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Da supressão do Direito pelo Poder: tendências do Direito Processual brasileiro

Da supressão do Direito pelo Poder: tendências do Direito Processual brasileiro

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Na relação entre dois institutos basilares da Teoria Geral do Processo, a ação e a jurisdição, é preciso pensar até que ponto a supressão do direito pelo poder ocorrerá de uma forma democraticamente legítima.

Resumo: Este texto aborda a evolução do conceito de ação ao longo dos séculos, destacando o marco teórico no qual o instituto processual é concebido como direito autônomo. Ato seguinte, passa-se a uma explanação sobre a jurisdição, enquanto faceta do poder do Estado, e das relações entre esses dois institutos basilares da Teoria Geral do Processo.

Palavras-chave: Ação; jurisdição; direito; poder; tutela judicial.


1. Ação – o “Direito”

O ordenamento jurídico veda, em regra, o exercício (arbitrário) das próprias razões, ou seja, a autotutela, a defesa dos direitos diretamente pelo indivíduo. O Estado atribuiu a si o poder e, por conseguinte, o dever de solucionar os conflitos, o que faz por intermédio da jurisdição. Em contrapartida, conferiu-se um direito ao jurisdicionado, de provocar e fazer atuar a jurisdição. “Ação, portanto, é o direito ao exercício da atividade jurisdicional (ou o poder de exigir esse exercício)”. (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO: 2011, p. 271).

Mas a ação nem sempre foi reconhecida como um direito autônomo. Pode-se dizer que desde o direito romano na antiguidade até meados do século XIX, a ação era entendida como mero aspecto do direito material, ou seja, era vista sob a óptica civilista.  Nessa concepção civilista, “a ação não é apresentada propriamente como um direito específico, mas como uma faceta do próprio direito subjetivo.” (COSTA; COSTA, p. 6).

No período romanista, somente os direitos previamente estabelecidos podiam ser debatidos num processo. Não havia uma jurisdição universal, na qual poderia ser buscada a tutela de toda e qualquer espécie de direito.Em outras palavras, “confundia-se o direito de ação com o direito subjetivo material que o direito de ação permitia que fosse apresentado ao Estado.” (MARINONI; ARENHART: 2001, p. 42).

Walter Vieira do Nascimento (2009, p. 125-127) distingue três períodos do Direito Romano, no que se refere à ação e ao processo. O primeiro período (754 a 149 a.C.) é o sistema das actiones legis, quando se enumeravam as espécies de ações que poderiam ser propostas pelo cidadão. Eram cinco as ações da lei: a) Actio legis per sacramentum, que era uma ação de caráter geral, subsidiária, utilizada quando não houvesse um enquadramento específico nas outras espécies. Exigia que as partes prestassem uma caução em favor do Estado (por meio de um julgamento solene, daí o seu nome), que ficava com o depósito da vencida no litígio; b) Actio legis per conditionem – Ação especial que se opunha à ação per sacramentum. Diante do magistrado estatal, uma parte afirmava existir uma promessa de pagamento. Caso a parte supostamente devedora negasse a obrigação, o magistrado designava um juiz ou árbitro (que não eram funcionários públicos)  para decidir a controvérsia. A ação per conditionem exigia também uma caução, mas esta revertia à parte vencedora e não ao Estado; c) Actio legis per iudicis postulationem – De rito mais célere, o autor declarava em juízo a origem do seu direito e a causa da sua pretensão, e o  magistrado deveria indicar imediatamente o iudex ou arbiter. Não era exigida caução; d) Actio legis per manus iniectionem – Era uma ação de execução, direcionada à própria pessoa do executado, e não ao seu patrimônio; e) Actio legis per pignoris capionem – Ação executiva especial que corria por conta e risco do credor, que sem aviso ou notificação tomava do devedor os bens equivalentes ao montante da dívida, estivesse ele presente ou ausente, podendo a penhora ser efetuada a qualquer dia. (NASCIMENTO: 2009, p. 125).

