

Assim, conclui-se que, uma vez que a nova lei seja mais prejudicial ao réu, e que a lei revogada seja considerada a mais benéfica, continuará esta a disciplinar os delitos cometidos durante sua vigência, ocorrendo a sua ultra-atividade, respeitando, portanto, a época dos fatos.

Por outro lado, as normas jurídicas de natureza processual são aquelas que repercutem diretamente no processo, sem guardar qualquer relação com o direito de punir do Estado. São, portanto, as que incidem sobre o início, desenvolvimento e fim do processo, ou seja, as que dizem respeito a meras formas processuais, sem alterar o jus puniendi do Estado.

Neste mesmo ponto, leciona o professor Fernando Capez:

Quanto à lei que proíbe a liberdade provisória, aumenta o prazo da prisão temporária, obriga o réu a se recolher à prisão preventiva, sua natureza é exclusivamente, processual, já que a restrição do processo, sem aumento ou intensificação do direito de punir. Para o Estado, enquanto titular do jus puniendi, tanto faz se o agente responde solto ou preso o processo. Seu direito de punir em nada será afetado com essa situação. (CAPEZ, 2008, p. 49)

Em corolário, as normas de natureza processual não se submetem ao Princípio da Retroatividade disposto na Carta Magna, mas sim, segundo os termos do art. 2º[4] do Código de Processo Penal, têm incidência imediata em todos os processos, independentemente de serem mais benéficas ou não para os acusados, respeitando, por outro lado, os atos processuais já concluídos, ao que a doutrina denomina de Princípio do tempus regit actum, ou seja, as coisas jurídicas devem reger-se pela norma da época em que ocorrem – o tempo rege o ato.

Desse modo, a norma processual regula atos processuais futuros, que ainda estão por cumprir-se ou realizar-se, independente de o processo que regula, ter sido iniciado na vigência de outra lei. Assim manifesta-se o douto doutrinador Tourinho Filho (2003, p. 112), afirmando que: “enfim, uma coisa é anterioridade da lei ao fato, e que diz respeito ao Direito Penal, e, outra, é a anterioridade da lei ao ato, e que concerne ao Processo Penal”.

Por outro lado, insta ressaltar que surgem no ordenamento jurídico normas cuja natureza jurídica podemos denominar de mista, vez que abarcam tanto disposições de natureza penal, quanto de natureza processual. Para estes tipos de normas encontra-se pacificado o entendimento, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, de que deve prevalecer a orientação penal (material) para fins de retroatividade e ultra-atividade da Lei em benefício do réu, uma vez que encontra disposição na própria Lei Maior do Estado, enquanto que o princípio tempus regit actum, encontra-se disciplinado em legislação ordinária, sendo, portanto inferior aquela. Podemos citar o exemplo dado por Fernando Capez:

No caso do réu citado por edital não comparecer, nem constituir advogado, ficam suspensos o processo e o prazo prescricional até que ele seja localizado para receber a citação pessoal. Nesse caso pode-se falar, verdadeiramente, em norma híbrida, pois uma parte tem conteúdo processual (suspensão do processo) e a outra, penal (suspensão do prazo prescricional). [...] Como a parte penal (suspensão da prescrição) é menos benéfica, a norma não retroage por inteiro. (CAPEZ, 2008, p.51).

A partir da análise sobre a discussão acerca da natureza jurídica das normas e seus respectivos efeitos, pode-se avançar nos estudos relativos ao exame da natureza jurídica da norma que dispõe sobre o PNJ.


3 NATUREZA JURÍDICA DO PROTESTO POR NOVO JÚRI

A grande celeuma doutrinária suscitada nesta produção acadêmica reside no questionamento sobre o cabimento da interposição do recurso do PNJ aos delitos praticados antes da promulgação da nova lei, mas que só foram ou serão julgados posteriormente a mesma.

Logo, a solução encontra-se no estudo do Direito Intertemporal, através da definição da natureza jurídica da norma que estabelece o PNJ, para que assim se possa auferir se haverá ou não a ultra-atividade da lei revogada.

