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Justiça e Direito em Platão, Aristóteles e Hobbes.

Convergências e divergências de teoria política

Justiça e Direito em Platão, Aristóteles e Hobbes. Convergências e divergências de teoria política

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Busca-se na atualidade um modelo de justiça por meio de ações de força que muito nos lembra os argumentos hobbesianos para a substituição do estado de natureza pelo estado social.

Resumo: Este artigo de teoria política faz uma análise da relação entre Platão, Aristóteles e Hobbes no que se refere aos temas da justiça e do direito. Ambos são temas relevantes para a teoria política, pois tratam de questões de ordem e segurança, aspectos que envolvem política em sentido amplo. Platão e Aristóteles representam a base da idéia de justiça no mundo ocidental, de maneira que podemos encontrar ali o direito como mecanismo social responsável por um tipo de ajustamento das relações sociais e políticas. Já Hobbes, contratualista importante da idade moderna, é considerado por alguns como o precursor do positivismo jurídico, embora o direito natural também seja grandiosamente evidente em sua teoria. Com isso, procuro pensar as aproximações e distanciamentos entre estes três autores clássicos, numa articulação teórica pretensamente possível.

Palavras-chave: teoria política, justiça, direito, Platão, Aristóteles, Hobbes.


“Enquanto as leis forem necessárias, os homens não estarão capacitados para a liberdade” (Pitágoras) 

“A distribuição eqüitativa e justa dos bens e seu emprego feliz em prol da humanidade só é possível mediante a abolição completa da propriedade; enquanto esta permanecer, uma carga angustiante pesará sempre na parte melhor e mais preponderante dos homens”

(Thomas Morus)

1. Introdução

A teoria política, enquanto ramo analítico de temas de ordem política, aborda autores que são intérpretes das mais variadas questões que os inquietam, dando-lhes voz e vida diante dos acontecimentos do mundo. Mas ressaltemos que a política, enquanto composta de visões interpretativas de diversos leitores da vida social não se prende apenas à leituras exatas do mundo físico. Ela permite imaginações, indagações e recriações diferentes, de acordo com a consciência e reflexão filosófica daquele que o pensa. Decorre daí a nossa proposta nesse trabalho, a qual consiste em assumir dois temas centrais, o da justiça e o do direito, entendendo-os como eixos de extrema relevância para a teoria política. São dois temas que se articulam, na medida em que o direito supostamente pretende dialogar com a aplicação do justo. A justiça, por sua vez, está no centro de um candente debate no mundo ocidental, um mundo que fala de justiça por quase todo o tempo, e que pretensamente a busca, ainda que não seja definido exatamente quais elementos o constitui.

Várias têm sido as chamadas teorias de justiça desenvolvidas por diversos pensadores ao longo da história. Na Antiguidade presenciamos relevantes contribuições como as de Platão e Aristóteles - trabalhados aqui; na Idade Média temos, no seu primeiro período, contribuições de Santo Agostinho, e no segundo período, São Tomás de Aquino; já na modernidade surgem expoentes contribuições, como as dos contratualistas Hobbes, Locke e Rousseau, o primeiro analisado aqui; e mais recentemente podemos citar o destaque que a temática ganhou com John Ralws e Amartya Sen, ou ainda a justiça como reconhecimento (Axel Honneth) e de reconhecimento e redistribuição econômica (Nancy Fraser). Já o direito, tal como abordado nesse artigo, transcende o direito tradicional que temos como padrão, aquele solidificado em instituições de ordenação dos conflitos sociais. O direito pensado aqui encontra-se no pensamento filosófico-político de relevantes contribuições teóricas, alcançando toda uma teoria voltada para a busca de um tipo de justiça caracterizada segundo a teoria de cada pensador, num debate que de longe remonta aos séculos que antecedem a Cristo, podendo facilmente ser encontrado em autores clássicos da antiguidade ocidental como Platão e Aristóteles.

 Com isso, de modo a encarar essa temática, justiça e direito, seleciono três autores de inquestionável importância para a teoria política: Platão e Aristóteles – pertencentes à antiguidade clássica, e Thomas Hobbes – expoente dos primórdios daquilo que chamamos modernidade. Procuro discutir como justiça e direito aparecem em cada um deles, além de investigar as eventuais proximidades e distanciamentos entre os três autores. A escolha se dá menos pelo fortuito e mais pelas suas contribuições para o pensamento ocidental acerca desses temas. Platão e Aristóteles representam a base da idéia de justiça no mundo ocidental, de maneira que podemos encontrar ali o direito como mecanismo social responsável por um tipo específico de ajustamento das relações sociais e políticas. Cada um, no entanto, teve a sua peculiaridade.

Platão foi o filósofo político do mundo ideal, aquele que concebeu nos filósofos a sapiência do conhecimento da justiça para fins de promoção do bem-estar da pólis. Nele, a justiça, tema central do diálogo da República, viria do plano ideal, e como seria privilégio dos sábios conhecê-la, estes seriam aqueles que deveriam assumir o poder da cidade e distribuir as funções sociais conforme um padrão de justiça voltado para o que entendem como “bem comum”. Seriam estes os responsáveis por elaborar as leis, promovendo uma espécie de direito estranho ao olhar contemporâneo, principalmente porque o direito platônico se assemelhava e se confundia com a moral. De maneira diferente, Aristóteles percebia a justiça como algo presente na ordem natural das coisas, visto que a natureza tem uma finalidade, que é a justiça, mas que só se efetivaria na prática social. A realização da justiça seria confirmada ou não a partir de uma complexa distribuição de cargos e bens sociais. Aqui, também se procura uma distinção entre justiça e direito, o que Aristóteles conseguiu em seu livro Ética a Nicômacos. Mas não somente aí ele tratou da relação entre justiça e direito. Assim, é na Política que, pondo em prática sua filosofia da justiça, Aristóteles procurou descobrir quais poderiam ser as melhores constituições, adaptadas à essência do homem e às condições variáveis da vida social. E é na Retórica, um tratado de arte oratória, que Aristóteles dá um amplo espaço para a eloqüência judiciária, em que estuda os argumentos de que os advogados podem fazer uso. Com efeito, foi a partir da concepção de justiça em Platão e Aristóteles que boa parte do direito romano se ergueu, especialmente com a contribuição de Aristóteles e a idéia de uma justiça construída nas relações sociais que deveria estar de acordo com valores morais relacionados a tal justiça geral contida na natureza[1]. A parir daí, o direito romano também teve enorme influência na formação do direito europeu moderno, o chamado direito romano-germânico, cuja influência permanece até hoje[2].

