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A Corte Internacional de Justiça e a sua contribuição para manutenção da segurança internacional.

Uma breve reflexão sobre sua estrutura organizacional e atuação na manutenção da paz

A Corte Internacional de Justiça e a sua contribuição para manutenção da segurança internacional. Uma breve reflexão sobre sua estrutura organizacional e atuação na manutenção da paz

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Apesar de necessitar de sérias reformas estruturais, principalmente em questões como independência para execução de suas sentenças, a Corte Internacional de Justiça possui um papel de destaque na manutenção da paz e da segurança internacional.

Resumo: A Corte Internacional de Justiça foi concebida como principal órgão judiciário das Nações Unidas, detentora de capacidade para dirimir litígios internacionais que poderiam desaguar em conflitos internacionais, que por sua vez, teriam potencial para abalar a delicada paz estabelecida na esfera internacional. O presente estudo almeja estudar a complexa estrutura do presente órgão, bem como a sua atuação na manutenção da paz no decorrer dos séculos XX e XXI.


1 - CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Detentora dos anseios de paz e harmonia de toda a população mundial, a ONU, como vislumbramos, tem como finalidades primordiais a resolução de litígios, mantendo a paz entre os Estados e a prerrogativa de mobilizar a comunidade internacional para deter uma agressão que possa ocorrer.

Para tanto, foi necessário idealizar e realizar uma complexa estruturação de um sistema de segurança coletiva, que exigiu a criação de inúmeros órgãos, que em certa medida, devem trabalhar em harmonia, para solucionar os conflitos internacionais de forma pacífica e evitar eventuais distúrbios na esfera internacional.


2 – PRECEITOS NORMATIVOS  

É através da precípua a função de mantenedora da paz, que a ONU, através de seus Estados-membros, criou a Corte Internacional de Justiça (CIJ), com o objetivo de se tornar o “principal órgão judiciário das Nações Unidas”, assim qualificada no art. 92 da Carta da ONU, e com este intuito dirimir os conflitos internacionais de forma pacífica.

A importância da CIJ é tão latente que, na Carta da ONU, que possui 111 artigos, o único documento anexo é o Estatuto da Corte Internacional de Justiça, com 70 artigos. Estes ordenamentos jurídicos delineiam suas funções, propósitos, missões e composição de seus órgãos internos bem como disciplinam o relacionamento entre os Estados-membros.

A Organização das Nações Unidas, segundo a própria Carta da ONU, é uma associação de Estados reunidos com os propósitos declarados de “manter a paz e a segurança internacionais”, “desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e autodeterminação dos povos”, conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e as liberdades fundamentais para todos” e “ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetos”. Obviamente que para alcançar tal objetivo, a ONU deverá delegar algumas funções a órgãos distintos, dentre eles a CIJ, que tem como objetivo solucionar litígios internacionais, sob uma ótica jurídica.

Para tanto, a Carta da ONU, em seu artigo 7º, estabeleceu a CIJ como um de seus órgãos principais:

“Artigo 7 - 1. Ficam estabelecidos como órgãos principais das Nações Unidas: uma Assembléia Geral, um Conselho de Segurança, um Conselho Econômico e Social, um conselho de Tutela, uma Corte Internacional de Justiça (...)” (grifo meu)

Entretanto, em seu art. 92, a Carta vai ainda mais longe, descrevendo a CIJ como seu principal órgão judiciário: “ARTIGO 92 - A Corte Internacional de Justiça será o principal órgão judiciário das Nações Unidas (...)”.

Ressalte-se, no entanto, que, a Corte Internacional de Justiça, apesar de ser o principal órgão judiciário das Nações Unidas, não é o único, como bem pondera o professor Celso D. de Albuquerque Mello: “Devemos assimilar inicialmente que a palavra “principal” significa não ser ele o único Tribunal.” (MELLO, 2004, p. 682) Ademais, na própria Carta das Nações Unidas, já pondera sobre a resolução de conflitos em outras esferas do judiciário internacional, que não seja a CIJ, conforme dispõe o art. 95 da referida Carta: “Nada na presente Carta impedirá os Membros das Nações Unidas de confiarem a solução de suas divergências a outros tribunais, em virtude de acordos já vigentes ou que possam ser concluídos no futuro.”

Quanto ao Estatuto da Corte Internacional de Justiça, este consta de setenta artigos e pouco diferem da antiga Corte, instituída pela Liga das Nações. Não é acompanhado, como o outro, de uma cláusula facultativa expressa, mas esta se acha implícita no artigo 36 do novo Estatuto, transcrito a seguir:

1. A competência da Corte abrange todas as questões que as partes lhe submetam, bem como todos os assuntos especialmente previstos na Carta das Nações Unidas ou em tratados e convenções em vigor.

 2. Os Estados partes do presente Estatuto poderão, em qualquer momento, declarar que reconhecem como obrigatória ipso facto e sem acordo especial, em relação a qualquer outro Estado que aceite a mesma obrigação, a jurisdição da Corte em todas as controvérsias jurídicas que tenham por objeto:

  a. A interpretação de um tratado;

b. Qualquer questão de direito internacional;

 c. A existência de qualquer fato que, se verificado, constituiria violação de um compromisso internacional;

 d. A natureza ou a extensão da reparação devida pela ruptura de um compromisso internacional.

3. As declarações acima mencionadas poderão ser feitas pura e simplesmente ou sob condição de reciprocidade da parte de vários ou de certos Estados, ou por prazo determinado.

4. Tais declarações serão depositadas junto do Secretário-Geral das Nações Unidas, que as transmitirá, por cópia, às partes contratantes do presente Estatuto e ao escrivão da Corte.

 5. Nas relações entre as partes contratantes do presente Estatuto, as declarações feitas de acordo com o artigo 36 do Estatuto da Corte Permanente de Justiça Internacional e que ainda estejam em vigor serão consideradas como importando a aceitação.

6. Da jurisdição obrigatória da Corte Internacional de Justiça, pelo período em que ainda devem vigorar e em conformidade com os seus termos.

 7. Qualquer controvérsia sobre a jurisdição da Corte será resolvida por decisão da própria Corte.

A sede, mantendo a tradição que surgiu com a criação da Liga das Nações, continua a ser em Haia e suas línguas oficiais são o Francês e o Inglês, conforme dispõe o artigo 39, do Estatuto da CIJ: “Artigo 39 - 1. As línguas oficiais da Corte serão o francês e o inglês. Se as partes concordarem em que todo o processo se efetue em francês, a sentença será proferida em francês. Se as partes concordarem em que todo o processo se efetue em inglês, a sentença será proferida em inglês. (...)”.

Constata-se, ainda, que ocorre uma verdadeira sinergia entre os demais órgãos das Nações Unidas e a CIJ. Isso é comprovado através da Carta da ONU, que permite expressamente que a Assembléia Geral e o Conselho de Segurança solicitem pareceres jurídicos, em casos que assim necessitarem:

ARTIGO 96 - 1. A Assembléia Geral ou o Conselho de Segurança poderá solicitar parecer consultivo da Corte Internacional de Justiça, sobre qualquer questão de ordem jurídica. 2. Outros órgãos das Nações Unidas e entidades especializadas, que forem em qualquer época devidamente autorizados pela Assembléia Geral, poderão também solicitar pareceres consultivos da Corte sobre questões jurídicas surgidas dentro da esfera de suas atividades.

A CIJ, conforme o art. 94 da Carta das Nações Unidas, também poderá utilizar dessa sinergia para que uma decisão prolatada por ele seja cumprida na sua inteireza, utilizando neste caso dos poderes atribuídos ao Conselho de Segurança da ONU (CS). Recebendo a solicitação de cumprimento de sentença, seus Estados membros votam e, em caso de aceitação, se utilizam dos poderes inerentes ao CS para seu cumprimento. Sendo assim, a execução de uma sentença prolatada pela Corte, “constitui, em contrapartida, um problema distinto, que deve ser regulado por meios políticos”, para tanto, a execução “voluntária ou forçada das obrigações internacionais cabe à parte derrotada e pertence ao domínio da política” (BRANT, 2005, p. 389), o que por certo, é causador de um grande estorvo.