O segundo período (149 a.C. a 294) é o período formulário, ou das fórmulas. A semelhança entre o sistema das actiones legis e o sistema formulário é a divisão do processo em duas fases: a) in iure, que transcorria perante o magistrado do Estado, que ouvia as partes e concedia a ação; b) in iudicio, que se passava frente ao iudex, que era um particular, perante o qual eram produzias as provas e que prolatava a sentença. A decisão era proferia, então, por um cidadão privado, e não por um agente do Estado.

Finalmente, o terceiro período (294 a 534) ficou conhecido como sistema da cognitio extra ordinem. Nesse momento, desaparece a divisão do processo em duas fases e, em consequência, extingue-se a figura do iudex ou arbiter, competindo então ao magistrado dirigir o processo e proferir a sentença.É nesse momento que o Estado, ao assumir para si o dever de decidir os conflitos estabelecidos entre particulares, investe-se no poder de substituir a vontade das partes para resolver impositivamente a lide levada a seu conhecimento. Aqui a ação ganha contornos  públicos, na medida em que é dirigida ao Estado, para que este, por intermédio de seus agentes (magistrados), emita uma decisão sobre determinada questão controvertida.

Da antiguidade à modernidade verificam-se modificações nos conceitos dos institutos ação e processo, mas ao longo dos séculos prevaleceu o entendimento sobre a ação como algo relacionado ao direito material litigioso, segundo a máxima de que a cada direito corresponde uma ação que o assegura.“Nada mais era a ação para os clássicos do que o próprio direito substantivo reagindo contra sua violação.” (THEODORO JÚNIOR: 2004, p. 50).

A teoria clássica ou civilista orientou a legislação pátria no início do século XX, e se fez presente no Código Civil de 1916, em especial no seu artigo 75. “Nessa perspectiva, que chamaremos de civilista, não há que se falar em  direito de ação, mas apenas em procedimentos judiciais relativos a resguardar um direito subjetivo”. (COSTA; COSTA, p. 6).

De fato, é quando o processo deixa de ser entendido como mero procedimento, para ser concebido como relação jurídica formada pelas partes e pelo juiz, que se percebe a existência da ação como um direito destacado, que movida pelo autor, faz movimentar o Estado, que dessa forma se vê na condição de ser exigido a emitir uma decisão sobre o caso que lhe é apresentado.

Foi Oscar von Bülow quem estabeleceu um marco na história do processo, com a teoria da relação jurídica processual. CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO ensinam que outros estudiosos já haviam distinguido uma relação estabelecida entre autor, réu e juiz, distinta da relação de direito material em litígio. Mas, o “grande mérito de Bülow foi a sistematização, não a intuição da existência da relação jurídica processual”. (2011, p. 304).

Assim, a partir da obra Teoria dos pressupostos processuais e das exceções dilatórias (1868), o mundo jurídico passou a conceber e admitir o processo como uma relação jurídica, formada por três partes, autor, juiz e réu, relação essa distinta daquela que é estabelecida em torno do direito material debatido. E se existe essa relação de índole processual, existe também um direito autônomo consubstanciado na possibilidade de exigir a prestação da tutela judicial.

Um pouco antes disso, quando do conhecido debate travado entre Muther e Windscheid em 1856, o mundo jurídico já havia admitido um novo significado para a ação, que apartada do direito material era concebida como um direito a ser oponível ao Estado, embora buscasse a condenação da outra parte, vinculada ao direito material em disputa, ou mesmo uma declaração ou constituição de uma relação jurídica.

Eis o marco teórico, a partir do qual a ação é reconhecida como direito. “Não era mais o direito subjetivo vestido para a guerra e nem mesmo um direito autônomo voltado à garantia dos direitos subjetivos violados, mas um direito de pedir ao Estado a instauração de um processo.” (COSTA; COSTA, p. 2).

A partir dessa percepção da ação como direito autônomo, floresceram duas correntes doutrinarias: a) a que defendia ser a ação um direito autônomo e concreto; b) a que sustentava ser a ação um direito autônomo e abstrato.