Saindo agora desses dois autores da antiguidade, decidimos colocar no debate Thomas Hobbes, enquanto relevante filósofo político da modernidade nascente, e que pode nos dar importante contribuição no tratamento da justiça e do direito, principalmente ao trazer a sua posição moderna a respeito destes temas. Um dos contratualistas de maior expressão, junto de Locke e Rousseau, Hobbes pensou o estado de socieade como fruto de um contrato entre indivíduos antes situados numa concepção de estado de natureza. Nesta condição original, vigorava o caos e a “guerra de todos contra todos”, provocada por seres egoístas por natureza, onde o direito estava subjetivado em cada um, permitindo-lhes todas as satisfações pessoais, de modo que cada homem seria o lobo do outro homem. Na condição natual, não faria sentido se falar em  justiça, diz Hobbes, pois todos possuíam uma igualdade de direitos. Só em estado de socieadade, responsável pela garantia da segurança e da paz, é que surgem leis positivadas, e passa a se fazer sentido a incorporação de uma concepção formulada de justiça, marcada pelo cumprimento das regras do pacto. Esse pacto inclui um poder coercitivo que obriga a todos o seu cumprimento. A partir dele, cada indivíduo recebe o que é seu, algo parecido com a proposta de Aristóteles, contudo em Hobbes as leis sociais surgem junto da propriedade e de os outros direitos positivos.

Para este contratualista, uma vez que o poder tenha sido concedido ao soberano, permitindo-lhe exigir obediência por parte dos seus súditos, consideram-se injustos os atos que porventura violem a legitimidade do Estado, que terá o aval da punição conforme suas leis estatuídas. Nesse sentido, evidencia-se nesse autor uma importante contribuição ao universo jurídico, já que em sua doutrina as leis são responsáveis pelo convívio harmônico e pacífico entre os homens, na qual o conceito de justiça é fruto da racionalidade humana e é exposto de forma a garantir a legitimidade do arcabouço jurídico estabelecido com o contrato social. Por essa defesa do papel coercitivo do Estado-Leviatã, em que a soberania estaria centrada num poder unitário voltado para a segurança, Hobbes é considerado por alguns como o precursor do positivismo jurídico, embora o direito natural também seja grandiosamente evidente em sua teoria.


2.  A filosofia política de Platão. Justiça e Direito

Platão surge como uma reação aos sofistas, e, como uma reação à própria cidade grega da qual é fruto. Aos sofistas, criticava-os de venderem suas argumentações aos estudantes da época, acusando-os de venderem uma ciência não real, apenas aparente. Nisso, Platão pegou um gancho nas críticas de Sócrates aos sofistas segundo as quais esses últimos desprezariam algumas discussões feitas pelos filósofos e desrespeitariam a verdade e o amor pela sabedoria, na medida em que reduziam complexas argumentações reflexivas em discursos transformados em objetos de cobranças de taxas. Em relação à cidade, Platão a questiona em suas ideologias, alegando que esta teria matado a sabedoria do conhecimento no momento em que seus agentes condenaram seu maior mestre, Sócrates. Este, ao ir certa vez ao Oráculo, teria ouvido a representação da sapiência humana, o “conhece-te a ti mesmo”, que o teria levado a conclusão pessoal expressa na seguinte máxima: “tudo o que sei é que nada sei”. Aqui residia a maior virtude humana segundo Sócrates, que por isso, seria condenado à morte por envenenamento com cicuta: constituir a sabedoria a partir de uma eterna auto-reflexão questionadora, em que a verdade é vista como relativa e transitória (Villey, 2005). Platão, seu discípulo, confiava no mestre, e via nessa negação do saber definitivo a maior dentre todas as virtudes. A condenação de Sócrates, acusado de corromper a juventude, representaria na visão de Platão, portanto, a tradução de uma cidade corrompida pelos seus governantes e, portanto, pela política vigente. Então Platão indaga como pode o filósofo, o grande conhecedor das virtudes existentes, viver nessa cidade corrompida? A resposta passa pelo caminho que leva a entrada deste filósofo na governança dessa cidade. A concepção de justiça para Platão começa exatamente na crítica que ele formula em relação à espécie de “justiça” (leia-se injustiça) vigente na polis, haja vista suas regras terem condenado o maior de todos os mestres. A missão do homem político ideal, nesse sentido, seria a descoberta do justo, que estaria associado à idéia do bem para a polis grega, e acessoriamente também das leis ideais.

Começa aí a trajetória da construção de uma teoria da justiça em Platão. A justiça seria a virtude que atribui a cada um a sua parte, mas esse senso de justiça seria exercido tanto no interior do homem como no seio da cidade-estado, onde os homens se relacionam. Ou seja, o justo se manifestaria em dois planos. No interior do indivíduo, estaria atrelada a submissão dos instintos à razão; e na polis, estaria adequada à ordenação de cada um em sua melhor função, ou seja, marcada pela sistematização entre as classes laboriosas, como os artesãos (dedicados à produção de bens materiais), os guerreiros (soldados encarregados de defender a cidade), e os filósofos (guardiões incumbidos de zelar pela observância das leis e promotores principais da justiça idealizada). Dentre esses últimos, deveria ser escolhido o melhor indivíduo para governar a cidade, o rei-filósofo. Com isso, a cidade ideal se apoiaria numa divisão racional do trabalho, em que cada um exerceria uma função específica conforme sua competência. Como resultado dessa repartição de tarefas, a desigualdade entre os homens está presente em sua teoria da justiça, para a qual a igualdade não era sua preocupação. O importante para Platão seria a construção do bem comum a partir de uma repartição adequada de funções, conforme a qualidade de cada tipo de homem e segundo a dotação de sua natureza. Nisto estaria a justiça da cidade: que cada um fizesse a sua parte visando o benefício geral da República (Piettre, 1989). Será algo diferente de Aristóteles, que pensará a justiça como parelha a uma suposta igualdade proporcional; mas próximo de Hobbes, que conceberá a justiça independentemente da igualdade entre os homens, tendo em vista que a importância da justiça estará no respeito ao pacto social.

2.1. O direito como resultado da aplicação da justiça.

É resultado dessa concepção de justiça platônica as fontes a partir das quais o direito poderá ser pensado nesse autor. Da sua teoria da justiça tem-se o desenvolvimento de uma concepção de direito enquanto reguladora das relações sociais, até porque aqui o conhecimento do justo se aproxima muito da concepção de direito. Em primeiro lugar, as fontes do direito concernem ao conhecimento do justo, logo o papel do jurista não consiste apenas em aplicar ou estudar as leis existentes, escritas pelo Estado, mas extrapola essas funções. Essa opinião é fruto da sua rejeição em relação a definição do positivismo jurídico segundo o qual o direito seria o conjunto das regras positivas estabelecidas pelo Estado. Na sua definição, a tarefa do direito seria alcançar o bem, que aqui se coaduna com a interpretação de justiça. Ao mesmo tempo, o direito não teria a finalidade de levar a ordem e a segurança, tal como em Hobbes, numa solução que nos remeteria ao positivismo jurídico, mas de ajudar na promoção do bem comum. Eis uma primeira diferença considerável que podemos detectar na contraposição entre Platão e Hobbes.