Ademais, insta esclarecer que não há na doutrina entendimento pacífico quanto à natureza jurídica desta norma, surgindo duas correntes: a primeira, que entende ter a norma caráter híbrido, opinião defendida pelos doutrinadores Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha, dentre outros, e a segunda que compreende pelo caráter exclusivamente processual da norma, posição esta, defendida no presente trabalho.

3.1 Primeira corrente: natureza híbrida.

Não há como se negar o caráter processual presente em qualquer norma que estabeleça um recurso, pois este sempre será um meio processual, como dispõe Câmara Leal (1943 apud Fernando Capez, 2009, p. 673): “é o meio processual que a lei faculta à parte ou impõe ao julgador para provocar a reforma, ou confirmação de uma decisão judicial”. Assim, não deixa de ter a norma que estabelece o PNJ natureza processual.

No entanto, entendem alguns doutrinadores que esta norma possui ainda natureza híbrida, por contemplar um direito subjetivo do réu, qual seja o direito estabelecido na própria Constituição da República de 1988 ao duplo grau de jurisdição disposto em seu art. 5º, inciso LV,[5]. Isto porque o Princípio do Duplo Grau de Jurisdição tem caráter de norma materialmente constitucional, sendo estabelecido, conforme já demonstrado, também na Convenção Americana de Direitos Humanos.

Por tais circunstâncias, supostamente não poderia a norma em questão ser considerada como norma puramente processual, mas sim como norma processual-penal e, por possuir tal natureza, deveria prevalecer o caráter penal da norma relativo aos efeitos da retroatividade e ultra-atividade.

Em corolário, diante de tal entendimento, o PNJ possuiria o caráter da ultra-atividade da norma penal, consubstanciado no fato da lei revogada ter eficácia mesmo depois de cessada a sua vigência, uma vez que se caracteriza por ser mais benéfica do que a posterior.

Assim, em casos como no do casal Nardoni, que recentemente foram condenados a penas maiores que 20 (vinte) anos[6], supostamente possuiriam estes direito de interposição do recurso de PNJ, uma vez que o delito foi cometido em 29 de março de 2008, portanto, anteriormente à promulgação da nova lei, em 9 de agosto de 2008, baseando-se este entendimento no dito caráter híbrido desta norma.

3.2 Segunda corrente: natureza unicamente processual.

Em primeira análise, a corrente que considera a natureza da norma que extinguiu o PNJ como híbrida - processual e material, parece acertada e condizente com a ideologia de nosso ordenamento jurídico. No entanto, analisando-se tais preceitos profunda e acuradamente, percebe-se que não há, de fato, fundamentações que justifiquem que a norma extintora do referido recurso, possua qualquer indício de natureza material, caracterizando-se em norma híbrida.

Assim, a solução de nossa problemática perpassa, primeiramente, o estudo da natureza dos recursos em geral, que, como se verá, é única e exclusivamente processual.

Como já apostado, o que difere as normas materiais das processuais é a incidência, ou não, do resultado da norma na pretensão punitiva do Estado, alterando a situação material do acusado, bem como seu referencial de atuação, isto é, se a lei se refere à época do fato delitivo, ou à época dos atos processuais.

Em resumo, a lei que possui natureza material ou híbrida, é a que influencia direta ou indiretamente na pretensão punitiva do Estado, casos em que necessariamente aplicar-se-á a lei mais benéfica, seja através do fenômeno da retroatividade ou da ultra-atividade da lei, em relação à época dos fatos. Sendo norma de natureza puramente processual, influenciará no início, desenvolvimento ou extinção do processo, sem jamais tangenciar o poder punitivo do Estado ou o âmbito material da lide, aplicando-se à norma de imediato, doutro modo, respeitando os atos processuais validamente realizados.

