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Para uma teoria do Estado pós-moderno: a razão política no entendimento do Direito

Para uma teoria do Estado pós-moderno: a razão política no entendimento do Direito

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Como associar o Estado – centralizado, formado à base da Teoria da Soberania – aos aspectos diversos da pós-modernidade, iniciando-se pela dissolução, ironia crônica e dúvida como praxe?

Resumo: Em virtude de uma série de mudanças mais ou menos profundas na realidade política, institucional e jurídica, em todo o mundo, tem-se falado e escrito de um suposto Estado Pós-moderno. De certo modo, pode-se pensar nisso, a começar da insegurança e da rapidez nas mudanças estruturais; por outro lado, como associar o Estado – centralizado, formado à base da Teoria da Soberania – aos aspectos diversos da pós-modernidade, iniciando-se pela dissolução, ironia crônica e dúvida como praxe? Se o Estado Moderno foi formado a partir, exatamente, da negação do direito de sedição, como não ver na fragmentação pós-moderna uma ameaça ao Poder Heterônomo?

Palavras-chave: Estado Pós-moderno; direito e razão; teoria política da modernidade.


Mesmo que se justifique advogar as propriedades de um Estado Pós-moderno, ainda temos muitas contas a acertar com a modernidade clássica. Temos um confronto direito entre a realidade movediça em que nos colocamos e as estruturas e condições globais de referência notadamente marcadas pelo instrumental clássico. Por isso, toda ideia pós-moderna precisa ser checada pelo antípoda moderno e assim se construiu este texto (não há nada mais pós-moderno do que a clássica afirmação de Marx de que “tudo que é sólido desmancha no ar”). Uma apresentação inicial dos fragmentos do Estado Pós-moderno seguida de uma discussão dos referenciais sociais e políticos da modernidade clássica.


Bases modernas da pós-modernidade

Como diz Marilena Chauí, a modernidade francesa colocaria fim à era revolucionária, instaurando o Estado de Direito sob a batuta da sociedade capitalista. Como consequência, houve uma privatização da liberdade, portanto, da vida das pessoas e, especialmente, do que até então também se entendia como via pública, quando a arquitetura presente no projeto da modernidade procurou inibir o público:

No século XIX, em Paris [...] Urbanizar significava construir grandes e largas avenidas, largos espaços abertos por onde os carros militares podiam trafegar rapidamente e sobretudo tornavam impossível construir barricadas1 [...] Uma das características da sociedade contemporânea [...] é a privatização de nossas vidas, isto é, o isolamento dos indivíduos, a separação entre o local de trabalho e a moradia, formas de lazer solitárias (como a televisão ou o rádio2), a impessoalidade dos lugares onde fazemos nossas compras (em lugar dos mercados e feiras ao ar livre, onde as pessoas se encontram, artistas populares executam suas artes, vendedores ambulantes anunciam seus produtos milagrosos, pregadores religiosos convidam as pessoas a se converterem à sua religião etc, hoje, vamos a grandes supermercados onde não há vendedores, onde só há vigilantes e caixas, onde as pessoas não se falam, onde nada acontece senão o consumo). Toda uma arquitetura se colocou a serviço dessa privatização e desse isolamento entre as pessoas (Chauí, 1984, pp. 12-13 – grifos nossos).

Na figura de linguagem, pela reforma arquitetônica da modernidade, a via pública excluiu a via pública. Ironicamente, a modernidade que inibiu o espaço público passou a massificar a informação, mas uma liberdade de não-fazer. Um tipo para se ver, mas não para interagir. A Esplanada dos Ministérios, em Brasília, guarda certa semelhança com esta Reforma de Paris: estatizando-se o poder; excluindo-se o transeunte.

[não há arborização, o sol escaldante não permite a marcha dos descontentes]

Esta é a parte da modernidade em que ocorre a corporificação, cristalização do poder público no Brasil. Era o preço da modernidade. O poder que deveria ser público, popular, por medo das revoltas, acabou estatizado, estandardizado. No lugar da política, nasceu a cidade planejada, padronizada. Ao invés da polis, surgiu a regularização das relações sociais. O moderno controle social que não permitiria ao povo passear ou mobilizar-se em massa na Esplanada dos Ministérios, ironicamente, serviria às marchas e aos desfiles militares do golpe pós-64. Primeiro, a arquitetura de Brasília afastou o povo, depois, afastou-se seu idealizador, quando Niemeyer cumpriu o desterro na Europa. Todavia, mesmo em contato com o novo mundo que se abriria na década de 1970, sobretudo em Paris (seguindo-se ao Maio de 683), Niemeyer não foi pós-moderno. Aliás, sua arquitetura é o exemplo clássico de que o mundo moderno recusa o método explosivo, radiante, metálico da pós-modernidade. A modernidade é táctil, sensitiva e em nada se assemelha à razão imagética que se inicia com a arquitetura que coloca as entranhas dos prédios para fora. sua arquitetura é o exemplo clássico de que o mundo moderno recusa o método explosivo, radiante, metálico da pós-modernidade. A modernidade é táctil, sensitiva e em nada se assemelha à razão imagética que se inicia com a arquitetura que coloca as entranhas dos prédios para fora.


O pós-moderno

O projeto arquitetônico da pós-modernidade, ao expor a estrutura, o interior, as amarrações, o liame do “eixo central” de sustentação, revelando aos observadores as armações em aço e o conteúdo mais simples e operacional4, como é o caso do elevador panorâmico, na verdade, promoveu uma revolução em termos de leitura do real — não era, portanto, um mero efeito de embelezamento. Ao revelar a estrutura de suporte das construções, o projeto pós-moderno dizia ao leitor do real que a essência (assim como a estrutura) pode e deve ser vista, revista, revirada.

[O modelo pós-moderno, presente neste suntuoso prédio, não está presente nas criações de Oscar Niemeyer]

É interessante notar como forma e conteúdo deveriam vir associados a partir de então, bem como outrora, na modernidade clássica, apareciam em destaque os primos gêmeos da essência e da aparência. O pós-moderno expunha as entranhas, a partir da experiência da arquitetura e fazia brilhar uma realidade ainda escondida. O envidraçamento e/ou reflexos provocariam “reflexividades” em todos que por ali transitassem. Contudo, perde-se a relação espaço-temporal, não mais se toca a superfície. A velocidade de deslocamento pelas vias públicas não permite que se veja em detalhes, não se toca, nem com a retina, as ranhuras, o rococó. Como tudo que é sólido desmancha no ar, só há tempo para ver de relance. Estranhamente, a arquitetura pós-moderna exige – para melhor definição – que seja observada à distância. O arquiteto não era de meias-verdades, lusco-fusco ou ambiguidades. A modernidade lhe gravou a certeza de que a sociedade precisava ser modificada, com rapidez, mas com a solidez que a cultura brasileira não permitira alcançar. Por isso, nunca foi pós-moderno:

O pós-moderno sem dúvida traz ambiguidades — aliás é feito delas e deve ser criticado e superado. É isso que ele propõe: a prudência como método, a ironia como crítica, o fragmento como base e o descontínuo como limite [...] O anseio de uma justiça que possa ser sensível ao pequeno, ao incompleto, ao múltiplo, à condição de irredutível diferença que marca a materialidade de cada elemento da natureza, de cada ser humano, de cada comunidade, de cada circunstância, ao contrário dos que nos ensinam a metafísica e o positivismo oficiais [...] Creio que já seria uma vantagem e um alívio que o pós-moderno se apresente como um castelo de areia e não mais como uma nova Bastilha, um novo Reichstag, um novo Kremlin, um novo Capitólio. Apenas um castelo de areia, frágil, inconsistente, provisório, tal como todo ser humano. Um enigma que não merece a violência de ser decifrado (Sevcenko, 1987, pp. 54-55 – grifos nossos).

Na configuração atual da sociedade moderna, entretanto, a sociedade de controle impõe ao cidadão cada vez mais o toque de recolher5 que o obriga a ver-se cada vez mais longe de sua liberdade. O que ainda nos permite concluir que as características centrais da pós-modernidade — “a prudência como método, a ironia como crítica, o fragmento como base e o descontínuo como limite” — têm sido cada vez mais compelidas para fora da realidade observável. Portanto, o entorno desta Modernidade Tardia (não pós-modernidade) está muito recrudescido, empedernido, emparedado, embrutecido: é incrível, mas talvez a Modernidade Tardia (dos que sonham a humanidade) esteja mais ameaçada do que a própria “segurança e regularidade” (ordem e progresso) do mundo moderno e de suas entropias. As utopias e não as entropias ocuparam os sonhos e os projetos do arquiteto da modernidade brasileira. Por isso o arquiteto do Brasil moderno também escapou das ambiguidades da pós-modernidade; de quebra, fortaleceu os pilares de sua crença do mundo melhor.


Estado Pós-Moderno

Inicialmente, basta-nos pensar nas guerras civis sem fim na África, nas ações de Estado que privatizam a segurança pública no Brasil, na guerra civil que se alastra pelo país afora e na afirmação do Estado Paralelo com os miseráveis e no lumpemproletariado manipulado pelos criminosos do colarinho branco. O texto é uma provocação no bom sentido, a fim de que possamos repensar o quadro político-institucional altamente complexo, desconexo, turbulento que o modelo clássico do Estado Moderno – e do Estado de Direito – enfrentam na atualidade do brevíssimo século XXI. Temos que pensar que as guerras irregulares, o terrorismo, a luta de classes metamorfoseada em guerra civil (pelo lumpemproletariado) ou a guerra assimétrica das ruas convivem, lado a lado, com o golpe de Estado, o próprio Estado de Exceção, a sociedade de controle e o Estado de não-Direito como mecanismos de afirmação da Razão de Estado. Por muito tempo resisti, repeli a ideia de que pudesse haver algum tipo de Estado Pós-Moderno. Na verdade, ainda me causa desconforto pensar que se associaria, sem prejuízo da lógica, o chamado Estado Moderno – desde a manifestação da Razão de Estado com Maquiavel ou com suas características totalizantes (soberania) como queria Hobbes, ou o Espírito Absoluto de Hegel (também o contrário, com a imposição do Estado de Direito a serviço da exploração de classe, em Marx); bem como a dominação burocrática de Max Weber e a ação do poder extroverso, de um Jellineck ou Carré de Malberg – com as deflagrações da pós-modernidade e suas descontinuidades, volatilidades, descompromissos, desregulamentações. Realmente, colocadas as coisas desse modo, não há como se falar desse Estado Pós-Moderno, afinal, são categorias antitéticas, antagônicas, excludentes em sua ontologia e epistemologia. Porém, quando pensamos, apenas a guisa de exemplo, que o Estado Moderno – na figura jurídica conhecida como Estado Penal – é capaz de substituir ou alternar o controle social aplicado com os sistemas panópticos (absolutistas) com os mais notáveis modelos de rizoma, em forma de controle social que se espraia e se enraíza na pele da cultura (como analisa Deleuze), então, é possível ver algo de novo no horizonte político. Este “novo”, no entanto, não é libertário, emancipador, alternativo, é apenas novo na conjugação das forças absolutistas da Razão de Estado e que, agora, valem-se dos fragmentos da pós-modernidade. Daí falarmos no Estado Pós-Moderno e suas vigilâncias e totalizações da vida comum do homem médio. O que a pós-modernidade tem de mais ou menos comum, estando-lhe sempre presente e sendo-lhe sempre atuante?

Afora o sentido geral de se estar vivendo um período de nítida disparidade do passado, o termo com freqüência tem um ou mais dos seguintes significados: descobrimos que nada pode ser conhecido com alguma certeza, desde que todos os “fundamentos” preexistentes da epistemologia se revelaram sem credibilidade; que a “história” é destituída de teleologia e consequentemente nenhuma versão de “progresso” pode ser plausivelmente defendida; e que uma nova agenda social e política surgiu com a crescente proeminência de preocupações ecológicas e talvez de novos movimentos sociais em geral (Giddens, 1991, p. 52).

Em suma, são traços da pós-modernidade: insegurança, instabilidade, incerteza, incompreensão, intolerância (no cenário político), inconstância, indefinição, indeterminação, além de uma certa incompetência, pois o conhecimento não mais envelhece, não cria rugas, sendo trocado muito rapidamente. O que alguns chamam de pós-modernidade, outros apenas vêem como reflexo prolongado da própria modernidade, um tipo de ultramodernidade, uma radicalização da modernidade, um para além da modernidade (não esgotada), sem ser pós-moderna. Poderia ser interpretado como um elo entre as duas fases, como uma sub-fase entre os clássicos modernos e a ausência de outras referências clássicas, já na era pós-moderna. Não é um misto entre ambas, mas só uma transição, um elo a mais que se apresenta. Sem dúvida é uma era perturbadora e que convida à reflexão aguçada, talvez exagerando — quanto às incertezas e mobilidades das respostas — a idéia de uma dúvida metódica, periódica, constantemente presente. Uma dúvida massacrante, pois quase não se tem tempo para relaxar e aproveitar, saborear o pouco que se aprendeu ou o que se sabe. Também já nos alertava MATOS (s/d, p. 130):

A razão se torna racionalização – relação calculada entre meios e fins, razão técnica; esse cálculo define a racionalidade pela eficiência, eficiência esta que se exibe pelo grau de domínio sobre a natureza e sobre os homens. Sendo o Iluminismo projeto de liberar os homens graças ao uso da razão, mas sendo tal liberação uma forma de opressão (sobre a natureza e sobre os homens), o agente de liberação torna-se a própria opressão. Do ponto de vista da Dialektik, a contrapartida da conquista da natureza é a repressão, a “desnaturação do homem”. Só se pode conquistar a natureza através da razão, só se pode conservar a conquista permanecendo racional.

Ainda conforme MATOS (s/d, p. 128):

[...] A extensão de tal racionalidade às “condutas da vida” torna-se forma de dominação. A racionalidade alcança o conhecimento científico, a organização social sob a forma da burocracia, a ética social, que, invertendo a relação meios-fins, fundamenta uma nova forma de dominação. A racionalização do poder culmina na burocracia. Porém, ela tem inevitavelmente “um elemento não exclusivamente burocrático”. “Inevitavelmente” é o elemento irracional, fortuito, arbitrário que determina a racionalidade formal e suas relações sociais. A racionalidade formal, matematizante, quantificadora, técnica – a razão abstrata – torna-se concreta no domínio calculador e calculado sobre a natureza e sobre os homens. A burocratização significa a objetivação reificada das regras sociais, enquanto as ciências e as condutas da vida se pautam por um ideal da natureza que não é apenas algo a ser conquistado (a vitória iluminista sobre o medo), mas fundamentalmente algo a ser pilhado. Conquista significa “liberar o homem do mito e fazê-lo senhor da natureza” (Dialektik der Aufklãrung); esse processo de conquista, porém, anuncia a idéia de senhorio e domínio, de uma atividade humana marcada pela pilhagem das meras “coisas”, cuja passividade parecia destiná-las à condição de objetos disponíveis e manipuláveis. Condição indubitavelmente reforçada pelo processo de acumulação do capital.

Mas, será que o pós-moderno rompeu com o racionalismo, com o cartesianismo por completo? Será que o mundo atual dominado pela razão instrumental é menos matemático, previsível, predizível do que supõe o pós-moderno? Veremos ao final, nos capítulos IX e X que esse controle é o exercício pleno na inflexão do capital no século XXI. Portanto, uma racionalidade muito bem predizível pelo capital instalado. Antes de passarmos propriamente ao conceito clássico de pós-modernidade, como apresentado por Lyotard, vejamos mais uma demonstração de que o pós-moderno é só a alta modernidade que se anima a exigir mais e mais controle:

Não vivemos ainda num universo social pós-moderno, mas podemos ver mais do que uns poucos relances de emergência de modos de vida e formas de organização social que divergem daquelas criadas pelas instituições modernas [...] pode facilmente ser visto por que a radicalização da modernidade é tão perturbadora, e tão significativa. Seus traços mais conspícuos — a dissolução do evolucionismo, o desaparecimento da teleologia histórica, o reconhecimento da reflexividade meticulosa, constitutiva, junto com a evaporação da posição privilegiada do Ocidente — nos levam a um novo e inquietante universo de experiência (Giddens, 1991, p. 58).

Neste segmento do argumento do Estado Pós-moderno, o direito, por exemplo, serve(-se) da razão ou é fruto da intempestividade da vida social?


O direito é caos

O direito é ordem ou desordem? Esta é uma das típicas indagações em que não há uma resposta simplificada, sui generis, única em seu gênero, inequívoca. Em certas ocasiões, apossado por grupos que representam demandas reprimidas pela conquista e afirmação de determinados direitos e liberdades, o direito à revolução, por exemplo, motiva o caos. Em busca da garantia de que se institua uma sociedade mais equilibrada, justa. Em torno desse tripé – garantias, direitos, liberdade – é que se movimenta a luta política pela verdade, isonomia, equidade. Este é o tripé da mudança social. Porém, em situações de aparente normalidade – porque sempre há caos social (mesmo que se mudanças profundas, revolucionárias) – o direito se aplica ao controle social, ou mais exatamente como direito concernente à manutenção do status quo, à ordem e ao progresso. Este é o tripé da dominação ou opressão. Portanto, teríamos de ver a história e as forças envolvidas para sabermos qual grandeza do direito estaria em requisição; aliás, mesmo como movimento, o direito pode ser o caos (mudança antecipada) ou o anticaos (mudanças esperadas). Como mudança antecipada, a pressão por alterações é de grande volume e toda acomodação social distancia-se progressivamente da própria garantia jurídica, ou seja, aumenta o descompasso entre a ordem jurídica e a mobilidade social. Com as mudanças esperadas ocorre o exato inverso, uma vez que as estruturas sociais conseguem absorver as reivindicações e em processo de assimilação o que que era novo, alternativo, acaba em fagocitose ligado à ordem jurídica e produtiva. No sentido positivo, o direito-caos leva à liberdade; como força negativa, o direito leva à acomodação do estado de injustiças e a isto se chama de reificação jurídica – reificação é sinônimo de coisificação, ou seja, uma situação em que o sujeito se vê nivelado à condição de coisa, objeto, ser inanimado, desprovido de vontade e de autonomia; de sujeito passa a ser sujeitado como é próprio de regimes fascistas e de ideologias neonazistas. Portanto, como instituto inerente à sociedade capitalista, em grande parte, equivale ao direito se prestar à defesa da propriedade muito mais do em relação à constituição da sociedade e do humanismo jurídico que se deveria requerer. Quer dizer, o direito reificado defende mais a propriedade (ou os proprietários) do que às pessoas. Mas, a insurgência do direito à revolução, no bojo da mesma sociedade capitalista, implica em ter no direito um instrumento de libertação. Isto foi visto, historicamente, na Revolução Francesa e na Revolução Russa, com Gandhi na Índia, na luta antirracista pelos direitos civis, nos EUA. O direito justo, neste caso, seria aquele voltado ao revolucionamento dos contingenciamentos e menoridades impostas à condição humana. O direito justo se animaria na entropia social, no turbilhão das relações sociais acomodadas pelo tecnicismo que impinge a mancha moral da injustiça premeditada e acolhida pelo direito pacificado pelas condições da reificação.

O mundo reificado em que vivemos tem outra topologia e tipologia de Estado e que chamemos de Estado Reificado – reificado porque não deixa de ser coisificação, não se trata apenas da coisa pública6 que serve ao capital, mas também em desacordo com muitas das necessidades atuais7. É uma sociedade das coisas, com pleno domínio das massas. A sociedade de controle é dissipativa, trânsfuga, centrífuga, entrópica, mas que (ironicamente) se explica melhor exatamente pelo que há de mais clássico: a termodinâmica, a lei clássica, a entropia, o atrito e o conflito, as lutas de classes e de grupos. Portanto, é uma sociedade cindida (entre ricos e miseráveis, entre o passado e o futuro), é uma sociedade profundamente contraditória. É uma sociedade que se explica pela teoria do caos – incluindo aí o caos social que movimenta nossa sangrenta guerra civil8:

Por que existe a entropia? Antes, muitas vezes se admitia que a entropia não era senão a expressão de uma fenomenologia, de aproximações suplementares que introduzimos nas leis da dinâmica. Hoje sabemos que a lei de desenvolvimento da entropia e a física do não-equilíbrio nos ensinam algo de fundamental acerca da estrutura do universo: a irreversibilidade torna-se um elemento essencial para a nossa descrição do universo, portanto devemos encontrar a sua expressão nas leis fundamentais da dinâmica [...] De qualquer forma [...] é do caos que surgem ao mesmo tempo ordem e desordem (Prigogine, 2002, pp. 79-80).

A teoria do caos é ela mesma o resultado do desenvolvimento das forças materiais, econômicas e espirituais da produção na sociedade moderna, bem como reflete a instabilidade e os conflitos atuais:

No fundo, por que essas pesquisas sobre física do caos emergiram hoje? Talvez também porque vivemos em uma situação social, em si, imprevisível e instável. As técnicas nunca evoluíram tão rapidamente, a economia é turbulenta, tudo se move com grande rapidez. A experiência passada ou mesmo a capacidade de adaptação contam menos do que a capacidade de ser um ator (Lévy, 1996, p. 152).

A instabilidade social e política criam uma nova topologia, para além do Estado9. Estamos em uma era, para alguns de pós-modernidade, em que a ciência se aplica cada vez às ações políticas (Pisier, 2004). Como vimos, o caos é ordem e desordem e, por isso, a sociedade de controle em que estamos – de certo modo – está aquém e além do Estado. Ao contrário disso ou em descompasso, mas alinhado a isto, aprendemos desde os clássicos, que o direito como fenômeno social é uma Ciência Social que procura analisar influências da Interação Social, a partir de padrões de causalidade ou de contradições, antagonismos e exclusões sociais que modificam os processos vitais de inclusão na Estrutura Social. Assim, qual a razão em estudar e entender o que é o direito? A razão dessa escolha social está na própria história da razão que envolve o direito. Que tipo de racionalidade, de instrumentos técnicos e jurídicos, que recursos científicos foram sendo sedimentados e que nos permitiram visualizar a fixação do direito como ciência social?