Está no livro VII da República (1996) a famosa alegoria da caverna onde Platão descreve metaforicamente o percurso do grande rei-filósofo ao encontro do conhecimento da justiça ideal. Na história contada, os prisioneiros da caverna vêem apenas as sombras das coisas. É por meio de uma ascensão – que representa a dialética platônica – que um deles escapa da caverna e consegue perceber as verdadeiras coisas e o sol que as ilumina, aqui metaforizada pelas idéias de bem, justiça, verdade – ou seja, as grandes virtudes. Num primeiro momento, a forte luz lhe causa forte impacto, mas logo ele se maravilha com tudo o que pode ver para além das sombras vivenciadas nos tempos da caverna. O ex-prisioneiro, após a formidável experiência, não aceita mais retornar à caverna e sua intenção passa a ser libertar todos os prisioneiros remanescentes na caverna. Isso significa que se trata de escapar do mundo das aparências sensíveis percebidas pelo corpo, esse entrave ao verdadeiro conhecimento, para elevar-se ao mundo das idéias inteligíveis. Eis o método que se impõe ao homem político para a descoberta do justo, e a libertação da polis de todos os seus vícios[3].

2.2. A utopia do direito platônico.

Platão define que a tarefa do jurista é a de buscar o justo, algo impossível de ser descoberto por qualquer sujeito. Somente aqueles capacitados a conhecer o mundo das Idéias e do inteligível seriam capazes de conhecê-lo. Não obstante, o processo de descoberta das leis justas se mostra bastante complexo em sua obra, pois seria ao longo de uma longa ascese purificadora, que, apaixonado pelo mundo das idéias, o filósofo descobriria as leis. Essa ascese purificadora, que tem a ver com a lógica da ascese da caverna, é mais bem explicada por Platão através da teoria da “reminiscência”, elucidada de forma metafórica a partir do mito de Er[4], presente na obra A República. Este mito nos indica que conhecer as coisas é fruto de uma habitação que se dá em outro tempo e lugar, também chamado mundo das almas. Por isso consiste em recordar a verdade que já existe em nós, ou seja, é despertar a razão para que ela se exerça por si mesma.

Por isso, Platão justifica o fato de Sócrates fazer perguntas sobre as coisas, visto que através delas as pessoas poderiam lembrar-se da verdade e do uso da razão. Se não nascêssemos com a razão e com a verdade, indagava o filósofo, não saberíamos que temos uma idéia verdadeira a respeito das coisas, tampouco a buscaríamos através da reflexão. Na República, Platão falou sobre os defeitos de qualquer legislação escrita, já que seria o rei-filósofo, ao longo de uma longa ascensão dialética, o sujeito capaz de definir as melhores leis para a cidade conforme o ideal de justiça. O ordenamento jurídico platônico deveria corresponder a leis não positivadas, cuja aplicação dependesse de pessoas conhecedoras de sua sapiência, como os filósofos, assim como o direito deveria emanar deles. Mas como isso seria inviável na prática, Platão acabou posteriormente a reconhecer a necessidade da obediência das leis feitas pelos filósofos, de certa forma leis positivadas, pois não se poderia garantir que estes estariam sempre presentes na governança da cidade (Villey, op.cit.).


3. Aristóteles e sua ampla teoria da justiça. A aplicação do direito

Em Platão, vimos o direito – resultado da busca por um ideal de justiça – como uma noção muito ampla; era um direito não diferenciado da moral, por exemplo. Já em Aristóteles percebe-se uma melhor separação dos conceitos de justiça, direito e moral. Platão defendia o inatismo, na crença de que nascemos com princípios racionais e idéias que são inatas aos homens. A origem das idéias, segundo Platão, é dada por dois mundos, que são o mundo inteligível – referente ao  mundo em que nós, antes de nascer, passamos para ter as idéias assimiladas em nossas mentes; e o mundo sensível – referindo-se a realidade dos homens em suas experiências reais. Já Aristóteles era um filosofo que defendia o empirismo, concebendo que as idéias são adquiridas  através da experiência, embora admitisse que na ordem da natureza houvesse a grande virtude do que chama de justiça geral.

3.1. Justiça em Aristóteles. Justiça geral. Justiça particular. Justiça distributiva e Justiça comutativa.

Em seus escritos, várias são as contribuições morais e política de Aristóteles. Mas é em Ética a Nicômaco (1984) que o autor procurou formular uma definição universal de justiça, a que ele chama de dikaiosuné. Essa justiça universal, por sua vez, pode ser separada duas definições específicas: justiça geral e justiça particular. A primeira é a base para o seu pensamento a respeito dessa concepção, pois ali se designa como justo toda a conduta que parece conforme a lei moral. Nesse sentido, a justiça pensada de um modo amplo, presente na ordem natural das coisas, inclui todas as virtudes, sendo equiparada a uma virtude moral universal. Conforme nos diz Villey (op.cit.), o sentido geral da justiça corresponde à condição que os gregos chamavam dikaios, expressão que significa “homem justo”, e que expressava aquela pessoa que possuía uma superioridade moral em relação à maioria das outras. Assim, Aristóteles (op.cit.) observa que a justiça é a disposição da alma graças à qual elas se dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo, sendo a forma mais elevada de excelência moral. Como essa concepção larga de justiça atua especialmente no campo abstrato das virtudes morais, Aristóteles observou que esse sentido geral de justiça não tinha relação direta com o direito, já que este último estaria vinculado à aplicação prática da justiça, a tal justiça particular. Isso porque não cabia aos juízes, por exemplo, conduzir os cidadãos à perfeição moral, mas sim resolver os problemas e os conflitos referentes aos bens e as cargas presentes na vida social. Como resultado específico dessa abrangente justiça geral, Aristóteles laça mão do conceito de justiça particular, referindo-se não mais ao dikaios (o homem justo), mas, agora, ao to dikaion (a coisa justa). A justiça particular consiste numa parte daquela justiça geral vinculadas às ações individuais presentes nas relações sociais. Dessa maneira, pode-se dizer que a justiça geral estaria presente no indivíduo caso ele tivesse a moral de justiça dentro de si, enquanto algo subjetivo; ao contrário, a justiça particular se manifestaria a partir das ações reais do indivíduo, ou seja, enquanto na aplicação da justiça em casos objetivos.