Ora, não se pode atribuir ao recurso o poder de retirar do Estado sua pretensão punitiva, pois não possui o condão de modificar a situação material do indivíduo perante o poder punitivo Estatal, como ocorre nos casos de graça, induto ou anistia, por exemplo. Pelo contrário, tão somente diz respeito ao conteúdo formal do processo, porquanto à decisão do Conselho de Sentença; busca-se apenas a realização de novo julgamento - ato processual, não havendo no PNJ ou sendo necessária, qualquer fundamentação fática ou jurídica que retire do Estado seu poder punitivo, sendo, assim, norma de natureza exclusivamente processual.

Isto porque a supressão da possibilidade jurídica de um recurso, neste caso, o PNJ, não é apta a interferir no poder ou pretensão punitiva do Estado, retirando-lhe ou conferindo-lhe o direito de sancionar ou não o sujeito, constituindo-se o recurso, deste modo, em mera utilização do direito de ação decorrente do ato processual decorrente da figura da sentença.

Neste sentido, Carlos Frederico Coelho:

Há dispositivos evidentemente materiais como, por exemplo, as disposições sobre a teoria do crime e a teoria da pena, a extinção da punibilidade, as normas incriminadoras etc., assim como existem normas nitidamente processuais, como aquelas que regulam os ritos ou procedimentos, os atos e prazos processuais, os recursos, as nulidades processuais, a sentença e a coisa julgada, a prisão e a liberdade provisória, a competência etc. (COELHO apud Andrey Borges de Mendonça, 2010). (grifo nosso)

Note-se ainda, que reiteradamente nossos Tribunais têm decidido pela natureza eminentemente processual dos recursos, devendo-se este fato ser levado em consideração para a definição da natureza jurídica do PNJ:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. REVISÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO CONSUMADO E TENTADO. RECONHECIMENTO DA CONTINUIDADE DELITIVA. JULGAMENTO ANTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI N.º 11.689/2008. PROTESTO POR NOVO JÚRI. NOVO JULGAMENTO.

[...] 2. A recorribilidade se submete à legislação vigente na data em que a decisão foi publicada, consoante o art. 2.º do Código de Processo Penal. Incidência do princípio tempus regit actum.

[...] Cumpre ressaltar que a norma exclusivamente processual, como é o caso do dispositivo em questão, se submete ao princípio tempus regit actum, ou seja, a lei processual penal deve ser aplicada a partir de sua vigência, conforme preconizado no art. 2.º do Código de Processo Penal, in verbis: "A lei processual aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior." Assim, a norma que exclui recurso tem vigência de imediato, sem prejuízo dos atos já praticados. (STF. 5ª Turma. Recurso Especial 1094482/RJ. Relatora Ministra Laurita Vaz. Julgado em 01 Setembro 2009. Publicado em: DJe 03 Novembro 2009).  (grifo nosso)

Noutro norte, temos que, aparentemente, considerando-se o entendimento de que os recursos possuem natureza híbrida, aplicar-se a nova norma (o não cabimento do PNJ), trata-se de retroatividade de lei menos benéfica para o réu, pois retiraria do mesmo o direito a interposição deste recurso. No entanto, o que verdadeiramente ocorre é a aplicação imediata da lei, o Princípio tempus regit actum.

Melhor explicando, não há retroatividade da lei menos benéfica, pois, como disposto no art. 2º do CPC, continuam sendo respeitados todos os atos processuais anteriores ao surgimento da nova lei, conforme o entendimento de Tornaghi e Fernando Capez, respectivamente:

Com argúcia observa Tornaghi: Note-se bem, o que a Constituição exige não é a aplicação da lei anterior ao delito. A norma de Direito Processual Penal tem que ver com os atos processuais, não com o ato delitivo. Nenhum ato do processo poderá ser praticado a não ser na forma da lei que lhe seja anterior, mas nada impede que ela seja posterior à infração penal. Não há, neste caso, retroatividade da lei processual, mas aplicação imediata. (Tornaghi apud Tourinho Filho, 2003, p. 111). (grifo nosso)

Essa corrente doutrinária encontra-se detalhadamente representada na lição de Guilherme de Souza Nucci, a seguir transcrita:

 “O protesto por novo júri não passava de uma segunda chance, concedida ao acusado, porque se entendia que a pena fora fixada em patamar elevado (...). Não se pode considerar o antigo direito ao protesto por novo júri como norma processual penal material somente pelo fato de que a sua interposição condicionava-se a um determinado patamar de pena. Essa situação não tem o condão de transformar a norma processual pura em norma processual material (...). O protesto por novo júri não permitia a soltura do acusado, nem gerava a extinção da sua punibilidade. Em suma, deferido ou não, nenhuma conseqüência no campo penal desencadeava. A sua utilização não afetava o direito de punir do Estado. Aliás, cabia ao Tribunal do Júri, por intermédio de outro Conselho de Sentença, julgar novamente o caso. Nada mais. (CAPEZ, 2008, p. 970). (grifo nosso)

Seguindo o mesmo raciocínio supracitado, Tourinho Filho (2003, p. 113): “Assim sendo, resumindo tudo quanto dissemos: se (sic) se tratar de norma processual penal propriamente dita, isto é, que verse exclusivamente sobre matéria processual, que não obstaculize a ampla defesa a que se refere a Carta Magna, terá aplicação imediata, pouco importando se mais severa ou não, aplicando-se, como é óbvio, também aos processos em curso”.

Nessa esteira, se no caso concreto a sentença fosse prolatada em até 1 (um) dia antes da promulgação da Lei 11.689/2008, caberia PNJ, respeitando-se o direito adquirido ao recurso com o advento da sentença válida[7], enquanto ato processual perfeito. Por outro lado, dando-se a prolação da sentença no dia da promulgação da Lei ou depois, não caberia PNJ, pois o ato processual que gera o direito ao recurso - a sentença - reger-se-á pela nova lei processual, que aboliu de nosso ordenamento jurídico o recurso de que aqui se trata.

Por fim, vale-se a primeira corrente (que defende o caráter híbrido da norma que extinguiu o PNJ, e, portanto, a possibilidade jurídica do referido recurso para todos os casos em que o fato delitivo tenha ocorrido antes da lei extintiva), do argumento de que impossibilitar a utilização do recurso implicaria em desrespeito ao Princípio do Duplo Grau de Jurisdição e à Ampla Defesa.

Note-se que o PNJ, como já devidamente exposto, era espécie de recurso anômalo, pois era dirigido ao Juízo a quo, o mesmo que fora responsável pela prolação da sentença recorrida. O duplo grau de jurisdição, por sua vez, implica necessariamente que o recurso seja feito a uma instância superior, o que obviamente não ocorre neste caso. Assim, não há que se falar em desrespeito ao Princípio do Duplo Grau de Jurisdição ou de normas constitucionais, vez que o PNJ é dirigido ao próprio Juízo a quo.

Ademais, o não cabimento do PNJ não retira do réu a possibilidade de valer-se do Duplo Grau de Jurisdição, vez que subsistem outros recursos disponíveis, tais como a apelação, que proporciona a consecução da garantia constitucional, não constituindo, assim, cerceamento de direito subjetivo do acusado, posto que apenas por questões de política processual, foi tão somente modificado o rol de recursos disponíveis para o réu, em nada afetando o poder punitivo do Estado nem o direito fundamental do indivíduo. Neste sentido, Andrey Borges de Mendonça: 

Em relação à suposta garantia do duplo grau de jurisdição, é necessário relembrar que o protesto por novo júri não é dirigido ao Tribunal. (...). Assim sendo, não há que se falar em garantia do duplo grau de jurisdição. Ademais, a extinção do protesto por novo júri não afeta em nada eventual duplo grau de jurisdição referente às demais decisões do júri, eis que mantida a possibilidade de apelação das decisões, nas hipóteses descritas no art. 593, inc. III, do CPP. (MENDONÇA, 2010).