Para os concretistas, a ação seria um direito público subjetivo e autônomo, porém condicionado à existência do direito material afirmado pelo autor. “Ação seria, então, o direito à sentença favorável, isto é, o direito público voltado contra o Estado, de obter uma proteção púbica para o direito subjetivo material.” (THEODORO JÚNIOR: 2004, p. 50).Foram defensores dessa posição concretista Wach, o próprio Bülow, Hellwig e Chiovenda.O grande defeito da teoria concretista era não saber explicar uma sentença de improcedência. Afinal, mesmo que o autor tenha seu pedido negado, não teria sido exercido o direito de ação?

Paralelo à doutrina concretista, Degenkolb e Plósz desenvolveram uma teoria abstrata, segundo a qual o direito de ação independe da existência do direito material alegado pelo autor. Afinal, mesmo quando é proferida uma sentença de improcedência, houve manifestação estatal apta a por fim ao litígio, é dizer, existiu a prestação jurisdicional. “É, assim, suficiente, para o manejo do direito público de ação, que o autor invoque um interesse abstratamente protegido pela ordem jurídica.” (THEODORO JÚNIOR: 2004, p. 50).

O problema de se considerar a ação como direito autônomo e abstrato é conceber que toda e qualquer demanda seria apta a exigir uma apreciação judicial sobre o seu mérito, independente da existência de indícios mínimos de sua viabilidade. Assim, seria possível, em tese, exigir o pagamento de valor referente à venda de um terreno na Lua; ou o sujeitopedir a decretação do divórcio da vizinha que sofre agressões verbais proferidas pelo marido, sem que ela tenha manifestado interesse na dissolução da sociedade conjugal; entre outros. Ainda que tais pedidos viessem a ser negados ao final do processo, haveria a necessidade de seconduzir o feito ordinariamente até a prolação da sentença de mérito.

Em resposta a essa concepção absoluta sobre a abstração da ação, surge a teoria eclética, difundida no Brasil por Liebman, a partir da década de 40 do século passado. Era preciso estabelecer uma forma de seleção das causas que mereceriam ter o mérito apreciado pelo Judiciário. São as condições da ação (legitimidade das partes, interesse processual e possibilidade jurídica do pedido), em última análise, mecanismos de seletividade judicial.

Assim, o direito de propor a demanda seria ilimitado; mas o direito à uma sentença de mérito estaria condicionado.

A questão é que essa seletividade num primeiro momento foi realizada pela Lei. Contudo, sobressaem agora outras condicionantes ao direito de ação, criadas pela jurisprudência dos Tribunais.


2. Jurisdição – o “Poder”

Predomina o entendimento doutrinário de que a teoria geral o processo é composta por três institutos basilares: ação, jurisdição e processo.

A ação, que já foi vista como mera faceta do direito material em litígio, alcançou, ao longo dos séculos, o status de direito subjetivo público autônomo, abstrato e instrumental. Assim, é direito subjetivo, pois pode ser reclamado por seu titular; é autônomo, pois não se confunde com o direito material; é abstrato, porque não depende a existência do direito material alegado; é instrumental, pois visa a resolução de uma pretensão de direito material.(MARCATO: 2005, p. 11).

Na concepção privatista, a ação é o tema central da teoria geral do processo, o que está em sintonia com pensamento liberal, na medida em que se caracteriza como um direito que tem por escopo promover a observância de outro direito supostamente violado, esse último sendo um direito material de uma parte, infringido pela outra. A preocupação se limita à relação estabelecida entre as partes.

Ocorre que o Estado contemporâneo assumiu outras responsabilidades que não apenas criar as condições de segurança necessárias ao indivíduo, para que esse busque, com suas próprias forças e recursos, realizar os objetivos que julgue mais adequados à sua realização enquanto ser humano.“O Estado (social), ao menos idealmente, torna-se instrumento da sociedade para combater a injustiça social, conter o poder abusivo do capital e prestar serviços públicos para a população.” (BARROSO: 2012, p. 88).

Ao Estado é atribuída a função de realizar ações afirmativas consubstanciadas na consecução de políticas públicas em prol dos mais necessitados, de forma a reduzir as desigualdades sociais, pois o “Estado social contemporâneo, que repudia a filosofia política dos fins limitados do Estado, pretende chegar ao valor homem através do culto à justiça e sabe que, para isso, é indispensável dar ao conceito de justiça um conteúdo substancial e efetivo.” (DINAMARCO: 2009, p.34).