3 – ORGANIZAÇÃO DA CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA

A relação de aguda afinidade, entre a ONU e a CIJ, é brilhantemente citada, com o conhecimento de causa, pelo ex-Jurista Adjunto da Corte, professor Leonardo Nemer, quando este diz que “a conexão orgânica entre a Corte e as Nações Unidas é, assim, potencialmente muito mais manifesta do que aquela anteriormente existente entre a Corte e a Liga” (BRANT, 2005, p. 276).

Baseando-se no art. 98 da Carta das Nações Unidas, podemos afirmar que a CIJ é o único órgão da ONU que não é assistido pelo Secretário-Geral da Organização. Sua criação de maneira autônoma garante a independência de que este órgão necessita. Portanto, ressaltando que a Corte funciona em caráter permanente[1], esta necessita, além do corpo qualificado de magistrados, também de um secretariado, incumbido de realizar todas as atividades administrativas, comumente necessárias para a regular prática judiciária.

 Assim, a CIJ é composta por 15 juízes, “eleitos” e naturais de cada Estado membro das Nações Unidas, conforme regula o art. 2º do Estatuto: “Artigo 2 - A Corte será composta por um corpo de juizes independentes eleitos sem ter em conta a sua nacionalidade, entre pessoas que gozem de alta consideração moral e possuam as condições exigidas nos seus respectivos países para o desempenho das mais altas funções judiciais, ou que sejam jurisconsultos de reconhecida competência em direito internacional.”

Observa-se ainda que não poderá haver dois juízes nacionais do mesmo Estado. O mandato dos juízes é de nove anos, que pode ser renovado.

 Entretanto, o professor Hildebrando Accioly realiza uma oportuna ressalva, ao ressaltar que o “mandato dos juízes é de nove anos, exceto os dois terços dos escolhidos na primeira eleição, dos quais cinco terminaram suas funções ao fim de três anos e os outros cinco, ao fim de seis anos” (ACCIOLY, 2002, pag. 226).

A eleição dos juízes é realizada na mesma ocasião, mas separadamente, pela Assembléia Geral e pelo Conselho de Segurança. A eleição nestes dois órgãos será feita por maioria absoluta, não havendo no Conselho de Segurança qualquer diferença entre os membros permanentes e os não permanentes.

Os dois órgãos da ONU decidirão entre os nomes constantes "de uma lista de pessoas apresentadas pelos grupos nacionais da Corte Permanente de Arbitragem". Se o Estado não fizer parte da Corte Permanente de Arbitragem, ele utilizará processo semelhante (art. 4º, alínea 2ª do Estatuto da CIJ). "Nenhum grupo deverá indicar mais de quatro pessoas, das quais no máximo duas poderão ser de sua nacionalidade" (art. 5º, alínea 2ª do Estatuto da CIJ).

Por fim, as listas são encaminhadas à Assembléia Geral e ao Conselho de Segurança, que fazem as eleições em separado. Após serem encaminhadas, elas serão comparadas às duas listas dos eleitos. Se perdurarem vagos os cargos, serão realizadas uma segunda e terceira eleição. Se ainda assim, a situação perdurar, será formada uma Comissão de seis membros (três do Conselho e três na Assembléia Geral) que, por maioria absoluta, escolherá um dos candidatos e o submeterá à aprovação da Assembléia-Geral e do Conselho de Segurança.

Esta comissão pode escolher um nome que não seja candidato. Se esta comissão não chegar a um acordo, os membros da Corte é que decidirão o procedimento da vaga entre os candidatos "que tenham obtido votos na Assembléia Geral ou no Conselho de Segurança" e em caso de empate na Corte, o juiz mais velho "terá voto decisivo".

O que ocorre em muitas das eleições realizadas é que é eleito número maior de candidatos do que as vagas disponíveis. Neste caso, são feitas eleições sucessivas até que o número de eleitos seja igual ao número de vagas. A demissão de um juiz só é feita por decisão unânime da própria Corte.

É de vital importância, ainda, fazer menção aos ensinamentos do professor Hidelbrando Accioly que recorda: “A Corte tem um presidente e um vice-presidente, eleitos por três anos e reelegíveis. Seu escrivão ou greffier, por ela própria nomeado, é o chefe dos serviços administrativos.” (ACCIOLY, 2002, pag. 227) Suprindo assim toda a hierarquia da Corte.

O professor Accioly alerta ainda que:

Nenhum deles (Juizes eleitos para a Corte) poderá exercer qualquer função política ou administrativa, ou dedicar-se a outra ocupação, de natureza profissional. Além disto, não poderá servir como agente, consultor ou advogado, em qualquer questão, nem poderá participar da decisão de qualquer questão na qual, anteriormente, tenha intervindo, seja como agente, consultor ou advogado de uma das partes, seja como árbitro ou juiz, seja qualquer outro caráter (ACCIOLY, 2002, pag. 227).

Importante salientar ainda que, os juízes da mesma nacionalidade de qualquer das partes, conservam o direito de funcionar, em qualquer questão julgada pela Corte, conforme regulamenta o art. 2º do Estatuto da CIJ.

Se esta conta em suas funções com um juiz da nacionalidade de uma só das partes, a outra parte poderá designar para funcionar igualmente, como juiz, uma pessoa de sua escolha. Se a Corte não incluir entre os seus membros algum juiz da nacionalidade de qualquer das partes, cada uma destas poderá designar para funcionar como juiz uma pessoa da sua escolha.

Os Juízes membros da Corte, pelo seu caráter deliberativo e decisório, gozam de privilégios e imunidades, inerentes apenas a estes, devidamente regulamentados pela Resolução 90 da Assembléia Geral, de 11 de dezembro de 1946, relativa aos Privilégios e Imunidades dos membros da Corte Internacional de Justiça, do Secretário, dos Funcionários da Secretaria, dos Assessores, dos Agentes e Conselheiros das Partes, bem como das Testemunhas e dos Peritos, neste sentido podemos enumerar alguns destes privilégios:

·         . Os membros da Corte se beneficiam, de uma maneira geral, do mesmo tratamento dado aos chefes de missão diplomática acreditados nos Países Baixos;

·         . Os membros da Corte de nacionalidade holandesa não devem responder perante a jurisdição local por atos realizados no cumprimento de sua qualidade oficial e nos limites de suas atribuições. Estão, igualmente, isentos de qualquer imposto direto sobre a sua remuneração;

·         . A esposa e os filhos solteiros dos membros da Corte partilham da condição do chefe de família se viverem com ele e não possuírem profissão. Os funcionários da família se beneficiam da mesma situação daquela que é concedida aos funcionários domésticos das pessoas diplomáticas de mesmo grau;

·         . Os membros da Corte, se residirem em um outro país que não o seu, gozarão de privilégios e imunidades diplomáticas durante a sua residência, com a finalidade de estarem a qualquer momento à disposição da Corte;

·         . Os membros da Corte devem possuir todas as facilidades para deixar os países em que se encontrem, bem como para entrar e sair do país hospedeiro da sede da Corte. No curso dos deslocamentos referentes ao exercício de suas funções, devem se beneficiar, em qualquer país que tenham que atravessar, da totalidade dos privilégios, imunidades e facilidades reconhecidas nestes países aos agentes diplomáticos;

·         . As autoridades dos Estados membros devem reconhecer e aceitar os laissez-passer concedidos pela Corte Internacional de Justiça aos seus membros como documentos válidos de viagem, sendo que devem ser concedidas aos titulares do laissez-passer as facilidades de uma viagem rápida;

·         . Os privilégios e imunidades são conferidos aos membros da Corte no interesse da administração da justiça internacional e não no interesse pessoal dos beneficiários. 