Em que pese a Ampla Defesa, temos que também não é desrespeitado, pois, o próprio Princípio em tela encontra limites no próprio ordenamento jurídico nacional. Uma vez que o PNJ foi abolido de nosso sistema, não está incluído no direito de ação do acusado, pois, como dispõe o art. 2º do CPP, a lei processual tem eficácia imediata. Assim, não ocorre cerceamento de defesa, pois, como já destacado, poderá servir-se de todos os demais recursos admitidos pela lei processual vigente, respeitando-se, desta feita, seu direito à Ampla Defesa. Neste raciocínio, decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo:

HABEAS CORPUS. PROTESTO POR NOVO JÚRI. Alegação de que ao tempo do crime ainda vigia dispositivo legal permitindo o recurso. (...) Inadmissibilidade do pleito. Inteligência do artigo 2º, do CPP, que prevê a imediata aplicação da lei processual penal. Ampla defesa garantida, inclusive porque previsto recurso de apelação na lei vigente. Constrangimento ilegal não evidenciado. Ordem denegada. (TJ-SP. Habeas Corpus nº 990.09.257545-7. 5ª Câmara de Direito Criminal. Relator: Desembargador Pinheiro Franco. 17 Dezembro 2009). (grifo nosso)

Observa-se, neste ínterim, que embora ainda seja o tema controverso, a própria jurisprudência vem se dirigindo ao que aqui afirmamos:

O protesto por novo júri foi abolido na lei processual penal pátria. O paciente foi julgado quando o protesto por novo júri não mais existia como recurso. A lei processual penal obedece ao princípio de sua aplicação imediata aos atos processuais futuros. A admissibilidade do recurso é regida pela lei processual que está em vigor no momento da sentença Na hipótese, quando o paciente foi julgado, estava em vigor a Lei n° 11.689/08, a qual aboliu o recurso de protesto por novo júri e, como a lei processual penal não retroage e nem possui ultra-atividade, não há como acolher o pedido para receber o recurso. (TJ-SP. Habeas Corpus 990081492156. 2ª Câmara de Direito Criminal da Comarca de Taubaté. Relatora: Almeida Braga. Julgado em: 26 Janeiro 2009. Publicado em: 10 Março 2009).

Recentemente, a questão do não cabimento do PNJ foi novamente assentada em caso de grande repercussão, já mencionado neste trabalho, o assassinato da menina Isabella pelo casal Nardoni, condenado a mais de 20 anos por homicídio doloso triplamente qualificado, decidindo o Juízo pelo não cabimento do PNJ, diante da natureza puramente processual da norma, conforme o exposto:

CONCLUSÃO

Em 06 de abril de 2.010, faço estes autos conclusos para o MM. Juiz de Direito Auxiliar,DR. MAURÍCIO FOSSEN, em exercício neste 2º Tribunal do Júri da Capital - Foro Regional I Santana. Eu,__, Escr., subscrevi.  

Processo nº: 274/08

VISTOS

1. Recebo o recurso interposto pelos réus às fls. e, e por seus II. Defensores às fls., apenas como recurso de Apelação, por ter sido apresentado tempestivamente, ficando afastado, no entanto, seu acolhimento como pretensão de Protesto por Novo Júri.

Porquanto se reconheça que se trata de matéria ainda não pacificada pela jurisprudência pátria, (...) filia-se este julgamento à corrente doutrinária que entende ser incabível o Protesto por Novo Júri na hipótese dos autos.

Aqueles que entendem ser ainda cabível o Protesto por Novo Júri em relação àqueles delitos que teriam sido praticados antes da entrada em vigor da Lei nº 11.689/2008, baseiam-se na alegação de que o dispositivo legal que previa a existência daquele recurso (art. 607 do CPP) possuía natureza jurídica de cunho misto, ou seja, tanto processual, quanto penal.

Contudo, ouso discordar desse posicionamento por filiar-me àquela corrente contrária que entende tratar-se de norma jurídica com natureza exclusivamente processual.

Isto porque o referido dispositivo legal revogado que previa a existência daquele recurso não implicava, de forma direta, na soltura do réu quando de sua interposição ou mesmo na extinção de sua punibilidade, posto que, caso viesse a ser deferido, tão somente submeteria o réu a novo julgamento pelo Tribunal de Júri.

