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Faltas não relacionadas ao trabalho: violação à privacidade e intimidade do empregado

Faltas não relacionadas ao trabalho: violação à privacidade e intimidade do empregado

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O poder disciplinar do empregador é limitado pela proteção à intimidade e privacidade do empregado, o que impõe o reconhecimento de que diversas faltas graves tipificadas pela legislação trabalhistas não foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988.

1- Introdução

A interpretação ampla das hipóteses de justa causa, descritas na legislação trabalhista, autoriza a resolução contratual por culpa do empregado, mesmo quando o fato ocorrer fora do local do trabalho e que seja, inclusive, estranho à relação de emprego. Cumpre, todavia, analisar se o poder disciplinar do empregador pode ser exercido em detrimento do direito à privacidade e à intimidade do empregado, pois o empregado não deixa de ser cidadão ao firmar um contrato de trabalho[1].


2- Direito à Intimidade e à Privacidade:

Alice Monteiro de Barros analisa que:

 “tanto o direito à intimidade como o direito à inviolabilidade da vida privada tem características comuns, entre elas sua oponibilidade erga omnes. Assim, embora o Direito do Trabalho não faça menção aos direitos à intimidade e a privacidade, por constituírem espécie ‘direitos da personalidade’ consagrados na Constituição, são oponíveis contra o empregador, devendo ser respeitados, independentemente de encontrar-se o titular desses direitos dentro do estabelecimento empresarial. É que a inserção do obreiro no processo produtivo não lhe retira os direitos da personalidade, cujo exercício pressupõe liberdades civis.” (BARROS, Proteção à intimidade do empregado 2009, 32-33)

Intimidade, nas palavras de Félix Ruiz Alonso, é:

“o âmbito interior da pessoa mais profundo, mais recôndito, secreto ou escondido dentro dela. É, assim, algo inacessível invisível, que só ela conhece, onde ela só elabora ou constrói livremente seu próprio agir e onde se processa sua vida interior. Na intimidade, a pessoa constrói-se e descobre-se a si própria.” (RUIZ 2005, 17).

Já a privacidade - ainda conforme o referido autor - são os atos humanos, visíveis, perceptíveis, externos, decorrentes da intimidade da pessoa (RUIZ 2005, 17-18). Assim, a intimidade pode ser considerada, como enunciado por Amaury Haruo Mori, como “o núcleo duro da privacidade, enquanto a vida privada uma esfera externa, mais abrangente que, entretanto, não se confunde com a esfera pública”(MORI 2011, 38).

Nas palavras de Dirley da Cunha Júnior, a vida privada não se confunde com a intimidade, pois não diz respeito aos segredos íntimos da pessoa, sendo, portanto, menos secreta. A privacidade se relacionada à sua vida em família, no ambiente de trabalho, mas que também exige certa reserva (CUNHA JÚNIOR 2008, 662).

Pode-se, assim, afirmar, com base nas lições de Gilmar Ferreira Mendes, que “o direito à privacidade teria por objeto os comportamentos e acontecimentos atinentes aos relacionamentos pessoais em geral, às relações comerciais e profissionais que o indivíduo não deseja que se espalhem ao conhecimento público” (MENDES 2008, 377).

O direito à privacidade e à intimidade tem proteção supraconstitucional, no art. 12, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, através do qual se visa impedir intromissões arbitrárias na vida privada das pessoas.

No direito brasileiro, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso X, prevê como direito fundamental a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

O direito, quando reconhece a privacidade como um bem jurídico a ser tutelado, tem por finalidade, portanto, garantir à pessoa um espaço próprio, onde não sofra interferências de terceiros, de qualquer natureza, como condição para uma vida digna.