1. O direito é um fenômeno social

A questão jurídica mais relevante é indagar como isto se reflete na vida comum e na esfera pública, se entendermos o papel distintivo que o Estado e as demais instituições públicas exercem sobre cada um. Porém, as explicações não são tão simples ou não devem ser simplificadas em excesso, sob pena de perdermos a compreensão de fundo, substancial, sobre a realidade que governa todos os fenômenos humanos. O que nos leva a desafio colocado neste texto, retroagir a história, a fim de verificar em que bases nós, ocidentais, construímos a ciência, o Estado e o direito moderno. A fim de alcançar um efeito didático, organizamos o texto em subitens que procuram guardar certa lógica e coerência entre si. Como se sabe, uma ciência se compreende por seu objeto e, sendo assim, vejamos o objeto que nos interessa na abordagem do direito como fenômeno social.


2. Objeto

2.1. Interação Social: mínimo de sociabilidade, dependência e ajuda mútua.

A análise sociológica ressalta os níveis de interação – inter-ação – da capacidade de convivência (convivialidade) e de internalização, aceitação acrítica e ajustamento às regras sociais. Como sociabilidade, a interação é marcada pelos conflitos de interesses não-antagônicos, ainda que sejam relações contraditórias e de oposição na base dos interesses individuais, de grupos ou classes. Por isso, a sociabilidade produz uma tolerância à diversidade cultural, social, política, religiosa e este fenômeno social impulsiona a alteridade, como aceitação do Outro, e impõe uma racionalidade em que as regras sociais estão ajustadas às normas jurídico-institucionais. Neste sentido, a interação indica a pulsão de um determinado ethos, como objetivação do ideal social. Todavia, a análise social, a partir dos níveis de interação, também se pauta pelos processos sociais de inconformismo (anomia) e desejo de mudanças (esperadas ou antecipadas), movidos por meio de ações e relações sociais pacíficas ou revolucionárias, do status quo e das instituições e estruturas sociais, especialmente diante da necessidade de superação das contradições sociais, econômicas, políticas e culturais. Neste determinado momento histórico, os níveis de conformismo social se rompem e a interação se recompõe por força das transformações estruturais inadiáveis que são necessárias, determinadas e independentes das vontades individuais ou de grupos sociais.

Temas correlatos, portanto, são a regulação e a emancipação social. Normalmente, regulação vem associada a controle e as formas de controle podem ser variadas. Há controle social pela ideologia ("a propriedade é sagrada, não mexam"), política ("as regras do jogo só podem ser alteradas pelos meios políticos adequados: parlamento"), economia ("trabalho e disciplina é o caminho do sucesso"), religião (“Deus ajuda a quem madruga”), direito (“direito sem coerção não é nada”), educação (“aprimore seu know How”), comunicação (“divulgue apenas o que o povo possa entender”). Emancipação, tal qual dos indivíduos se vistos isoladamente, requer meios que suprimam a tutela estatal sobre grupos, camadas e classes sociais. Há emancipação social em fórmulas mais liberais, como “permitir” que haja mediação a fim de que se resolvam alguns itens da vida social. E há vias mais ousadas ou radicais que exigem a desconstrução da hierarquia social e a sublevação das estruturas e do status quo. Neste caso, podemos pensar no momento atual porque passa boa parte do mundo árabe e no norte da África, com revoltas, revoluções culturais e guerras civis. Hoje, diante do acúmulo de crises, institucional (Estado) e sistêmica (sociedade), os aportes repressivos perdem cada vez mais legitimidade, ainda que o uso da força (física) possa ter efeito imediato. A junção das consequências globais das duas crises é sentida como uma espécie de crise de civilização, de significados, de referências, de vida e de morte.

2.2. Sociologia Jurídica: interação, normas sociais e regras jurídicas.

Como empatia ou entropia, a análise sociológica ainda pode destacar temas mais específicos como o poder, a política, a própria cultura e o direito seu próprio Estado. Para a sociologia, o Direito e a lei surgem como um conjunto de práticas sociais historicamente situadas. As práticas jurídicas como um conjunto abrangente e heterogêneo de práticas institucionais normativas, articuladas também de modo complexo com as demais instituições sociais. Discrepâncias quanto aos “usos” do Direito e das “funções públicas”, sob a imposição do assim chamado Estado Penal. Um caso evidente de desvio do Estado de Direito, da legitimidade democrática e da Justiça Social. O direito social é imanente, pré ou para-estatal, a exemplo da experiência do Balcão de direitos no Rio de Janeiro. De outro modo, a politização do Direito desvela-se como demonstração da intencionalidade humana – a política como fonte do Direito. Da representação social parcial à positivação (universalização) da intervenção legislativa. Direito e poder ou o direito que é poder?

Como parte do fenômeno jurídico, a Sociologia permite pensar a formação da nação – como superação das contradições sociais – e o povo, agora como categoria, elemento e sujeito histórico, e que pode ser entendido como a entidade jurídica originária de um contrato social. Como Sociologia do Direito, observam-se os aspectos sociais e político-jurídicos, a exemplo da necessária solidariedade que dá origem a qualquer sociedade e que surge organizada a partir de um conjunto de pessoas. Através do expresso ou implícito consentimento jurídico (pacto jurídico ou momento jurídico prevalecente à unificação e constituição do Estado e certamente anterior ao sentido de ordenamento jurídico), estabelece-se e se pactua uma espécie de união jurídica inicial (poder de constituir o Estado e suas diretrizes – o próprio Poder Constituinte), tendo por finalidade a coesão social (coação e coerção social). Ideologicamente, o poder e o direito são justificados pela chamada busca do bem comum e que deve ser assegurado pelo Estado. Definido de forma objetiva, vale dizer jurídica, povo equivale ao conjunto dos sujeitos históricos (nem sempre cidadãos: juridicamente, cidadão = eleitor), tendo-se em conta que cada sujeito é uma pessoa humana participante da autoridade soberana do poder popular.

Assim, a sociologia do direito pode destacar a autoridade baseada no reconhecimento social que destaca legitimidade porque o saber é constituído de forma compartilhada, dialogada, intervindo o contraditório. Com o conhecimento social produzido com a aproximação entre as pessoas e as comunidades, os aparelhos repressores de Estado se veem modificados em instrumentos institucionais de negociação: a presença ostensiva se converte em presença constante. A meritocracia (hierarquia do conhecimento), ao contrário, não resolve por si a questão uma vez que sem as mediações dos sujeitos, formas constitutivas de mecanismos de comunicação aberta, a hierarquia destacada pelo “saber acumulado” denota elitismo e estratificação. Deste modo, compartilhar o conhecimento é estabelecer o princípio democrático, erigido pela isonomia dos discursos. A lógica presente na mera imposição hierárquica na ordem de comando (Segurança Pública e demais aparelhos repressivos do Estado) não condiz com a expansão horizontal do conhecimento, porque também acumula “segredos de Estado”. A lógica própria à Razão de Estado não admite a comunicação e divulgação, de tal modo que os discursos são aprisionados na estrutura mecanicista do comando, via de regra ofuscado por suposto mérito. Desse modo, vê-se que o leque analítico tanto permite investigar e entender o Direito como resultante de um processo político e social – sociedades sem o Estado (primeiras ou primitivas) ou sociedades contra o Estado (Estado e poder paralelo) –, quanto visualizar o surgimento e as potencialidades de novos direitos e de novos sujeitos de direitos: pluralismo jurídico.

O mutualismo (para alguns cooperativismo) equilibra-se entre a interação e a entropia social. Porém, pode-se valer da entropia econômica do capitalismo para produzir Solidariedade e humanismo. A entropia econômica, apesar de ser hegemônica – enraizar-se por entre todas as frestas da sociedade e de sua cultura, nas relações sociais, na psique humana, na formação intelectiva e lógica do ser humano – não aniquila por completo os sentimentos e valores humanos. As primeiras explicações sociológicas dão conta que primeiro pacto (Hobbes) ou contrato (Rousseau), se ocorreram, eram de natureza constitutiva da sociedade, como se fossem realmente um contrato social, nos moldes do clássico contratualismo jusnaturalista. Desse modo, as articulações, associações derivadas (como vemos hoje em dia os convênios ou acordos e parcerias presente-futuras) não podem, é óbvio, escusar-se de seguir o mote original baseado na Liberdade de escolha e na legitimidade e responsabilidade social advinda da capacidade de contratuar com o Outro.

Também é curioso de se perceber que o contrato original, se balisado pela Liberdade de escolha de cada um, deveria justamente limitar daí por diante a Liberdade de todos. O contrato impôs, por meio de ação livre, a limitação da própria liberdade. De acordo com o mutualismo, ao se referir expressamente a quando, onde, como, quanto e quem, o princípio atrelado à interação social acentua a necessária formação de uma espécie de Lide Social – não como contraditório, mas sim na forma de uma súmula ou síntese das articulações entre a teoria e a prática associadas à produção e ao trabalho de edificação social. É evidente que não há que se falar em autonomia sem Liberdade, porém, não se justifica a autonomia sem crescimento do coletivo, sem amadurecimento social. Então, combinando-se e vivenciando-se na prática diária da produção colegiada, os princípios do cooperativismo asseguram-se do mutualismo, de um crescimento entre seus pares, da mesma forma que os indivíduos e cidadãos são cônscios das mudanças e alterações ocorridas e perpetradas no entorno social. Isto é, tudo o que nos modifica e nos consolida internamente, por força da dinâmica social, interage e subverte o status quo. Por força do mutualismo, a entropia cultural e econômica se modificam, solidificam-se, ou melhor, convertem-se em Solidariedade (solidus).

Desenvolver práticas (reais e virtuais) interativas que favoreçam e estimulem a concepção de que o “direito de acesso aos bens culturais, tecnológicos e científicos” constitui um direito humano fundamental, posto que corrobora com a elaboração das “inteligências coletivas ou das razões interativas” e assim possam incentivar o desenvolvimento e a produção de mensagens políticas dos variados grupos, camadas, estratos e classes sociais;


3. Marco Histórico

3.1. Renascimento: Mecanismo: Galileu – Descartes - Hobbes – Bacon

O “movimento do mecanismo” promoveu a razão necessária ao Estado Moderno, como mecanismo de superação do “estado de necessidade da natureza”. O mecanismo ofereceu o aporte do argumento lógico ao “poder instrumental” do Leviatã. O mecanismo ainda empregou um sentido científico à dominação política e projetou a “dominação técnico-racional”, em compasso com o discurso do Estado de Direito (como queria Weber):

O mecanismo é uma filosofia da natureza segundo a qual o universo e qualquer fenômeno que nele se produza podem e devem explicar-se de acordo com as leis dos movimentos materiais. [A minha filosofia], escrevia Descartes a Plempius, [só considera grandezas, figuras e movimentos, à semelhança do que faz a mecânica]. A fórmula será constantemente retomada no seu século: tudo na natureza se faz por [figuras e movimentos]

(Alquié, 1987, p. 59).

Como veremos, no mecanismo, há uma mescla entre racionalidade e empirismo. Sob essa influência, mas em período subsequente, também surge Blaise Pascal (1623-1662): filósofo, místico, físico e matemático. A frase mística “o coração tem razões que a própria razão desconhece” é uma síntese de sua doutrina filosófica: entre raciocínio lógico e emoção. Pascal foi um gênio matemático e também criou a primeira calculadora mecânica. Além de sua intensa atividade científica, ainda se dedicou a trabalhos de natureza filosófico-religiosa e, como teórico, destacou-se como um dos mestres do racionalismo e do irracionalismo. Porém, antes disso, no século XVII, o mecanismo tinha uma fórmula simples: Tudo na natureza ocorre por meio de figuras e dos seus movimentos. É deste fluxo que advém a ciência clássica. Também é neste sentido que se pode dizer que o mecanismo promoveu uma revolução na ciência sem ter sido uma teoria científica — distinguiu-se como uma nova racionalidade e por trazer outra forma de apreensão dos fenômenos. O próprio surgimento do mecanismo se deu com uma descontinuidade, mas o sentido laico e comum é a necessidade de explicar os fenômenos da natureza exclusivamente pelas leis dos movimentos da matéria — e esta não tem alma. Esse típico pensamento mecanicista (tendo o cartesianismo por referência) logo ganhou a consciência do homem comum. Os “mecanicistas” ainda rejeitaram as físicas animista, qualitativa, finalista. Mas o Mecanismo não foi só uma ilustração filosófica, foi uma obra de concretude técnica ou, mais precisamente, de obras mecânicas (além da própria mecânica, enquanto parte da física):

MECÂNICA – tradicionalmente a teoria das máquinas, em particular as cinco “máquinas simples”: a alavanca, a cunha, a roldana, o parafuso e o molinete. Transformada durante a revolução científica para incluir teorias de colisão e outros problemas associados com corpos em movimento (Henry, 1998, p. 139).

Foram aí indicadas cinco peças, além da lançadeira voltante, que propiciou a alavancagem da Revolução Industrial. O que também se percebe hoje com mais clareza é que o próprio Renascimento não foi uma era homogênea, recheada de grandes gênios e em meio a cursos revolucionários contínuos. Houve sim, como longo processo de amadurecimento e de profundas transformações, certos momentos ou fases em que dialogavam plenamente o moderno e o arcaico, o novo e as tradições, as mudanças e o sectarismo, a alquimia e a química, a RETA RAZÃO e o pensamento mágico:

“MIRABILIA” — literalmente, “coisas maravilhosas”. Usado para denotar máquinas ou autômatos que costumavam ser mostrados na corte em exibições, cerimônias, espetáculos teatrais e ocasiões similares e que pretendiam produzir, por meios ocultos, efeitos impressionantes ou surpreendentes, mas apenas divertidos (Henry, 1998, p. 22).

Esta mescla ou era de transição entre épocas tão díspares, até que se conhecesse todo o potencial do Renascimento(?), também teve obscuridades ou incertezas (aliás, muito apropriadas quando se trata de ciência):

Entretanto, o autor daquele livro seiscentista de ‘química’ empregava largamente uma simbologia de derivação alquimista, defendia a existência de uma real analogia entre as propriedades do arsênico e do antimônio e o comportamento dos animais (a serpente e o lobo) cujos nomes as substâncias eram simbolizadas: ou seja, identificava (como tipicamente ocorre dentro do ‘mundo mágico’) as propriedades e as características dos objetos usados como símbolos com as propriedades e as características dos objetos ou das coisas reais simbolizadas (Rossi, 1992, pp. 331-332 – grifos nossos).

Esta análise — do livro Schema materialum pro laboratorio portabili sive Tripus Hermeticus fatidicus pandens oracula chymica, de Johann Joachim Becher (1689) — revela que há magia no Renascimento, que o próprio desencantamento do mundo (como racionalidade progressiva) não é um processo uno, homogêneo, onipresente. Na verdade, ainda que talvez seja o período mais fulgurante da história humana (maior ainda do que as civilizações grega e romana), o Renascimento foi um processo tortuoso, contraditório e extremamente beligerante. Para Galileu, de modo semelhante, só a razão (consciência dos fatos) leva à verdade, no debate entre ciência (moderna) e fé deve prevalecer o argumento lógico (principalmente porque se deve aplicar essa lógica às próprias Escrituras):

Eu acrescentaria somente que, se bem que as Escrituras não possam errar, os seus intérpretes e expositores poderiam, entretanto, incorrer por vezes em erros, e de várias maneiras [...] Pois nem toda afirmação da Escritura amarra-se a uma obrigação tão severa como cada efeito da natureza [...] E quem quererá colocar um limite à capacidade do espírito humano? Quem ousará afirmar já ser conhecido tudo o que existe de cognoscível no mundo? (Galileu, 1988, pp. 18-19-20 – grifos nossos).

Entretanto, lhe permaneceu vivo esse espírito de desconfiança, ou melhor, de não apostasia diante do conhecido e do conhecimento. Afinal, como ensinou Galileu: Quem afirmará que já se conhece tudo o que possa ser conhecido no mundo?

De certo modo, pode-se reportar ao atomismo da Grécia clássica (Demócrito, Epicuro) para buscar suas raízes. Galileu se declarou epicurista[i] e isto o desvinculou da filosofia natural do Renascimento, abrindo as portas da natureza: “Este materialismo desmistificava os prestígios da natureza e podia ajudar fortemente os homens a tornarem-se <senhores e possuidores> dela” (Alquié, 1987, p. 61). Ou seja, o mecanismo procurou livrar o homem da ação dos poderes que não fossem científicos ou provindos da razão: “A doutrina que então explicava a matéria por meio de um arranjo mecânico de átomos destinava-se a desprender o homem de todos os poderes exteriores a si; nem as coisas cá de baixo nem os astros lá do alto podiam exercer influência sobre ele” (Alquié, 1987, p. 61). No entanto, havia uma diferença acentuada entre atomistas e mecanicistas: “Os mecanicistas do século XVII reclamam a liberdade que se obtém dominando a natureza; os atomistas antigos haviam buscado a que se alcança preservando-se da natureza” (Alquié, 1987, p. 61). Os mecanicistas eram intervencionistas, mas, além disso, o século XVII queria desvendar o mundo. De certo modo, diferentemente de muitos outros “colaboradores menores” (Torricelli, Cavendish, Mersenne), Descartes foi mais dogmático: “A dúvida permitiu encontrar as verdades primeiras a partir das quais se funda uma ciência certa” (Alquié, 1987, p. 63). Sua dúvida metódica trouxe-lhe rápidas certezas.

Por isso, também viram sucumbir a ideia do cosmos como “hierarquia ontológica fechada” — em benefício de um mundo aberto e em movimento, e segundo leis gerais e comuns. Por exemplo, para Descartes, a natureza é matéria: “A natureza nada inventa: há tão só fenômenos que aí aparecem, explicáveis por algumas leis simples e imutáveis” (Alquié, 1987, p. 66). Também o homem é matéria, e máquina em movimento — para Descartes, o homem é simples: “O corpo do animal e do homem, excetuada uma maior complexidade, não funciona de modo diferente de qualquer maquinaria fabricada pelos homens” (Alquié, 1987, p. 66). Relógios e órgãos são bem semelhantes, assim como nervos e tubos. A água que brota das fontes pode mover máquinas ou pronunciar palavras. As molas se armam como tendões. Contudo, é pelo pensamento que o homem compreende a máquina, e tanto o seu corpo quanto a mecânica do mundo. Mais especificamente, Descartes e Pascal fizeram assim uma distinção do espírito e da matéria[ii]. Talvez ainda deva-se dizer que havia uma tendência à mecanização radical: “Pensando que o seu corpo é uma máquina integrada na grande máquina do universo, o homem assegura a sua dignidade” (Alquié, 1987, p. 67). Neste sentido, se ainda quisermos, os gregos também conheciam a arte dos “mecanismos autômatos” (Losano, 1992).

Observando-se retrospectivamente, no entanto, há uma forte ironia quanto aos princípios e resultados do mecanismo: “Foi como filosofia da natureza, como teoria geral do mundo, que ele se mostrou fecundo, dando ao homem um outro olhar sobre o universo, e não na sua aplicação ao pormenor dos fenômenos” (Alquié, 1987, p. 70). Sua superação também se deu de modo lento, em concomitância com o surgimento das ciências especializadas: o funcionalismo seria um caso típico. Enfim, a partir de então, o “conhece-te a ti mesmo” iria depender do conhecimento da física e da mecânica mais especificamente.

De que serviu a mecânica?

O Homo faber potencializou a si mesmo com o uso de instrumentos achados ou fabricados; desde muito cedo, a técnica exerceu o papel de longa manus no trabalho de fabricação do próprio homem. Por isso, tal qual hoje em dia, no começo era a técnica, especialmente a mecânica. Desde o início, a mecânica apareceu para o homem associada à satisfação das necessidades e à tentativa de sobrevivência: “Deslocar pesados fardos e assegurar o equilíbrio de massas importantes foram manifestamente, desde a mais alta antiguidade, as duas preocupações principais da humanidade desejosa de desafiar a ação destruidora do tempo e de se superar a si mesma nas produções estáveis de civilização” (Alquié, 1987, p. 83). O complemento subsequente dessa intervenção, como sabemos, foi a “fabricação da cultura” e também aí a mecânica se associou ao mito do poder e da opulência e tão presente no deslocamento das toneladas que acionariam a força da “civilização do movimento[iii]”: “O mito da torre de Babel corresponde a esta realidade. A abundância dos monumentos de todas as espécies, desde os enormes menires até aos zigurates e às pirâmides do Egito, é testemunho do acesso dos grupos humanos, em todos os pontos do globo e em tempos muito remotos, a técnicas de grandes construções” (Alquié, 1987, p. 83). Parte do método científico moderno, por sua vez, tem dívidas teóricas com os gregos clássicos e com instrumentos de uso prático: “No movimento derivado do Renascimento, o século XVI ocidental redescobre a obra teórica mais elaborada da ciência helênica, a de Arquimedes, e esta obra, centrada na estática, apresenta a regra de equilíbrio da alavanca reta a partir de considerações lógicas independentes da natureza da gravidade” (Alquié, 1987, p. 84). De modo complementar, a balística sempre esteve associada à agressividade natural do poder e à conquista, tornando-se imprescindíveis a direção e a precisão. Porém, a eficácia militar só se tornou possível com a chegada de outro profissional aos paióis e arsenais: o “matemático-engenheiro”. Ali se misturaram completamente o movimento, a razão e a violência (que serviriam ajustadamente ao poder nascente do Estado Moderno). A par disso, dois novos instrumentos aperfeiçoados nos séculos XV e XVI colaboraram com esta equação do poder: a biela-manivela e o volante. Teoricamente, a obra de Galileu, Discursos e Demonstrações Matemáticas em torno de Duas Novas Ciências, é um marco dessa alteração da visão de mundo, sobretudo porque trocou a estática pela mecânica (ou mecanismo).