É nessa parte que aparece a construção do direito, haja vista a constatação de que analisar a justiça particular, enquanto a aplicação objetiva do justo, corresponderia a definir a arte do direito. Além disso, avança Aristóteles, a virtude das ações particulares está no ato de não se ficar nem com mais nem com menos do que lhe corresponde, de maneira que a sociedade assista a uma bem realizada repartição dos bens e das cargas, conforme a lógica do meio-termo. No funcionamento da distribuição dos elementos sociais, Aristóteles lança mão de dois conceitos de aplicação prática da justiça particular: a justiça distributiva e a justiça comutativa. A primeira delas, a justiça distributiva, está relacionada ao ofício primeiro da promoção da justiça numa comunidade, que consiste na procedência da distribuição dos bens, das honras e dos cargos públicos entre os homens da pólis. Nessa distribuição, dever-se-ia observar a devida finalidade da repartição para a conjuntura social em que se encontra, e a relação dos sujeitos com essa finalidade, ou seja, se os sujeitos se utilizarão dessas atribuições de forma a beneficiar o coletivo. Na justiça distributiva, efetuada no cumprimento da justiça particular, deve-se levar em conta o princípio da proporcionalidade. A justiça na vida real, a tal justiça particular, é para Aristóteles, portanto, uma das espécies do gênero proporcional; ao contrário, a injustiça é exatamente aquilo que viola o princípio da proporcionalidade. No caso do pagamento de um imposto, por exemplo, seria uma ação justa o pagamento exato da cota-parte do indivíduo, nem mais, nem menos. Como nos diz o autor:

“O justo envolve também quatro elementos no mínimo, e a razão entre um par de elementos é igual à razão existente entre o outro par, pois há uma distinção equivalente entre as pessoas e as coisas [...]. O princípio da justiça distributiva, portanto, é a conjunção do primeiro termo de uma proporção com o terceiro, e do segundo com o quarto, e o justo nesta acepção é o meio termo entre dois extremos desproporcionais, já que o proporcional é um meio termo, e o justo é o proporcional” (Aristóteles, 1984, p. 95).

Contudo, poderia perguntar o leitor: Mas proporcionalidade é um conceito relativo. Logo, o que seria proporcional na concepção aristotélica? Os critérios por ele elencados para a distribuição, cujo objetivo consiste em se alcançar uma harmonia social, são: 1) A condição dos sujeitos, fator que será importante pelo fato de uma coletividade possuir diversas classes de sujeitos. Existem o pai, o filho, o patrão, o empregado, enfim, diversas classes de sujeitos nas relações sociais, de modo que o primeiro critério na distribuição seria dar a cada um conforme a sua importância para a coletividade; 2) A capacidade das pessoas em relação aos encargos, fator que se refere à distribuição conforme a capacidade do indivíduo em relação ao todo social. Seria o caso, por exemplo, de quem ganha mais pagar mais impostos, e que ganha menos pagar menos tributos; 3) Aportação de bens à coletividade, critério que procura atribuir mais benefícios a quem  contribui mais à sociedade. Quem trabalha mais, por exemplo, deveria receber um salário maior, haja vista sua maior contribuição com o grupo social; 4) A necessidade, devendo se considerar a necessidade dos sujeitos como um dos critérios palpáveis na distribuição social. Significa dar mais a quem mais necessita. Contudo, ressalta Aristóteles que esse critério só é justo quando está de acordo com as finalidades da coletividade e combina com os outros critérios, pois se não poderá ser confundido com misericórdia ou solidariedade, e não como propósito de justiça.

Passando agora para a justiça comutativa, esta outra forma de justiça particular refere-se ao zelo pela retidão das trocas, ou seja, pela igualdade aritmética em matéria de intercâmbio de bens. Partindo do pressuposto de que os bens, as honrarias e os cargos públicos foram previamente distribuídos de maneira proporcional, a função do juiz, por exemplo, seria calcular uma restituição igual ao dano que o indivíduo sofreu, de modo a readequar as posições dentro da ordem redistributiva. Dificilmente se garantirá a estabilidade em qualquer ordenamento social, reconhece Aristóteles, ou seja, os conflitos acabarão existindo. A pólis é formada por homens livres, com interesses distintos surgidos nas relações sociais, disputando entre si honrarias e bens, daí a necessidade de haver uma instituição que resolva os impasses, tal como se apresenta o direito positivo, com suas leis e agentes.

3.2. A construção do direito em Aristóteles. Direito natural e direito positivo. O princípio da Eqüidade.

Seu conceito de direito emerge da concepção de justiça conforme a distribuição proporcional dos elementos sociais. O direito, então, começa como algo exterior ao sujeito, como uma determinada igualdade (através da proporcionalidade) existente nas coisas, e que se extrai da observação da natureza. Visto que Aristóteles concebe o mundo como uma ordem harmônica no sentido da prevalência da justiça geral, o mundo é entendido a partir de sua constituição voltada para causas finais, e as relações humanas deveriam caminhar para a manutenção da justiça geral, essa espécie de moralidade que garante a correta ordenação das relações entre os homens e a natureza. A ciência do direito, por sua vez, concerne ao resultado exterior dessa igualdade das coisas, situando-se, portanto, na relação entre os cidadãos. Em Aristóteles, o direito ganha autonomia, ficando responsável pela retidão da distribuição dos elementos sociais e devendo solucionar os conflitos decorrentes da incorreção distributiva. Na visão aristotélica, caberia ao direito a atribuição de uma sanção contra atos falhos dos indivíduos. Seria o exemplo do direito penal, cuja função não consiste em evitar o homicídio, o roubo ou qualquer outro tipo de crime – visto que essas proibições competem à moral – mas apenar quem os comete, dando-lhe a pena devida e proporcional ao seu crime. Seria uma forma de readequação da ordem geral, portanto.

Nesse sentido, em Aristóteles, percebe-se a ausência de um direito subjetivo correspondente a direitos individuais absolutos e exclusivos de cada pessoa. É algo que o difere substancialmente de Hobbes, onde o direito é formado com o pacto social, resultado da subjetividade de cada indivíduo. O direito em Aristóteles é encontrado somente na relação entre os agentes sociais, haja vista o homem ser concebido naturalmente como um animal social (Wolf, 1999). Em Aristóteles, presencia-se um direito positivado em prol da coisa justa, estabelecida socialmente pelo convênio humano, em consonância com o que se percebe na natureza. Portanto o direito é exterior a eles enquanto indivíduos subjetivos. É o resultado de uma repartição das relações sociais, mas que é construído na prática devido ao ordenamento natural em que os homens se colocam dentro da natureza. Sua instituição será o instrumento responsável por colocar as coisas em sua devida ordem, haja vista que a alteridade – fruto das relações sociais e da impossibilidade na procedência de uma divisão estritamente igualitária – gera conflitos e diferenças.