Pedro Pais de Vasconcelos, citado por Amaury Haruo Mori, afirma que:

“a dignidade da pessoa exige que lhe seja reconhecido um espaço de privacidade em que possam estar à vontade, ao abrigo da curiosidade dos outros, sejam eles simplesmente vizinhos, ou sejam as autoridades públicas ou os meios de comunicação social, ou sejam quaisquer pessoas.” (MORI 2011, 30)

Quanto a esta necessidade de estar à vontade, que é inerente à natureza humana, inclusive como medida de saúde mental, afirma Gilmar Ferreira Mendes que:

“Estar submetido ao constante crivo da observação alheia dificulta o enfrentamento de novos desafios. A exposição diuturna dos nossos erros, dificuldades e fracassos à crítica e à curiosidade permanentes de terceiros, e ao ridículo público mesmo inibiria toda tentativa de auto-preservação. Sem a tranquilidade emocional que se pode auferir da privacidade, não há muito menos como o indivíduo se auto-avaliar, medir perspectivas e traçar metas.” (MENDES 2008, 378)

O direito ao não trabalho, ou nas palavras de Jorge Luiz Souto Maior, à desconexão ao trabalho, tem por finalidade a preservação da vida privada e da saúde do empregado, ou seja, possibilitar que ele se desconecte completamente do trabalho.

Dirley da Cunha Júnior refere-se à Conferência Nórdica sobre o Direito à Intimidade, na qual foram alinhados cinco ofensas ao direito à intimidade. Apesar de o texto ter sido elaborado em 1967, as suas conclusões são atuais e relevantes, principalmente quando aplicadas ao direito do trabalho. São as referidas ofensas:

“(1) penetração no retraimento da solidão da pessoa, incluindo-se no caso o espreitá-la pelo seguimento, espionagem ou pelo chamamento constante ao telefone; (2) gravação de conversas e tomadas de cenas telefônicas e cinematográficas das pessoas em que seu círculo privado ou em circunstâncias íntimas e penosas à sua pessoa; (3) audição de conversas privadas por interferências mecânicas de telefone, microfilmes dissimulados deliberadamente; (4) exploração de nome, identidade ou semelhança da pessoa sem seu consentimento, utilização de falsas declarações, revelação de fatos íntimos ou crítica da vida das pessoas; (5) utilização em publicações, ou em outros meios de informação, de fotografia ou gravações obtidas sub-repticiamente nas formas precedentes.” (CUNHA JÚNIOR 2008, 661) (grifos nossos).

A intimidade e a privacidade são, assim, atributos da personalidade humana, como expressão da sua dignidade, cujo principal fundamento esta na própria liberdade individual da pessoa. Importante salientar que, não obstante a sua violação possa acarretar indenização pecuniária, ela não se relaciona com a condição social e patrimonial do indivíduo; todos têm direito, igualmente, à proteção de sua intimidade e privacidade.


3- Privacidade e Intimidade X Dispensa Por Justa Causa:

O direito à personalidade – in casu, à privacidade e à intimidade -, nas relações de emprego, ainda não possui completa proteção. Márcio Túlio Viana aponta três situações em que há falhas graves naquela tutela, dentre as quais:

“a possibilidade de ingerência patronal na vida priva do trabalhador, não só em face de alguns dispositivos legais retrógrados (como o da embriaguez habitual como justa causa), mas também diante da leitura que se costuma fazer de alguns vazios normativos (como no caso do chamado direito de revista).” (VIANA 1996, 113)

Inúmeras são as situações trazidas pela doutrina para justificar a resolução contratual por culpa do empregado, mesmo quando o fato não se relacionar, sequer indiretamente, com o seu trabalho. Essas situações representam, invariavelmente, ofensa ao direito à intimidade e à privacidade do empregado. Vejamos algumas.

Mozart Victor Russomano afirma, ao comentar a incontinência de conduta e o mau procedimento do empregado (art. 482, alínea “b”, da CLT), que não há necessidade de que eles tenham relação com o serviço, pois, assim como o ato de improbidade, o procedimento pernicioso do empregado, mesmo que dissociado de sua atividade laborativa, pode justificar a sua dispensa, devendo, entretanto, ser mais grave do que aquele cometido no seu âmbito de trabalho (RUSSOMANO 1995, 176). O exemplo mais repetido pela doutrina é a do professor: tem-se como caracterizada a incontinência de conduta o fato de ele se exibir em locais públicos com prostitutas.