Em contrapartida, os membros da Corte possuem alguns impedimentos. O seu Estatuto contém duas formas distintas de incompatibilidade no que diz respeito ao desempenho da função jurisdicional. Conforme regula o art. 16, § 2º do Estatuto da CIJ, nenhum membro da Corte poderá exercer qualquer função política ou administrativa, ou dedicar-se a outra ocupação de caráter profissional. O outro impedimento está previsto no artigo. 17, § 2º do Estatuto, prevendo que nenhum membro da Corte poderá participar de uma decisão sobre uma questão na qual tenha trabalhado anteriormente como agente, consultor ou advogado de uma das partes, como membro de um tribunal nacional, internacional, ou comissão de inquérito, ou em qualquer outro caráter. Cabe à própria CIJ, em caso de obscuridade a respeito do fato, prolatar decisão[2]

Os magistrados não poderão ser demitidos, exceto por unanimidade de votos de seus pares. A CIJ funciona permanentemente, tendo direito, no entanto, a um período de férias judiciárias, de licenças periódicas e de licença em casos excepcionais. Funciona ordinariamente em sessão plenária, explicada pelo professor Accioly:

Ordinariamente a Corte funciona em sessão plenária, mas, para constituí-la, é suficiente o quorum de nove juízes. Poderá periodicamente formar uma ou mais câmaras, compostas de três ou mais juízes, conforme ela mesma determinar, para tratar de questões de caráter especial, como, por exemplo, questões trabalhistas e assuntos referentes a trânsito e comunicações. Poderá igualmente, em qualquer tempo, formar uma câmara especial, com o número de juízes que acordar como as partes, para decidir determinadas questões. Além disso, a fim de apressar a solução dos assuntos, constituirá anualmente uma câmara, composta de cinco juízes, a qual, a pedido das partes, poderá considerar e resolver sumariamente as questões. Qualquer dessas câmaras poderá, com o consentimento das partes, reunir-se ou exercer suas funções fora da cidade de Haia. (ACCIOLY, 2002, pag. 227)    

Todos os documentos e decisões desse Comitê devem estar nos dois idiomas oficiais da Corte, quais sejam o inglês e o francês. Se não estiverem, o escrivão está incumbido de providenciar intérpretes e tradutores.

A Corte possui um posicionamento muito conservador, quando se trata das partes em sua jurisdição. Esta entende que apenas os Estados podem litigar sobre sua jurisdição, entretanto, estes Estados podem ou não estar associados à ONU, conforme dispõe o art. 35 do Estatuto da CIJ.

Com este entendimento, as organizações internacionais, inclusive a ONU, não podem ser parte em um litígio perante a CIJ. Elas podem apenas prestar informações à Corte, bem como solicitar pareceres e quanto ao homem, Celso Mello foi categórico ao afirmar: “O homem, apesar das discussões no seio do Comitê de Juristas de Haia, não foi admitido como parte” (MELLO, 2004, pag. 685), tal questão será tratada com mais afinco nos capítulos seguintes.    


4 - A JURISDIÇÃO CONTENCIOSA DA CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇÃ E DEMAIS PROCEDIMENTOS.

Preliminarmente, é essencial conceber que a jurisdição internacional é ainda, via de regra, facultativa, o que, obviamente engloba a Corte Internacional de Justiça.  Dessa forma ela decide, apenas, os dissídios em que todos os litigantes estejam de acordo em submeter à questão à sua apreciação.

Segundo entendimento proferido pela própria Corte Internacional de Justiça, litígio internacional é “um desacordo sobre um ponto de direito ou de fato, uma contradição, uma oposição de teses jurídicas ou de interesses (...)” (MELLO, 2004, p. 686), ao passo que exige necessariamente uma condição material, ou seja, a existência de uma controvérsia entre Estados litigantes.

Tal fundamento originou um novo impasse, uma vez que “o reconhecimento ou não de uma controvérsia é uma questão de fato, que deve ser examinada e determinada pela Corte independentemente das alegações das partes” (BRANT, 2005, p. 221).

Assim, surge uma ambigüidade, tendo em vista que o Direito Internacional exige que a demanda jurisdicional represente um ato soberano de consentimento entre os litigantes, em contrapartida exige que a Corte aprecie sua competência de resolução da demanda entre as partes litigantes. Existindo, portanto, “uma identidade necessária entre o objeto da demanda em um determinado caso e o estabelecimento da competência da Corte. A análise da jurisdição contenciosa da CIJ deve partir do reconhecimento de sua competência” (BRANT, 2005, p. 221).

Deve-se, ainda, realizar um estudo mais contundente quanto à jurisdição e competência, frisando de forma peremptória os seus conceitos mais básicos, com ênfase, logicamente, no Direito Internacional, neste sentido, “pode-se considerar que a noção de jurisdição está vinculada à capacidade abstrata e geral de julgar controvérsias de ordem jurídica: júris dicere, ao passo que a competência diz respeito à autorização dada ao juiz internacional para que este tome conhecimento de uma controvérsia específica” (BRANT, 2005, p. 222).

Há, portanto, uma relação tênue, entre os dois institutos do direito, como astutamente observado pelo professor Leonardo Nemer, ao concluir brilhantemente o assunto em pauta:

A competência é, portanto, a autorização dada ao juiz internacional para que ele possa exercer seu poder jurisdicional, ou seja, a habitação legal que possui a jurisdição internacional para instruir e julgar uma determinada controvérsia. A CIJ pode, deste modo, gozar de jurisdição internacional. No entanto, em razão do território, ratione loci, em razão dos sujeitos, ratione personae, em razão da matéria, ratione materiae ou em razão do tempo, ratione temporis, (...) (BRANT, 2005, p. 222)           

Diante deste contesto, com uma jurisdição já pré-estabelecida, analisa-se a competência ou não de impedimentos para que o litígio seja recebido. Ao passo que “o ato de aceitação da jurisdição da Corte é uma condição preliminar para o estabelecimento da capacidade de comparecer diante desta, por outro não se pode deduzir que, por intermédio deste ato, a competência seja naturalmente reconhecida” (MELLO, 2004, p. 682-683). Nesta condição, observa-se que a Corte possui uma competência, um tanto quanto incomum, uma vez que, cabe a ela avaliar a sua própria competência.

Nota-se, ainda, que o fato de um Estado for membro da ONU e parte do Estatuto não o obriga a submeter compulsoriamente seu litígio ao julgamento da Corte, tal entendimento se baseia no princípio da jurisdição obrigatória que reside na necessidade de consentimento dos Estados como fundamento único para o exercício da atividade jurisdicional da Corte. Sendo necessário assim, um ato complementar dos litigantes, submetendo o litígio ao órgão.

Desta forma, o principal critério utilizado para avaliação dos limites da Corte Internacional de Justiça, foram brilhantemente dissecados pelo professor Leonardo Nemer, que utiliza até mesmo a luz dos conhecimentos do Barão Descamps, respeitado internacionalista em sua época, se não vejamos:

Na realidade, o contraponto à não admissão do princípio da jurisdição obrigatória reside na necessidade do consentimento dos Estados como fundamento único para o exercício da atividade jurisdicional da Corte. Como já remarcava o Barão Descamps ainda em 1899, “a sociedade internacional é uma sociedade de coordenação de Estados soberanos. Sua jurisdição não deve, portanto, se moldar segundo princípios admitidos nas sociedades de subordinação como as diversas sociedades nacionais (BRANT, 2005, p. 222).

Sendo assim, o consentimento dado por um Estado para o estabelecimento de competência da CIJ, não pode ser revogada, por argumentos fúteis ou por mera conveniência da parte litigante, em meio à instância jurisdicional. Esta regra decorre em linhas gerais da aplicação do princípio da boa fé e transparece no acolhimento da norma de estoppel.

Em suma, os Estados litigantes possuem a liberdade de encaminhar uma demanda à CIJ, “mas se esta julgar que o consentimento esta estabelecido, as partes devem admitir seu caráter institucional e a natureza obrigatória e definitiva de sua sentença” (BRANT, 2005, p. 230).