Galileu e a verdade empírica

Galileu Galilei (1564-1642) tornou-se um mártir na defesa dos “direitos da razão”, mas acabou seus dias preso e sofrendo humilhações físicas e morais, após ser condenado pelo Santo Ofício em 1633. Curiosamente, a prova formal apresentada por ele sobre o movimento da Terra (o fluxo e o refluxo do mar) de nada valia. Entretanto, suas contribuições foram muito além, por exemplo, quando aperfeiçoou consideravelmente a luneta e “a apontou para o céu”. Também não viu o florescer da álgebra, mas o que havia feito pela matemática, há muito se antecipara a seu tempo: a língua da matemática permitiria ler o livro da natureza. Desde cedo, no entanto, teve facilidade para a música e o desenho, e notável habilidade para a construção de instrumentos. Sua formação posterior (o pai foi seu primeiro professor) lhe garantiu uma erudição humanista. Já adulto, estudara Dante e aí se inspirou na recusa à empáfia e à soberba: “A poesia burlesca que ele escreveu contra o uso da toga revela, já nesta época, o caráter militante da sua aversão às estruturas conservadoras que lesam a independência do espírito” (Alquié, 1987, p. 07). De outro modo, cientificamente, Galileu identificou melhor o heliocentrismo na madrugada do dia 07/01/1610. Assim, na carta que escreveu ao príncipe de Florença dizia do seu entusiasmo pela ciência inteiramente nova que lhe antevia: o movimento do mecanismo. Depois, como réplica a muitos ataques que sofrera, Galileu escreveu uma outra carta à grã-duquesa Cristina, afirmando que: “... a intenção do Espírito Santo é ensinar-nos como se deve ir para o Céu, e não como vai o Céu” (Alquié, 1987, p. 12). Perto do fim, já condenado, Galileu manteve a dignidade de sua postura — em sua defesa, sempre se valeu de argumentos da pesquisa racional. Por fim, na França, sob a proteção do parlamento e de um laicizismo maior, suas obras puderam circular mais livremente. Mesmo cego, Galileu continuou pesquisando, dando provas do que é ser um clássico: “o verdadeiro sábio é aquele que, até o fim, volta a empreender tudo de novo” (Alquié, 1987, p. 15).

É interessante perceber como o embate pela razão estava presente em Galileu e ainda que, em outras palavras, fosse clara a preocupação de que primeiro era preciso relativizar a metafísica para só depois propor-se um método arrojado, metódico, racional, definível para qualquer um que o quisesse empregar. Em Galileu é expressa esta percepção de que a ignorância é o que aterroriza e não o conhecimento adquirido na verdadeira investigação empírica da realidade. Diante do inevitável conflito, Galileu faz uma aparente concessão à metafísica daqueles que se mantinham aferrados à interpretação dogmática das escrituras, mas isto não passava de outro simples exercício de sua inteligência e sagacidade superiores. Usava de um estratagema da razão contra a sedição que se poderia provocar, enfrentando-se a dogmática e a metafísica diretamente. Portanto, era mero artifício (e que levava o adversário a crer que fosse uma real concessão), para então chegar ao destino proposto:

Tendo eu, portanto, descoberto e logicamente demonstrado que o globo do Sol se movimenta em torno de si mesmo, fazendo uma inteira evolução em um mês lunar, aproximadamente na exata direção em que se processam todas as outras evoluções celestes; e sendo, ainda mais, muito provável e razoável que o Sol como instrumento e regente máximo da natureza, quase coração do mundo, dê não somente, como claramente dá a luz, mas também o movimento dos planetas que giram em torno dele; e se, conforme a tese de Copérnico atribuiu principalmente à Terra a evolução diurna; quem não vê que para deter todo o sistema bastou deter o Sol, como exatamente indicam as palavras do texto sagrado, sem alterar o restante das recíprocas relações dos planetas, alterando somente o espaço e o tempo da iluminação diurna? (Galileu, 1988, p. 24).

Vê-se aí qual era a real dimensão e a força da religião naquela época (e que Galileu quisera contornar, mesmo sem sucesso): era mais fácil deter o Sol do que reinterpretar as Escrituras ou não interpretá-las literalmente. Portanto, colocar o Sol em seu devido lugar foi a maior incumbência que se propôs esse movimento do racionalismo e do heliocentrismo. De qualquer forma, eram já os passos fundamentais de um presunçoso racionalismo que não faria nenhuma concessão.

Descartes e o racionalismo ou cartesianismo

O que é cartesianismo? É a típica maneira de “pensar racionalmente” (livre da metafísica, do a priori religioso) e teve início com René Descartes (1596-1650) — contemporâneo de Galileu Galilei (1564-1642), de Francis Bacon (1588-1679) e de Hobbes (1588-1679). A ideia mais simples que constitui o raciocínio lógico (aplicado à ciência) talvez se expresse pela chamada “dúvida metódica”:

Seu propósito central consistia em nada reconhecer como verdadeiro sem que, antes, tivesse passado previamente pela sua razão, pelo crivo de um procedimento metódico, baseado na dúvida [...] Nenhuma ideia merece o qualificativo de verdadeira, se não for objeto de um questionamento radical que permita chegar a princípios, proposições primeiras, que sejam, de fato, indubitáveis (Rosenfield, 2005, p. 07).

Obviamente que se tratava de uma tentativa de fugir dos preconceitos e dos apostolados não científicos, das ideologias até então dominantes. Por isso, Descartes foi o precursor do racionalismo[iv]:

E como se tratava de um “discurso do método”, a sua preocupação central residia no como conhecemos no como podemos ter acesso a ideias verdadeiras, que fossem imunes ao erro, quando perseguidas segundo um procedimento metódico, sistemático [...] Descartes propugnava por um pensamento jovem, aberto à crítica e aos questionamentos, capaz de exercer uma dívida cética e de resistir à mesma dúvida graças a uma razão aberta ao questionamento de seus próprios princípios [...] Moderno, ele defendia a ideia de que a razão deveria permear todos os domínios da vida humana, numa atividade libertadora, pois voltada contra as mais diversas formas de dogmatismo (Rosenfield, 2005, pp. 11-12 – grifos nossos).

Era um “método virtuoso” que deveria dirigir as paixões, como “conceitos atuantes que pudéssemos estimar como morais”: “Estando a alma indissociavelmente unida ao corpo, não sendo ela como um ‘piloto alojado, em seu navio’, coloca-se a questão de como deve agir o homem virtuoso respondendo às paixões de seu corpo” (Rosenfield, 2005, p. 15). Como um racionalista, diferenciado de um Aristóteles e de um Cícero, Descartes apostava na razão e no bom senso — nossa “igualdade natural está pautada nesta racionalidade inata a todo ser humano”. Pensava o bom senso a partir de um “agir racional” [v], guiado pela razão e não refém das paixões:

Descartes considerava o bom senso ou a razão a coisa do mundo a ser melhor compartilhada, de tal maneira que a capacidade de discriminar o verdadeiro do falso torna todos os homens, independentemente de sexo, cor ou religião, iguais. A razão é formalmente igual em todos, o que os distingue é a sua aplicação, pois essa deriva dos costumes, da religião, dos conhecimentos adquiridos, daquilo que ganhou o estatuto de verdade, embora não o seja. A razão iguala, as opiniões diferenciam os homens[vi] [...] Eis porque Descartes procura estabelecer um método que possa ser seguido por todo e qualquer homem, independentemente de época, opinião, crença, costumes ou sexo [...] Um método voltado, então, para a busca da verdade e não da verossimilhança (Rosenfield, 2005, pp. 17-18).

O racionalismo, basicamente, estava organizado em três bases:

  1. Psicológica – a razão é equiparada ao pensar e, portanto, é uma atividade cognoscível superior à emoção e à mera vontade; contraposto ao emocionalismo e ao voluntarismo, identifica-se com o intelectualismo.

  2. Epistemológica ou Gnosiológica – o único órgão completamente desenvolvido ao pensar e, portanto, que efetue a atividade cognoscível, é o que dá provimento à razão; contrapõem-se ao empirismo e intuicionismo.

  3. Metafísica – a realidade é de caráter racional (racionalismo metafísico); contrapõem-se ao realismo empírico e, com muita freqüência, ao irracionalismo.

Essas três correntes básicas do racionalismo subsistiram praticamente durante toda a Idade Média, mesmo que modificadas pelas diferentes abordagens dos problemas. Por exemplo, ser racionalista não significou forçosamente toda a realidade e, mais particularmente, se fosse transparente à razão humana(?). Neste caso, podia-se admitir o racionalismo como suscetível ou não de integrar-se ao sistema das verdades da fé. Ao mesmo tempo, o racionalismo integrou-se à Teoria do Conhecimento, principalmente quando se contrapunha ao empirismo. E sob esta marca ou visão de mundo predominante, é que Descartes construiu as premissas de seu método, sob quatro regras demarcadas e fixas:

  1. A primeira regra estipula não aceitar nada como verdadeiro sem antes ter passado pelo crivo da razão

  2. Segundo, tudo o que aparece como complexo deve ser dividido em tantas partes simples quanto possíveis, pois a razão, ao focar um problema perfeitamente delimitado, tem mais condições de resolvê-lo do que se encarar algo composto de várias maneiras

  3. Terceiro, uma vez feito esse processo de simplificação, ele deve seguir um ordenamento, de modo que a remontagem para o composto ou complexo possa ser feita sem desvios, que prejudicariam a verdade almejada

  4. Quarto, como esse procedimento pode ser retomado e repetido por qualquer um, ele deve dar lugar a tantas revisões quanto necessárias, de modo que as contribuições e objeções de todos possam ser levadas em consideração, pois ela é a condição mesma de estabelecimento da verdade (Rosenfield, 2005, pp. 21-22).

Aquele que não pensa profundamente, com dúvidas constantes e amparadas, metodicamente, não vive a experiência da totalidade humana. Em síntese: a dúvida estimula o raciocínio e assim se elabora a razão, para se revelar como bom senso: um agir pensado, metodicamente calculado[vii] (“bom senso não é um agir com fé”, mas sim com a razão) é o que conduz à liberdade. Portanto, o desenvolvimento da razão deveria tornar a vida social melhor, e a ciência ajudaria nesse processo de hominização.

Empirismo

A expressão empirismo deriva do grego e traduz a experiência proporcionada pelos órgãos dos sentidos ou a vivência decorrente dos sentimentos, afeições, emoções acumuladas em sua memória. Por isso, também é considerado como uma teoria de caráter epistemológico, pois é relativo à natureza do conhecimento. Há uma tendência a proporcionar explicações genéticas do conhecimento, além do uso recorrente de termos como sensação, impressão, ideia. Há inúmeras linhas de interpretação, mas o precursor teria sido Bacon, com a ideia de que o experimentalismo científico deveria trazer benefícios à vida prática. Neste afã, estudou metalurgia, química, geologia e, acima de tudo, desenvolveu grande entusiasmo pela técnica (veja-se Novum Organum). Formou-se em direito e também foi literato (veja-se Nova Atlântida). Buscava o saber como um todo coerente, mas o filósofo natural deveria ser como uma abelha: um ser ativo, fecundo e à procura de resultados práticos. Afirmava em todas as obras que saber é poder. O real interesse do saber está em conquistar a natureza: o saber não tem valor em si mesmo (ensimesmado, estocado como memorização, retórica). Seu utilitarismo reconhecia o saber em sua totalidade e não apenas em aplicações imediatas, desejando que servisse à humanidade:

XXIX. Nas ciências que se fundam nas opiniões e nas convenções é bom o uso das antecipações e da dialética, já que se trata de submeter o sentimento e não as coisas [...]

XXXVI. Resta-nos um único e simples método para alcançar os nossos intentos: levar os homens aos próprios fatos particulares e às suas séries e ordens, a fim de que eles, por si mesmos, se sintam obrigados a renunciar às suas noções e comecem a habituar-se ao trato direto das coisas [...] A formação de noções e axiomas pela verdadeira indução é, sem dúvida, o remédio apropriado para afastar e repelir os ídolos [...]

XLI. Os ídolos da tribo estão fundados na própria natureza humana, na própria tribo ou espécie humana. É falsa a asserção de que os sentidos do homem são a medida das coisas [...]

XLII. Os ídolos da caverna são os dos homens enquanto indivíduos [...]

XCV. Os empíricos, à maneira das formigas, acumulam e usam as provisões; os racionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmos extraem o que lhes serve para a teia. A abelha representa a posição intermediária: recolhe a matéria-prima das flores do jardim e do campo e com seus próprios recursos a transforma e digere [...] Por isso muito se deve esperar da aliança estreita e sólida (ainda não levada a cabo) entre essas duas faculdades, a experimental e a racional [...]

XCIX. De fato, o artesão, despreocupado totalmente da busca da verdade, só está atento e apenas estende as mãos para o que diretamente serve a obra particular [...]

CIV. Muito se poderá esperar das ciências quando, seguindo a verdadeira escala, por graus contínuos, sem interrupção, ou falhas, se souber caminhar dos fatos particulares aos axiomas menores, destes aos médios, os quais se elevam acima dos outros, e finalmente aos mais gerais [...]

CV. Mas a indução que será útil para a descoberta e demonstração das ciências e das artes deve analisar a natureza, procedendo às devidas rejeições e exclusões, e depois, então, de posse dos casos negativos necessários, concluir a respeito dos casos positivos [...] Ainda nos pode ser indagado, mais como dúvida que como objeção, se intentamos, com nosso método, aperfeiçoar apenas a filosofia natural ou também as demais ciências: a lógica, a ética e a política. Ora, o que dissemos deve ser tomado como se estendendo a todas as ciências [...]

CXXIX. Vale também recordar a força, a virtude e as consequências das coisas descobertas [...] Referimo-nos à arte da imprensa, à pólvora e à agulha de marear. Efetivamente essas três descobertas mudaram o aspecto e o estado das coisas em todo o mundo: a primeira nas letras, a segunda na arte militar e a terceira na navegação

(Bacon, 2005, pp. 38-97).

Bacon não poderia ter concluído seu pensamento de um modo mais claro, quando pensamos que foi um dos mais dignitários homens do Renascimento – aliando arte, política, técnica e ciência. Kant reagiu a esta posição, porque embora todo conhecimento comece com a experiência, nem todo conhecimento resultante procede dessa mesma experiência.

Realismo

Em seguida, o realismo também se avolumaria como método e rigor científico, à medida que a razão e a verdade não poderiam estar, é claro, a não ser na própria realidade. Agora, a questão estava em saber como escarafunchar esta realidade a fim de que as aparências se discrepassem em virtude das ranhuras elucidativas. Contudo, em resumo, por realismo, temos que:

1) “Realismo” é o nome da atitude que se atém aos fatos “tal como são” sem pretender sobrepor-lhes interpretações que os falseiam ou sem aspirar a violentá-los por meio dos próprios desejos. No primeiro caso o realismo equivale a uma forma de positivismo [...] já que os fatos de que se fala aqui são concebidos como “fatos positivos” [...] No segundo caso temos uma atitude prática [...] O chamado “realismo político” (Realpolitik) pertence a esse realismo prático.

2) “Realismo” designa uma das posições adotadas na questão dos universais [...] a que sustenta que os universais existem realiter ou que universalia sunt realia.

3) “Realismo” é o nome que se dá a uma posição adotada na teoria do conhecimento ou na metafísica. Em ambos os casos, o realismo não se opõe ao nominalismo, mas ao idealismo [...] O realismo ingênuo supõe que o conhecimento é uma reprodução exata (uma “cópia fotográfica”) da realidade. O realismo científico, empírico ou crítico adverte que não se pode simplesmente equiparar o percebido com o verdadeiramente conhecido, e que é preciso submeter o dado a exame e ver (para depois levá-lo em conta quando forem formulados juízos definitivos) o que há no conhecer que não é mera reprodução

(Mora, 2001, pp. 2471-2473).

Como diria Giambattista Vico (1989), o restaurador do racionalismo na modernidade clássica (1668-1744), da rudeza nasce da ignorância, pois quem não sabe sempre duvida, citando em latim a lei das XII Tábuas: Si quis nexum faciet mancipiumque, uti lingua nuncupassit, ita ius esto.

O Iluminismo trouxe a liberdade?

A invenção da imprensa é o maior acontecimento da história.

É a revolução mãe...

É o pensamento humano que larga uma forma e veste outra...

É a completa e definitiva mudança de pele dessa serpente diabólica,

Que, desde Adão, representa a inteligência.

Victor Hugo, Nossa Senhora de Paris, 1831.

O Iluminismo foi um movimento filosófico e social nascido na segunda metade do século XVIII; esteve marcado pela crença profunda na capacidade da ciência apontar soluções para os problemas da sociedade e da natureza; para Kant, o Iluminismo é a saída do estado de não emancipação (Supre aude – “ouse saber”). Mas, também se acreditava na edificação de uma sociedade mais livre, com igualdade de oportunidades. Os iluministas eram contumazes escritores de cartas e sua Enciclopédia foi, certamente, a primeira Internet, o primeiro Google e a primeira Wikipédia. A razão do Século das Luzes teve em Voltaire seu grande representante e inspirador, e alimentava a esperança de que o conhecimento traria esclarecimento para a libertação: autonomia. Os humanistas do Renascimento tinham como bordão que “aquele que aprendeu a ler, jamais estará sozinho”. Portanto, alimentavam uma proposta de ética e de solidariedade. O Século das Luzes foi uma época em que se sabia perfeitamente que o “saber é poder”, mas também se queria que fosse um saber a serviço do “poder social” e não unicamente como alimento do Estado. Trata-se de uma época em que se queria a razão a serviço do homem (como pressuposto da autonomia) e não do Estado (meramente instrumental).

No Setecentos europeu, época conhecida como a das Luzes, a razão esclarecida vinculou-se à elaboração da Enciclopédia, ao cultivo do pensamento autônomo através do livro. Livro e biblioteca dizem respeito à criação de um espaço comum para a apreensão e preservação da memória escrita, das aventuras do pensamento e de suas experiências. Seu arquétipo: a Biblioteca de Alexandria (séc. III a.C.) cuja finalidade era menos a difusão filantrópica e educativa do saber na sociedade e mais reunir, como um tesouro, todos os escritos do mundo conhecido, no coração mesmo do palácio do rei, palácio (e biblioteca) ocupando um bairro inteiro. Rolos de papirus ocupavam as “estantes”, acessíveis a uma elite de doutos e letrados que leem, conversam, trabalham e, eventualmente, ensinam nas galerias e salas adjacentes (Matos, 2006, p.07).

Esta é a razão que perdemos ou que, talvez, sequer tenha vingado. Por ironia, o Iluminismo viria a descobrir que a guerra é obra direta da Razão de Estado. A perspectiva do “cálculo de poder” (do mundo desencantado) e que tão bem serve à Razão de Estado, portanto, estava bem ali adiante. Todavia, ainda era possível pensar maneiras de “dominar o conhecimento”, porque esta pressuposição desembocaria na autonomia (para a liberdade, é preciso estar predisposto). De todo modo, para os iluministas do século XVIII, “o que pode ser explicado é maleável e pode ser dominado”. De lá para cá, a Paideia nos traria um sentido moderno de “educação para a República” e, portanto, algo bem distinto de uma “educação moral e cívica” patrocinada pelo Estado (ao estilo de “tradição, família, propriedade”). A educação é necessária à formação do conceito de República e à intersubjetividade que isto possa congregar. A Paideia adquiria assim um fator agregador, de produção de laços sociais e de formação de uma solidariedade realmente mais intensa. Isto se passava em Alexandria, mas poderia ser ajustado, atualizado, para os dias atuais — inclusive ou especialmente com o aporte fornecido pela rede telemática de comunicações. A Paideia era esta busca de sentidos na vida cultural:

A ausência de uma memória local encontrava na Biblioteca uma reparação simbólica, atraiu todos os eruditos e pensadores do mundo antigo, dando a conhecer melhor sua função principal: a Paideia, a cultura como elemento federativo e constituidor da identidade helênica, substituindo antigas figuras da solidariedade, antes ligadas ao civismo, à família e ao território. O século das Luzes compartilhou essa utopia — a do livro, da leitura e da escrita, Paideia capaz de tornar os homens melhores (Matos, 2006, p. 24).

Daí o sentido de que os clássicos da humanidade são os gênios que tornaram a vida social melhor:

Neste sentido, Burckhardt escreveu sobre os “grandes homens” e os bens culturais: grandes são Platão, Píndaro, Sófocles, Sólon, Galileu, Michelangelo, Rafael, mas não os grandes navegadores, porque a América teria sido descoberta mesmo se Colombo tivesse morrido recém-nascido. Mas a pintura “A Transfiguração”, de Rafael10, não teria sido realizada se ele não a tivesse feito. Grandes são aqueles sem os quais o mundo seria incompleto. Humanismo, pois: na sociedade e as boas leituras que conduzem à afabilidade, à amizade, à socialidade (Matos, 2006, p. 28).

O Iluminismo pode ser discutido como uma espécie de fase sucessiva do Estado Moderno, como parte do seu aprimoramento tecnológico e político, isto é, como um dos muitos elementos que conformam a modernidade, a grande indústria. Portanto, é uma retomada de Maquiavel, mas sob a perspectiva de que há uma tecnologia política, aplicada estritamente à manutenção e fortificação do poder que melhor serve ao capitalismo. Uma retomada da virtus econômica que se concluiu com a virtus iluminista. Também poderia ser visto como: da Razão de Estado ao Iluminismo. Mas, além desse caminho, deve nos permitir outra proposta: a de que o sitiado possa recorrer às suas ideias básicas de liberdade, autonomia e a elas se agarrarem para sair do fosso do “isolamento”. Também poder-se-ia dizer que o sitiado é capaz de retomar a ideia, as práticas humanistas da virtus (anterior a Maquiavel) ou até mesmo a Paideia dos gregos.