Dorval de Lacerda, citado por Domingos Sávio Zainaghi, justifica a embriaguez habitual como hipótese de justa causa (art. 482, alínea “f”), mesmo que não traga prejuízos ao trabalho e como esse não se relacione, ao afirmar que:

“houve razão, talvez mais imperiosa, para a atitude aparentemente drástica do legislador: é que se presume, na inserção da embriaguez habitual no elenco faltoso, nem tanto um prejuízo da empresa e uma arma de defesa do empregador contra os perigos que oferece um ébrio habitual, embora momentaneamente (durante o serviço) sóbrio, mas uma ação direta do Estado contra a propagação do vício.” (ZAINAGHI 1995, 92)

Já a prática constante de jogos de azar (art. 482, alínea “l”, da CLT) é justificada como falta grave, pois a sua habitualidade pode gerar distúrbios gravíssimos, principalmente de natureza econômica, conduzindo a pessoa à desonestidade, o que rompe a fidúcia essencial ao contrato de trabalho.

Frise-se que, estamos nos referindo àquele empregado que joga constantemente fora do local de trabalho, pois, caso o ele pratique neste, será indisciplinado, incidindo, assim, na hipótese tipificada na alínea “h”, do art. 482, da CLT, que independe de reiteração (RUSSOMANO 1995, 183).

Poderíamos listar inúmeros outros exemplos de atos que podem ser considerados como falta grave, cometida pelo empregado, fora do seu local de trabalho e sem qualquer correlação com seu contrato de trabalho, que, em verdade, somente são possíveis caracterizar com a violação da intimidade e privacidade do empregado.

Ocorre que, conforme Luisa Galantino, “comportamenti del lavatore che siano estranei alla sfera di quest´ultimo possono essere rilevanti solo se tali da incidere sulla capacità professionale del prestatore di lavoro” (GALANTINO 2000, 404), ou seja, o comportamento do empregado, na esfera de sua privacidade e intimidade, não pode ser objeto de tutela trabalhista, sujeito ao poder disciplinar de seu empregador.

Nessa mesma linha, Ronald Amorim e Souza, ao afirmar que:

 “o comportamento social do empregado deve ser punido pelos desvios que, no ambiente da empresa ou repercutindo imediata e diretamente nas suas relações com o empregador, possam causar dano à entidade patronal, ao seu ambiente de trabalho, aos colegas de serviço ou aos clientes.” (SOUZA 1997, 294-295)

Sobre o tema, Evaristo de Moraes Filho há muito tempo já afirmava que:

“nada tem a ver o empregador com a vida particular de seu empregado, cuja subordinação hierárquica só lhe é devida no ambiente interno da empresa. Caso contrário, seria transformar o trabalhador em tutelado permanente do seu patrão, sempre vigiado por toda parte, como incapaz ou sua propriedade particular.” (MORAES FILHO 1996, 151)

Pois, de acordo com o referido autor, aquelas condutas do empregado sofrem controle social a partir de outras instituições, como a família, a polícia, os seus amigos, ou seja, da própria sociedade, mas não, da empresa, haja vista que, normalmente, a sua subordinação jurídica se esgota quando ele deixa as suas dependências (MORAES FILHO 1996, 151)[2].

Frise-se que, apesar da majoritária jurisprudência ser no sentido contrário, há precedente jurisprudencial em não admitir a dispensa por justa causa, por conduta do empregado fora do local de trabalho e sem relação com aquele[3]:

“JUSTA CAUSA - ENVOLVIMENTO DO EMPREGADO EM BRIGA FORA DO AMBIENTE DE TRABALHO, E SEM QUALQUER PREJUÍZO AO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES - VIOLAÇÃO DO ART. 482, -B- E -E-, DA CLT - NÃO-CARACTERIZAÇÃO. Havendo o v. acórdão do Regional consignado que não houve registro de nenhuma conduta indisciplinar ou irregular do reclamante durante quase três anos (de agosto de 1996 até 19 de abril de 1999); que a briga na qual o reclamante se envolveu ocorreu fora do local e do horário de trabalho; que não houve repercussão no âmbito da empresa; que nada teve a ver com o exercício das funções; e que a prisão em flagrante, ocorrida quando da referida briga, se deu por porte ilegal de arma de fogo, impossível cogitar-se de caracterização de justa causa por incontinência de conduta ou mau procedimento (alínea b do art. 482 da CLT) ou desídia (alínea e), que somente dizem respeito a fatos ocorridos no ambiente de trabalho, ou seja, à conduta do empregado nessa condição, dentro do espaço físico onde se presta o trabalho ou em prejuízo do serviço ou da integridade do empregador como tal.Agravo de instrumento não provido.” (grifos nossos)

Apesar de o rol de justa causa ser taxativo, as hipóteses descritas no art. 482, da CLT, permitem que qualquer situação da vida cotidiana do empregado seja enquadrada em uma daquelas situações; apesar de se ter adotado o princípio do direito penal da tipicidade da conduta culposa, a tipificação trabalhista é imprecisa: mas, não por acaso.

A redação do indigitado art. 482, da CLT, sofreu influência do direito italiano do período fascista, que teorizou a Carta del Lavoro a partir de uma conduta corporativa, na qual “é o chefe da empresa o responsável perante o Estado pela vida ordenada e bem comportada dos seus colaboradores de todos os níveis” (MORAES FILHO 1996, 151), assim buscou o direito brasileiro tornar o empregador o tutor do empregado, em relação a todos os fatos de sua vida em sociedade, mesmo que não interfira na sua atividade laborativa, fundado na ideia de que fatos particulares da vida do empregado podem romper a confiança essencial à manutenção do vínculo de emprego.

O direito do trabalho pátrio, quando interpretado na sua concepção autoritária e fascista, não reconhece o direito à desconexão do empregado, que pode ser penalizado por conduta sua no âmbito de sua intimidade, na privacidade do seu lar. Sem se ater à possibilidade de prova judicial, a legislação trabalhista reconhece como falta grave a embriaguez habitual, mesmo que na residência do empregado.

Observe-se que, malgrado as influências políticas que inspiraram o direito italiano, em pleno regime fascista, o Tribunal de Milão – em 1930 - decidiu que “não constitui justa causa de resolução brusca da relação a prisão e a detenção do empregado por fatos que, de nenhum modo, hajam prejudicado o empregador nem diminuído o senso de subordinação e de disciplina que o empregado deve observar diante da empresa” (MORAES FILHO 1996, 158), entretanto, entre nós, oitenta anos depois, em plena democracia, os atos de improbidade do empregado, fora do local de trabalho e sem relação com este, ainda justificam a sua dispensa por justa causa – mesmo que não tenha havido condenação criminal[4].

Não poderia o empregado também perder a confiança no seu patrão, se esse for ébrio habitual ou praticar constantemente jogos de azar? Somente o empregado pode agir com incontinência? Ao empregador é permitido frequentar prostíbulos? Frise-se que, não se olvida que a CLT, ao conceituar empregador, não o faz com vistas à pessoa física dos seus sócios, o que, inclusive, fundamenta a sucessão de empresas – ou de empregadores -, já que o contrato de trabalho não é personalíssimo em relação a ele – salvo algumas hipóteses, que não nos convém citar.

Todavia, poder-se-ia aplicar o mesmo entendimento em relação aos sócios da empresa ou aos seus altos empregados. Por que não? Afinal, se o empregado é visto na comunidade em que vive como algo que pertence à empresa na qual trabalha, tanto que seu comportamento na sua vida privada pode ter efeitos no seu contrato de trabalho, por que o modo de agir daqueles que representam a empresa também não rompe a fidúcia ou a confiança mútua? Os deveres de conduta são recíprocos e devem, então, ser exigidos de todos os contratantes. O empregado, nessa situação, passaria a ser visto por todos como “aquele que trabalha na empresa em que sócio é encontrado habitualmente bêbado ou em bingos”, por exemplo, e, dessa forma, não confiar mais em colocar a sua energia produtiva em proveito dele.