Em contrapartida, a CIJ não pode se limitar a aquisição da competência jurisdicional exclusivamente às demandas em que o consentimento é claro e evidente. Fato é que, o consentimento pode resultar de uma declaração expressa contida em um compromisso formal e prévio, como já exaustivamente mencionado acima, entretanto, ele pode ser também presumido, “a título subsidiário, após a análise de todo “ato conclusivo”, em particular, do comportamento da parte contrária, posteriormente à demanda encaminhada à Corte” (BRANT, 2005, p. 238).  Admitindo-se assim, expressamente o princípio do forum prorodatum.

Com fundamento neste princípio e com o objetivo de determinar o consentimento das partes, a CIJ procede a uma análise profunda da demanda, para finalmente decidir sobre o caso. Sobre o tema em tela, o professor Leonardo Nemer cita o renomado internacionalista F. Rezek, que afirma com propriedade:

nunca se pretendeu que o consentimento fosse sempre expresso, e menos ainda que obedecesse a uma determinada liturgia. Nas relações entre Estados, como nas relações entre indivíduos, é sensato admitir o consentimento tácito, assim como a validade, em certas circunstâncias, de uma presunção de assentimento (BRANT, 2005, p. 238).       

Entretanto, a jurisdição pode ser obrigatória, se esta estiver prevista expressamente em um tratado, são as chamadas cláusulas compromissórias, conforme dispõe o artigo 36, § 1º do Estatuto da CIJ:

Artigo 36 - 1. A competência da Corte abrange todas as questões que as partes lhe submetam, bem como todos os assuntos especialmente previstos na Carta das Nações Unidas ou em tratados e convenções em vigor.

2. Os Estados partes do presente Estatuto poderão, em qualquer momento, declarar que reconhecem como obrigatória ipso facto e sem acordo especial, em relação a qualquer outro Estado que aceite a mesma obrigação, a jurisdição da Corte em todas as controvérsias jurídicas que tenham por objeto:

a. A interpretação de um tratado; (...)

Se, utilizando desse artigo, alguns países já estão celebrando acordos e tratados deixando expresso que em caso de dúvidas quanto à interpretação do mesmo, essas dúvidas serão sanadas por meio de decisão ou consulta à CIJ.

Como já mencionamos antes, a jurisdição pode ser compulsória, baseando-se efetivamente na cláusula facultativa, expressamente tipificada no art. 36, alínea 2ª do Estatuto da CIJ, já devidamente transcrita acima. Esta cláusula originou-se segundo Celso Mello, através de uma proposta na “SDN (Sociedade das Nações) por Raul Fernandes. Ela foi uma forma de transação resultante das discussões ocorridas na SDN: o Comitê de Juristas estabelecera que a jurisdição seria compulsória nos litígios jurídicos, enquanto o Conselho da Liga sustentava a jurisdição facultativa.” (MELLO, 2004, p. 686). O professor Celso, ainda considera como a “‘ponte’ entre a jurisdição facultativa e a jurisdição obrigatória” (MELLO, 2004, p. 686).

Em suma, se o Estado membro reconhece a jurisdição da Corte como obrigatória, que é consumado por uma declaração, se obriga a submeter à apreciação da Corte todos os litígios em que forem partes ou que tenham por objeto as alíneas do artigo 36 do Estatuto da CIJ:         

Artigo 36 –  (...)

a. A interpretação de um tratado;

b. Qualquer questão de direito internacional;

c. A existência de qualquer fato que, se verificado, constituiria violação de um compromisso internacional;

d. A natureza ou a extensão da reparação devida pela ruptura de um compromisso internacional. (...)

Entretanto esta cláusula tem sofrido sérias restrições pelos Estados membros, principalmente em temas ligados a segurança internacional, que a aceitam com reservas. Reservas estas que são admitidas porque o Estado é livre para reconhecer a cláusula como obrigatória ou não, podendo, assim, limitar sua aceitação. Apenas para fins ilustrativos, o professor Celso D. Albuquerque, de forma esclarecedora, oferece vários exemplos do mencionado:

Na prática, esta cláusula tem sido restringida pelos Estados, que a aceitam com reservas: a) reciprocidade; b) determinado prazo (ex.: no art. 31 do Pacto de Bogotá, 1948, os Estados americanos declaram aceitar a cláusula facultativa em redação a qualquer outro Estado americano); d) outros só a aceitam em relação aos membros da ONU; e) diversos países fazem reservas dos assuntos da sua jurisdição doméstica (ex.: reserva Connaly, 1946, dos EUA); f) aplicação de litígios futuros; g) exclusão de litígios com determinados membros (ex.: os membros da Commonwealth excluem os litígios entre eles); h) Portugal fez sobre reserva de poder excluir no futuro certos litígios, o que tornou a sua aceitação praticamente sem efeitos, etc.(MELLO, 2004, p. 686)   

Portanto, para a construção do direito internacional, é melhor que os países aceitem a cláusula facultativa com as reservas que entenderem necessárias, do que simplesmente não a aceitem.  Mas, uma vez aceita a cláusula facultativa, esta não poderá ser retirada após um caso envolvendo o Estado membro for levada à CIJ. Sendo que a doutrina atual segue tal entendimento com veemência:

H. Waldock sustenta que a aceitação da cláusula facultativa sem prazo está submetida ao direito dos tratados e só pode ser retirada com o consentimento das partes, ou então que se aplique a cláusula “rebus sic stantibus”. A Corte aplica o princípio da boa fé e do direito dos tratados. Alguns afirmam que os Estados podem retirar a declaração de aceitação, mas antes da Corte ser chamada a julgar (MELLO, 2004, p. 686). 

Assim, resta realizar um breve comentário acerca do processo, propriamente dito, em tramite na CIJ, que pode ser dividida em três partes distintas e complementares. Estas são, primeiramente, a fase de Alegações Finais, logo após, a fase de observar o processo de convicção e por fim, a fase de deliberação. Tal procedimento possui como fundamento os ensinamentos do professor S. Rosenne, citado pelo professo Leonardo Nemer, que afirma: “O objeto do procedimento é levar o processo até a sua conclusão lógica de uma maneira ordenada, aplicando para tal não a arte da diplomacia, mas a disciplina do direito e do processo judicial” (BRANT, 2005, p. 298).


5 - A SENTENÇA DA CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA

Uma sentença da CIJ é caracterizada pela obrigatoriedade de seu conteúdo e pela impossibilidade jurídica de recolocar em questão os pontos sobre os quais o tribunal já decidiu a título definitivo e irrevogável.

Neste sentido, o artigo 60 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, prevê claramente que a sentença prolatada pelo referido órgão é de natureza definitiva e sem recurso: “Artigo 60 - A sentença é definitiva e inapelável. Em caso de controvérsia quanto ao sentido e ao alcance da sentença, caberá à Corte interpretá-la a pedido de qualquer das partes”. 

Tal preceito possui uma dupla finalidade, a de caráter definitivo da sentença, aparecendo como uma “presunção de direito em virtude da qual os fatos litigiosos e os direitos reconhecidos por um julgamento não podem ser contestados novamente” (BRANT, 2005, p. 419), em quanto que, existe ainda o caráter imutabilidade da sentença, que ela corresponde ao termo imposto para a elaboração da norma individual, chegando a CIJ a um produto acabado que não pode ser mais modificado.

Assim, o julgamento da Corte “manifesta uma noção universal reconhecida como válida” (BRANT, 2005, p. 390), e ainda vinculam as partes a decisão no caso em litígio. Este vínculo mencionado, está diretamente ligado ao art. 59 do Estatuto da CIJ, que determina, “a decisão da Corte só será obrigatória para as partes litigantes e a respeito do caso em questão”, o que estabelece que, “na medida que um Estado não é considerado como uma parte litigante, a decisão jurisdicional será para ele considerada como uma res inter alios acta, ou seja, sem nenhuma existência jurídica” (BRANT, 2005, p. 393).  Sendo assim, a sentença é obrigatória apenas para os Estados litigantes.

A CIJ não deve ser compreendida como Instância recursal, entretanto, existe três casos distintos, em que a Corte é usada indiretamente como tal. Neste entendimento temos o Regulamento da CIJ que prevê a possibilidade de reenvio de um caso contencioso à Corte[3]. Sobre este preceito, Leonardo Nemer é claro ao afirmar que:

A Corte pode, deste modo, considerar-se competente para julgar um contencioso internacional, que veio a ser objeto de um processo diante de outro organismo internacional, desde que um determinado tratado ou convenção o autorize (BRANT, 2005, p. 421).  