Ao tempo de Maquiavel, por exemplo, ele próprio tinha a sua disposição a herança desse humanismo que pregava a imitação dos melhores e o ensino da retórica (o caminho da verdade) combinado com a filosofia clássica, a pura verdade, a virtus. Então, é claro que o sujeito dotado de algum talento tinha tudo ou o mundo a sua frente. No momento atual, no entanto, a sociedade de consumo e de controle nos incita a ter e não a ser, ou seja, nos distanciam o quanto podem desse ideal clássico do ser belo, justo e bom. Por isso, tem razão quem escolhe a história como companheira. O Iluminismo determinou ou teria determinado tanto a baixa modernidade quanto a alta modernidade (ou pós-modernidade11):

O pensamento iluminista, e a cultura ocidental em geral, emergiram de um contexto religioso que enfatizava a teologia e a obtenção da graça de Deus. A divina providência foi por muito tempo uma ideia diretiva do pensamento cristão. Sem estas orientações precedentes, o Iluminismo, em primeiro lugar, dificilmente teria sido possível. Não é de forma alguma surpreendente que a defesa da razão desagrilhoada apenas remodele as ideias do provincial, ao invés de removê-las. Um tipo de certeza (lei divina) foi substituído por outro (a certeza de nossos sentidos, da observação empírica), e a providência divina foi substituída pelo progresso providencial [...] O crescimento do poder europeu forneceu o suporte material para a suposição de que a nova perspectiva sobre o mundo era fundamentada sobre uma base sólida que tanto proporcionava segurança como oferecia emancipação do dogma da tradição [...] Se a esfera da razão está inteiramente desagrilhoada, nenhum conhecimento pode se basear sobre um fundamento inquestionado, porque mesmo as noções mais firmemente apoiadas só podem ser vistas como válidas “em princípio” ou “até ulterior consideração” (Giddens, 1991, p. 54). Historicamente, como pano de fundo, há a inicial Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, lastro da Revolução Francesa (26/08/1789). Ao que se seguiu, imediatamente, a declaração dos direitos da mulher cidadã, de Olympe de Gouges, em setembro de 1791, e que já advertia as francesas no preâmbulo:

As mães, as filhas, as irmãs, representantes da nação, reivindicam constituir-se em Assembleia Nacional. Considerando que a ignorância, o esquecimento, ou o desprezo da mulher são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governantes, resolverem expor em uma Declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis, e sagrados da mulher, a fim de que esta Declaração, constantemente, apresente todos os membros do corpo social seu chamamento, sem cessar, sobre seus direitos e seus deveres, a fim de que os atos do poder das mulheres e aqueles do poder dos homens, podendo ser a cada instante comparados com a finalidade de toda instituição política, sejam mais respeitados; a fim de que as reclamações das cidadãs, fundadas doravante sobre princípios simples e incontestáveis, estejam voltados à manutenção da Constituição, dos bons costumes e à felicidade de todos (grifos nossos).

E confirmando-se na conclusão:

Mulher, desperta-te; a força da razão se faz escutar em todo o universo; reconhece teus direitos. O poderoso império da natureza não está mais envolto de preconceitos, de fanatismo, de superstição e de mentiras. A bandeira da verdade dissipou todas as nuvens da tolice e da usurpação. O homem escravo multiplicou suas forças e teve necessidade de recorrer às tuas, para romper os seus ferros. Tornando-se livre, tornou-se injusto em relação a sua companheira. Oh mulheres! (grifos nossos).

Assim, podemos dizer que o Iluminismo é uma filosofia complexa (libertária, “ilustrada”, revolucionária) e contraditória, marcada pelos séculos XVII e XVIII. Exemplos desse caráter contraditório seriam: Fourier: socialista; Locke: liberal; Condorcet: positivista; Rousseau: radical; Paine: polemista; Tocqueville: conservador; Moliére: dedicou-se à contradição.

  • Fourier (1768-1830): um autor admirado e considerado o precursor do socialismo, buscava a perfeição da “sociedade civilizada”, com “equilíbrio social” e “repartição proporcional da riqueza”. Sua obra traçou um mundo imenso e burlesco, sem se preocupar notadamente com as “provas irrefutáveis” ou com “verificações de verossimilhança”. Tinha uma “perspectiva física” fabulosa, era metódico, meticuloso, lógico e audaz. No mundo utópico que preconizou, estava estabelecida a prática da verdade e da Justiça, como via da “fortuna social”. Neste novo regime societário proposto estaria o “novo mundo” ou o “mundo em sentido reto”. Só essa transformação social seria capaz de conduzir ao estado civilizado (ou “Estado Civilizatório”: a exemplo de Bacon), como meio da perfectibilidade e do destino humano.

    Outros expoentes em áreas diversas seriam:

  • Moliére (1622-1673): dramaturgo francês, além de ator e encenador, é considerado o grande mestre da comédia satírica: modificando profundamente a dependência da dramaturgia francesa, até então, da temática da mitologia grega. A partir da revitalização das formas tradicionais da comédia, produziu num novo estilo, confrontando os contrários: a verdade oposta à falsidade, a inteligência rivalizando com o pedantismo. Esse estilo ainda se completaria com uma aguda percepção do absurdo da vida cotidiana.

  • Thomas Paine (1737-1794): do escritor e político inglês, é de cunho obrigatório ao contexto à lembrança do livro Os direitos do homem (1791-1792), que combateu na Revolução Americana e depois na Revolução Francesa.

  • Cesare Beccaria (1738-1793): seu trabalho, suas teses foram fundamentadas no princípio de que as políticas públicas devem procurar o maior bem para o maior número. Condenou as práticas bárbaras de seu tempo: o uso comum da tortura e da instrução processual secreta, o capricho e a corrupção dos juízes, as punições brutais e degradantes. O objetivo do sistema penal, argumentou, deve ser encontrar penalidades severas o bastante somente para conseguir as finalidades específicas de segurança e ordem; qualquer coisa, além disso, é tirania. A eficácia da justiça criminal depende principalmente da certeza da punição, mais que de sua severidade. As penas devem ser proporcionais à importância da ofensa.

  • Saint-Just (1767-1793): grande leitor de Rousseau sonhava com uma democracia igualitária sem pobres nem ricos, no âmbito de uma República virtuosa: "A paz, a abundância, a virtude pública, a vitória, tudo está no rigor das leis". Fora das leis, tudo é estéril e morto. Foi eleito membro do Comitê de Saúde Pública. Desenvolveu as bases teóricas do governo revolucionário e fez a apologia do Terror. Morto aos 26 anos teria tempo de publicar um livro impressionante, O Espírito da Revolução, em que apresenta suas ideias para uma Constituição revolucionária francesa.

  • Pietro Verri (1728-1797): discípulo de Beccaria apresentou uma narrativa das barbáries do Estado, àquela altura feita em estrita consonância com a “Razão do Estado”. Mas iria mais adiante, apostando que se trata de um livro que luta por um quádruplo: razão, verdade, justiça, dignidade. Não há razão sem verdade, nem justiça sem dignidade (não é digno de fé quem não age pela verdade; não tem razão quem não é justo).

Observações Sobre a Tortura é um livro representativo do iluminismo do século XVIII, e relata a aplicação da tortura quando se buscavam os responsáveis para a peste que assolou a Milão de 1630. É uma narração intensa, perturbadora, angustiante, lutando contra a barbárie praticada pela tortura, pelo uso da força bruta, pelo obscurantismo, pela mediocridade, pela ignomínia, pela estupidez e pela crendice. De outro modo, é uma aposta na razão, no conhecimento, na inteligência, na arte do desvelamento. Verri cita Cícero (no discurso Pro Silla): “A tortura é dominada pela dor, governada pelo temperamento de cada um, tanto de espírito quanto de membros, ordenada pelo juiz, dobrada pela dor, corrompida pela esperança, debilitada pelo temor, de modo que entre tantas angústias não resta nenhum lugar para a verdade” (p. 113). O maior problema, no entanto, é que o obscurantista não é capaz de entender o que diz Cícero (em sua síntese da razão), quanto mais à assertiva de que a dignidade é fruto dessa mesma razão12. Seu lema pessoal era: “Onde não há liberdade, aí está meu país”. Ainda dizia: “A Lei é o Rei13”.

  • Condorcet (1743-1794): Matemático, filósofo, ainda que pertencente à nobreza,foi fortemente marcado pelos ideais em favor da liberdade econômica, da tolerância religiosa, das reformas legais e educacionais e contra a escravidão. Escreveu sobre política e se engajou na Revolução Francesa, além de ser considerado o fundador do sistema educacional francês.

Para efeito de maior aprofundamento, tomemos outros nomes importantes do período, como Locke e Rousseau. Um dos mais vibrantes é Voltaire (1694-1778): tinha um estilo crítico e irônico, escreveu profusamente, além de ser filósofo, poeta, dramaturgo e político. Mais pela escrita do que pela militância política, esteve preso várias vezes — um de seus clássicos é o livro Tratado sobre a tolerância. Em resumo, Voltaire:

  1. Considerava que seus livros eram armas e as palavras os projéteis usados contra as falsas ideias e as tolices humanas;

  2. A escrita14 era uma forma privilegiada de ação;

  3. Em suas cartas, assinava “esmagai infame!”.

  • Infame: tudo que se opunha ao “progresso das Luzes” e à “busca da felicidade”. Era um monstro como Medusa. Hoje seria um intelectual engajado (talvez na luta pelo reconhecimento).

  • Fanatismo: “febre violenta”, uma “gangrena do espírito”. O fanatismo levou às guerras religiosas, às fogueiras da Inquisição e à morte em nome de Deus. O fanatismo é detestável porque leva à intolerância à divergência, e isso gera “menoridade do espírito”.

Sem dúvida, é a descrição de uma modernidade altamente desenvolvida ou simplesmente modernidade tardia, como a designamos aqui. Na alta modernidade, também vemos de que forma a razão sempre foi instrumental e, no fundo, como sempre houve essa transição pós-moderna. Neste sentido de que a razão sempre foi instrumental, ainda podemos concluir que “a virtus é carpe diem”: pois que a razão recomenda que se aproveite o momento, as circunstâncias, a oportunidade, os dias. Com o surgimento da ciência moderna (passagem séc. XVI-XVII) foi possível à explicação racional e não mais mítica e teológica dos fenômenos do cotidiano. Ao invés das convenções dos dogmas, a dúvida metódica; ao invés da convicção teológica, o convencimento teleológico. Com Newton (1642-1727), o racionalismo científico passou a engendrar a base racional do iluminismo. A partir do cientista, não bastava mais apenas descrever os fenômenos, pois se exigia a explicação matemática de um fenômeno físico e depois a sua demonstração prática, experimental, a fim de se comprovar ou não o modelo matemático. Porém, antes mesmo dessa gigantesca contribuição do físico inglês Isaac Newton, precisamos enredar o pensamento racional que se formava: Galileu, Descartes e o Mecanismo.

A descoberta da prensa e depois a invenção da imprensa por Gutemberg (por volta de 1450) fortaleceu a afirmação do Estado-Laico, do mesmo modo como seria o marco precursor da base material do iluminismo e isto, é claro, proporcionou novos níveis de racionalidade. O suporte técnico (a prensa15) permitiria uma difusão de ideias, conhecimentos, teses, ideologias num nível realmente revolucionário. Sem os copistas, o conhecimento não poderia ser levado ao mundo e nem a revolução das ideias poderia ser deflagrada, daí o impacto sensacional que o suporte técnico (prensa) teria na designação futura da divulgação do saber e dos ideais modernos. Séculos depois, a Revolução Francesa investiria intensamente neste processo/fluxo, pois, ao criar a escola pública, divulgaria amplamente seu referencial ideológico e amalgamaria popularmente o saber que era portador desta modernidade que se iniciara em 1450.

No sentido apontado, portanto, uma das grandes chaves da modernidade — quanto à sua produção e interpretação — será o aporte/suporte tecnológico. Com isto, veio à necessidade de se fixar, para melhor compreender, esta noção de modernidade tecnológica. Assim, divulgar a racionalidade era como iluminar o mundo de um novo sentido, equivalia a revelar novos conteúdos. E este foi o papel desempenhado por esta tecnologia, naquele momento, pois, do mesmo modo, divulgar a racionalidade foi fundamental porque sem a precisão do cálculo (previsibilidade que gera estabilidade) não haveria controle rigoroso sobre o possível valor atribuído às coisas (criações, invenções) e nem às relações sociais e ideologias. As novas ideias a serem “trocadas” nesta fase eram os ideais propriamente modernos, clássicos — o que também aprofundou as próprias bases racionais deste processo de formação/expansão do “moderno”.

[A transfiguração de Jesus, por Rafael]

Em suma, este é o poder dos clássicos, do humanismo, da educação para a República, da Paideia (como educação desinteressada – pelo amor ao conhecimento -, não instrumentalizada pela economia ou pelo poder). Neste sentido, no Brasil, o Estado de Direito é revolucionário, uma vez que a ideia de igualdade de direitos fundamentais é algo a ser inventada, bem como o poder popular, inerente ao Estado de Direito Republicano, é ainda um fato político inócuo16. Fatos republicanos que, notoriamente, estão em baixa no mercado e na política e bem distantes do interesse popular, no mundo real/virtual. Fatos e valores que foram subjugados pelo chamado desencantamento do mundo. De modo claro, a intolerância realçada à condição instrumental (como recurso de força e de poder), distanciava-se em razão e espírito do tempo em que o certo estava no “espetáculo de se ver a verdade”, a si mesmo, à intersubjetividade. Mas, por extrema ironia, a outra face do Iluminismo foi à intolerância: com a constitucionalização do Estado de Sítio, aprisionamento da política, com o próprio fim da modernidade política. Então, pode-se dizer que o Iluminismo trouxe a intolerância e deu impulso ao próprio “direito de exclusão”, como se vê na exceção iniciada pela revolução da liberdade. Mas, como nos diz Agamben, este projeto de poder iniciado com o Iluminismo da Revolução Francesa, acabou por se revelar por inteiro na primeira Constituição considerada social (socialista), democrática, popular — em uma palavra “iluminista”: a Constituição de Weimar. Junto com a Constituição Mexicana, de 1917 e a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, na Rússia revolucionária (socialista), de 1918, passou a constituir o eixo jurídico alternativo. Porém, também estava em Weimar o germe da decomposição democrática alemã (claríssimo em seu art. 48):

Se, no Reich alemão, a segurança e a ordem pública estiverem seriamente [erheblich] conturbadas ou ameaçadas, o presidente do Reich pode tomar as medidas necessárias para o restabelecimento da segurança e da ordem pública, eventualmente com a ajuda das forças armadas. Para esse fim, ele pode suspender total ou parcialmente os direitos fundamentais [Grundrechte], estabelecidos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124, 153 (Agamben, 2004, p. 28).

Se não há dúvida da origem absolutista da Razão de Estado, igualmente não haverá dúvida de sua metamorfose iluminista e democrática na figura do Estado de Exceção Permanente. Bobbio também acentua que a retomada das ideologias da Razão de Estado, a partir do século XIX, está associada ao fim das concepções idealizadoras do Estado, bem como da associação entre Razão de Estado e arcana imperii.

De qualquer forma, os temas arrolados sob este item poderiam estar dispostos de outra forma, até mesmo sob o codinome de teoria social clássica — nada seria estranho à discussão. Porém, quando se pensa a própria teoria social como fruto da necessidade do industrialismo, especialmente a partir do século XIX, aí, então, o melhor caminho explicativo é este mesmo. A análise do Estado Cientificista ainda nos permite entender o papel do poder público como articulador da relação saber/poder — e este é, certamente, um dos temas centrais da modernidade, bem como salienta claramente o jugo da razão pelo poder. O tema será retomado com maior profundidade no capítulo em que discutiremos Durkheim.

Sobre o homem mau em Hobbes

Já em Hobbes, destaca-se a preocupação e a busca pela RETA RAZÃO: O contrato civil dá origem ao Estado de direito como uma moral civilizadora, reguladora das necessidades de sobrevivência; sublimando-as, subsumindo-as em um tipo de Estado (Angoulvent, 1996, p. 49). Para Hobbes, somos levados por um princípio passional: o medo.

A matematização da política seguia, sob o Renascimento, o mesmo influxo da geometrização das ciências: a ciência matemática da mecânica (terrestre). A ciência era dividida em: estática, hidrostática e cinética. Porém, aliavam-se guerra e status político da própria ciência ao curso global das mudanças, o que, talvez, pudéssemos chamar com mais propriedade de mudanças de paradigmas: desenvolvimento tecnológico deve ser considerado em paralelo e entrecruzando-se, de forma radical ou revolucionária, em determinada época, com as alterações de maior relevância e significado, do papel social das ciências e das forças motrizes do telos, do comus e do ethos social. Com Hobbes e sua tentativa de fixar com precisão não só o poder do Leviatã, mas também do conatus não seria diferente, entendo-se conatus (ou endeavor) como uma espécie de conexão ampliada entre sentidos, sentimentos, significados que envolvem as inúmeras teias entre mente e mundo.

Assim, como se diz fortuitamente, se o homem é mau, por natureza, em Hobbes, como lobo de outro homem, sem restrições, então, para Hobbes a razão humana está submetida à própria maldade, assim como todas as demais características humanas. Contudo, lembrando-se que sempre foi temente a Deus (até por conveniência), crente nos direitos naturais, jusnaturalismo, não se pode concluir como na premissa de cima, porque seria como que admitir que o direito derivasse da consciência mal-sã. Sobretudo se pensarmos que o lobo do homem se revela pelo "estado de necessidade", então, o contrato social, motivado/motivador do conatus, aí o homem seria capaz de produzir uma RETA RAZÃO - razão esta que levaria de encontro ao juízo superior do soberano e, ao mesmo tempo, que o distanciaria da maldade que "lhe" seria natural e esperada em toda condição ou estado de necessidade.

No pensamento renascentista, seria como se a política (racionalismo-prático) suplantasse as emoções. Afinal, a política é organização da Polis. O ideal estaria em assegurar da melhor forma possível o poder, do Leviatã, isto é, em organizar e centralizar o poder, fundar o Estado-Nação e sua soberania subjacente à Razão de Estado (aliás, o tema mais candente entre os séculos XV e XVII). Mas, se era uma fase de ampliação de horizontes, igualmente deveria ser de aplicação de novas ou de outras formas de utilização das mesmas ciências, com outro olhar e perspectiva muito mais dirigida pelos fins. Se saber era poder, com os matemáticos em ação não haveria margem de erro (em política, não haveria margem para perdão, isto é, o erro que seria absolvido):

Por mais contrário que o movimento da Terra possa parecer à filosofia natural, Copérnico insistiu, ele deve ser verdadeiro porque a matemática o exige. Isso foi revolucionário [...] Os fatores que contribuíram para estimular essa tendência foram variados e complexos, mas incluem a recuperação de textos matemáticos da Grécia antiga por eruditos humanistas que forneceram novos meios para a formulação de exigências quanto à unidade da matemática, sua utilidade e sua certeza como meio de estabelecer a verdade [...] (Henry, 1998, p. 22).

Todavia, tudo isto só seria possível se houvesse munição tecnológica suficiente, engenho e razão direcionados ao mesmo fim, à conquista e conservação de mais poder. Tudo feito com o máximo de objetividade — tanto a matemática o exigia que “navegar é preciso”. Navegar é preciso, como necessidade de ampliação dos horizontes dos conquistadores, quanto à precisão de cálculo deveria se apoiar em determinado instrumental técnico: bússola e astrolábio, por exemplo. Nunca houve política sem tecnologia e, no Renascimento menos ainda:

Inovações nas operações militares, em particular a inventiva resposta ao cerco por canhões, o bastião resistente à artilharia e vários projetos de engenharia civil como a recuperação de terras, construção de canais ou mesmo o simples levantamento topográfico para propósitos fiscais, foram vistos como causas importantes não só do status mais elevado dos matemáticos nos primeiros tempos da Europa moderna, mas também do maior interesse da matemática [...] Mudanças na natureza e na estrutura das cortes reais numa Europa de Estados cada vez mais absolutistas também deram ao mathematicus oportunidades mais amplas de fazer sentir sua presença (Henry, 1998, p. 27).

Para se ver o Novo Mundo era preciso muita fé, sem dúvida, mas a fé com um pé na razão e na ciência e outro nos fins políticos. Decerto que este realismo não podia acertar como simples soma de dois mais dois, igual a quatro, porém, traçava aí as linhas gerais do realismo que habitaria toda a modernidade e a racionalidade técnica até meados do século XX. Um de seus grandes nomes, não só como cientista (matemático), mas sim como pensador político foi Pascal. Se a ação política não é em si matematizável, diante das próprias condições da realidade que permeia o realismo político, especialmente na relação entre objetivos e efeitos, ao menos pode ser melhor escalonada (não precisamente raciocinada) entre meios e fins. Nisto será, enquanto prática social, uma ação política fria, realista, calculista — quanto a ser isenta de piedade, uma vez que o erro em política é sempre derrota e a derrota equivale à morte política: vita mea, mors tua. Como nos diz A. Comte-Sponville (Pascal, 1994), o político-matemático era um pensador de rara luz, de tão crua, capaz de ver com radicalidade e certo revolucionarismo moderno, de notável lucidez e desiludido. Por vezes, desesperado quando se voltava à sociedade que o cercava, mas sem se esconder no niilismo ou no individualismo apolítico. Há uma virtù em Pascal e, talvez, seja a de ser profusamente realista e sem utopias, desilusões, mágoas ou rancores — o que, certamente, é raríssimo de se ver no cotidiano da vida real. Como nos diz, pela razão dos efeitos: “A concupiscência e a força são as fontes de todas as nossas ações: a concupiscência produz as voluntárias: a força, as involuntárias”. (Pascal, 1994, p. 08). A concupiscência na vida diária, sinônimo de sensualidade, lascívia, em política é simplesmente sedução, oratória, impressionismo e/ou marketing. Também podemos dizer que não lhe impressionava o maniqueísmo ou messianismo puritano, como idealista sem realidade, pois não há mal sem o bem e vice-versa. Se lermos somente o primeiro trecho da citação, sem o cuidado necessário, parece retomar o lendário do homem, lobo do homem:

Todos os homens se odeiam naturalmente uns aos outros. Faz-se o possível para utilizar a concupiscência em benefício do bem público; mas isso é fingimento, e uma falsa imagem da caridade; pois, no fundo, é apenas ódio [...] fundamentaram na concupiscência e dela extraíram regras admiráveis de governo, de moral e de justiça; mas esse fundo infame do homem, esse fingmentum malum, está apenas coberto: ele não foi tirado [...] Injustiça. — Não encontraram outro meio de satisfazer a concupiscência sem prejudicar os outros (Pascal, 1994, p. 10-11).