Arremata, pois, Evaristo de Moraes Filho:

“baseado no mesmo raciocínio do dever de lealdade do empregado, - deveria igualmente o empregado ser censor dos costumes do seu empregador. Daí os justos limites para as faltas cometidas fora do local do exercício normal de trabalho. Somente quando exista conexão entre a falta e as prestações contratuais, somente quando a conduta do empregado do empregado possa ter repercussões em suas relações específicas de trabalho ou atingir a boa reputação da empresa, dada a qualidade do seu emprego, é que pode o empregador intervir, fazendo valer esta sua qualidade).” (MORAES FILHO 1996, 152)

Do quanto exposto, percebe-se que, a intimidade e a privacidade do empregado não podem ser violadas, e, por isso, não estão subordinadas ao poder disciplinar do empregador.

 


4- Restrições ao Direito à Intimidade e à Privacidade:

Nenhum direito é absoluto, e, como tal, há situações específicas em que poderá a empresa intervir na vida pessoal do empregado, desde que a sua natureza de sua atividade a justifique, devendo, todavia, as restrições serem proporcionais aos objetivos que se persegue.

Guilherme Machado Dray entende que a noção do direito anglo-saxônico do right to be alone não pode ser aplicada na esfera trabalhista, pois esta é fundada na mútua colaboração, que extravasa a mera esfera contratual e, assim, se determinados acontecimentos da vida profissional interferem na vida pessoal do empregado, o inverso também pode ocorrer (DRAY 2001, 57).

De acordo com mencionado autor, o right to be alone pode ser conceituado como um direito ao isolamento, tratando-se de uma construção norte-americana, sem qualquer conteúdo ético e baseado unicamente em concepções individualistas. A partir do right to be alone, o direito de personalidade passa a ser visto como um direito ao anonimato, ao isolamento, sem que se considere qualquer valor de solidariedade e de mútua colaboração (DRAY 2001, 49).

Entretanto, para Guilherme Machado Dray, apesar de não ser absoluto, o direito à privacidade e à intimidade devem ser interpretados como regra, e ser excepcionado somente em situações que possam afetar o bom nome ou a honorabilidade da empresa (DRAY 2001, 58).

O próprio Evaristo de Moraes Filho, apesar de concluir que a vida privada do empregado é inviolável, já ressalvava que em algumas situações a conduta do empregado poderia ser sujeita ao poder disciplinar da empresa, mas somente quando aquela tivesse reflexos inequívocos no contrato de trabalho ou no seu patrimônio imaterial (MORAES FILHO 1996, 159).

No mesmo sentido, Luisa Riva Sanseverino, citada por Evaristo de Moraes Filho:

“Também a conduta do prestador de serviços fora da empresa e, assim, fora das suas relações contratuais com o respectivo empregador, pode, se bem em casos excepcionais, ser investigada e dar eventualmente lugar à despedida brusca (como, em casos menos graves, a outras sanções disciplinares), quando têm repercussões relevantes, sobretudo em relação ao denominado patrimônio imaterial da empresa interessada.” (MORAES FILHO 1996, 154)

Entendemos como os referidos autores citados, ressalvando, todavia, que a proteção à intimidade e à privacidade somente poderá ser afastada em situações excepcionais, nas quais reste indubitável e concretamente demonstrada a existência de ofensa a algum bem material ou imaterial da empresa, tal como o seu nome ou a sua reputação, e que seja proporcional à necessidade de proteção destes bens jurídicos.


5- Conclusões:

O que propomos com o presente trabalho, ante o exposto, é uma releitura das consequências das condutas do empregado, que não se relacionem com o contrato de trabalho, para que haja a subsunção da norma disciplinar trabalhista.

Dos casos citados acima, não vislumbramos, a princípio, qualquer dano a uma empresa que tenha um empregado que seja ébrio habitual, fora do seu local de trabalho, sem que nunca tenha ido trabalhar alcoolizado ou que a sua função não lhe exponha a qualquer risco acentuado, pelo consumo de álcool ou de alguma outra substância tóxica. Diversamente será o caso de um motorista, ou de um empregado que opere uma máquina que possa causar sérios danos a si ou aos demais empregados, pois o consumo de tóxicos pode ter efeitos colaterais, como a perda de reflexo, por exemplo, e colocar a todos em perigo.