Outra circunstância seria a reanálise de uma sentença arbitral, neste caso a Corte deve apenas “pesquisar se o Tribunal arbitral, ao tornar a sentença contestada, desconheceu claramente a competência que lhe havia sido outorgada pelo compromisso, ultrapassando sua competência ou não a exercendo” (BRANT, 2005, p. 425).

E por fim, existe ainda, a possibilidade de reanálise de uma decisão de um tribunal interno. Salienta-se que nenhuma dessas modalidades, faz com que a Corte possua caráter recursal.

Prevista, no já transcrito, artigo 60 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, uma sentença de interpretação no contencioso, deve-se limitar unicamente a esclarecer o sentido e o alcance do que foi decidido definitivamente e com força obrigatória por uma sentença anterior. Assim, uma interpretação concisa e clara, permite, em caso de dúvida, reconhecer os limites da obrigação jurisdicional e determinar o que deve ser executado pelas partes.

Neste sentido, os Estados são obrigados a dar provimento à sentença da CIJ, conforme regulamenta o art. 94, § 1 da Carta das Nações Unidas:

Se uma das partes num caso deixar de cumprir as obrigações que lhe incumbem em virtude de sentença proferida pela Corte, a outra terá direito de recorrer ao Conselho de Segurança que poderá, se julgar necessário, fazer recomendações ou decidir sobre medidas a serem tomadas para o cumprimento da sentença.


6 – A CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA E SUA ATUAÇÃO EM QUESTÕES REFERENTES À MANUTENÇÃO DA SEGURANÇA INTERNACIONAL

Mesmo apresentando uma atuação mais discreta na resolução pacifica dos conflitos internacionais, que teriam a real capacidade de ameaçar à paz e a segurança internacional, a Corte Internacional de Justiça atuou com sabedoria em casos emblemáticos, que findaram em se transformar em marcos para o Direito Internacional e a indicar o caminho a ser trilhado pelos membros da Comunidade Internacional na condução para a paz.

Em alguns casos, estes julgamentos foram contra grandes potências internacionais, dentre elas até mesmo, os que fazem parte dos membros permanentes do CSNU, sendo que a CIJ, sempre apresentou uma conduta de imparcialidade, decidindo os casos que são levados ao seu julgamento com primazia, respeitando o Direito Internacional e representando o estrito senso de justiça tão ansiado pela Comunidade Internacional.

A seguir, apresentaremos alguns casos apreciados pela Corte, que trouxeram luz a alguns procedimentos da ONU referentes à manutenção da segurança internacional, bem como, a conduta que deve ser adotada pelos países em casos específicos como o uso de armas nucleares e a limitação imposta pelo Direito Internacional em não intervenção em atos internos dos países. 

6.1 – O caso das conseqüências jurídicas para os Estados da presença contínua da África do Sul na Namíbia (Sudoeste Africano) não obstante a Resolução 276 (1970) do Conselho de Segurança (1970 – 1971)

O Sudoeste Africano, que seria posteriormente rebatizado pela ONU de Namíbia[4], foi alvo desde a década de 50, de inúmeras ações propostas perante, a CIJ, todas destinadas a almejar uma resolução pacífica para a conturbada região, alvo constante de ocupação estrangeira, de crises humanitárias e de graves violações dos Direitos Humanos.

Após o processo abrupto de descolonização da região[5], a África do Sul foi incumbida da missão de tutelar a região, na forma de administradora do sistema de mandato[6], até que a Namíbia construísse e fortalecesse suas próprias instituições governamentais, podendo assim, declarar a sua independência.

Este status de tutela perdurou até meados de 1945, momento em que a Segunda Guerra Mundial caminha para um desfecho final e a Sociedade das Nações era declarada pelos vencedores do conflito como extinta, a África do Sul, aproveitando-se do conturbado período histórico e de forma unilateral, anexa a região da Namíbia, argumentando para tanto, que com o fim da SdN, sua obrigação de tutelar a região estava extinta, sendo assim, legítima sua ocupação da região.

Diante de tais fatos, foi solicitado à Corte, um parecer sobre a situação da Namíbia – International Status of the South West Africa – sendo declarada por está em 11 de julho de 1950, a ilegalidade do ato perpetrado pela África do Sul e a manutenção do sistema de mandato via regime de tutela, sobre o olhar vigilante das Nações Unidas e do seu Conselho de Tutela.

Em que pese o parecer esposado acima, a África do Sul manteve a ocupação do território namíbio, sem prestar qualquer informação ao Conselho de Tutela da ONU, obrigando a AGNU a adotar no final do ano de 1966, a Resolução 2.145 (XXI), que destituía a África do Sul de seu posto de país tutor da região, devendo ainda, entregar imediatamente a administração do território à CTNU.

Entretanto, novamente a África do Sul não respeitou a citada decisão, que gize-se, foi reinterada em diversas oportunidades, pelo CSNU, que também proferiu resoluções declarando ilegal a ocupação sul-africana, destacando-se a Resolução 276 (1970) que declarou expressamente a ilegalidade da ocupação sul-africana.

Em sua defesa, um dos inúmeros argumentos esposados pela África do Sul, foi que a “Resolução do CSONU 276 (1970) constituía tão-somente uma recomendação, que poderia ser aceita ou rejeitada pelos membros da ONU” (SALIBA, 2008, p. 23). 

Diante do impasse, foi apresentada a CIJ, o caso em tela, para que está proferi-se parecer consultivo sobre a legalidade do ato, seus efeitos sobre os demais países da Comunidade Internacional e as possíveis medidas a serem tomadas.

Em ato continuo, a Corte iniciou sua decisão, analisando de forma inovadora, a legalidade das resoluções e da atuação do CSNU e da AGNU sobre à matéria, tendo ao final, confirmado a competência dos órgãos, para até mesmo, conclamar os Estados-membros da ONU para reconhecerem a ilegalidade dos atos praticados pela África do Sul em nome ou em relação a Namíbia.

Para fundamentar tal decisão, a Corte discorreu de forma primorosa sobre a competência dos citados órgãos onusianos, senão vejamos:

Que a Assembléia Geral não estava investigado fatos [em relação à ocupação da Namíbia], mas formulando uma situação jurídica e que não seria correto supor que, a Assembléia Geral da ONU é, em princípio, investida de poderes de recomendação, estaria excluída de adotar, em casos especiais e dentro da estrutura de sua competência, resoluções que têm o caráter de decisões ou de uma intenção de execução (BRANT, 2005, p. 543).   

Esclarecendo ainda que:

A Assembléia Geral, entretanto, carecendo dos poderes necessários para assegurar a retirada da África do Sul do território e, conseqüentemente, agindo de acordo com o artigo 11, parágrafo 2° da Carta, solicitou a cooperação do Conselho de Segurança. O Conselho, por sua vez, quando adotou as resoluções pertinentes, agiu no exercício daquilo que julgava ser sua responsabilidade principal, isto é, a manutenção da paz e segurança internacionais. O artigo 24 da Carta investe o Conselho de Segurança dos poderes necessários. Suas decisões foram tomadas em conformidade com as finalidades e os princípios da Carta, sob o artigo 25, o qual estabelece o dever dos Estados-membros de obedecer tais decisões, mesmo para aqueles membros do Conselho de Segurança que votaram contra e para os demais membros das Nações Unidas que não são membros do Conselho (BRANT, 2005, p. 543).

 Posteriormente, diante da constatação da ilegalidade do ato perpetrado pela África do Sul e perante o esclarecimento da competência e conseqüentemente da declaração da legalidade das Resoluções e medidas implementadas, tanto pela Assembléia Geral, quanto pelo Conselho de Segurança, a CIJ ponderou as eventuais conseqüências jurídicas para os estados sobre a ocupação sul-africana na região da Namíbia.