Emerge dessas considerações a necessidade de se distinguir direito natural e direito positivo em Aristóteles. Ele nos diz que a solução jurídica de um caso concreto deve, normalmente, ser obtida através do recurso conjunto a estas duas fontes de direito, as quais se complementam. Significa, por um lado, a observação da natureza e, por outro, a precisa determinação do legislador e do juiz. Com isso, não há, na concepção aristotélica, oposição entre o justo natural e as leis escritas pelo Estado. Ao contrário, as leis do Estado exprimem e completam o justo natural[5]. Segundo essa lógica, o direito seria, por essência, algo móvel, e deveria exatamente ser extraído a partir da observação e da experiência. Na instituição do direito, Aristóteles defende a presença de leis escritas, entendendo-as como fontes seguras da aplicação do justo por parte dos juízes, reduzindo suas arbitrariedades. Afinal, diz ser prudente desconfiar da imparcialidade dos juízes, pois seus julgamentos correm o risco de serem deformados por sentimentos humanos como a simpatia ou o medo. Daí o fundamento da lei, a qual o juiz deve se guiar. Mas aqui se deve considerar uma questão importante: Aristóteles ressalta que não se deve reconhecer o valor das leis positivas senão as supondo estabelecidas no quadro do justo natural. Ou seja, se os legisladores forem despreocupados com o interesse público, maldosos ou ignorantes e as leis danosas, não lhes devemos obedecer e o juiz deverá ter o senso de libertar-se dessas leis absurdas e nefastas. Portanto, embora sejam relevantes, as leis não seriam absolutamente soberanas, algo que distingue a sua posição daquela que observaremos em Hobbes, para quem o direito positivo instituído pelo Estado é a representação do pacto social, e violá-lo significa ato de injustiça, passível de sansão.

É a partir daqui que aparece a concepção aristotélica de eqüidade, usada no sentido da boa aplicação da lei, quer em face da omissão do texto positivo, quer para suprir sua imperfeição, quer ainda, para abrandar-lhe o rigor. Desse modo, a concepção da eqüidade passa a ser a justiça aplicada no caso particular, ou seja, a justiça em termos concretos e individualizada. O princípio da eqüidade serve, segundo diz, para evitar a aplicação mecânica da lei, mas é algo diferente de uma aplicação arbitrária do juiz. Na eqüidade, o que está supostamente em questão é o tratamento igualitário e justo perante a lei, e não a aplicação da lei conforme convicções pessoais do aplicador (Aristóteles, 1984). Por isso se autoriza ao juiz tomar liberdades em relação à lei, adaptando-as às circunstâncias, levando em conta as condições de cada situação particular. Seria o caso, por exemplo, de se levar em conta, em matéria penal, a idade do acusado, sua situação social, seu passado, suas intenções, etc. Dessa maneira, segundo Aristóteles, a eqüidade poderia ser assemelhada àquilo que a razão humana aceita sem repugnância, o que equivaleria à justiça iluminada pela razão. Aproxima-se, nesse sentido, com o objetivo central do direito, que é a promoção da justiça, atuando segundo as peculiaridades de cada caso, considerando-se as diferenças específicas. A eqüidade se encarrega de levar a justiça ao particular. No plano teórico, Aristóteles procurou pensar o uso do princípio da eqüidade de maneira a tornar a aplicação do direito algo mais justo e mais próximo da justiça geral. Contudo, devemos reconhecer o verniz de utopia na aplicação prática dessa intenção, uma vez que a proximidade do senso de justiça por parte do aplicador e a sua arbitrariedade constitui-se, na prática, em uma linha extremamente tênue.


4. Hobbes e a construção do pacto. Direito e justiça

Hobbes é considerado um empirista e um racionalista da filosofia política inglesa, na medida em que procurou colocar em prática o empirismo nas suas observações e conclusões a respeito da natureza humana, ao tempo em que fez uma análise das palavras e do raciocínio, que é dedutiva e racionalista. Hobbes criticava Descartes em sua dedução “Penso, logo existo”. Para ele não podemos conceber o pensamento sem uma coisa que pense, logo uma coisa que pensa é alguma coisa corporal. Portanto, para Hobbes, o corpo e o seu movimento constituem o real. Tendo uma percepção dinâmica da natureza humana, esta é entendida como uma espécie de autômato, o que reflete a influência das idéias mecanicistas da sua época. Segundo esta visão, eram os homens, assim como o restante dos animais, entendidos como espécies de máquinas formadas pela união de várias peças menores. Dentro de tal perspectiva mecânica, dois seriam os movimentos que fazem a máquina se mover: o vital e o animal. No vital estão aqueles cuja realização independe do pensamento, ou seja, são movimentos involuntários, como a respiração, circulação sanguínea, ou digestão; por outro lado, no animal encontram-se os movimentos cuja realização depende de uma manifestação de vontade, como falar, andar ou se mover (Villey, op.cit.).

Importante na teoria de Hobbes é que essa manifestação de vontade é ocasionada pelas sensações. Estas, por sua vez, podem ser reduzidas a duas espécies, que são a apetite e a aversão, entendendo-se, assim, todos os esforços de aproximação ou afastamento daquilo que proporcione respectivamente prazer ou dor ao ser humano. Essa informação é extremamente importante para se introduzir a sua definição de estado de natureza. Em Hobbes a vida começa com o desejo de se aproximar daquilo que traz prazer ao indivíduo, sendo inato à natureza humana o egoísmo, constituído por um perpétuo desejo de poder, o qual só acaba com a morte. O homem, num estado inicial, seria governado por suas paixões e teria como direito próprio conquistar tudo o que lhe apetece. Como todos os homens seriam dotados de desejos, e uns poderiam ser mais fortes fisicamente que os outros, grande seriam a disseminação da violência e do caos. Seria, em termos hobbesianos, a guerra de todos contra todos (Hobbes, 1974).

Contudo, junto deste desejo desenfreado pela busca das próprias satisfações, os homens também são portadores de um inato instinto de conservação, que também os governa, tendendo a levá-los a uma condição equivalente à paz. O instinto de conservação, nesse sentido, é peça fundamental na filosofia hobbesiana, na medida em que esse instinto serve de alerta quando o estado de guerra põe em risco à própria sobrevivência humana. E é ele quem incita os homens a saírem de seus estados de natureza e entrarem no estado de sociedade, algo que difere Hobbes de Aristóteles, visto que para este último o homem era naturalmente um animal social, e em Hobbes há uma passagem do estado de natureza (original) para o estado de sociedade - construído a partir da busca pela auto-preservação, ameaçada no estado anterior pelas próprias paixões humanas.