Amériro Plá Rodriguez, citado por Alice Monteiros de Barros, ao analisar o vício como uma conduta socialmente condenável, tida na legislação trabalhista como falta grave, entende que “por mais censurável que possa ser a conduta no plano moral, ela não habilita o empregador a intervir ou tê-la em conta para os efeitos da relação de trabalho, salvo se de alguma maneira influir na relação laboral” (BARROS 2009, 121).

De igual forma, a previsão de prática constante de jogos de azar, como hipótese de justa causa, se trata de evidente e ilícita interferência na vida privada do empregado. Pois, em momento algum se evidência efetivamente que a prática constante de jogo de azar abale a fidúcia do contrato de trabalho ou que haja qualquer dano à imagem da empresa, mas há, em verdade, presunção de que aquele poderá ensejar a ocorrência de outras hipóteses de justa causa e, consequentemente, a quebra de confiança. Ora, o que acarretará a justa causa será a prática dos demais atos faltosos, ou seja, de eventual improbidade para arcar com os custos do vício em jogo, mas não este em si.

Não há como se presumir jure et de jure que toda e qualquer pessoa, que pratique jogos de azar constantemente, tenha predisposição para ser um empregado ímprobo ou que venha a causar qualquer dano ao empregador.

Entretanto, na situação do empregado, que é visto com prostitutas e que trabalha como professor primário, entendemos que há, nesse caso, íntima ligação com a imagem da empresa na qual trabalha (honra objetiva), pois ele passa a ser visto como uma referência a seus alunos, exercendo grande influência, inclusive, na formação moral e ética deles. Assim, é aceitável concluir que muitos pais, cientes da situação, deixarão de matricular seus filhos naquela escola, em virtude da conduta pública de um dos seus professores.

Haverá de se ponderar, nessa situação, quando da análise em concreto, o conflito entre o direito à intimidade e privacidade do empregado e o direito à propriedade da empresa. Lembramos, apenas, que a regra interpretativa deverá ser a de se conceder a máxima valoração aos direitos fundamentais do empregado, para que, excepcionalmente, haja possibilidade de afastá-la.

Adotando igual posição, Alice Monteiro de Barros entende que a incontinência de conduta é configurada pela carência de pudor, unicamente quando exteriorizada em serviço, ressalvado, todavia, o atleta profissional, mais especificamente o jogador de futebol, pois este, devido às peculiaridades do seu contrato de trabalho, permite que o controle do empregador – ou seja, o seu poder diretivo - se estenda além da atividade esportiva. Assim, poderá o empregador, no caso a agremiação desportiva, controlar aspectos pessoais - como alimentação, horas de sono, dentre outros -, como também, aspectos mais íntimos do atleta - a exemplo do comportamento sexual, vestimenta e presença externa -, além de, inclusive, declarações à imprensa. (BARROS 2007, 708-709)

Explica a referida autora que:

“Essas prerrogativas patronais, que em relação a outro empregado não encontrariam respaldo legal, são permitidas, no tocante ao atleta, dado o nexo de causalidade entre elas e o fim do contrato, que é o maior rendimento possível nos espetáculos desportivos. O cumprimento das obrigações contratuais assumidas voluntariamente em troca de dinheiro e prestígio requer um determinado comportamento privado, que poderá ser objeto de controle pelo empregador. Ressalte-se, entretanto, que as prerrogativas patronais não são ilimitadas.” (BARROS 2007, 709)

Conclui-se, portanto, que o poder disciplinar do empregador é limitado pela proteção à intimidade e privacidade do empregado, o que impõe o reconhecimento de que diversas faltas graves tipificadas pela legislação trabalhistas não foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988, por violar aquelas garantias fundamentais, salvo em casos específicos e excepcionais.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

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BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 3ª ed., rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2007.