Esse retorno do Estado a um modelo social e intervencionista acarreta uma invasão do espaço particular pelo público. Há um incremento das funções do ente político, que repercute em vários campos de atuação, inclusive no que refere ao sistema de prestação judicial.

O poder judiciário passa a ser protagonista nesse novo cenário. O processo judicial deixa de ser mero instrumento para a composição de litígio entre particulares e passa a servir de meio de obtenção de prestações materiais compulsoriamente fornecidas pelo Estado.

 É nesse ambiente que o processo, como instrumento da jurisdição, passa a ser visto como meio de afirmação do Poder estatal, tanto no que refere às relações jurídicas estabelecidas entre particulares, como nas que se dão entre um particular e o Estado. Fica evidenciada a função pacificadora da jurisdição. “O que distingue a jurisdição das demais funções do Estado (legislação, administração) é precisamente, em primeiro plano, a finalidade pacificadora com que o Estado a exerce.” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO: 2011, p. 151).

Entre os doutrinadores pátrios que se dedicaram ao estudo do processo sob o prisma do Poder, destaca-se Cândido Rangel Dinamarco, para quem o processo, antes de se prestar à realização de vontades particulares e individuais, serve ao Estado para a realização de seus objetivos, tais como pacificação social, educação para o exercício e respeito a direitos, manutenção da autoridade do ordenamento jurídico-substancial, garantia à liberdade, oferta de meios de participação democrática e, também, a atuação da vontade concreta da lei, esse como objetivo jurídico-instrumental. Assim, “sempre é algo ligado ao interesse público que prepondera na justificação da própria existência da ordem processual e dos institutos, princípios e normas que a integram.” (DINAMARCO: 2009, p. 91).

É preciso ter em conta que a valorização do processo, na concepção de Dinamarco, é na verdade o reconhecimento da importância da jurisdição, pois aquele é mero instrumento dessa. Seria então a jurisdição o centro de gravidade, em torno do qual orbitam os demais institutos da teoria processual, a ação e o processo. Tem-se, dessa forma, um deslocamento do alicerce que sustenta toda a construção teórica: da ação (como direito) à jurisdição (enquanto poder).

Nesse cenário, o direito de ação, entendido como o direito a uma sentença de mérito e, portanto, condicionado ao preenchimento de certos requisitos (legitimidade das partes, interesse de agir, possibilidade jurídica do pedido) deixa de ser o único instituto a determinar a seletividade das causas que serão apreciadas pelo Poder Judiciário. A jurisdição, agora, também cria mecanismos de seletividade, através da jurisprudência dos tribunais. Essa seleção de causas ocorre no juízo de admissibilidade de recursos, em especial naqueles dirigidos a tribunais superiores.

Porém, nem tudo é positivo na evolução dessa relação que existe entre os dois importantes institutos da ciência processual. Com efeito, a elevada quantidade de enunciados de súmulas que versam sobre matéria processual, aliada ao exacerbado número de recursos que não são admitidos nas instâncias superiores, revela a existência de uma jurisprudência defensiva, que sob o pretexto de racionalizar o sistema recursal,impede, não raras vezes, o pleno exercício do direito a uma tutela judicial justa, efetiva e necessária.

Nessa relação entre dois institutos basilares da Teoria Geral do Processo, a ação e a jurisdição, é preciso pensar até que ponto a supressão do direito pelo poderocorrerá de uma forma democraticamente legítima. Eis a proposta de reflexão deste ensaio.


Referências

BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

COSTA, Araújo Henrique; COSTA, Araújo Alexandre. Conceito de Ação: da teoria clássica à moderna. Continuidade ou ruptura?

____________________________. Os Testamentos Ignorados de Ovídio Baptista e Calmon de Passos.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

MARCATO, Antônio Carlos. Procedimentos Especiais. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001).

NASCIMENTO, Walter Vieira do. Lições de História do Direito. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, vol.1. 41ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RORIZ, Rodrigo Matos. Da supressão do Direito pelo Poder: tendências do Direito Processual brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3502, 1 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23541. Acesso em: 19 abr. 2024.