Para a Corte, a partir do momento que fosse declarada a ilegalidade de um ato cometido em desfavor da manutenção da segurança internacional, os países devem imediatamente tomar todas as providências necessárias para evitar que estas medidas ilegais se prolonguem.    

Para tanto, no caso da África do Sul, a Corte conclamou a Comunidade Internacional para não medir esforços para isolar diplomaticamente os sul-africanos, ressaltado que deveriam ainda, deixar de praticar alguns atos, em particular, os relacionados com o governo da África do Sul que impliquem o reconhecimento da legalidade, ou forneçam ajuda ou assistência a tal presença e administração. A Corte enfatiza, no entanto, que estas medidas de isolamento, não podem prejudicar o povo namíbio, principalmente em questões humanitárias.

6.2 – O caso concernente às atividades militares e paramilitares na e contra a Nicarágua – Nicarágua versus EUA de 1986-1991. 

Está ação foi interposta pelo governo sandinista em desfavor dos EUA, em meados de 1984, diante da constatação do substancial patrocínio do governo norte-americano aos grupos armados opositores ao governo socialista instituído na Nicarágua.

No curso da instauração dos procedimentos, o governo norte-americano, alegando razões de Estado, manifestou sua desistência em dar continuidade à instrução do feito, informando à Corte, seu total desligamento da ação.

Em que pese este ato deplorável do governo norte-americano, a ação seguiu seu curso natural, sendo que, em junho de 1991, a Corte proferiu sentença, julgando procedente a demanda da Nicarágua, e conseqüentemente condenando os EUA a pagarem uma vultosa indenização ao demandante, ao argumento que os norte-americanos teriam cometido atos ilícitos de responsabilidade internacional, que prejudicaram diretamente o povo da Nicarágua.

Está decisão, considerada de extrema complexidade, seja pelas partes envolvidas, seja pelos inúmeros argumentos esposados, serve até os dias atuais como referencia, seja pela carga de esclarecimentos de como deve ser a conduta dos Estados em questões de segurança internacional, seja pelo ineditismo, de deliberação de temas obscuros relativos à Carta das Nações Unidas, sobre legítima defesa e limites sobre o princípio da não-intervenção.

Inicialmente, vale destacar, que por ocasião dessa decisão, que a CIJ, manifestou pela primeira vez quanto a uma hipótese de conflito entre as obrigações decorrentes da Carta e aquelas advindas de tratados outros, envolvendo as mesmas partes, conferindo a primazia a primeira, em detrimento da segunda. Nestes termos, a Corte assim, proferiu sua decisão:

(...) todos os acordos regionais, bilaterais e mesmo multilaterais que as partes no presente caso podem haver concluído a respeito de solução de controvérsias ou da jurisdição da Corte Internacional de Justiça estão todos subordinados às disposições do art. 103 (BRANT, 2005, p. 856-857).  

A Corte ainda, se posicionou contrariamente à doutrina dominante de intervenção humanitária, ressaltando a conduta que os Estados devem trilhar, evitando “nas suas relações internacionais ameaçar ou usar a força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado e contra o princípio concernente ao dever de não intervir em questões que tocam apenas a jurisdição domestica de um Estado” (BRANT, 2005, p. 870).

Ressaltando, no entanto, que a interdição ao uso da força está estabelecida no direito costumeiro, que comporta excessos especificas, ligadas diretamente à legitima defesa individual e coletiva, estabelecidos pelo direito costumeiro, pelo art. 51 da CNU e da declaração contida na Resolução da AGNU 2625 (XXV). Tal discussão apenas veio à tona, uma vez que, os norte-americanos, teriam argüido em sede preliminar que teriam agido com respaldo da legitima defesa coletiva, uma vez que, o governo da Nicarágua estaria incentivado ações de guerrilha em El Salvador. No entanto, a Corte refutou tal argumentação, asseverando que a legítima defesa deveria ser utilizada apenas quando ocorresse uma “agressão armada”, devendo ainda, respeitar critérios específicos de proporcionalidade e necessidade da intervenção.

Para fundamentar tal decisão, a Corte, pela primeira vez em sua história, trouxe a baila, um conceito do que seria “agressão armada”, que serve como parâmetro conceitual até os dias atuais, senão vejamos:

Deve-se compreender disso [agressão armada] não somente a ação de forças armadas regulares através de uma fronteira internacional, mas ainda o envio por um Estado de tropas armadas sobre o território de um outro Estado desde que essa operação, por suas dimensões e seus efeitos, pudesse ser qualificada como agressão armada se fosse cometida por forças armadas regulares (BRANT, 2005, p. 870).

Os juízes da CIJ discorreram ainda sobre o princípio da não-intervenção, afirmando que este é o direito inerente a qualquer Estado soberano de conduzir seus assuntos sem ingerência externa. Apresentando ainda, os casos concretos em que o princípio deve ser respeitado, asseverando que:

A intervenção proibida deve ser aquela que incide em matérias sobre as quais o princípio da soberania dos Estados permite a cada um decidir livremente (escolha do sistema político, econômico, social e cultural e formulação das relações exteriores, por exemplo). A Intervenção é ilícita quanto utiliza, em relação a tais escolhas, métodos de coerção, principalmente a força, seja sob a forma direta (ação militar) seja sob uma forma indireta (apoio de atividades no interior de um outro Estado). (BRANT, 2005, p. 870).

Por fim, a Corte ressaltou que no Direito Internacional atual, não possuem nenhum direito de resposta armada “coletiva” a atos que não constituam uma “agressão armada”.

Diante dessa fundamentação, a Corte condenou a maior potência econômica e militar do globo, os Estados Unidos da América, determinando que o mesmo cessasse todos os atos de hostilidades contra a Nicarágua, além de declarar o direito à soberania e independência política do país, ressaltando o dever dos Estados em respeitar o princípio relativo à não intervir em assuntos relevantes a competência nacional de um país, determinar ainda, que os EUA reparasse financeiramente os nicaragüenses pelos atos ilícitos cometidos.   

Posteriormente, a esta celebre decisão, a Nicarágua almejou a execução da sentença prolatada, para tanto, acionou pela primeira vez na história, o Conselho de Segurança para vislumbrar satisfeita a obrigação contida na Sentença. O requerimento confeccionado pela delegação da Nicarágua encontrava-se embasada no art. 94, § 2° da Carta, que atribuía ao CSNU à competência de impor as decisões prolatadas pela CIJ.

Em ato contínuo, os norte-americanos vetaram imediatamente o requerimento para que fosse executada a sentença (NASCIMENTO, 2007, p. 168-169), motivo que ensejou o encaminhamento desta para a Assembléia Geral, que resguardada por suas atribuições descritas no art. 10 da CNU, formulou diversas recomendações aos norte-americanos, obviamente, de natureza facultativa.

6.3 – O caso relativo às questões de interpretação e aplicação da Convenção de Montreal de 1971 resultante do incidente aéreo de Lockerbie – Grande Jamahiriya Árabe Popular Socialista da Líbia versus Estados Unidos da America e Reino Unido de 1992.

A Líbia é um país do norte da África, que obteve sua independência formal do Reino Unido, apenas em 1951, sendo administrada desde então, pelo Rei Idris, com tendências claras de apoio ao Ocidente.

Descontentes com tais posicionamentos, um grupo de oficiais do exército, liderados pelo coronel Muammar el-Qaddafi, de apenas 27 anos, tomam o poder na Líbia, em 1969, sem sofrerem qualquer resistência.

Desde então, o governo líbio iniciou uma política de confrontamento explícito com as principais potências ocidentais, quais sejam, Reino Unido e Estados Unidos. Para promover tal política, os líbios iniciaram um programa de auxilio e financiamento de grupos que se tidos como “revolucionários” em inúmeras partes do globo. Segundo o prof. Aziz Tuffi Saliba, a extensão do apoio líbio era ampla e sem se apoiar em muitos critérios ideológicos, segundo este:   

Qaddafi apoiou política e financeiramente grupos tão distintos quanto mulçumanos na guerra civil libanesa, rebeldes de Dhofar que se insurgiam contra o sultanato de Omar, secessionistas da Eritrea que aspiravam à separação da Etiópia e o ETA na Espanha (SALIBA, 2008, p. 45-46)

O contundente apoio a tais grupos ensejou uma crescente repulsa dos países ocidentais, culminando com a adoção de inúmeras sanções unilaterais, pelos EUA, já no inicio da década de 80.