Ódio ou luta de classes? O silogismo se apóia em metáforas! Deste realismo político, além da prática da navegação precisa, exata, ainda temos como derivado o materialismo e o Positivismo (como perspectiva política, religião ou método), mas especialmente a partir dos séculos XIX e XX. Este Homem Novo, marcado pelo individualismo, no período propriamente do Renascimento, não permitiu ver o Outro, mesmo sob constantes alertas morais, porque o EU era muito mais importante ao capital e sua expansão do que o apego ao comus e ao ethos:

O eu é odioso [...] Em suma, o eu tem duas qualidades: ele é injusto em si, ao fazer-se o centro de tudo; ele é incômodo aos outros, ao querer sujeitá-los: pois cada eu é o inimigo e gostaria de ser o tirano de todos os outros [..] Cada um é para si, pois, ao morrer, tudo está morto para si. E daí cada um acreditar ser tudo para todos [...] Um homem que se põe à janela para ver os que passam, se eu estiver passando, posso dizer que ele se pôs aí para me ver? Não, pois não em pensa em mim em particular. E quem ama alguém por causa de sua beleza, ama-a de fato? Não, pois a varíola que matará a beleza sem matar a pessoa fará com que não mais a ame (Pascal, 1994, pp. 12-12).

Assim, o filósofo-matemático nos faz lembrar novamente de Hobbes e seu Homo homini lupus, porém não se deve confundir o individualismo do Renascimento nem com o hedonismo de um Epicuro, por exemplo, da Grécia clássica, nem com o niilismo ou cinismo abjeto atual. Isto fica mais claro no próprio Pascal quando se refere à conquista e à glória:

A maior baixeza do homem é a busca da glória, mas este é também o maior sinal de sua excelência; pois, não importa as posses que tenha na terra, a saúde e a comodidade essencial que possua, ele não estará satisfeito se não for estimado pelos homens. Julga tão grande a razão do homem que, mesmo tendo alguma vantagem na terra, não estará contente se não estiver vantajosamente situado também na razão do homem (Pascal, 1994, p. 18).

Contudo, esta lógica seria demasiadamente refeita a partir do que Marx (1977) chamou de a acumulação primitiva do capital, sobretudo, entre as duas grandes revoluções industriais.

Kant e o Iluminismo

Resposta à pergunta: Que é esclarecimento [Aufklärung]? (Kant).

Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung].

Colado ao movimento de ideal libertário do Iluminismo, que tinha o objetivo de libertar os indivíduos de qualquer tipo de servidão moral, religiosa ou política, o nome que ressoa é o filósofo Imanuel Kant. Pode-se dizer que há um tipo de “iluminismo antigo”, visto no “Discurso de Péricles” de Tucídides, na Grécia antiga. Mas, seria apenas a forma de ser da filosofia, a exemplo de Epicuro: “O filósofo do jardim”. Já o chamado Iluminismo moderno pode ser simplesmente conhecido como Século das Luzes e seriam seus principais representantes: Locke, Diderot, D’Alembert, Moliére e Voltaire. Mas, como herdeiro do Renascimento17, trouxe parte de sua história, ciência e métodos, como o Empirismo. Como se sabe, o Empirismo é um componente das pretensões cognoscitivas desse período, além do cartesianismo. Porém, com Kant, há uma perspectiva de limitação do alcance da razão: a chamada doutrina da “coisa em si”. Como lugar-comum do Iluminismo, essa doutrina implica que “os poderes cognoscitivos”, sensíveis e racionais, vão até a extensão do próprio fenômeno analisado, não ultrapassando seus limites. Assim, também pode-se dizer que o Iluminismo é caracterizado pela crítica racional e pelo reconhecimento dos limites (ou capacidades) dos poderes cognoscitivos. Esta atitude empirista garantiu à ciência que o conhecimento em geral estivesse aberto à crítica da razão. A principal colaboração do período anterior consistiu em admitir que não há verdade absoluta e que a verdade pode/deve ser checada, colocada à prova e, eventualmente, corrigida, modificada ou até abandonada. Neste caso, abandonada por uma teoria mais razoável, verossímil ou adaptada ao tempo: o Evolucionismo suplantaria as teses da “geração espontânea”. Ainda poderiam ocorrer mudanças de paradigma, como no caso da 1ª Revolução Industrial (1750), seguida da Revolução Americana (1776) e da Revolução Francesa (1789). Um contraponto à tendência da matematização ocorrida no Renascimento, entretanto, indica que, em geral, pensava-se que as Leis Positivas são as estabelecidas por instituições políticas e que se opõem as Leis Naturais: ditadas pela natureza. Assim, o Iluminismo não se limitava ao uso crítico da razão, mas, sobretudo, punha-se o compromisso de que o conhecimento estivesse a serviço do bem individual e social. Por isso, o Iluminismo foi chamado de Revolução das Luzes ou grande revolução cultural do século XVIII. Pode-se ressaltar que desde o século XVII há um crescente apelo em torno da tolerância religiosa e que, paulatinamente, foi-se transformando em liberdade de pensamento e de expressão — agora como base ou condição da própria “liberdade humana” (Locke, 1987). Também conhecido por Ilustração, o “pensamento revolucionário” tinha por base conhecer a verdade e a experiência da liberdade. A raiz de sua filosofia afirmava que a razão é a luz que afasta a ignorância e a servidão. Portanto, há três aspectos do pensamento revolucionário a ressaltar:

  • a) É uma extensão ou crítica a toda crença e conhecimento já elaborado.

  • b) Este conhecimento, exatamente por estar “aberto” às críticas, deve incluir os próprios instrumentos para sua correção – se necessário.

  • c) O conhecimento assim elaborado deve ter uso efetivo em todos os campos, a fim de se melhorar tanto a vida privada quanto a organização social (Abbagnano, 2000).

Para Kant (1724-1804), talvez o nome mais expressivo, Ilustração é à saída da menoridade (heteronomia) para a autonomia. Kant não acreditava que vivia uma época propriamente ilustrada, mas que era sim favorável ao crescimento educacional, intelectual e moral. Porém, sempre foi mais fácil pedir “aconselhamento” aos profissionais e especialistas, como: médico, advogado e padres. “Não seria preciso se preocupar com nada”. Também “deve parecer difícil pensar e agir por si próprio”. Então, diante desse dilema, quais eram os inimigos declarados da razão?

  1. Força da Tradição: “aquilo que é aceito por muito tempo, por muita gente”. Todavia, isto não implica na verdade.

  2. Autoridade da Religião: “as verdades religiosas são dogmas e seu questionamento é pecado”.

  • Os dogmas são aceitos mesmo que incompreensíveis pelo homem médio.

  • Sem explicação racional, espera-se pela adesão à autoridade religiosa.

  • Requer-se a obediência cega ou menoridade do espírito (contrário a esta alienação: o homem ilustrado interroga tudo, racionalmente, e só admite o que compreende).


4. Pressupostos Metodológicos e Científicos

Positivismo - Auguste Comte

O Positivismo é uma corrente sociológica cujo precursor foi o francês Auguste Comte (1798-1857). Surgiu como desenvolvimento sociológico do Iluminismo e das crises social e moral do fim da Idade Média e do nascimento da sociedade industrial. Propõe à existência humana valores completamente humanos, afastando radicalmente teologia ou metafísica. Assim, o Positivismo - na versão contemporânea, pelo menos - associa uma interpretação das ciências e uma classificação do conhecimento a uma ética humana, desenvolvida na segunda fase da carreira de Comte. Todavia, é importante enfatizar que a palavra "Positivismo" não é unívoca, pois há correntes de outras disciplinas que se consideram "positivistas" sem guardar nenhuma relação com a obra de Comte. Exemplo paradigmático disso é o Positivismo Jurídico, com o austríaco Hans Kelsen, e o Positivismo Lógico (ou Círculo de Viena), de Rudolph Carnap e seus associados.

Em síntese, o positivismo:

  • · É positivo (filosofia positiva).

  • · É herdeiro do Cartesianismo e do Iluminismo.

  • · É um posicionamento contrário ao fanatismo.

  • · “É a verdadeira filosofia do povo”.

  • · Reforçou a perspectiva do Nós — a ideia de indivíduo era abstrata demais.

  • · É (foi) uma busca pelo "bom senso universal".

  • · Orienta para abandar as especulações e a metafísica.

  • · Apresentou-se, primeiramente, como Física Social.

  • · É o prenúncio ou a primeira pronúncia da Sociologia.

  • · É uma filosofia da ciência, uma espécie de moral e uma nova religião.

  • · Aplica o método das ciências naturais às ciências sociais.

  • · É uma doutrina que investiga leis, suas constâncias e relações:

Teses

  1. 1) A ciência é o único conhecimento possível e o método científico é o único validável.

  2. 2) Segundo A. Comte, o método científico deve ser descritivo. Partindo-se dos fatos mais simples para a gênese evolutiva dos mais complexos (é um herdeiro de Descartes).

  3. 3) O Método da Ciência deve ser estendido a todos os campos de indagação e da atividade humana.

  4. 4) Há uma nítida distinção entre sujeito e objeto do conhecimento.

  5. 5) As proposições científicas são formuladas em busca da maior razoabilidade, racionalidade, neutralidade, objetividade e quantificação possíveis.

Alegações sistematizadas (finais) acerca do Positivismo

O Liberalismo18 preconiza o desenvolvimento moral, intelectual e político da sociedade advindo do livre desenvolvimento dos indivíduos19. Esta afirmação encontrou (a) dificuldades de conciliação doutrinária com o Empirismo (que valorizava a experiência sensível dos fatos) e o Materialismo20: a matéria e suas leis são tudo o que realmente existe. O real (o que é verdadeiro) é o dado concreto e sensível21, a metafísica22 é mera especulação. Então, o Positivismo é método e doutrina que antecipa o surgimento da Sociologia23: é método quando indica que as avaliações científicas devem estar rigorosamente embasadas em experiências (empíricas) e doutrina, conquanto preconiza que os fatos sociais devem ter uma natureza precisa e científica. Trata-se de um método geral do raciocínio e provêm de outros métodos: dedução24, indução25, observação26, experiência27, nomenclatura, comparação28, analogia29, filiação histórica, descrição físico-matemática.

Método do Positivismo de Auguste Comte

O método geral do positivismo de Auguste Comte consiste na observação dos fenômenos, subordinando a imaginação, à observação (ou seja: mantém-se a imaginação), mas há outras características igualmente importantes. Na obra Apelo aos conservadores (1855), Comte definiu a palavra "positivo" com sete acepções: real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico e simpático. Duas características são hoje reconhecidas por todos: a visão de conjunto, ou o holismo ("orgânico"), e o relativo (embora haja uma curiosa e extremamente difundida versão que afirma que o Positivismo nega tanto a visão de conjunto quanto o relativismo). Mas, além disso, o "simpático" implica afirmar que as concepções e ações humanas são modificadas pelos afetos das pessoas (individuais e coletivos); mais do que isso, em diversas obras Augusto Comte indicou como a subjetividade é um traço característico e fundamental do ser humano, que deve ser respeitado e desenvolvido. O homem passou e passa por três estágios em suas concepções, isto é, na forma de conceber as suas ideias:

  • · Teológico: o ser humano explica a realidade apelando para entidades supranaturais (os "deuses"), buscando responder a questões como "de onde viemos" e "para onde vamos"; além disso, busca-se o absoluto;

  • · Metafísico: meio-termo entre a teologia e a positividade, no lugar dos deuses há entidades abstratas para explicar a realidade: "o éter", "o povo" etc. Continua-se a procurar responder a questões como "de onde viemos" e "para onde vamos" e procurando o absoluto;

  • · Positivo: etapa final e definitiva, não se busca mais o "porquê" das coisas, mas sim o "como", com as leis naturais, ou seja, relações constantes de sucessão ou de coexistência. A imaginação subordina-se à observação e busca-se apenas o relativo.


5. Entorno e Bases do Conhecimento Sociológico

Michelet: O saber revolucionário

Jules Michelet (1798 — 1874) era um historiador que nasceu sob a tradição da Revolução Francesa e que, assim, trouxe desde tenra idade uma formação diversificada: republicanismo ardoroso com romantismo, transmitidos pela educação paterna. Tanto Michelet quanto o Positivismo (de Comte e de Condorcet) depararam-se com um fato/problema herdado do Iluminismo e da Revolução Francesa — uma nova crise: o presente é questionado (ou convulsionado, na França: 1848 e 1871) e o futuro interrogado (portanto, incerto). Para Michelet, a história também deveria ensinar que a ciência é una: “Ai daquele que tenta isolar um ramo do saber de outro [...] Toda ciência é una: linguagem, literatura e história, física, matemática e filosofia; assuntos que parecem os mais distantes um do outro são na realidade interligados; ou melhor, todos formam um único sistema” (Wilson, 1986, pp. 11-12). Michelet encontra em Vico as bases do organicismo. A diferença entre Vico e Bacon é que, a partir do Iluminismo do século XVIII tornou-se dominante uma ideia que não está em Vico, mas que é marcante em Bacon: o progresso humano e a capacidade de auto-aperfeiçoamento da humanidade. A ideia-base do progresso que retornaria com vigor a partir de Comte.

Michelet pensava e comparava com os tempos de seu pai, artesão que cantava a romanza enquanto compunha. Percebera que a maquinaria retiraria todo o controle da produção dos operários, transferindo o funcionamento do sistema ao próprio ritmo da maquinaria e da grande indústria. Quando voltado à educação, Michelet era um combatente do período sangrento, criticando Robespierre e Saint-Just. A proposta destes é conhecida: “A França ainda não promulgou leis sobre a educação no momento em que escrevo, mas provavelmente nós as veremos sair do corpo dos direitos do homem. Tenho, pois apenas uma palavra a dizer: a educação na França deve ensinar a modéstia, a política e a guerra” (Saint-Just, 1989, p. 65. – grifos nossos). Ora, se a lei existe para que não se tenha guerra (ou não se faça “justiça com as próprias mãos”), por que a educação a ensinaria? Para que o povo pudesse se defender dos príncipes? Para Saint-Just, assim como para todos os partidários do chamado realismo político, a política (ou o poder, seu substrato) é sinônimo da violência: como irmãos siameses. O mais irônico, entretanto, é que Michelet estava muito mais próximo do espírito da revolução do que Saint-Just, como se vê logo na Declaração de Intenções (preâmbulo) da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793: as causas da infelicidade do mundo são o esquecimento e o desprezo pelos direitos naturais do homem. Afinal, para evitar a tirania, os cidadãos devem sempre comparar os atos do governo com a finalidade de todas as instituições sociais. Especialmente para que a administração pública estabeleça os deveres correspondentes a ela e o legislador, o objeto de sua missão. A Declaração de 1793 diz em seu artigo 9 – “A lei deve proteger a liberdade pública e individual contra a opressão dos que governam”. Ou, como se vê reforçado pelo direito de resistência à tirania, explicitamente, no artigo 11 – [...] “aquele contra quem se quer perpetrá-lo com violência tem direito de repeli-lo pela força”. O artigo 18 dirá que “A lei não reconhece nenhuma domesticidade”. Sentido também reforçado pelo artigo 27 – “Que todo indivíduo que usurpe a soberania seja imediatamente levado à morte pelos homens livres”. Seguido pelo artigo 33 – “A resistência à opressão é consequência dos outros direitos do homem”. Mais uma vez no artigo 34 – “Há opressão contra o corpo social quando se oprime um único de seus membros. Há opressão contra cada membro quando se oprime o corpo social”. Por fim, se era possível ser ainda mais taxativo, no artigo 35 – “Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é para este e para cada porção deste o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres” (Brandão, 2001, pp. 47-52 – grifos nossos).

Para Michelet, este novo humanista/socialista, era preciso ter fé, vocação30, paixão, dedicação para sair da menoridade e da subserviência: “A primeira pergunta da educação é esta: ‘Tendes fé? Inspirais fé? [...] Que a criança creia nas coisas que poderá, feita homem, comprovar pela razão” (Michelet, 1988, p. 219. – grifos nossos). Afinal, não se pode reconhecer nenhuma domesticidade ou menoridade provocada. Os melhores exemplos que encontrou vieram dos clássicos gregos e romanos, pois a crença de atenienses e romanos estaria presente e viva por toda a moderna cultura ocidental: “O ateniense acreditava que toda cultura vinha da Acrópole, que sua Palas, saída do cérebro de Zeus, jorrara a luz da arte e da ciência. E isso se verificou: aquela cidade de vinte mil cidadãos inundou o mundo com sua luz; morta ela ainda o ilumina” (Michelet, 1988, p. 220. – grifos nossos). A fé é digna da razão. Na verdade, não há razão digna sem fé: “Mas a fé digna do homem é uma crença amorosa naquilo que a razão demonstra. Seu objeto não é esta ou aquela maravilha acidental, mas o milagre permanente da natureza e da história” (Michelet, 1988, p. 221). Para ter fé, é preciso retomar o passado, as origens, os clássicos. Fé não é fanatismo, porque é um dom de amor e assim não é estéril. Só a Revolução investiu de coração na educação popular: “O único governo que se empenhou de coração na educação do povo foi o da Revolução. A Assembleia constituinte e a legislativa estabeleceram os princípios sob uma luz admirável, com um sentido verdadeiramente humano” (Michelet, 1988, p. 212).

O investimento na educação deu-se nos três níveis: fundamental, médio e superior. Mesmo os revolucionários de 1793 (já Jacobinos31 e sanguinários) souberam verter em política pública o valor da educação, para um povo, para um Estado, para uma história que se inicia. Na Declaração de 1793, a assistência pública obrigatória aos cidadãos infelizes (artigo 21 – grifos nossos) surge associada ao fortalecimento maciço e massivo da EDUCAÇÃO PÚBLICA (artigo 22): “A instrução é necessária a todos. A sociedade deve favorecer ao máximo os progressos da razão pública e tornar a instrução acessível a todos os cidadãos” (Brandão, 2001, p. 50. – grifos nossos). É óbvio que, tanto lá como agora, sem educação não há razão pública, porque não há consciência política – só se conhecendo a menoridade, o assistencialismo, o patrimonialismo. O objetivo da educação, então, seria transmitir e fortalecer a fé na Nação ou na formação do Estado-Nação que nasceria com a Razão de Estado (Michelet, 1988, p. 222). Mas uma Razão de Estado baseada na soberania popular32 (Brandão, 2001, p. 51). Portanto, a educação tem que ser direta e simples: objetiva e contextualizada. Mas, isto não significava perder a sensibilidade, tal qual perceber que os mais experientes deveriam ensinar nas primeiras séries. O mais curioso, entretanto, é que desde a Revolução Francesa estava inscrita a necessidade do aprender a ensinar:

Os homens da mais alta hierarquia do Estado e da ciência aceitaram as mais humildes funções do ensino. Lagrange e Laplace ensinaram matemática. Mil e quinhentos alunos, homens feitos, muitos já ilustres, concordaram em retomar os bancos escolares, aprendendo na Escola Normal a ensinar (Michelet, 1988, p. 214. – grifos nossos).

Este aprender a ensinar é tão móvel e movente do espírito de cada um que se predisponha que, também no exemplo da Revolução Francesa, aprendia-se ensinando e, com isso, produzia-se conhecimento por pura inspiração criadora da mente aberta:

Eles estudaram, como se combatia, e em três meses fizeram o curso de três anos [...] Imaginai o espetáculo de um Lagrange que, em meio à lição, estacava de súbito, sonhava... Esperava-se em silêncio. Por fim despertava e lhes entregava toda ardente, a jovem invenção, recém-saída de seu espírito. Faltava tudo, menos gênio. Os alunos [...] Recebiam pão junto com o pão do espírito. Um dos mestres (Clouet33) só aceitou como salário um pedaço de terra na planície de Sablons, onde viveu dos legumes que cultivava (Michelet, 1988, p. 215. – grifos nossos).

Esta Escola Normal (formação de professores) sofreu um revés, quase como se houvesse voltado ao ensino destinado à matematização da realidade ou à anterior metafísica. Porém, também os métodos da burguesia não seriam diferentes ou melhores (Michelet, 1988, p. 217). Neste momento específico, Michelet referia-se a Robespierre e a Saint-Just como abstratores de homens, pois simplesmente lhes abstraíam as vidas, nas guilhotinas de sua razão revolucionária muito peculiar. Com o olhar para o futuro, a educação transformadora (da Revolução de 1789) deveria se apoderar do passado: como se fosse à voz rouca das ruas que expressa a virtú do povo:

A Comuna de Paris DECRETA: O alistamento obrigatório é abolido; a guarda nacional é a única força militar permitida em Paris; todos os cidadãos válidos fazem parte da guarda nacional.

Portanto, para Michelet, o direito à educação é um direito à identidade. Michelet veria a Comuna de Paris.

Michelet: Fiel às leis, não aos reis.

“Como? O povo é assim?” [...] “Rápido, aumentemos a polícia, armemo-nos, fechemos as portas, passemos o ferrolho [...] Também nesse campo os criminalistas dominaram a opinião [...] Aí estão, artistas, vossos modelos... O bizarro, o excepcional, o monstruoso, eis o que procurais [...] A esses relatos pitorescos acrescentam teorias profundas pelas quais o povo, a dar-lhes ouvido, justifica a si mesmo a guerra movida à propriedade [...] Devo escavar a terra e encontrar as bases profundas desse monumento; a inscrição vejo-o bem, está oculta, escondida lá embaixo... Para escavar não tenho enxada, nem pá, minhas unhas bastarão [...] Queria chegar ao fundo da terra. Mas, desta vez, não é um monumento de ódio e de guerra civil que gostaria de exumar [...] “Legibus fidus, non regibus”. Fiel às leis, não aos reis [...] Para citar um exemplo, eles não quiseram ver que a questão penitenciária dependia da questão da instrução pública34 [...] Parece que os remédios específicos não faltaram. São cerca de cinqüenta mil no Bulletim des lois [...] A crítica do presente pelo passado, pela comparação variada dos povos e eras diferentes [...] A depressão e a degeneração são apenas exteriores. O conteúdo subsiste. Essa raça sempre teve vinho no sangue; até naqueles que parecem mais extintos, encontrareis uma centelha [...] Entraves exteriores e vida forte que reclama de dentro: esse contraste produz muitos movimentos falsos, uma discordância nos atos, nas palavras, que choca à primeira vista [...] A economia de palavras beneficia a energia dos atos [...] o que é sonho no jovem transforma-se no ancião em reflexão e sabedoria [...] As mulheres do povo, particularmente, forçadas mais do que as outras a ser a providência da família e do próprio marido [...] com o tempo chegam a atingir um espantoso grau de maturidade [...] Conheci algumas [...] já não pertenciam à sua classe, nem a outra qualquer: estavam acima de todas. Eram extraordinariamente prudentes, penetrantes, até mesmo em assuntos dos quais não se poderia suspeitar que tivessem qualquer experiência [...] Disso resultou uma mudança profunda nas ideias e na moralidade. O homem constrói sua alma de acordo com a situação material (Michelet, 1988, pp.115-129 – grifos nossos).