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CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 2ª Edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2008.

DRAY, Guilherme Machado. Justa causa e esfera privada. Vol. II, em Estudos do Instituto de Direito do Trabalho: Justa causa de despedimento, por Pedro Romano (coord.) MARTINEZ, 35-91. Coimbra: Almedina, 2001.

GALANTINO, Luisa. Diritto del Lavoro. 10ª ed. Torino: G. Giappichelli Editore, 2000.

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GODOY, Claudio Bueno de. “O direito à privacidade nas relações familiares.” In: Direito à Privacidade, por Ives Gandra da Silva MARTINS e Antonio Jorge (coord.) PEREIRA JÚNIOR, 119-148. Aparecida: Idéias & Letras, 2005.

JUNIOR, MANTOVANI. O Direito Constitucional à intimidade e à vida privada do empregado e o poder diretivo do empregador. São Paulo: LTr, 2010.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008.

MORAES FILHO, Evaristo. A justa causa na rescisão do contrato de trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 1996.

MORI, Amaury Haruo. O direito à privacidade do trabalhador no ordenamento jurídico português. São Paulo: LTr, 2011.

RUIZ, Alonso Félix. “Pessoa, intimidade e o direito à privacidade.” In: Direito à Privacidade, por Ives Gandra da Silva MARTINS e Antonio Jorge (coord. PEREIRA JÚNIOR, 11-36. Aparecida: Idéias & Letras, 2005.

RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de Direito do Trabalho. Curitiba: Juruá, 1995.

SIMÓN, Sandra Lia. A Proteção Constitucional da Intimidade e da Vida Privada do Empregado. São Paulo: LTr, 2000.

SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “Do direito à desconexão.” Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região nº 23 (2003): 296-213.

SOUZA, Ronald Amorim e. Manual de Legislação Social. 3ª ed. amp. atua. São Paulo: LTr, 1997.

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ZAINAGHI, Domingos Sávio. A justa causa no Direito do Trabalho. São Paulo: Malheiros, 1995.


Notas

[1] Evaristo de Moraes Filho afirma que: “A subordinação hierárquica ou jurídica que deve o empregado ao empregador se refere única e exclusivamente às condições técnicas de serviço, diz respeito somente ao exercício e desempenho da tarefa contratada inicialmente, dentro dos limites da empresa e durante o horário de expediente. (...). Fora disso, é o empregado livre de dispor da sua vida privada, tornando-se um cidadão revestido dos mesmos direitos e deveres do seu empregador perante a sociedade e a sua família.” (MORAES FILHO 1996, 155)

[2] Peretti-Griva, citado por Evaristo de Moraes Filho, leciona que, como a subordinação jurídica se restringe ao local de trabalho, não se pode admitir a censura morum fora daquele (MORAES FILHO 1996, 156) e Wolfgang Däubler, citado por Sandra Lia Simón, afirma que “a proteção da personalidade do trabalhador exige também que as obrigações derivadas da relação laboral terminem ao sair do centro de trabalho: o empresário não deve interromper o empregado durante seu tempo livre, a menos que aconteça o caso de que ele esteja comprometido de forma lícita para trabalhar sob prévia chamada telefônica. Portanto, o trabalhador pode visitar livremente seus amigos e contrair núpcias com quem queira e quando deseje. Pode fazer esporte, passear ou também dedicar-se aos seus passatempos favoritos como melhor lhe convenha” (SIMÓN 2000, 178).

[3] Brasil. Tribunal Superior do Trabalho. 4ª turma. AIRR - 813357-23.2001.5.02.5555, Relatora Ministro: Milton de Moura França. Data de Julgamento: 28/05/2003. Data de Publicação: DJ 13/06/2003.

[4] Não se estar aqui se referindo à justa causa por condenação criminal do empregado, passada em julgado, pois o que a justifica é a impossibilidade de ele trabalhar.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SENA, Newton Cunha de. Faltas não relacionadas ao trabalho: violação à privacidade e intimidade do empregado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3393, 15 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22809. Acesso em: 29 mar. 2024.