Segundo Aziz Saliba (SALIBA, 2008, p. 47), dois fatos agravaram ainda mais as relações entre o ocidente e a Líbia. O primeiro deles foi o assassinato a tiros de uma policial britânica, em 17 de abril de 1984, em Londres. As investigações conduzidas pelas autoridades policiais londrinas apontavam, como a provável origem do disparo a embaixada líbia. No entanto, apensar dos pedidos formais britânicos, os líbios se recusaram a cooperar, fato que ensejou o rompimento das relações diplomáticas entre o Reino Unido e a Líbia.

Já em abril de 1986, ocorreu, um atentado terrorista a uma casa de shows em Berlim Ocidental, comumente freqüentada por norte-americanos, ensejando a morte de duas pessoas e resultando em mais de cento e cinqüenta feridos, atribuída à terroristas financiados pelo governo líbio. Em resposta a tais fatos, o governo americano, autorizou o bombardeio de posições líbias, causando significativos danos à infra-estrutura do país.

Em que pese, à gravidade dos dois atos citados acima, foi apenas em 21 de dezembro de 1988, é que a situação se apresentou insustentável. Nesta fatídica data, o vôo 103 da Pan Am, que perfazia o trecho Londres a Nova Iorque, explodiu sobre a cidade de Lockerbie/Escócia, matando um total de duzentas e cinqüenta e nove pessoas. As investigações conduzidas pelos governos, norte-americano e inglês, concluíram que a “causa do incidente fora a explosão de um artefato feito de plástico tipo semtex, escondido em um radiocassete, em uma mala armazenada no compartimento de bagagens” (SALIBA, 2008, p. 47). Tais investigações, concluíram ainda, que os responsáveis pelo ato terrorista, seriam membros do governo líbio, devendo, portanto, a Líbia se responsabilizar internacionalmente pelo ato e prestar p auxilio necessário às investigações.

Em setembro de 1989, outro incidente aéreo com as mesmas características do ocorrido na cidade de Lockerbie/Escócia, causou grande comoção internacional. Trata-se do vôo da UTA (Union des Transports Aériens), que perfazia o trecho Brazzaville a Paris, explodiu sob o Níger, resultando na morte de cento e setenta e uma pessoas. Ao concluir as investigações, o governo francês indicou como provável intervenção de membros do governo líbio na condução do incidente, exigindo, desta ainda, que apresentasse provas contrárias a tal alegação.

Diante da pressão da Sociedade Internacional, e da recusa líbia em auxiliar nas investigações dos incidentes citados acima, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, emitiu em Janeiro de 1992, a Resolução 731, determinando à Líbia que cooperasse com as investigações, sob pena de se aplicar sanções em seu desfavor.    

Após, conturbadas negociações, que não satisfizeram as pretensões inglesas, americanas e francesas, o Conselho de Segurança, aprovou a Resolução 748, de março de 1992, que implementaram, uma infinidade de sanções ao governo líbio, dentre as quais, a proibição de pousos e decolagens de aeronaves; proibição de venda de armamentos, munições ou qualquer equipamento militar; proibição de venda de aeronaves de peças de aeronaves, dentre outras.

Não satisfeitos com tais medidas, o Conselho de Segurança autorizou ainda, a Resolução 883, de novembro de 1993, endurecendo ainda mais as medidas implementadas, dentre elas a de congelar os fundos monetários do governo, de autoridades e de empresas líbias, que se encontravam alocados fora do país, além de dificultar a produção petrolífera no país, ao proibir a comercialização de equipamentos destinados à citada indústria.             

Diante das duras sanções impostas, e constatando a impossibilidade de reverte-las no seio do Conselho de Segurança da ONU ou mesmo por intermédio de negociações diplomáticas, a Líbia vislumbrou a possibilidade de recorrer a Corte Internacional de Justiça, para que fossem reconhecidos e resguardados os seus direitos.

Para tanto, o governo líbio promoveu duas demandas em contra os EUA e o Reino Unido, referente a “interpretação ou aplicação da Convenção de Montreal , 23 de setembro de 1971, para a repressão de atos ilegais contra a segurança da aviação civil”.

Conforme destaca o prof. Aziz, os argumentos líbios que fundamentaram as citadas ações se resumem em trechos da Convenção de Montreal, aplicados ao caso em tela, sendo este os líbios aduziram que:

a)       Seria aplicável in casu a Convenção de Montreal, tendo em vista que o ato perpetrado se enquadrava no art. 1° do mencionado tratado;

b)       Em conformidade com o art. 5°, § 2°, da Convenção de Montreal, a Líbia deveria “tomar as medidas necessárias para estabelecer a sua jurisdição”, tendo em vista que os supostos criminosos se encontravam em seu território. Ao fazer ameaças e tomar medidas contra a Líbia, Estados Unidos e Reino Unido obstavam a prerrogativa Líbia de exercer jurisdição;

c)       Nos termos do art. 7° da Convenção de Montreal, a Líbia deveria submeter os acusados às suas autoridades competentes, o que já havia ocorrido. Ao fazer ameaças e tomar medidas contra a Líbia, Estados Unidos e Reino Unido tentavam impedir que a Líbia cumprisse com suas obrigações;

d)       De acordo com o art. 8 (2) da Convenção, a extradição se daria em conformidade com as leis internas do Estado onde se encontrassem os acusados e o art. 493 (a) do Código de Processo Penal Líbio vedava a extradição de nacionais líbios. Descarte, não haveria embasamento no direito líbio ou na Convenção de Montreal para se proceder à extradição requerida e os esforços norte-americanos e britânicos neste sentido constituíam uma violação do art. 8 (2) da Convenção;

e)       Nos termos do art. 11, os Estados contratantes tinham o dever de prestar a maior assistência possível em relação aos processos criminais atinentes à Convenção de Montreal. Ao não colaborar com a Líbia, Estados Unidos e Reino Unido violavam tal obrigação. (SALIBA, 2008, p. 51)

Respaldados por tais argumentos, os líbios requereram junto a Corte Internacional, que os Estados Unidos e o Reino Unido, “cessassem as transgressões à sua soberania, integridade territorial e independência política” (SALIBA, 2008, p. 51), requerendo ainda, que está fosse autorizada por intermédio de uma medida provisória.

Em que pese à argumentação apresentada pela Líbia, a C.I.J., negou à concessão das medidas provisórias pleiteadas, enfatizando em sua decisão que, com base no art. 103 da Carta das Nações Unidas, as decisões do Conselho de Segurança deveriam ser cumpridas integralmente, uma vez que, a Carta prevaleceria sobre a Convenção de Montreal (BRANT, 2005, p. 1033).   

Instados a se manifestar, o EUA e o Reino Unido defenderam a tese, em sede de preliminar, que a Corte não possuiria competência para analisar, ou até mesmo, revogar, Resoluções originarias do Conselho de Segurança da ONU.

Em ato contínuo, a Corte proferiu decisão interlocutória, afastando as preliminares suscitadas, ressaltando que, possui sim, a capacidade para apreciar a legalidade de um ato perpetrado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (BRANT, 2005, p. 1051).

No entanto, durante o tortuoso desenlace da citada demanda, a Organização dos Estados Africanos, resolveu pressionar os EUA e o Reio Unido, para que, imediatamente, almejasse a resolução pacífica do conflito, sob pena de suspenderem a aplicação das medidas proferidas pelo Conselho de Segurança.

Diante de tal contexto, os EUA, com apoio da Inglaterra, apresentaram à Líbia a uma proposta plausível, para por fim a demanda, que segundo seus os termos, os líbios deveriam entregar os acusados para serem devidamente julgados por um tribunal escocês, com sede em Haia. Em contrapartida, as sanções impostas à Líbia seriam suspensas imediatamente.