Balzac – uma sociologia realista

Veremos a seguir como o realismo crítico de Balzac (1799-1850), à sociedade moderna, também tem uma dívida para com Goethe. Talvez o título, Ilusões Perdidas, não pudesse prometer algo mais, mas o final é melodramático, melancólico, como uma triste vingança, até meio moralista se assim quisermos. Mas o romance é uma aula magna (exatamente realista) sobre vaidade, cobiça, luxúria, corrupção, avidez, ambição – além do tema que o corta, a relação entre literatura e jornalismo (no bom e no mal sentido: na antevisão do maniqueísmo realista). Esse exato realismo fizera Balzac perceber e ver muito além de sua época. Como gênio e como clássico, anteveria o século XX e o seu poder: “A influência e o poder dos jornais estão no início — disse Finot. — O jornalismo ainda está na infância, vai crescer. Daqui a dez anos, tudo dependerá da publicidade35” (Balzac, 2002, p. 137). O romance Ilusões Perdidas relata as mesmas dificuldades enfrentadas pelo próprio Balzac, quando tentara publicar suas primeiras obras e se afirmar como escritor. Ao produzir sua Comédia Humana, Balzac percorrera, conhecendo, todo o interior da França, à procura de histórias e de personagens: “O rapaz leu o primeiro de uma série de deliciosos artigos que fizeram a fortuna daquele jornal. Em duas colunas, pintou em detalhes uma cena da vida parisiense. ‘Os pedestres de Paris’ foi escrito de forma nova e original; a ideia central era resultado do jogo de palavras” (Balzac, 2002, p. 169). Assim, o que Balzac mais faz neste romance é usar do jogo de palavras e das figuras de linguagem. Esse exato realismo é que o colocou no topo dos autores modernos, apesar de monarquista, porque viu muito bem a ascensão da burguesia (e é isto o que o atrairia em Marx): “Como aponta muito bem Otto Maria Carpeaux, foi Balzac — um conservador — quem criou a literatura moderna. Observador perspicaz, ele compôs um painel autêntico da sociedade, revelando as conseqüências da Revolução Francesa, em contraste com seus contemporâneos, que representavam o romantismo social, como Victor Hugo” (Salerno, 2002, p. 215). Balzac é um leitor e admirador de Victor Hugo, pois este quase que se transforma em personagem — habita a narrativa de Balzac e lhe empresta conteúdo ao abordar e construir a personagem do jovem escritor Lucien, um provinciano que quer ser gênio na metrópole (e rico): “Era uma revolução nos costumes um homem da cidade baixa, filho de farmacêutico, ser recebido em casa da senhora de Bargeton. Quem eram os autores dessa revolução? Lamartine, Victor Hugo, Chateaubriand, Benjamin Constant, os jovens e velhos escritores, tanto os liberais como os realistas” (Balzac, 2002, pp. 33-34).

Marx é um crítico severo de Victor Hugo, mas para Balzac o romântico francês é um liberal que desconfia das desigualdades de classe (quer a ascensão negada à burguesia) e reluta em aceitar as injustiças (como bem relatara em Os Miseráveis). Balzac conhecia os clássicos, como Shakespeare: “Você vai ser jornalista!”, como a feiticeira gritou para Macbeth: ‘Você vai ser rei!”(Balzac, 2002, p. 148). Apesar de ser monarquista, Balzac trabalha intensamente, quase chegando à fadiga, e foi este ritmo que lhe permitiu ter uma obra de uma centena de livros, fora os artigos e as resenhas. Mas isto não o impediu de colocar na boca deste jovem ambicioso (como todos de sua época) uma ironia sobre o trabalho pesado: “Ao boi, a vida paciente da agricultura; ao pássaro, a vida preguiçosa’, dizia David a si mesmo. ‘Serei o boi, Lucien será a águia” (Balzac, 2002, p. 29). Para o ganancioso, o trabalho é desprezado: como se vê nesta breve passagem da visão aristocrática da vida e do trabalho. Outro dado interessante é que o provincianismo parece fadado ao fracasso e por isso é combatido do começo ao fim do romance (aliás, como vingança à ganância desmedida de Lucien, Balzac o condena a voltar a pé para casa, no interior, falido e desmoralizado — numa distância de 30 km e fazendo um única refeição). De outro modo, a fim de combater o provincianismo será afirmando o seu contrário: o centrismo. Na obra, o centrismo aparece associado à educação e ao sucesso, como conquista da modernidade e da urbanidade (educação superior):

Longe do centro onde brilham os grandes espíritos, onde a atmosfera é impregnada de ideias e onde tudo se renova, a instrução envelhece e o gosto se corrompe como águas paradas. Por falta de acontecimentos e atividade intelectual, as coisas pequenas tornam-se grandes. Essa é a razão pela qual a pobreza de espírito e a fofoca dominam as cidades do interior. Em pouco tempo, a estreiteza de ideias e a mesquinharia prevalecem na pessoa mais distinta (Balzac, 2002, p. 36).

Também se pode ler esta passagem como a burguesia no centro do mundo, contra a pequenez habitual dos espíritos e das ideias não-burguesas. Depois, lembra-nos que o provincianismo não reconhece limites entre a vida privada e a vida pública: “Os provincianos são normalmente curiosos e querem participar de tudo. Os criados de Naïs iam e vinham pela casa sem ser chamados e sem se anunciar [...] Tanto dentro como fora de casa, a vida da senhora de Bargeton era pública. É assim a vida no interior” (Balzac, 2002, pp. 70-71). Na verdade, Ilusões Perdidas retrata a ânsia pelo sucesso fácil, a ascensão social que caracterizaria a burguesia e a redução dos valores humanos a valores monetários: tudo estava à venda: “Ilusões perdidas é o romance mais longo e completo de Balzac; nele se encontram todos os microcosmos que o escritor aborda ao longo de sua obra: amor, ambição, sonho, glória, decadência, vingança, ciúme, inocência, traição, dinheiro, suborno, corrupção, e as relações sociais entre burguesia e nobreza e políticas entre realismo e monarquia” (Salerno, 2002, p. 09). A modernidade de Balzac foi uma luta entre o romantismo e o realismo, entre a burguesia e o trabalho, entre o sonho e a trapaça, entre a poesia e o poder, entre o romance e o relato diário da vida, entre a arte e a política. O pensamento moderno e arguto de Balzac ainda se revela em frases curtas e finas como adagas: “... as pessoas que espalham ódio precisam de todos...” (p. 149); “É preciso ser mau com os homens; faz parte da política” (p. 164); “gente de espírito tacanho pensa que só há lugar para uma única pessoa vencer” (p. 167). O mal, no entanto, viria com o maniqueísmo próprio da modernidade: “Tudo é bilateral no domínio do pensamento” (Balzac, 2002, p. 175). Além, é claro, do mal-maior, que é a corrupção: “Alguns políticos conversavam na livraria. O jornal semanal que Dauriat acabava de comprar tinha o direito de tratar de política. Naquela época, a propriedade de um jornal era um privilégio concedido, tão ambicionado como a de um teatro” (Balzac, 2002, p. 119). Para que não fosse desse modo, a política teria que ser arte (ou techné, no complemento grego), mas ocorre que a política tem preço. Isto é, se a política fosse arte, teria valor e não preço: isto será realismo político ou corrupção?

Em complemento às leituras de Balzac, outros grandes ocupariam destaque na narração deste romance, como Goethe; além de Rousseau, Montesquieu (e até Maquiavel). Mas com Goethe há uma identificação maior, como, por exemplo, quando Lucien ouve (mas não segue) os conselhos de outro escritor pobre, mas honrado: “Ao ler Tasso, uma das melhores obras de Goethe, verá que o poeta gosta de festas, de brilho e de glória. O mundo e seus prazeres o chamam, Lucien? Resista, fique aqui conosco. Transporte para o ideal tudo o que a vaidade requer” (Balzac, 2202, p. 106). E ainda mais previdente Balzac recomenda que Lucien evitasse ao máximo o pacto diabólico de Mefistófeles – há outros meios de adentrar a modernidade: “A amizade perdoa o erro, o movimento irrefletido da paixão, mas deve ser implacável para quem vai comercializar a alma, o espírito e o pensamento” (Balzac, 2002, p. 108). E qual o perigo de ceder ao pacto de Mefistófeles? Aí está o perigo de sucumbir ao raciocínio da velha raposa de negócios, sempre pronta a devorar uma boa oportunidade de negócios, sem que a consciência sofra um centímetro ou um centésimo por isso:

Havia decidido oferecer-lhe mil francos pelos direitos autorais e contratar Lucien para escrever vários livros. Ao chegar ao miserável hotel, à velha raposa mudou de ideia.

“Um homem que vive aqui é modesto, gosta do trabalho e do estudo. Vou dar-lhe oitocentos francos”, pensou.

Quando a porteira lhe disse que ele vivia no quarto andar, o impressor mudou de ideia novamente.

“Este rapaz é muito bonito; se ganhar muito dinheiro, vai gastar tudo e parar de trabalhar. Para nosso interesse comum, vou dar-lhe seiscentos francos, mas em prata, não em dinheiro.” [...] “Que ele conserve esses modos simples”, pensou.

— Prazer em vê-lo - disse a Lucien. — Era assim que vivia Jean-Jacques Rousseau, com quem o senhor tem mais coisas em comum [...] — Pago quatrocentos francos36 – disse Doguereau, em tom meloso (Balzac, 202, pp. 96-97).

O mal ou reverso da burguesia, do capitalismo ou da grande indústria está na usura, neste raciocínio obtuso da avareza. Tal qual a soma-zero de Maquiavel: para um vencer, o outro tem que perder. É tudo o que seria combatido pela ética protestante, mais favorável ao próprio capital (como dissera Weber). O livreiro também representa a figura do pequeno-burguês que quer subir socialmente, mas que no fim acaba derrotado por Lucien, que se recusa a fechar o negócio. Outra questão profundamente moderna é a necessidade da modernização tecnológica (ou revolução dos meios de produção, como em Marx) e que aparece desde o início, com a necessidade de revolucionar a produção e assim baratear a publicação dos livros37:

A queda do Império generalizou o uso do tecido de algodão, devido ao baixo preço em comparação com o linho. O papel é feito de trapos de cânhamo e linho, que são ingredientes caros e que retardam o desenvolvimento da imprensa. Ora, não se pode aumentar a produção de trapos, que são feitos com roupa usada. Se a procura do papel é maior que a quantidade de trapos para fazê-lo, é preciso substituir os trapos por outro material. O algodão está entrando na pasta de papel; Angoulême38 é um dos últimos redutos em que se fabrica papel com trapos de linho (Balzac, 2002, p. 65).

No romance, David, amigo de infância de Lucien, tentaria uma descoberta que se assemelhasse a dos chineses, que já fabricavam o papel à base de bambu. Isto contrastava, é evidente, com a posição hierárquica superior que a nobreza queria resguardar para si: “Vocês não percebem — comentou o embaixador — que ao esclarecerem as classes baixas estão semeando a revolta, da qual os jornalistas serão as primeiras vítimas?” (Balzac, 2002, p. 138). Era a reverberação da aposta arcaica na dominação baseada na ignorância. Em oposição à modernidade, ainda havia outro dado preocupante: a estupidez e a futilidade são fortes aliadas da desigualdade social e do preconceito de classes: “— Se a senhora quer que o senhor de Bargeton arrume um cargo importante, não pode ter uma aparência miserável. Aqui, só os ricos vencem” (Balzac, 2002, p. 84). A nobre senhora de Bargeton (casada) foi o primeiro amor (platônico) de Lucien. Por causa desse afair, ambos acabaram fugindo para Paris, mas se separaram por causa de fofocas trazidas do interior. Lucien, alvo de calúnias de um nobre que também cobiçava a senhora Bargeton, foi viver no Quartier Latin, um bairro muito pobre e que só via trabalhadores e jovens que cobiçavam postos de burguesia. Mas, quando de sua estada aí, Lucien fez uma grande descoberta para o mundo moderno:

Depois de sua triste experiência com o mundo elegante, Lucien mergulhou no trabalho. Passava as manhãs na biblioteca, pesquisando história. Quando a biblioteca fechava ia para seu quarto úmido e frio corrigir e reescrever sua obra, O arqueiro de Carlos IX. Chegava ao restaurante às quatro e meia, pois percebera a vantagem de chegar cedo para jantar: os pratos eram mais variados. Depois de comer, ia ao Gabinete Literário de Blosse ler obras contemporâneas [...] e voltava ao miserável hotel à meia-noite sem haver gasto luz nem lenha para o aquecimento (Balzac, 2002, p. 92).

Descobrira, em síntese, que a modernidade se fez pelo realismo e que este forjou o racionalismo. Depois, ambos nos deram um raciocínio utilitarista (encontrar meios materiais para viver feliz) e que, todos somados, nos legaram o racionamento. Lucien, no entanto, terminou sua vida de acordo com a angústia ou mal-estar da modernidade; Lucien concluiu sua vida como começou: sem dinheiro (ou o vil metal burguês); sem glória (aristocrática); sem destino (sem eira, nem beira, na relação patrimonialista); sem sensatez (ou bom senso popular). Sua vida e seu gênio se esvaíram para que nos revelasse os prazeres e os perigos da modernidade. Porém, desse momento fundador aos dias atuais, ainda restaram muitas questões em aberto ou, ao menos, sujeitas ao debate: Por que a luta pelo reconhecimento da razão, contra os argumentos de autoridade, até hoje, é uma luta para desobstruir os preconceitos, o obscurantismo e a ignorância? A razão é um remédio perfeito ou também nos trouxe outros tipos de problemas?

A Modernidade é um contrato de sangue

Para Goethe (1749 - 1832), o processo de criação artística deveria ser anti-positivista, como uma obra da natureza, sem lógica ou cálculo humano (apesar de seu preciosismo). Tinha de (re) buscar o recôndito inconsciente39 e, por isso, preferia a naturalidade de Rafael ao tecnicismo de Da Vinci. Mas, mesmo assim, não se via limitado ao irracionalismo — Goethe se opõe ao racional que se propõe distanciar-se da realidade. O Fausto denota bem sua ambição de captar a unicidade e totalidade do real. Seu objeto de pesquisa, o humanismo, entretanto, sucumbiria diante de seus olhos já envelhecidos, com a presença da reprodutibilidade técnica: “Vale a pena, contudo, destacar o que lhe ocorreu dizer em uma das conversas com Eckermann a propósito de reproduções de quadros famosos. Novos recursos técnicos tinham tornado possível fazê-las com grande esmero e exatidão, e, no entanto não refletiam o sentimento profundo da obra original que se denunciava em cópias antigas e mais toscas” (Holanda, 1997, p. 453). Um Benjamin (1987) antes de seu tempo. O homem moderno, tal qual Fausto, também seria sempre tentado pelas alegrias da honra, da glória e do poder: “Por este projeto, Fausto teria realmente sido envolvido por maquinações políticas e seria também aqui40, tal como na primeira parte, sempre desiludido por Mefistófeles, que se propõe a desfigurar maliciosamente os seus ideais e trair as suas esperanças” (Theodor, 1997, p. 13). As relações contratuais acabariam com a simplicidade, inocência, independência, sinceridade, honestidade de valores e tradições identificadas com a verdade até aquela fase — o exemplo da personagem do Dr. Fausto, médico, ilustra bem, pois seu interesse pelo conhecimento durou uma vida toda. Porém, com a imposição das tais relações contratuais, foi à primeira atividade a ser abolida pelo pesquisador sério que fora até ali. O que Durkheim também designou muito tempo depois de direito contratual:

...é fácil determinar qual é o papel do direito restitutivo a que essa solidariedade corresponde: é o conjunto dos direitos reais. Ora, da própria definição que dele foi dada, resulta que o direito de propriedade é seu tipo mais perfeito [...] A relação entre a divisão do trabalho e o direito contratual não é menos acentuada. De fato, o contrato é, por excelência, a expressão jurídica da cooperação [...] Ora, essa reciprocidade só é possível onde há cooperação, e esta, por sua vez, não existe sem a divisão do trabalho (Durkheim, 1999, pp. 92-100 – grifos nossos).

Com o renascimento,entretanto, Goethe manteria acesa a utopia do herói trágico, velho e cego, esta utopia ou ilusão essencial do livre-arbítrio ou da maioridade (negadas por Mefistófeles): “É sonho do ser humano querer decidir livremente sobre o seu destino. Uma utopia, mas ao mesmo tempo a ilusão mais válida do homem a seu próprio respeito, ideal insuperável de qualquer época e lugar!” (Theodor, 1997, p. 14). Como também se vê nos versos 11.574-11.584:

Da sabedoria é conclusão superior:

Faz jus à liberdade e à sua existência

Só quem diariamente a conquistar com destemor [...].

E conviver com homens livres em terra livre

Para poder dizer ao momento fugaz:

Continua aqui. És belo! Não te vás!

(Theodor, 1997, p. 14. – grifos nossos).

Como um renascentista, mas pós-Iluminismo, todavia, Goethe sabia perfeitamente que o racional não pode ser uma força estranha e desagregadora da realidade: a exemplo do industrialismo. O Fausto deveria falar aos piores surdos: “o pior surdo não é o que não ouve, mas o que, ouvindo, só entende o que ‘quer” (Houaiss, 1997, p. 20). A seguir, então, veremos alguns momentos ou passagens que se destacam neste âmbito do direito ou das relações contratuais. O próprio Fausto manifesta o interesse pelo laço ou contrato que o libertasse da vida assentada naquelas tradições:

FAUSTO

...A opor-me ao mundo já me alento,

A sustentar da letra o júbilo, o tormento,

A arcar com o furacão e o vento,

E no naufrágio a ir-me, sem lamento,

Nubla-se o espaço sobre mim —

Oculta a lua o seu clarão —

A luz se esvai!

Sobe um vapor! — coriscam raios rubros

À minha volta! — Um sopro frio

Desce da abóboda e me invade!

Espírito implorado,

Sinto que ao meu redor estás flutuando, enfim!

Revela a face!

Ah! Como se lacera o coração em mim!

Em rasgos desmedidos,

Como se inflamam meus sentidos!

Sinto a alma inteira a ti oferecida!

Surge, pois! Surge sim! Custe-me, embora, a vida!

(Surge uma chama avermelhada, o Gênio aparece dentro da labareda).

(Goethe, 1997, p. 44. – grifos nossos).

Eis aqui o interesse manifesto: Surge, pois! Surge sim! Custe-me, embora, a vida! Em seguida, o Gênio o inquire, já sentindo o desespero, a súplica de Fausto:

O GÊNIO

Olhar-me, imploras, anelante,

Ouvir-me a voz, ver-me o fulgor;

Cedo a essa invocação possante,

Eis-me! — Que mísero pavor

Te invade, ó super-homem? Que é do apelo oriundo [...]

Fausto, onde estás, tu, cuja voz me ecoou?

Tu, cuja força ingente me invocou?

És tu, quem na aura de meu bafo estreme,

Até o âmago da vida freme,

Qual larva de pavor torcida?

(Goethe, 1997, p. 45).

Assim, começam as tratativas, as chamadas preliminares (e que não obrigam propriamente a nada, nem ao acordo insinuado):

FAUSTO

Fugir-te, eu, flâmeo vulto? Qual!

Sou eu, sou Fausto, o teu igual!

O GÊNIO

No ardor da ação, no afã da vida,

Fluo, ondulo, urdo, ligo

Cá e lá, a tramar,

Berço e jazigo,

Perene mar,

Urdidura alternante,

Vida flamante,

Do Tempo assim movo o tear milenário,

E da Divindade urdo o vivo vestuário.

FAUSTO

Tu, que o infinito mundo rondas,

Gênio da Ação, sinto-me um só contigo!

O GÊNIO

És um, com o gênio que em ti sondas;

Mas não comigo!

(Goethe, 1997, p. 45. – grifos nossos).

O Gênio tinha ou demonstrava ação para si mesmo, em que já se enaltecia um contrato utilitarista, focado na razão instrumental, em nítido e exclusivo proveito pessoal. É por isso que o Gênio não aceita, não lhe dá aceitação, pondo-se em postura desconfiada: És um, com o gênio que em ti sondas; Mas não comigo! Ao que Fausto responde em desespero, mas que só revelam vontades desiguais, diante do mesmo objeto/objetivo:

FAUSTO

(abatendo-se em desespero) [...]

Meu flâmulo é — mortal azar!

Destrói-me a máxima ventura!

Vem-me a riqueza das visões turbar

A seta, estéril criatura!

(Goethe, 1997, p. 46)

Abatendo-se em desespero, Fausto se põe em relação desigual, inferior. Passado em primeiro impacto negativo, já com a chegada de Mefistófeles (o anjo caído do céu), surge a figura do proponente — aquele que faz a proposta no relação contratual:

MEFISTÓFELES

... Não sou lá gente da mais alta;

Mas, se apraz, a mim unido,

Tomar os passos pela vida,

Pronto estou, sem medida,

A ser teu, neste instante;

Companheiro constante,

E se assim for do teu agrado,

Sou teu lacaio, teu criado! [...]