[...] Com a reforma processual introduzida pela Lei nº 11.689/2008, foi suprimida aquela disposição legal de natureza exclusivamente processual (protesto por novo júri), mantendo-se apenas o recurso de apelação e, com isso, respeitado o direito constitucional dos acusados ao exercício do duplo grau de jurisdição, inerente ao direito à ampla defesa.

Assim, se aquela norma de cunho exclusivamente processual deixou de existir em nosso ordenamento jurídico, essa alteração é aplicável desde logo para todos os casos que já estejam em andamento, ainda que o fato típico tenha ocorrido anteriormente à entrada em vigor do novel Diploma Legal, a teor do disposto no art. 2º do Código de Processo Penal, se naquele momento (entrada em vigor da nova lei) o direito subjetivo (interposição do recurso) ainda não havia sido exercido.

[...] Apesar de ainda incipiente nossa jurisprudência sobre o tema, pelo fato da reforma processual que aboliu o protesto por novo júri ainda ser bastante recente, já é possível identificar uma clara tendência perante o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no sentido do posicionamento aqui adotado (...).

[...] Portanto, como se vê, quando surgiu para os réus o direito subjetivo à interposição do recurso, em decorrência da prolação da sentença condenatório pelo Tribunal do Júri em 27.03.2010, já havia entrado em vigor, de há muito, a Lei nº 11.689/2008, que havia revogado o art. 607 do Código de Processo Penal, motivo pelo qual não fazem mais jus à utilização daquela extinta via recursal, diante de sua natureza exclusivamente processual, a teor do disposto no art. 2º do Código de Processo Penal.

[...] São Paulo, 06 de abril de 2.010.

MAURÍCIO FOSSEN

Juiz de Direito (grifo nosso)

Diante destas considerações, é possível concluir que, mesmo preenchendo os requisitos necessários para interposição do PNJ, não caberá o recurso nos casos em que, a despeito de dar-se a materialidade do fato delitivo antes da Lei 11.689/2008, a prolação da sentença - ato processual que faria surgir o direito ao PNJ, se deu após sua extinção, em virtude do caráter puramente processual da norma que aboliu o referido recurso de nosso ordenamento jurídico, e, portanto, de sua imediata aplicação, esperando-se que assim se pacifique a doutrina e jurisprudência, por ser o entendimento condizente com as normas constantes de nosso ordenamento jurídico.


CONCLUSÃO

Com o advento da Constituição Federal de 1988, passou-se a discutir a celeridade processual, em paralelo aos muitos direitos inalienáveis e indisponíveis do indivíduo tratados no estudo do Processo Penal, buscando-se, assim, que o ordenamento jurídico acompanhe as mudanças ocorridas na sociedade, que justificam, ou não, a sua perenização em nossa sistemática jurídica.

Por este motivo é que foi editada a Lei 11.689/2008 que, dentre outras alterações, extinguiu o Protesto por Novo Júri, diante de sua natureza polêmica e incompatibilidade com a nova realidade social e jurídica contemporânea, vez que este recurso foi criado para reavaliar casos com penalidades muito gravosas, tais como a pena de morte ou perpétua, situações que já não são mais abarcadas pelo Sistema Judiciário Brasileiro, não se justificando a sua manutenção como meio recursal em nosso ordenamento.

 Embora não restem dúvidas quanto à necessidade e propriedade da extinção do Protesto por Novo Júri, diante de todo o já explicitado, tal modificação trouxe também novas celeumas jurídicas situadas no campo do Direito Intertemporal, em razão daqueles processos que ainda estão em andamento ou que se iniciaram após o advento desta lei, mas cuja materialidade do fato criminoso se deu antes da mesma, surgindo várias correntes acerca da aplicabilidade ou não do recurso para tais casos.