No intuito de formalizar a proposta apresentada, foi aprovada pelo Conselho de Segurança, a resolução de n° 1.192, que continha os termos da proposta e também a advertência enfática de que se a Líbia não aceitasse os seus termos, poderia acarretar a adoção de novas medidas coercitivas.

Desta forma, em abril de 1999, a Líbia entrega os suspeitos à jurisdição do Tribunal escocês em Haia, e três dias depois, as sanções impostas ao mesmo, são suspensas.

Segundo o prof. Aziz Tuffi Saliba, o grande marco da ação que tramitou perante a Corte Internacional de Justiça, foi o reconhecimento da “possibilidade de controle de legalidade das decisões do CSONU” (SALIBA, 2008, p. 56), o que traz à luz, uma nova perspectiva para a condução do sistema onusiano dos atos para a resolução pacifica dos conflitos internacionais.                    

6.4 – A Licitude da Ameaça ou uso de Armas Nucleares – Opinião Consultiva (1994-1996).

No campo do combate a proliferação das armas de destruição em massa, e principalmente, no uso destas armas em conflitos internacionais, a CIJ proferiu um celebre parecer consultivo, que certamente, terá repercussões por décadas na Comunidade Internacional.

Curiosamente, foi uma Organização Internacional que solicitou, à Corte, uma consulta em relação à licitude da ameaça ou do uso de armas nucleares em um conflito armado. Entretanto, a Corte entendeu que a Organização Mundial de Saúde (OMS) não possuía competência para requerer o parecer, ao argumento de que:

A questão apresentada perante a Corte no presente caso refere-se não aos efeitos do uso de armas nucleares à saúde, mas à licitude de tais armas levando-se em conta seus efeitos na saúde e no meio ambiente[7].   

Em ato contínuo, diante da pertinência do tema suscitado pelo requerimento confeccionado pela OMS, a Assembléia Geral autorizou, por intermédio da Resolução 49/75 K, de 15 dezembro de 1994, o SGNU, formular pedido semelhante ao rejeitado anteriormente, sendo que neste caso, a CIJ reconheceu a admissibilidade da petição.

Neste diapasão, a Corte iniciou a fundamentação de sua decisão reconhecendo às lacunas existentes no ordenamento jurídico vigente que omiti a proibição expressa do uso de armas de destruição em massa, em especial das nucleares.

No entanto, os juízes da CIJ reconhecem e aplicam no caso em tela, o princípio do Direito Humanitário, principalmente, no quesito em que ficou expressamente proibido causar sofrimento desnecessário aos combatentes, arrematando que, em caso de utilização de armas de destruição em massa, tal sofrimento encontrava-se implícito.

Nas palavras desses:

Um ameaça ou uso de armas nucleares deve também ser compatível com as exigências do direito internacional aplicável ao conflito armado, particularmente com aqueles princípios e regras do direito internacional humanitário, bem como com obrigações específicas em virtude de tratados ou outros compromissos que lidam expressamente com armas nucleares.

Asseverando ainda, que:

(...) a ameaça ou o uso de armas nucleares seria geralmente contrária às regras de direito internacional aplicável ao conflito armado, e, particularmente, aos princípios e regras do direito humanitário.

Diante dessa constatação, a Corte elencou os princípios fundamentais do Direito Internacional Humanitário que norteiam a argumentação da ilicitude do uso de armas de destruição em massa, senão vejamos:

O primeiro princípio objetiva proteger a população civil e os bens de caráter civil e estabelecer a distinção entre combatentes e não-combatentes; os Estados nunca devem fazer dos civis, objeto de ataque e nunca devem, conseqüentemente, usar armas que são incapazes de distinguir entre alvos militares e civis. De acordo com o segundo princípio, é proibido causar sofrimento desnecessário aos combatentes; portanto, é proibido utilizar armas que causem ou agravem inutilmente seu sofrimento (BRANT, 2005, p. 614).

Concluindo que é ilícita a ameaça ou o uso da força por meio de armas nucleares, que será contrária, ao disposto no art. 2°, parágrafo 4°, da Carta das Nações Unidas e que deixará de satisfazer todos os requisitos do art. 51 do mesmo diploma legal.

Assim, segundo à ótica da CIJ, com base nos preceitos do Direito Internacional, os Estados não possuem liberdade ilimitada no emprego de armas de destruição de massa.

O referido parecer ressaltou ainda, que conforme determinação contida no art. VI do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, os Estados devem seguir uma conduta baseada na boa-fé para prosseguir o processo de desarmamento nuclear, bem como, em incentivar e fortalecer o sistema internacional de fiscalização e controle nuclear.

O citado parecer, contou ainda, com uma a brilhante conclusão:

A longo prazo, o direito internacional, e com ele a estabilidade da ordem internacional que está vocacionado a reger, poderá sofrer devido à contínua diferença de opiniões com relação ao status jurídico de uma arma tão mortífera quanto a arma nuclear. É conseqüentemente importante colocar termo neste assunto: a longa promessa de completo desarmamento nuclear parece ser o mais apropriado meio de alcançar este resultado[8].

Está decisão foi recebida com entusiasmo pela Comunidade Internacional, que vislumbrava pela primeira vez, uma decisão judicial, mesmo que na modalidade de parecer, que declarava expressamente, a limitação da soberania estatal no emprego de armas de destruição em massa.


7 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme vislumbramos pelo breve estudo dos casos apreciados pela Corte e citados anteriormente, podemos constatar que a CIJ desempenha um papel fundamental na condução da conduta dos entes que compõe a Sociedade Internacional.

O clássico caso da “Licitude da Ameaça ou uso de Armas Nucleares – Opinião Consultiva (1994-1996)” demonstra claramente, que, mesmo que suas decisões não possuírem caráter vinculante, elas servem de referencia para a conduta dos Estados na esfera internacional, que desejam ser reconhecidas como cumpridoras das normas internacionais.

Assim, apesar de necessitar de sérias reformas estruturais, principalmente em questões como independência para execução de suas sentenças, a Corte Internacional de Justiça possui um papel de destaque na condução dos mecanismos onusianos de manutenção da paz e da segurança internacional, contribuindo efetivamente para a resolução pacífica dos conflitos internacionais.


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Notas

[1] Ver o Artigo. 23, § 1. do Estatuto da Corte Internacional de Justiça

[2] Segundo o artigo 17, § 3, do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.

[3] Artigo 87 do Regulamento da Corte Internacional de Justiça.

[4] Mudança ocorrida por intermédio da adoção da Resolução 2.145 (XXI) pela AGNU.

[5] A região era colônia alemã, que por força do art. 119 do Tratado de Versalhes, foi obrigada à renunciar aos seus supostos direitos possessórios em favor das potências vencedoras da Primeira Guerra Mundial.  

[6] Segundo Leonardo Nemer, o “sistema de mandatos, estabelecido pelo art. 22 do Pacto da Sociedade das Nações, baseou-se em dois princípios de grande importância: o princípio da não anexação e o princípio que proclama que o bem-estar e desenvolvimento dos povos em causa formavam uma missão sagrada de civilização. Levando em consideração a evolução dos últimos cinqüenta anos, não há dúvida de que esta missão sagrada de civilização tinha por objetivo a autodeterminação e independência. O mandatário deveria observar certo número de obrigações, e o Conselho da Sociedade deveria verificar se estas estavam sendo cumpridas. Os direitos do mandatário se fundavam naquelas obrigações” (BRANT, 2005, p. 542).   

[7] Decisão da CIJ proferida em 08 de agosto de 1996, no caso da Legality of the use by a state of nuclear weapons in armed conflict.

[8] CIJ. Legality of the threat or use of nuclear weapons (1996).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Hugo Lázaro Marques. A Corte Internacional de Justiça e a sua contribuição para manutenção da segurança internacional. Uma breve reflexão sobre sua estrutura organizacional e atuação na manutenção da paz. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3445, 6 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23162. Acesso em: 19 abr. 2024.