FAUSTO

...Dize bem clara a condição;

Traz servo tal perigos ao patrão

(Goethe, 1997, p. 81. – grifos nossos).

Trata-se de uma proposta clara para ambas as partes — neste caso, é uma oferta pública dirigida a qualquer pessoa. Diante disso, entram em nova fase de negociação.


6. A Ciência Social Moderna

Durkheim e o Direito como Fato Social

Com sua concepção/teoria do Direito como Fato Social, Durkheim teria antecipado as principais implicações e/ou efeitos práticos do Estado Jurídico41? Teria sido um continuador da perspectiva de Max Weber ao propor as bases do Estado de Direito, a partir da dominação racional-legal (legítima), interposta por meio do império da lei? Ou não há nenhuma relação? Vejamos, para o próprio Durkheim, como se constituem os efeitos do denominado fato social42:

“É fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter” (Durkheim, 1988, p. 52).

Acerca da coerção inerente ao Direito, dirá Reale que pode se tratar de pressão social condicionada, que é preciso boa dose de razoabilidade ou, simplesmente, que a coação potencial não é totalmente satisfatória: “Podemos dizer que o pensamento jurídico contemporâneo, com mais profundeza, não se contenta nem mesmo com o conceito de coação potencial, procurando penetrar mais adentro na experiência jurídica, para descobrir a nota distintiva essencial do Direito. Esta é a nosso ver a bilateralidade atributiva” (Reale, 2005, p. 50). Agora, quando é que verificamos a própria bilateralidade? Reale retoma toda a tradição jurídica para acentuar seu conceito, mas vamos direto ao ponto: “[...] há bilateralidade atributiva quando duas pessoas43 se relacionam segundo uma proporção objetiva que as autoriza a pretender ou a fazer garantidamente algo. Quando um fato social apresenta esse tipo de relacionamento dizemos que ele é jurídico” (Reale, 2005, p. 51).

Ou ainda, mais uma vez: “Bilateralidade atributiva é, pois, uma proporção intersubjetiva44, em função da qual os sujeitos de uma relação ficam autorizados a pretender, exigir, ou a fazer, garantidamente, algo” (Reale, 2005, p. 51). Assim, vimos como se estabelece um plano linear entre dois sujeitos de direitos, porém, deve-se frisar que este plano em si não é suficiente para caracterizar o direito como fato social, pois falta-lhe a condição de ser geral: componente que, talvez, se esgote melhor nas alegações sobre as chamadas normas gerais e abstratas45. Esta condição que também estaria mais próxima do efeito erga omnes, e a isso Reale irá acentuar como o necessário entrelaçamento de duas ou mais pessoas: “a) sem relação que una duas ou mais pessoas não há Direito (bilateralidade em sentido social, como intersubjetividade) (Reale, 2005, p. 51)” 46. Também vemos em Reale o liame entre objetividade e intersubjetividade na definição do Direito:

b) para que haja Direito é indispensável que a relação entre os sujeitos seja objetiva, isto é, insuscetível de ser reduzida, unilateralmente, a qualquer dos sujeitos da relação (bilateralidade em sentido axiológico); [...] c) da proporção estabelecida deve resultar a atribuição garantida de uma pretensão ou ação, que podem se limitar aos sujeitos da relação ou estender-se a terceiros (atributividade) (Reale, 2005, p. 51).

E mesmo o Estado deverá pautar-se pela relação de bilateralidade, no sentido de que suas implicações também atingiriam este chamado Estado Jurídico:

Dir-se-á que nesta espécie de normas não há nem proporção, nem atributividade, mas é preciso não empregar aquelas palavras em sentido contratualista47. Na realidade, quando se institui um órgão do Estado ou mesmo uma sociedade particular, é inerente ao ato de organização a atribuição de competências para que os agentes ou representantes do órgão possam agir segundo o quadro objetivo48 configurado na lei. Há, por conseguinte, sempre proporção e atributividade (Reale, 2005, p. 52).

Nos direitos difusos (art. 81, parágrafo único, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor), o efeito da coisa julgada nas ações coletivas será erga omnes (art. 103, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor), isto é, valerá para todas as pessoas se a ação for julgada procedente ou improcedente pela análise de mérito com provas produzidas adequadamente. Na hipótese de procedência da ação, todos os consumidores se beneficiarão da sentença definitiva, inclusive para mover ações individuais. No caso de improcedência, há impedimento para a propositura de nova ação coletiva, mas não ficará impedido aquele que ajuizar ações individuais. Conforme definição jurídica, erga omnes significa: “Perante todos. Ato, lei ou decisão que a todos obriga ou é oponível contra todos ou sobre todos tem efeito” (PAULO, 2002, p.127). Também se define como locução latina que se traduz:

Contra todos, a respeito de todos ou em relação a todos. É indicativa dos efeitos em relação a terceiros,de todos os atos jurídicos ou negócios jurídicos a que se atenderam todas as prescrições legais, em virtude do que a ninguém é licito contrariá-los ou feri-los. Aplica-se indistintamente ao direito subjetivo e ao direito alheio (neminem laedere), desde que a norma jurídica assegura aos respectivos titulares uso, gozo e posse, em relação a todas as demais pessoas (erga omnes), contra quem possam valer. (DE PLÁCIDO, 2002, p. 312).

Para Bobbio, no entanto, mesmo as referidas condições de generalidade e de abstração devem ser diferenciadas, bem como veremos que se trata de mera criação ideológica:

[...] julgamos oportuno chamar de “gerais” as normas que são universais em relação aos destinatários, e “abstratas” aquelas que são universais em relação à ação. Assim, aconselhamos falar em normas gerais quando nos encontramos frente a normas que se dirigem a uma classe de pessoas, e em normas que regulam uma ação-tipo (ou uma classe de ações) (Bobbio, 2005, pp. 180-181).

Estas condições de generalidade e de abstração, como dissemos, por sua vez, são apenas implicações ideológico-ideais e inerentes ao próprio Estado de Direito:

Se refletirmos sobre a quanto tenha inspirado a moderna concepção do Estado de direito à ideologia da igualdade e da certeza frente à lei, não será mais difícil dar-se conta do estreitíssimo nexo intercorrente entre teoria e ideologia, e compreender, portanto, o valor ideológico da teoria da generalidade e abstração, que tende não a descrever o ordenamento jurídico real, mas a prescrever regras para tornar o ordenamento jurídico ótimo, aquele em que todas as normas fossem em seu conjunto gerais e abstratas (Bobbio, 2005, p. 183).

Em concepção também baseada em Bobbio (2005), diz Celso Antonio Bandeira de Mello que a norma geral se refere a uma classe de sujeitos:

Generalidade opõe-se a individualização, que sucede toda vez que se volta para um único sujeito, particularizadamente, caso em que se deve nominá-la lei individual [...] a regra geral, isto é, dotada de teor de generalidade, apanha toda uma classe de indivíduos. Pode alcançá-los quer no presente, quer no futuro. Por isso, nada obsta que — sem prejuízo de sua generalidade — eventualmente colha, no presente, apenas um indivíduo e os demais, alojáveis na categoria, venham a existir somente no futuro (Mello, 2005, pp. 26-7).

O Direito como fato social, portanto, ao mesmo tempo em que expressa o chamado Estado-força49, revela a ideologia integradora que há por trás do Estado de Direito. Uma condição ideológica/idealista que, por sua vez, deverá ter um pouco mais de materialidade no Estado Jurídico – uma materialidade em dois sentidos: a) a materialidade ou a objetividade50 (jurídica) expressa no maior grau de juridicidade; b) a sociedade civil organizada (não-estatal ou estandartizada) é fonte de enorme demanda jurídica, de pressão social e, assim, exerce controle sobre o Poder Político. A exigência social de novos direitos impõe (obviamente) ao Estado a contenção de certas ações políticas – neste sentido, a soberania estatal, historicamente51, sempre foi controlada, impulsionada pela soberania popular (a fonte da principal demanda dos novos direitos). Quanto ao Direito como realidade da Coerção, e que corresponde à primeira parte da observação feita por Durkheim, em sua clássica definição de fato social, Reale ainda nos lembra da teoria de Ihering — o pensador originário deste binômio Direito/Coerção:

Para Ihering, um dos maiores jurisconsultos do passado milênio, o Direito se reduz a “norma + coação”, no que era seguido, com entusiasmo, por Tobias Barreto, ao defini-lo como “a organização da força”. Ficou famoso o seu temerário confronto do direito à “bucha do canhão”, o que se deve atribuir aos ímpetos polêmicos que arrebatavam aquele grande espírito (Reale, 2005, p. 47).

Então, vejamos o próprio Ihering (2002) quando se refere ao binômio:

O fim do direito é a paz, o meio de que se serve para consegui-lo é a luta. Enquanto o direito estiver sujeito às ameaças da injustiça — e isso perdurará enquanto o mundo for mundo —, ele não poderá prescindir da luta. A vida do direito é a luta: a luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos [...] O direito não é uma simples ideia, é uma força viva. Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança com que pesa o direito, enquanto na outra segura a espada por meio da qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada, a impotência do direito. Uma completa a outra, e o verdadeiro estado de direito só pode existir quando a justiça sabe brandir a espada com a mesma habilidade com que manipula a balança (Ihering, 2002, p. 27).

A luta e a defesa pelo Direito, ações típicas e próprias da passagem do Estado de Direito Formal ao Estado Jurídico, encontra-se em meio à tempestade social e não de acordo com a calmaria da dogmática jurídica, e ainda que tenhamos de ter sempre em conta essa característica ideal/contratualista que ainda dá suporte aos ideais de Justiça e de Direito:

A lei é igual para todos”, é, indubitavelmente, a generalidade da norma, isto é, o fato de que a norma se dirija não àquele ou a este cidadão, mas à totalidade dos cidadãos, ou então a um tipo abstrato de operador na vida social. Quanto à descrição abstrata, ela é considerada como a única capaz de realizar um outro fim a que tende todo ordenamento civil: a certeza. Por “certeza” se entende a determinação, de uma vez por todas, dos efeitos que o ordenamento jurídico atribui a um dado comportamento, de modo que o cidadão esteja em grau de saber, com antecedência, as conseqüências das próprias ações (Bobbio, 2005, p. 182).

Neste caso, trata-se da principal garantia da máxima que se desejaria fosse o fundamento do nosso ordenamento jurídico.

Marx e o Realismo da Modernidade

Quando todo o mundo é corcunda,

O belo porte torna-se a monstruosidade.

Honoré de Balzac

Karl Marx (1818 — 1883): Quando Marx cita o Fausto (de Goethe) e, depois, quando resume o mundo moderno em tudo que é sólido, desmancha no ar, são duas indicações simples, mas diretas da força de sua projeção sobre a modernidade. As duas torres gêmeas, no 11/09, vindo ao chão, desmanchando-se literalmente, são duas visões dessa hiper-realidade moderna de Marx. O materialismo histórico e seus temas decorrentes seguiram Marx por toda a vida, sendo os principais:

  1. Autocriação: a razão universal retrata o pensamento do trabalho humano. “O primeiro ato histórico”.

  2. Alienação: um fenômeno histórico aprimorado pelo capitalismo. Mas é um conceito de filosofia abstrata, por isso abandona o conceito.

  3. Abolição do Estado.

  4. Práxis: união entre teoria e prática. Há reciprocidade constante entre consciência e prática social. As ideias não são mero reflexo da realidade material, há também uma modificação do mundo objetivo pela subjetividade: a militância e a consciência revolucionária são provas disso. As circunstâncias são alteradas pelo homem: o educador tem de ser educado.

O materialismo histórico parte da premissa de que o homem precisa se realizar continuamente: “Para Marx, a história é um processo de criação, satisfação e recriação contínuas das necessidades humanas. É isso que distingue o homem dos animais, cujas necessidades são fixas e imutáveis. É por essa razão que o trabalho, o intercâmbio criador entre os homens e o seu ambiente natural, está na base da sociedade humana” (Giddens, 2005, p. 53). O hiper-realismo de Marx decorre da proposição moderna de que o mundo deveria ser visto pelo realismo: “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência”. A modernidade exigia que se mudasse a sua realidade, que não fosse apenas interpretada. O projeto da modernidade tem dois pólos: o Iluminismo, anterior e o comunismo posterior; o Iluminismo, propriamente idealista e o comunismo, utópico-revolucionário. O progresso social, econômico, tecnológico (e que desemboca na modernidade) decorre da alteração das relações sociais de produção, isto é, o modo como se organiza o trabalho a cada fase distinta da história. Conforme resumo do próprio Marx, as principais etapas de desenvolvimento dos modos de produção são: “Em um caráter amplo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da formação econômica da sociedade” (Marx, 2003, p. 06). Ou, seguindo-se um resumo mais amplo e detalhado de Engels:

A concepção materialista da história parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos produtos, é à base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela história, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos homens em classes ou camadas, é determinada pelo que a sociedade produz e como produz e pelo modo de trocar os seus produtos. De conformidade com isso, as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas nas cabeças dos homens nem na ideia que eles façam da verdade eterna ou da eterna justiça, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca: devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata. Quando nasce nos homens a consciência de que as instituições sociais vigentes são irracionais e injustas, de que a razão se converteu em insensatez e a benção em praga, isso não é mais que um indício de que nos métodos de produção e nas formas de distribuição produziram silenciosamente transformações com as quais já não concorda a ordem social, talhada segundo o padrão de condições econômicas anteriores. E assim já está dito que nas novas relações de produção têm forçosamente que conter-se – mais ou menos desenvolvido – os meios necessários para por fim aos males descobertos. E esses meios não devem ser tirados da cabeça de ninguém, mas a cabeça é que tem de descobri-los nos fatos materiais da produção, tal e qual a realidade os oferece (Engels, s/d, p. 49. – grifos nossos).

A transformação das relações sociais de produção da vida social, portanto, implica na mudança das condições reais, materiais em que a vida social está aportada: “As relações sociais de produção (i.é, organização social no mais lato dos sentidos) e as forças produtivas materiais (a cujo nível aquelas correspondem) não podem ser separadas [...] ‘A estrutura econômica da sociedade é formada pela totalidade dessas relações de produção” (Hobsbawm, 1991, p. 16). Ou como diz o próprio Marx no famoso Prefácio:

Na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral [...] A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre alteração material – que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa – das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-o às suas últimas consequências (Marx, 2003, p. 05).

A divisão social do trabalho inicial, além de elevar a produção (excedente), permitia a constituição de outra forma de trabalho: o trabalho intelectual. Se havia excedente, nem todos precisavam se dedicar à produção dos insumos propriamente materiais da vida social, e ao que se segue que alguns poderiam se dedicar tanto à política, quanto à religião, às artes ou à filosofia. De certo modo, o mundo grego externou bem essa passagem da nossa história política, bem como das origens e da evolução do trabalho intelectual. Também não há exagero em se dizer que o homem é social por necessidade, a necessidade da sobrevivência52, e que isto não se dá por alguma condição inata ou excepcional que o conduz a tanto. Quanto à ideologia em si mesma ou quanto à determinação do lugar, da posição das ideias no mundo real, não há passagem mais clara do que esta outra do Prefácio. Portanto, fora disso, todo o conjunto restante de ideias é pura ideologia ou simplesmente abstração das condições reais de existência. Do passado para o presente, o homem primeiro cria as mais simples condições de sobrevivência, e com o passar do tempo é que transforma os meios de vida em meios de produção. Da produção individual da vida à produção da vida social: esta pode ser a história dos meios de produção, mas vejamos do início, quando o que importa é apenas sobreviver. A partir das condições naturais é que o homem produzirá seu primeiro ato histórico, e é interessante frisar como este ato social é decorrente de nossa maior investida sobre o mundo natural. Esse dado ainda revela ao homem uma posição de interventor na vida social, antes mesmo de qualquer presunção de que deva manifestar uma determinada ordem jurídica ou política, isto é, a vida social precede à política, ao Estado, à religião, à própria noção de ordem e de regramento social.

Assim, a moral, a religião, a metafísica e todo o restante da ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes, perdem logo toda a aparência de autonomia. Não têm história, não têm desenvolvimento; ao contrário, são os homens que, desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais, transformam, com a realidade que lhes é própria, seu pensamento e também os produtos do pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência (Marx, 2002, pp. 19-20).

De modo mais preciso, o primeiro ato histórico da humanidade fez elidir, suprimiu a ideia de uma representação sem base material, ou seja, no materialismo, prevalece a análise dos elementos de formação da vida social e não das formas de representação política ou religiosa53:

A primeira condição de toda história humana é, naturalmente, a existência de seres humanos vivos. A primeira situação a constatar é, portanto, a constituição corporal desses indivíduos e as relações que ela gera entre eles e o restante da natureza [...] Mas, para viver, é preciso antes de tudo beber, comer, morar, vestir-se e algumas outras coisas mais. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material; e isso mesmo constitui um fato histórico, uma condição fundamental de toda a história que se deve, ainda hoje como há milhares de anos, preencher dia a dia, hora a hora, simplesmente para manter os homens com vida [...] O segundo ponto a examinar é que uma vez satisfeita à primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento já adquirido com essa satisfação levam a novas necessidades — e essa produção de novas necessidades é o primeiro ato histórico [...] A terceira relação, que intervém no desenvolvimento histórico, é que os homens, que renovam a cada dia sua própria vida, passam a criar outros homens, a se reproduzir. É a relação entre homem e mulher, pais e filhos, é a família [...] Produzir a vida, tanto a sua própria vida pelo trabalho, quanto à dos outros pela procriação, nos parece portanto, a partir de agora, como uma dupla relação: por um lado como uma relação natural, por outro como uma relação social — social no sentido em que se entende com isso a ação conjugada de vários indivíduos, sejam quais forem suas condições, forma e objetivos (Marx, 2002, pp. 10-21-22-23).

O primeiro ato histórico, portanto, é social e só muito tempo depois é que será político – e bem após esta fase é que se poderá dizer que algumas relações sociais também seriam relações jurídicas. Enfim, as três fases da vida social podem ser assim resumidas: produção das condições básicas de subsistência; produção de novas necessidades (como por exemplo, buscar novos instrumentos ou técnicas); reprodução do núcleo social, da família. Por que Marx destacaria uma frase aparentemente óbvia como esta: A primeira condição de toda história humana é, naturalmente, a existência de seres humanos vivos. Porque daí se subentende mais claramente porque não há humano abstrato. Ou seja, mesmo a espécie humana é analisada de acordo com o período histórico e diante das condições objetivas de reprodução material das formas de vida social. Neste sentido, também se vê que tanto a política quanto o Estado não são formas autônomas de representação social, devendo ser analisadas articuladamente com as formas sociais que predominam em determinado período e contexto histórico (sociedade civil): “Ao contrário, é a sociedade civil que cria o Estado. A sociedade civil é o verdadeiro lar e cenário da história. Abarca todo o intercâmbio material entre os indivíduos, numa determinada fase do desenvolvimento das forças produtivas” (Gorender, 2002, p. xxxi). Deve-se notar que se repete o uso das determinações, como em indivíduos e relações determinadas, justamente para se dissolver toda ideia geral, que possa aparecer como fora da história ou que esteja ausente de história e de sua materialidade. Assim, sempre serão relações sociais determinadas pelo contexto e pelas condições materiais gerais: não há nada, nem ninguém fora das determinações históricas.

Essas premissas são os homens, não os homens isolados e definidos de algum modo imaginário, mas envolvidos em seu processo de desenvolvimento real em determinadas condições, desenvolvimento esse empiricamente visível [...] É aí que termina a especulação, é na vida real que começa portanto a ciência real, positiva, a análise da atividade prática, do processo, do desenvolvimento prático dos homens (Marx, 2002, p. 20).

A história política que nos interessa, portanto, não é a história do Estado Ideal, mas sim a das condições reais sobre as quais o Estado está assentado. Desse ponto de vista, não há teleologia, mas sim desenvolvimento histórico do Estado, tal qual devemos perguntar pelo desenvolvimento prático dos homens. Sob a era do capitalismo, o próprio modo de produção capitalista conhecerá fases subsequentes de desenvolvimento, com a intensa e imensa transformação das bases materiais de produção — é como se fosse um capitalismo dentro do capitalismo, tal a sensação provocada de que muitas fases novas transformam e se sucedem progressivamente, impositivamente. E isso já está no jovem Marx, do Manifesto do Partido Comunista:

A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção, portanto todo o conjunto das relações sociais [...] O contínuo revolucionamento (Umwälzung) da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séquito de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas, e as novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem (Marx, 1993, p. 69).

Este contínuo processo de revolucionamento dos meios de produção implica que também as formas de consciência se alteram e se ajustam às novas condições reais de vida. A maneira de se ver a vida, muda conforme se modifica a própria vida — dito assim, é sem dúvida uma obviedade, mas é preciso entender o fluxo histórico em que essas mudanças se operam. Portanto, o homem como animal social tem uma longa história, ou seja, apresenta formas diferentes de se organizar ao longo do tempo. Essa capacidade de organização para o trabalho que produz a vida é que nos permite viver54. Por fim, essa atividade de organização se dá sobre as condições naturais que nos cercam, isto é, os homens também se tornam ainda mais sociáveis na medida em que mais e mais se transforme a natureza. A sociedade, com isto, também será o resultado de sua articulação e produção social, portanto, uma criação, uma artificialidade55, uma construção sobre as próprias condições naturais. Esse trabalho sobre a natureza é o que produz o homem e a sociedade, e por isso o trabalho é uma categoria central na afirmação do homem como ser social56. Se construir a sociedade é mudar a natureza, também podemos dizer que ao organizar esta dimensão social, o homem modifica a natureza e a si mesmo. Desse modo, evoluir é tornar-se cada vez mais social57, alterando-se e apropriando-se dos recursos ofertados pela natureza e, a essa altura, pela própria sociedade58. No início dessa história social, essa apropriação dos recursos será coletiva, comunal, e mesmo quando a propriedade se refira exclusivamente ao indivíduo, será para sua manutenção, para seu uso pessoal: não como hoje, na forma da propriedade privada. Ainda no início da organização social, nas primeiras comunidades, a capacidade de cooperação entre os homens os levaria a buscar identidade entre si, mas também diferenciação, pois percebendo as habilidades em destaque os homens começaram a buscar a divisão social do trabalho, aumentando a própria produção. Este excedente da produção que se origina da cooperação e da especialização do trabalho gera, por sua vez, a possibilidade da troca.