Existe respeitável doutrina, composta por eminentes doutrinadores, que admitem o cabimento do Protesto por Novo Júri nestas situações, em virtude da sua suposta natureza jurídica híbrida – penal e processual – e conseqüente ultra-atividade da norma, por ser mais benéfica ao réu que a nova lei, pois esta norma decorreria do direito subjetivo do acusado ao duplo Grau de Jurisdição e Ampla Defesa.

Data venia, nos reservamos do direito de discordar dos doutos juristas, por entendermos que não se trata de norma híbrida, mas puramente processual, não havendo que se falar em ultra-atividade da lei, mas somente de aplicação imediata, sem que haja, de tal modo, ofensa ao Duplo Grau de Jurisdição ou Ampla Defesa, posto que o Protesto por Novo Júri era dirigido ao próprio juízo a quo, e não para uma instância superior, e que sua extinção de nosso ordenamento não retirou do acusado o direito aos demais recursos ainda vigentes em lei.

Insta esclarecer que esta norma possui caráter exclusivamente processual tendo-se em vista que não afeta, nem mesmo indiretamente, o poder punitivo do Estado, tratando-se aqui tão somente de realização de novo julgamento, o que faz cair por terra o entendimento de que seria norma mista, pois, se o fosse deveria ser apta a modificar a situação material do acusado perante o processo e a pretensão punitiva do Estado, o que obviamente não ocorre neste caso.

 Ademais, a não aplicação do Protesto por Novo Júri a situações jurídicas de que aqui se trata não afeta de forma alguma o direito subjetivo do indivíduo à Ampla Defesa e ao Duplo Grau de Jurisdição, porque não retira dele o direito de utilizar-se de outros instrumentos recursais, tais como a apelação, conforme vem ocorrendo em situações hodiernas.

Cumpre ressaltar que este já é um entendimento que vem se assentando na jurisprudência dos nossos Tribunais, conforme se pode observar no recente julgamento do casal Nardoni, em que foi denegado o pedido de Protesto por Novo Júri, recebendo-se o recurso apenas como Apelação, em uma brilhante decisão do Douto Magistrado responsável.

Resta clara, portanto, a natureza processual da norma em estudo, e a patente plausibilidade de seu não cabimento nos crimes cometidos antes da promulgação da Lei 11.689/2008, mas que foram processados e/ou julgados somente após o advento da mesma, não se reconhecendo a ultra-atividade da lei antiga, posto que tal princípios não se aplica a norma de caráter processual, pois sua incidência e aplicação devem ser imediatas, atingindo todos os processos futuros e em andamento.


BILIOGRAFIA

BRASIL. Código de Processo Penal: Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de Outubro De 1941. Organização do texto: Anne Joyce Angher. Vade Mecum Acadêmico de Direito. 7ª Ed. São Paulo: Rideel, 2009.

_____________ Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto: Anne Joyce Angher. Vade Mecum Acadêmico de Direito. 7ª Ed. São Paulo: Rideel, 2009.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal parte geral. Vol. 1. 12º ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.

_____________ Código de Processo Penal Comentado. 8ª Ed. São Paulo: Editora RT, 2008.

_____________ Curso de Processo Penal. 16º ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

COELHO, Carlos Frederico. Ob. cit, V. 1, p. 99. in MENDONÇA, Andrey Borges de. O Protesto por Novo Júri e o Casal Nardoni: um estudo sobre a aplicação da lei processual penal no tempo. Março de 2010. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/14604 Acesso em: 22 Mar 2010.

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http://www.justica.sp.gov.br/downloads/biblioteca/Tratado%20Internacional%20-%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20Americana%20de%20Direitos%20Humanos%20-%20Pacto%20de%20S%C3%A3o%20Jos%C3%A9%20da%20Costa%20Rica.htm Acesso em: 05 de março de 2010.

DOTTI, René Ariel. Anteprojeto do Júri. Revista dos Tribunais, v. 702, abr. 1994, p. 281. in MENDONÇA, Andrey Borges de. O Protesto por Novo Júri e o Casal Nardoni: um estudo sobre a aplicação da lei processual penal no tempo. Março de 2010. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/14604 Acesso em: 22 Mar 2010.