4.1. O direito em Hobbes. Positivismo Jurídico. Concepção de justiça.

O direito em Hobbes aparece em consonância com sua visão a respeito do homem e da sociedade. Devemos lembrar que em Aristóteles e, o que se segue na tradição de São Tomás de Aquino[6], o homem era naturalmente social e político, sendo as sociedades naturais (Villey, op.cit.). Nesse sentido, o direito seria a ordem estabelecida entre as relações sociais, a proporção que se descobre entre os bens distribuídos aos cidadãos e o conjunto das relações justas que evidencia-se num grupo. Nessa linguagem, aplicada ao indivíduo, a palavra direito significava a parte que lhe corresponderia nessa justa repartição. Já em Hobbes, ao contrário, tudo será construído a partir dos indivíduos, seguindo a tradição do nominalismo ockaminiano[7], segundo o qual não existem mais do que as coisas singulares, sendo todo o resto construção dos indivíduos. Segue deste modo que Hobbes concebe o estado de natureza, no qual todos os homens estariam separados e isentos de todo vínculo social. É a partir dessa condição dos indivíduos que se construirá a ordem, a partir de um contrato social. No estado de natureza hobbesiano vigora o direito natural, que estaria atrelado à condição de natureza de cada indivíduo.

Portanto, se Aristóteles extraía o direito das observações sociais, sendo o direito a resultante de uma repartição social dos bens, e a fonte do direito era a lei natural que regulava a ordem dos homens, Hobbes se subleva contra esta hipótese. Na sua formulação sobre estado de natureza, não existe, nesse momento, qualquer lei que regulasse as relações sociais e de onde pudesse derivar o direito. A lei natural, em Hobbes, não é senão uma lei interna de cada ser humano, a qual se encontra em sua própria consciência e que o leva a conduzir-se segundo sua razão. A fonte do direito, para este autor, é subjetiva, por estar inserida em cada indivíduo natural. Como no estado de natureza o direito está em cada indivíduo, este, portanto, é infinito. É o direito de todas as coisas, na medida em que o homem se guia por seus desejos. Direito num primeiro momento, então, relaciona-se à noção direta de poder e liberdade, só depois sendo positivado pelo Leviatã. Mas a questão central que se coloca no estado de natureza é que, como nessa vastidão de direitos o corpo do outro pode ser a minha vontade, nenhum homem poderia viver seguro.

Daí a primeira lei da natureza indicar aos homens o quanto é importante a busca pela segurança, e conseqüentemente segui-la. Dessa primeira lei da natureza, que ordena a todos os homens que procuram a paz, deriva o que Hobbes chama de segunda lei da natureza, segundo a qual os homens concordam que, para garantir a paz e a defesa de si mesmo, seria necessária a renúncia de seus direitos. É a consciência de que enquanto cada homem detiver o seu direito de fazer tudo o quanto desejar, a condição de guerra será constante para todos. No estado social, as leis passam a ser competência da ordenação do soberano, instituídas pelo Estado. Ela é fruto do pacto e do contrato firmado pelos indivíduos. Aqui reside a fonte de todo o sistema jurídico positivo de Hobbes. Do pacto formador do Leviatã surgem todas as leis positivas humanas, aquelas que criarão para os sujeitos obrigações externas. Com o estado civil, o soberano se mostra o ente mais capacitado para garantir a ordem e a paz, e a garantir os direitos subjetivos de cada um, especialmente aqueles que os encaminhavam para a segurança. Portanto, todo o direito é construído, em Hobbes, por graus sucessivos, a partir do direito subjetivo. E é para garanti-lo que o soberano encontra legitimidade. Daí Hobbes ser interpretado como precursor do positivismo jurídico[8], que atribui às leis o sentido de ordenação e segurança social. No cume das leis, encontra-se o princípio máximo da proibição de se violar o pacto. Daquela lei da natureza que indicava os homens a aderirem ao pacto, surge uma subseqüente lei natural, a terceira, a ser posta em prática no momento em que for constituída a sociedade civil. Consiste que os homens cumpram os pactos celebrados, pois sem esta lei os pactos seriam vãos e não passariam de palavras vazias e o estado de guerra poderia não ser superado. Nesta lei assenta, segundo Hobbes, a fonte e a origem da justiça. Por isso, a partir de agora, romper o pacto passa a representar um ato de injustiça e romper o pacto é injusto porque o Leviatã representa a consolidação de todas as células do corpo social composto pelos indivíduos. A justiça, enquanto um conceito emergido das relações sociais regradas, só passa a existir em sociedade, e nesse caso cabe ao soberano ditar o seu significado.

O direito em Hobbes não é mais a ciência da justiça, uma ciência da promoção do justo ideal ou da garantia de meio-termo. Nesse sentido, aparece aqui mais uma diferença entre Hobbes e Platão e Aristóteles. Afinal de contas, nesse contratualista do século XVII, a justiça é resultado do cumprimento das leis estabelecidas pelo poder soberano, ao contrário de Aristóteles para quem a justiça era o princípio a partir do qual o direito surgiria, tendo a função de garanti-la. É uma diferença também em relação a Platão, para quem a justiça estava presente no mundo das idéias, e seria captada pelos filósofos. Nada mais estranho em Hobbes do que a idéia de justiça social, de justiça distributiva, de partes justamente distribuídas entre membros de um grupo social. Como discípulo do nominalismo, o que vale para ele é uma ciência dos direitos subjetivos, e o seu resultado: o pacto, o Estado e a lei que incide sobre os direitos desse contrato, garantindo-lhe força e segurança aos contratados. O pacto, portanto, mais do que a relevância de ter sido feito pelos indivíduos, tem como finalidade esses próprios indivíduos e a preservação dos seus direitos subjetivos, de onde o instinto de conservação consiste no sentido mais seguro diante de uma natureza também egoísta e competitiva. A legitimidade no soberano está na consciência de que sem ele o mundo seria pior e arriscado, sendo a vida - a maior das riquezas - um bem incerto, daí a obrigação categórica da obediência ao Leviatã.


5. Conclusão

Ao longo da história, em especial a ocidental, já que essa é a história que costumamos estudar em teoria política, a relação entre indivíduo e sociedade sempre foi uma grande preocupação dos mais diversos teóricos. Daí a sociabilidade ser numa das primeiras questões de ordem política colocada na história do pensamento. Tendo escolhido, como o fiz, os temas da justiça e do direito, muitos foram os filósofos políticos que contribuíram para o avanço dessas questões como forma de interação entre o homem e o meio social. No caso dos pensadores aqui escolhidos, Platão, Aristóteles e Hobbes, temos três exemplos de interpretações jusnaturalistas, pertencentes a doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um "direito natural" enquanto um sistema de normas de conduta intersubjetivas, o que é diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado, que forma o “direito positivo”. Para os jusnaturalistas, este direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer. Recapitulemos sinteticamente como isso ocorre em cada caso aqui analisado.

Em Platão, justiça e direito aparecem como categorias próximas uma da outra, dentro da lógica idealista em que repousa a proposta platônica. A cidade justa seria aquela em que todos os seus cidadãos desempenhassem funções condizentes com sua natureza e talento. Ou seja, cada um deveria exercer suas atividades conforme suas aptidões naturais. Voltados para a administração da política, Platão atribui essa função aos filósofos, pois os considera como aqueles que possuíam a sapiência necessária para levar a cidade-estado ao bem comum. Em Platão, o filósofo é quem define o que fazer com o direito, devendo corresponder-lhe à aplicação da justiça visando o melhor para polis. Platão recusa a definição do positivismo jurídico e as leis oriundas essencialmente pelo Estado. Na sua concepção, o direito deve estar atrelado à virtude da justiça, e esta deve ser alcançada pelos filósofos encontrando-as no mundo sensível através do seu processo dialético-reflexivo. Daí a sua lógica jusnaturalista, em contraposição a qualquer aceitação de que o Estado construído pelos homens pudesse elaborar um direito justo. Afinal de contas, em sua teoria, a justiça é posta como virtude subjetiva. Sendo virtude, se manifestava em graus distintos nas pessoas, daí os filósofos serem exatamente os mais capacitados a alcançá-la com vistas a aplicá-la no mundo real.

Com relação a Aristóteles, este entende que a justiça consiste no meio-termo - aquilo que se encontra entre os vícios do excesso e da escassez. Esse formato de justiça, desenvolvido nas relações sociais, um tipo de justiça particular, se constitui em consonância com a justiça geral presente na ordem natural. Por isso ele é jusnaturalista, pois entende que o direito extraído das relações sociais se desenvolve em relação com essa ordem presente na natureza, encontrando ali o seu fundamento e legitimidade. O fundamento da lei positiva só tem cabimento se estiver em sintonia com a justiça geral. Portanto, direito e justiça caminham lado a lado em Aristóteles, de modo que o primeiro é a tentativa de aplicação do segundo, e deve ser aplicado nas circunstâncias em que a ordem natural, caracterizada pela igualdade proporcional entre os bens sociais, for ameaçada por ações que lhe forem contrárias. Em Aristóteles, a eqüidade, por exemplo, é uma forma de justiça prática, efetiva. Nela se verifica o caso concreto, buscando-se a solução mais adequada para a sua resolução. Assim, enquanto a justiça caracteriza-se por uma medida abstrata, a eqüidade dirige-se à concretude do fato.

Já em Hobbes, sua filosofia política se difere um pouco dos autores anteriores. Temos aqui um autor, a princípio jusnaturalista, mas que também lança mão do positivismo jurídico. Em seu contrato social, os indivíduos cedem e transferem seus direitos naturais de governarem-se a si mesmo a um poder estatal, o grande Leviatã. Este, por sua vez, deverá garantir a ordem e a segurança, ameaçadas pela natureza egoísta e competitiva do próprio homem. A legitimidade das leis e do direito do Estado está no fato de ele ser a própria representação dos indivíduos. Se olhássemos para Hobbes como um teórico tão somente do direito natural, teríamos uma observação extremamente limitada e incompleta a seu respeito. O positivismo jurídico deve muito da construção de seus principais postulados a Hobbes, que teve influências indeléveis nas obras de Bentham, Austin, Kelsen e Schmitt, para citar apenas alguns. Devemos atentar que os temas centrais da obra de Hobbes sempre giraram em torno de um núcleo específico, a unidade do Estado. Eis a questão central. Ele está preocupado em definir os parâmetros para que um Estado uno e voltado para a paz seja algo factível, e define isso a partir do autoritarismo do soberano. Daí Hobbes ser lido como precursor do direito positivo, embora tal definição não tenha aparecido explicitamente em sua obra. O Estado define leis para manter a ordem e aí está a justiça, no fato deste poder ser representativo da vontade natural dos homens. As próprias noções de justo ou injusto não existiam antes do pacto social, visto a necessidade destes conceitos serem mensurados conforme um padrão de ordem instituído pelo Leviatã. Assim, também lei natural e lei civil foram tratadas por Hobbes de modo ora a balançar tendendo para o jusnaturalismo, ora cedendo espaço para o que viria a ser chamado mais tarde de positivismo. A verdade que nos parece é que Hobbes deixou bases bem sólidas para uma ordem positivista, mas o jusnaturalismo de maneira alguma pode ser sonegado de seus tratados.

Nossos três autores, por fim, caracterizam-se pela grande relevância na história do pensamento ocidental – a qual a teoria política procurou se apropriar. Além disso, foram fundamentais nas tomadas de decisão que moldaram parte relevante da estrutura ocidental: aquela voltada para as lógicas da justiça e do direito. Em Platão começam as idéias sólidas dentro de um período grego recém-saído da era cosmológica, em que se atribuíam aos mitos as razões para os fenômenos sociais, e, ainda, uma época marcada pela disseminação das idéias sofistas. Seu mestre, Sócrates, lança um dos argumentos basilares da ciência moderna através da lógica do questionamento insistente acerca das coisas, e esse fundamento Platão acaba por seguir, nos deixando como legado o mesmo propósito. Sua contribuição é enorme para o pensamento ocidental, haja vista que pensamos justiça enquanto algo da ordem do excepcional, e tal como a transitoriedade do que é verdade aparecia em Sócrates, também o conceito de justiça não possui definição fechada, sendo também transitória.

Seguindo-lhe, Aristóteles buscou pensar um tipo determinado de igualdade proporcional, e nisso ele se distanciou de Platão. Em Aristóteles, a justiça está na natureza, e todos lhe têm acesso, embora nem todos apliquem a justiça em suas ações. Com efeito, é para estes que servirá o direito, como forma de aplicar-lhe uma sanção, impedindo a corrosão da justiça supostamente implantada no meio social a partir da distribuição proporcional de seus bens, cargos e serviços. Ao falar de Aristóteles e de justiça particular, me lembro logo de um dos mais candentes debates da sociologia atual, que consiste na implantação de políticas de ações afirmativas, como forma de distribuir cargos e funções dentro de uma sociedade que se tornou desigual mesmo tendo como base o fundamento da igualdade liberal. Se não bastasse tanta influência de Aristóteles para inúmeras categorias analíticas da modernidade, ele foi o sujeito que mais influenciou o pensamento jurídico romano, de onde importamos boa parte do nosso direito moderno. Afinal de contas para que serve o direito contemporâneo senão para corrigir o esgarçamento social, colocando-o no lugar segundo suas regras e padrões. Estas bases, pois, estão no direito aristotélico.