MENDONÇA, Andrey Borges de. O Protesto por Novo Júri e o Casal Nardoni: um estudo sobre a aplicação da lei processual penal no tempo. Março de 2010. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/14604 Acesso em: 22 Mar 2010.

STF. 5ª Turma. Recurso Especial 1094482 - RJ. Ementa: RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. REVISÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO CONSUMADO E TENTADO. RECONHECIMENTO DA CONTINUIDADE DELITIVA. JULGAMENTO ANTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI N.º 11.689/2008. PROTESTO POR NOVO JÚRI. NOVO JULGAMENTO. Relator. Min. Laurita Vaz. Acórdão publicado no DJ 03.11.2009 PP.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 3ª Ed. Rev. Ampl. e Atual. Salvador: Editora Jus Podivm, 2009.

TJ-SP. 2ª Câmara de Direito Criminal da Comarca de Taubaté. Habeas Corpus 990081492156. Relator Min. Almeida Braga. Acórdão publicado no DJ 10-03-09 PP.

TJ-SP. 5ª Câmara de Direito Criminal. Habeas Corpus nº 990.09.257545-7. Ementa: HABEAS CORPUS. PROTESTO POR NOVO JÚRI. Relator: Des. Pinheiro Franco. Acórdão publicado no DJ 17.12.2009.

TORNAGHI. Processo Penal. V. 1. p. 42. in TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 1. 25ª Ed. Ver. Atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2003.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 1. 25ª Ed. Ver. Atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2003.

ÚLTIMA INSTÂNCIA. Leia a íntegra da decisão que negou novo júri para o casal Nardoni. Disponível em: http://ultimainstancia.uol.com.br/noticia/LEIA+A+INTEGRA+DA+DECISAO+QUE+NEGOU+NOVO+JURI+PARA+O+CASAL+NARDONI_68724.shtml Acesso em: 07 Abr 2010.


Notas

[1] Artigo 8º - Garantias judiciais: (...) h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.

[2] Por questões de praticidade, o Protesto por Novo Júri passará a ser identificado neste texto através da sigla PNJ.

[3] Art. 5º, inc. XL, CR – A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

[4] Art. 2º - A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos, realizados sob a vigilância da lei anterior.

[5] Art. 5º, inc. LV da CR – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

[6] Alexandre Nardoni foi condenado à pena de 31 (trinta e um) anos, 01 (um) mês e 10 (dez) dias de reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime prisional fechado, e à pena de 08 (oito) meses de detenção, pela prática do crime de fraude processual qualificada, a ser cumprida inicialmente em regime semi-aberto. Anna Carolina foi condenada à pena de 26 (vinte e seis) anos e 08 (oito) meses de reclusão, a ser cumprida em regime fechado, e à pena de 08 (oito) meses de detenção, pela prática do crime de fraude processual qualificada, a ser cumprida inicialmente em regime semi-aberto.

[7] STF. 5ª T. Recurso Especial 1094482/RJ. Rel: Ministra Laurita Vaz. Julgado em 01 Setembro 2009. Publicado em DJe 03 Novembro 2009. [...] Vale observar que, para a aferição da possibilidade de utilização de recurso suprimido, a lei que deve ser aplicada é aquela vigente quando surge para a parte o direito subjetivo ao recurso, ou seja, a partir da publicação da decisão a ser impugnada. (grifo nosso). Nesta mesma linha, Nestor Távora e Rosmar Antonni (2009, p. 786): “A garantia da irretroatividade da lei penal mais gravosa não pode ser ampliada ao ponto de inviabilizar as reformas processuais penais. O direito ao recurso só surge para o acusado no momento em que este se torna sucumbente, com a data de definição do recurso interponível e seus consectários legais é, portanto, a sentença (não a prática do crime)”.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Júlia de Arruda; CABRAL, Lina Marie et al. Protesto por novo júri: análise de seu cabimento após o advento da Lei nº 11.689/2008. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3250, 25 maio 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21860. Acesso em: 25 abr. 2024.