Por fim, em Hobbes temos o nascimento do positivismo jurídico, nada mais proeminente na metodologia jurídica moderna, onde o direito serve como braço da organização política do Estado, estando voltado para a garantia das regras e a manutenção da ordem e da segurança. Num mundo marcado pela violência e pelo terrorismo, os direitos individuais ficam cada vez mais presos diante da ampliação de um sistema internacional regido por estados policiais que atuam por meio da truculência, da vigilância e da repressão. Tudo em nome da segurança coletiva e da ordem, supostamente postas em perigo. Portanto, busca-se na atualidade um modelo de justiça por meio de ações de força que muito nos lembra os argumentos hobbesianos para a substituição do estado de natureza pelo estado social. É nesse sentido que encontrei relevância nos autores aqui escolhidos, e é dessa maneira que a filosofia política persiste viva na obra desses clássicos. Sem dúvida alguma, visionaram um mundo séculos a sua frente, ainda que estivessem tratando da realidade que lhes cercava, exatamente por detectarem tão bem as características da espécie humana e do meio em que habitaram.


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Notas

[1] Natureza aqui pode ser entendida como o princípio que impulsiona o ser a realizar o seu fim nas relações sociais.

[2] Do direito romano-germânico, para se ter uma idéia, pertencem os direitos de toda a América Latina, de toda a Europa continental, de quase toda a Ásia (exceto partes do Oriente Médio) e de aproximadamente metade da África.

[3] Duas coisas são importantes a serem explicitadas nesse momento: as características desse rei-filósofo e o percurso da descoberta do justo. Em primeiro lugar, ao rei-filósofo - legislador e governante ideal da cidade -, seria exigida para a sua formação os estudos da matemática, da astronomia, da harmonia e da dialética, para que pudessem definitivamente se libertar das formas sensíveis para se elevar à verdade, ou seja, ao que Platão chama de “mundo das Idéias”. Tais ciências não deveriam ser estudadas sob o prisma de seus fins utilitários, mas deveriam despertar a inteligência, de modo a desenvolverem o conhecimento ideal a respeito da cidade justa. O estudo seria a fonte de uma espécie de aperfeiçoamento daqueles que são capacitados para a dialética do conhecimento das principais virtudes, dentre as quais a justiça seria uma das principais. Em segundo lugar, o mundo da caverna representa o mundo dos sentidos, ao passo que o mundo exterior representa o mundo inteligível. Essa alegoria representa as diferentes etapas da educação e do progresso do filósofo no sentido da ciência do Bem. Relevante lembrar que na Atenas do século V a.C – e aqui está a influência sobre o pensamento de Platão -, após uma formação literária e musical, acrescida de fundamentos matemáticos rudimentares, todo ateniense de boa família tinha contato com a filosofia na adolescência, era uma ciência voltava para a moral, a política e a religião.

[4] Segundo o mito, Er é um pastor da região da Panfília. Ao morrer, foi levado para o Reino dos Mortos, onde chegando encontra as almas dos heróis gregos, de governantes, de artistas, de seus antepassados e amigos. Ali, as almas contemplavam a verdade e possuíam o conhecimento verdadeiro. Er fica sabendo que todas as almas renascem em outras vidas para se purificarem de seus erros passados até que não precisem mais voltar à Terra, permanecendo na eternidade. Antes de voltar ao nosso mundo, as almas podem escolher a nova vida que terão. Algumas escolhem a vida de rei, outras de guerreiro, outras de comerciante rico, outras de artista e de sábio. No caminho de retorno à Terra, as almas atravessam uma grande planície por onde corre um rio, o Lethé (que, em grego, quer dizer esquecimento), e bebem das suas águas. As que bebem muito esquecem toda a verdade que contemplaram; as que bebem pouco quase não se esquecem do que conheceram. As almas que escolheram uma vida de poder, riqueza, glória, fama ou uma vida de prazeres, bebem água em grande quantidade, o que as faz esquecer as idéias que contemplaram. As almas dos que escolhem a sabedoria quase não bebem das águas e por isso, na vida terrena, poderão lembrar-se das idéias que contemplaram e alcançar, nesta vida, o conhecimento verdadeiro.

[5] Em Aristóteles, para se determinar qual é o melhor regime jurídico de um lugar deve-se olhar para a sua realidade. É igual à determinação de qual o melhor regime político, apto a tornar os cidadãos felizes, sábios e cultivados, quando o correto para essa determinação seria observar a realidade do povo e seu governo (Aristóteles, 2001).

[6]Cabe dizer que ao romper com a linhagem tradicional do catolicismo medieval, ancorada em grande parte no pensamento platônico, São Tomás de Aquino situou-se na vanguarda de seu tempo, em pleno século XIII. Boa parte de sua obra tem como fonte o pensamento aristotélico, a partir da qual São Tomás contribuiu para a adaptação e a sobrevivência da fé cristã paralelamente à nova mentalidade racionalista que se tornaria, nos séculos seguintes – com o renascimento e depois com o iluminismo -, o fio condutor da civilização ocidental. 

[7] O nominalismo surgiu nos séculos XI e XII como reação à idéia de uma ordem universal. Já no nominalismo de Guilherme de Ockham (século XIII e XIV), existem tão somente indivíduos, sendo este mundo composto de pessoas e de coisas singulares. Assim, Ockham acreditava que toda ciência se constrói a partir de coisas singulares em torno dos indivíduos. Como conclusão, assim como as noções gerais, também os organismos coletivos, como a pólis, são criações dos indivíduos, e não algo naturalmente existente.

[8]Deve-se ressaltar aqui, como será mais explorado na conclusão, que Hobbes não deixa de maneira alguma de ser jusnaturalista, atribuindo a origem do direito ao direito natural. O que se quer dizer ao se falar em Hobbes como positivista jurídico é que ele lançou uma base argumentativa para o Estado semelhante ao que o positivismo jurídico faria tempos à frente. Para os positivistas jurídicos legítimos, todo o direito emana do Estado enquanto representante do  corpo social, descartando qualquer fonte oriunda da natureza. Podemos dizer, com isso, que Hobbes é um precursor do positivismo jurídico, mas as suas raízes encontram-se fincadas no jusnaturalismo.


Abstract:This article of political theory is an analysis of the relationship between Plato, Aristotle and Hobbes with regard to issues of justice and the law. Both topics are relevant to political theory, because dealing with questions of order and security, issues involving politics in the broad sense. Plato and Aristotle represent the basis of the idea of justice in the Western world, so we can find the law as a social mechanism responsible for a type of social and political relations adjustment. On the other hand, Hobbes, an important contractualist of the modern age, is considered by some as the precursor of legal positivism, although the natural law is also broadly evident in his theory. With this panorama, my objective is trying to think about the approaches and distances between these three classic authors, in a theoretical articulation allegedly possible.

Key-words: political theory, justice, law, Plato, Aristotle, Hobbes.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Walace. Justiça e Direito em Platão, Aristóteles e Hobbes. Convergências e divergências de teoria política. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3425, 16 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23037. Acesso em: 24 abr. 2024.