O homem – ou melhor, os homens – realizam trabalho, isto é, criam e reproduzem sua existência na prática diária, ao respirar, ao buscar alimento, abrigo, amor, etc. Fazem isto atuando na natureza, tirando da natureza (e, às vezes, transformando-a conscientemente) com este propósito. Esta interação entre o homem e a natureza é – e ao mesmo tempo produz – a evolução social. Retirar algo da natureza, ou determinar um tipo de uso para alguma parte da natureza (inclusive o próprio corpo) pode ser considerado e é o que acontece na linguagem comum, uma apropriação, que é, pois, originalmente, apenas um aspecto do trabalho. Isto se expressa no conceito de propriedade (que não deve ser, de forma alguma, identificado com a forma histórica específica da propriedade privada). No começo, diz Marx, “o relacionamento do trabalhador com as condições objetivas de seu trabalho é de propriedade; esta constitui a unidade natural do trabalho com seus pré-requisitos materiais” [...] Sendo um animal social, o homem desenvolve tanto a cooperação como uma divisão social do trabalho (isto é, especialização de funções) que não só é possibilitada pela produção de um excedente acima do que é necessário para manter o indivíduo e a comunidade da qual participa, mas também amplia as possibilidades adicionais de geração desse excedente. A existência deste excedente e da divisão social do trabalho torna possível a troca. Mas, inicialmente, tanto a produção como a troca têm, como finalidade, apenas o uso – isto é, a manutenção do produtor e de sua comunidade (Hobsbawm, 1991, p. 16).

Como vimos, qualquer forma de organização e de expressão política deriva dessa capacidade de organização do social; a política decorre do social. Qualquer mudança social também decorre dessa capacidade de modificarmos, ao longo da história, as próprias condições de organização e de produção do social (trabalho). Ou seja, a transformação social é mais do que vontade de se mudar a sociedade, é resultado das condições reais de possibilidade de transformação dos meios e dos recursos ofertados pela sociedade em determinado momento de sua história. Isto é progresso, na medida em que nos distancia da mera imposição das condições naturais, desse nosso desenvolvimento natural (não há desenvolvimento natural, mas tão-somente esse esforço social). Parte dessa alteração e do novo ajustamento implica em adequar-se à consciência da propriedade — pois é daí que provêm o arranjo necessário dos meios da vida e a consequente divisão social do trabalho.

Max Weber: uma vida acadêmica e política

Podemos encontrar pistas nos moldes familiares em que cresceu Weber, com dois pólos diferentes: o pietismo protestante da mãe e um pragmatismo político-profissional do pai. É provável que esse choque o tenha direcionado para a exploração da dimensão ética do cotidiano, permitindo-lhe observar uma noção de ética que inclui a responsabilidade individual e cotidiana. Uma ética diferente daquela que atribui tudo a um Estado ou a algum ente superior.

Weber terá, desde muito novo, uma vida pública incomum, distinta – uma duplicidade acadêmica e política: educação humanista apurada59. Na maioridade, já perto da morte, participou das discussões e da elaboração da conhecida Constituição de Weimar (1919), tida como um dos três pontos (documentos60) de sustentação do Estado Democrático de Direito: o modelo estatal predominante. Em síntese, para Weber, a sociologia é a ciência que objetiva compreender a atividade social pela interpretação, para depois explicar os efeitos dessa mesma atividade – ação social -, no contexto global das redes de relações sociais. Weber estará atento para os sentidos, para as próprias intenções sociaisos sentidos ocultos do chamado senso comum – que não estão ao alcance pleno e imediato de todos os envolvidos nas próprias relações sociais. Digamos que esta seja uma forma de se abordar um objeto social, especialmente quanto aos seus aspectos globais/gerais - e que estes seriam definidos como modelos típicos ideais.

Objetividade

Apenas as ideias de valor que dominam o investigador e uma época podem determinar o objeto do estudo e seus limites. Porque só é uma verdade científica aquilo que pretende ser válido para todos os que querem a verdade (Max Weber).

Comentário: A objetividade do mundo (a cultura) fala diretamente à subjetividade do autor (suas afinidades eletivas).

Modelos Típicos e ideais: Modernidade e Estado Racional

Os modelos ideais, no entanto, são constructos objetivos, nem puramente teóricos (livres do mundo) nem puramente sócio-culturais (livres do investigador: há uma competência no cotidiano que estimula a interação com o objeto):

A conceituação da Sociologia encontra seu material, como casos exemplares e essencialmente, ainda que não de modo exclusivo, nas realidades da ação consideradas também relevantes do ponto de vista da história [...] Em todos os casos, racionais como irracionais, ela se distância da realidade, servindo para o conhecimento desta da forma seguinte: mediante a indicação do grau de aproximação de um fenômeno histórico a um ou vários desses conceitos torna-se possível classificá-lo [quanto ao tipo]. O mesmo fenômeno histórico, por exemplo, pode ter, numa parte de seus componentes, caráter “feudal”, noutra parte, caráter “patrimonial”, numa terceira, “burocrático” e, numa quarta, “carismático”. Para que com estas palavras se exprima algo unívoco, a Sociologia, por sua vez, deve delinear tipos “puros” (“ideais”) dessas configurações, os quais mostram em si a unidade consequente de uma adequação de sentido mais plena possível, mas que, precisamente por isso, talvez sejam tão pouco frequentes na realidade quanto uma reação física calculada sob o pressuposto de um espaço absolutamente vazio. Somente dessa maneira, partindo do tipo puro (“ideal”), pode realizar-se uma casuística sociológica [...] Mas os conceitos construtivos da Sociologia são típico-ideais não apenas externa como também internamente. A ação real sucede, na maioria dos casos, em surda semiconsciência ou inconsciência de seu “sentido visado”. O agente mais o “sente”, de forma indeterminada, do que sabe ou tem “clara” ideia dele [...] Mas isto não deve impedir que a Sociologia construa seus conceitos mediante a classificação do possível “sentido subjetivo”, isto é, como se a ação, seu decorrer real, se orientasse conscientemente por um sentido (Weber, 2004, pp. 12-13).

Toda ação acaba sendo comparada a um tipo ideal:

Esse modelo distinto envolve seis processos sociais e culturais fundamentais e largamente ramificados: 1. O desencanto e a intelectualização do mundo, e a resultante tendência a ver o mundo como um mecanismo causal sujeito, em princípio, ao controle racional; 2. O surgimento de um ethos de realização secular impessoal, historicamente alicerçado na ética puritana da vocação; 3. A crescente importância do conhecimento técnico especializado em economia, administração e educação; 4. A objetificação e despersonalização do direito, da economia e da organização política do Estado, e o consequente recrudescimento da regularidade e da calculabilidade da ação nesses domínios; 5. O progressivo desenvolvimento dos meios tecnicamente racionais de controle sobre o homem e a natureza; e 6. A tendência ao deslocamento da orientação da ação tradicional e assente em valores racionais (wertrational) para a ação puramente instrumental (zweckrational) (Outhwaite & Bottomore, 1996, p. 642).

E não só o pensamento teórico, desencantando o mundo, levava a essa situação, mas também a própria tentativa da ética religiosa de racionalizar prática e eticamente o mundo [...] E em meio de uma cultura que é racionalmente organizada para uma vida vocacional de trabalho cotidiano, dificilmente haverá lugar para o cultivo da fraternidade acósmica, a menos que seja entre camadas economicamente despreocupadas. Sob as condições técnicas e sociais da cultura racional, uma imitação da vida de Buda, Jesus ou São Francisco parece condenada por motivos exclusivamente externos (Weber, 1979, p. 408).

Quanto ao sistema em geral, há outro ponto a ressaltar.

  • A ideia da ética profissional: quando Weber diz que seus jovens orientandos deveriam qualificar-se melhor com outros professores, igualmente titulares.

Há crescente especialização e divisão do trabalho intelectual

O progresso científico é um fragmento, o mais importante indubitavelmente, do processo de intelectualização a que estamos submetidos desde milênios [...] Equivale isso a despojar de magia o mundo [...] O destino de nosso tempo, que se caracteriza pela racionalização, pela intelectualização e, sobretudo, pelo “desencantamento do mundo” levou os homens a banirem da vida pública os valores supremos e mais sublimes (Weber, 1993, pp. 30-51).

  1. Por um lado o processo é benéfico, porque acirra a competição, quando se elevam as “qualificações técnicas” e também burocráticas das universidades;

  2. Por outro, há um grande choque entre gerações e isso afeta as próprias “tradições acadêmicas” (o que não deixa de ser uma questão ética). Weber nos diz que:

Há um abismo, tanto visto de fora quanto visto de dentro, entre essa espécie de grande empresa universitária capitalista e o professor titular comum, de velho estilo. Isto se traduz até na maneira íntima de ser” (Weber, 1993, p. 20).

  1. “Em nosso tempo, obra verdadeiramente definitiva e importante é sempre obra de especialista” (Weber, 1993, p. 24).

  2. A racionalização e intelectualização, em Max Weber, têm várias esferas e acompanham todo o longo processo histórico do desencantamento do mundo (como se fosse o “motor” do milenar processo civilizatório).

  3. A ideia de escolarização, aprendizado, conhecimento, para a sociologia de Max Weber, é parte integrante do amplo processo de “desencantamento do mundo”, ou seja, de racionalização e de intelectualização.

i. Por desencantamento do mundo, Weber indica duas possíveis compreensões: “desmagificação” e “perda dos sentidos”.

  1. Com a racionalização da sociedade ocidental, Weber trata da modernidade e de como o homem aprendeu a ser moderno, processo que compreende a escola.

  2. O processo do conhecimento (especialmente na vida moderna) desembocou na ciência (e no seu negativo: “cientificismo” e/ou “razão instrumental”), mas também na expectativa de explicações razoáveis à vida do homem comum.

  3. Este processo de (auto) conhecimento passa, evidentemente, pela escola, mas não se limita à escolarização, pois o razoável é um princípio ou possibilidade de que seja racionalizável. E isto transcorre em vários níveis da vida: da religião à estética ou erotismo, economia, direito e política (Estado Racional).

a. O erotismo, aliado à cultura e à intelecutalização, levaria ao gozo consciente (Weber, 1979) programado, estudado, pensado, instigado, legislado.

  1. Assim, a própria religião, tema tão caro a Weber, para explicar a racionalização como crescimento intelectual que nos trouxe à modernidade, é ela mesma um processo de conhecimento do mundo moderno.

  2. Estudar a religião em Max Weber é, portanto, adentrar um pouco no espírito crescente de intelectualização que nos trouxe à modernidade; afinal, “a religião é o mito racionalizado” pelo ascetismo.

a. No sentido que nos interessa mais de perto, Max Weber investigou o conceito em dois planos: 1º) ascetismo extramundano – consiste em retirar-se do mundo (misticismo); 2º) ascetismo intramundano — consiste em praticar a abstenção dentro desde mundo terreno. O ascetismo intramundano, que também é o que nos interessa mais especificamente, coincide com a efervescência da ética do capitalismo moderno, desde que este surgiu e se solidificou, impulsionado por vários grupos protestantes: calvinista, pietista, metodista e batistas.

  1. A intelectualização, em Max Weber, é um grande arco que recobre as iniciativas humanas no seu curso de aprendizado (racionalização) e conhecimento, isto é, dentro e fora da escola: como vemos na indicação da análise do mito.

  2. A diferença básica entre educação e escolarização é que esta exige uma instituição para que se efetive (escola, Liceu etc.) e a educação é o próprio "processo interativo" em que se dá a construção do conhecimento (com ou sem escola), como um "processo de ensino-aprendizagem".

Em síntese, para Weber, a sociologia é a ciência que objetiva compreender a atividade social pela interpretação, para depois explicar os efeitos dessa mesma atividade – ação social -, no contexto global das redes de relações sociais. Weber estará atento para os sentidos, para as próprias intenções sociaisos sentidos ocultos do chamado senso comum – que não estão ao alcance pleno e imediato de todos os envolvidos nas próprias relações sociais. A pergunta clássica que o próprio Weber direciona a este aspecto é a seguinte: quem (re) conhece o verdadeiro significado de uma lei? Weber se refere tanto à lei, no sentido dogmático, quanto ao sentido empregado para lei social (fato social), e que lhe propicie conhecer em profundidade um determinado conjunto de relações sociais.

Darwinismo Social

Charles Darwin (1809 - 1882) é um autor "sensível ao social" e não um biólogo obsessivo como se retrata e ainda que alguns digam que esta “sensibilidade social” não foi tão segura quanto gostaríamos, como no caso de uma crítica severa à escravidão brasileira: o que também não é verdadeiro. De todo modo, no Dário de Bordo “O Beagle61 na América do Sul”, Darwin inicia sua descrição sócio-ambiental com a demonstração do que se pode chamar de método narrativo:

Fernando de Noronha, 20 de fevereiro — tanto quanto pude observar [...] A característica mais notável [...] A partir da primeira impressão, ao se observar essas isoladas, tende-se a acreditar que o todo foi repentinamente empurrado para cima em estado semifluído [...] Em Santa Helena, entretanto [...] A ilha toda está coberta de floreta; mas, devido à aridez do clima, não há nenhuma aparência de exuberância (Darwin, 1996, p. 07).

O texto é um misto de diário pessoal, informal, à procura da descrição detalhada, minuciosa. Seu estilo é limpo, como o de um narrador realmente, mas nem por isso despretensioso. É quase poético, a exemplo de quando se declara um naturalista. De um modo ou de outro, sempre retoma o método descritivo, mas ainda assim ressalta o exercício da reflexão motivada pela (bio) diversidade (Darwin, 1996, p. 09-10). A observação cuidadosa pode favorecer outro método — comparativo — e sem desconsiderar o mesmo “bom senso observador dos nativos”. Porém, como cientista está à procura de uma razão que explique determinados fenômenos e, assim, observa em detalhes como é que um peixe baiacu ou diodon se enche de água e de ar. Depois, descreve borboletas preguiçosas como se conversasse com elas — na verdade, o que faz é interagir com o meio, com todos os seus aguçados sentidos de observador meticuloso, detalhista, criterioso e, acima de tudo, curioso. Portanto, sua curiosidade o leva a observar a cadeia social da escravidão brasileira, quando demonstra sensibilidade diante do significado e dos feitos da escravidão:

Como a lua surgiu cedo, decidimos partir naquela mesma tarde para a Lagoa Maricá, onde pernoitaríamos. À medida que foi escurecendo, passamos sob um daqueles enormes morros de granito, íngremes e nus, tão comuns neste país. Este lugar é famoso por ter sido, durante muito tempo, a morada de alguns escravos fugidos que conseguiram tirar sua subsistência do cultivo de um pequeno pedaço de terra perto do topo. Finalmente descobertos, foram todos capturados por um grupo de soldados, com exceção de uma velha que, recusando-se a voltar a ser escrava, preferiu atirar-se do alto da montanha, despedaçando-se contra as pedras da base. Numa matrona romana, isso teria sido chamado de um nobre sentimento de liberdade, mas numa pobre negra, é apenas uma brutal obstinação (Darwin, 1996, p. 14. – grifos nossos).

Vê-se na descrição/interpretação citada seu interesse pela história social e como sugere uma articulação entre o cotidiano (“Como a lua surgiu cedo... À medida que foi escurecendo”), a história natural (“passamos sob um daqueles enormes morros de granito, íngremes e nus”), a história social e política (“Este lugar é famoso por ter sido... a morada de alguns escravos fugidos”), um ideal como pano de fundo (“um nobre sentimento de liberdade”) e, por fim, um realismo assombroso (“numa pobre negra, é apenas uma brutal obstinação”). Se não fosse pela escravidão, o país seria uma maravilha. O escravismo no Brasil não gerou nenhum sentimento de individualismo liberal, mas sim egoísmo:

"13 de abril [...] propriedade do Sr. Manuel Figuireda [...] por pouco não me tornei testemunha ocular de um daqueles atos de atrocidade, que só podem acontecer num país escravocrata. Devido a uma briga e a uma ação judicial, o proprietário estava prestes a tirar todas as mulheres e crianças da companhia dos homens e vendê-las separadamente num leilão público no Rio. O interesse, e não nenhum sentimento de compaixão foi o que impediu esse ato [...] Pode-se dizer que não há limite para a cegueira advinda do interesse e de hábitos egoístas." (Darwin, 1996, pp. 18-21).

Sua recaída, todavia, foi ter confundido patriarcalismo com cuidado e felicidade: a autonomia não pode ser substituída pelo assistencialismo, por mais generoso que possa ser: “Em fazendas como essa, não tenho dúvida de que os escravos vivem satisfeitos e felizes” (Darwin, 1996, p. 20). Conclui chamando nossa atenção para uma “perspectiva ecológica”: “podemos inferir, a partir desses fatos, que devastação deve causar a uma região a introdução de qualquer animal de rapina, antes que os instintos dos aborígines se adaptem à habilidade ou poder do desconhecido” (Darwin, 1996, p. 72). É como se dissesse que a colonização ecológica é tão predatória quanto à expropriação humana. Esta mesma relação entre política e técnica, já identificada nos primórdios das sociedades humanas, é também realçada por Alfred W. Crosby (em Imperialismo ecológico). A técnica também parece associada ao desenvolvimento dos sentidos, em especial o tato. A articulação do polegar, “livre da mão”, propiciava o movimento de pinça, diferentemente dos macacos que tem o polegar “colado à mão”. Crosby, ao identificar no polegar livre a possibilidade do movimento de pinça, parece confirmar a tese que já aparecia em Marx e Engels (Darwin):

Com todos os seus notáveis avanços na metalurgia, nas artes, na escrita, na política e na vida urbana, a Revolução Neolítica do Velho Mundo teve como fundamento o controle direto e a exploração de muitas espécies em benefício de uma só: o Homo sapiens. O polegar oposto aos outros dedos da mão capacitara o hominídio a agarrar e manipular segmentos completos da biota a seu redor (Crosby, 1993, p. 30. - grifos nossos).

Esta é a contribuição do neolítico: o Homo sapiens que inventara a arte, a política e a técnica. É como se disséssemos que nosso “estado de ser atual”, quando nos preocupamos com o sentido político que a tecnologia adquire atualmente, é um sinal de desapontamento com a criatividade dos ancestrais, uma vez que eles “inventaram” o maior desafio que temos hoje: a Tecnologia política. Porém, para Crosby, é um sinal claro da denúncia frente à angústia do mundo moderno, em que precisamos enquanto Homens capacitar-nos para “saltos” maiores. Um “salto qualitativo” que englobe a toda a humanidade e não apenas a poucos. Lembra assim, mais uma vez, o período do Neolítico, onde tudo começou, para dizer que nossos sonhos têm de resgatar a mesma qualidade que um dia nos caracterizou, quando tínhamos unidas a arte, a política e a técnica:

As responsabilidades dos neo-europeus exigem uma sofisticação ecológica e diplomática sem precedentes: habilidade política no campo e nas embaixadas, e uma verdadeira grandeza de espírito [...] Carecemos hoje de um florescimento de inventividade equivalente ao ocorrido no Neolítico — ou, na ausência disso, de sabedoria (Crosby, 1993, p. 30).

Como se sabe, os “saltos” que se prevê para o futuro não prometem “respostas igualitárias” para a humanidade. Os especialistas em informática esperam para o próximo século um “salto qualitativo” em termos de “interfaces”, entre os aplicativos e os usuários, através do desenvolvimento das “fibras óticas” e da “digitalização”. Dissemos que os saltos não prometem nada ao futuro integrado da humanidade, porque não há vestígios no presente que garantam uma “evolução equitativa”. E se Crosby nos remete ao Neolítico, para encontrarmos essa garantia de futuro, é porque ele também não as encontrou no presente. Mas, como cronologicamente ainda estamos no século XX, voltemos para os dados que o constituem (Martinez, 1997).

Socialismo Científico

Nota-se, em parte pelo que já vimos, neste subitem que se inicia, um esforço para que tenham melhor esclarecidos alguns apontamentos da luta de classes, entendendo-se esta situação como uma relação antagônica, contraditória e oposta entre as classes fundamentais; mas especificamente no capitalismo essas classes são burguesia e proletariado. Mas há outras classes, como o lumpemproletariado e a pequena burguesia e até frações de classe, também em luta, como: burguesia industrial X agropecuária ou financistas versus industriais. Uma relação de oposição pode implicar apenas em uma situação de conflito controlado, a exemplo do que se vê entre oposição e situação, relação mediada pelo Princípio do Contraditório: comum ao debate parlamentar (trabalhistas X conservadores) ou à relação jurídica. Será uma relação antagônica quando a conflituosidade e animosidade ganharem um nível muito superior de beligerância, antecipando-se à negação, porque os discursos ou ideologias estão em franco e aberto conflito: as visões de mundo se tornaram insuportavelmente diversas. Por fim, será uma relação contraditória porque, aquela negação anunciada estará em ação, o que implica que — apesar da mútua necessidade de existência entre os pólos em disputa (“não há diálogo de mudos ou de surdos”) — a vida de um acarreta obrigatoriamente a exclusão/eliminação do Outro. Diferentemente da dialética oriental (positivo versus negativo), a dialética ocidental marxista impõe a ocorrência da negação. Assim, a um processo dialético por contradição é obrigatória à ocorrência de uma tese (situação), antítese (oposição) e de suas respectivas superações em uma síntese (que não é nem a tese, nem a antítese, mas que contém parte das duas, transformadas, revigoradas em um dado novo, novo contexto). A síntese, portanto, como substrato das duas ocorrências anteriores, será a nova tese — o que implicará em outra antítese e assim por diante. Nesta fase, então, pode-se dizer que houve superação da própria luta de classes, pois sem que uma das classes fundamentais tivesse sobrevivido, necessariamente, a outra teria de se transformar em algo diverso daquilo que fora até então: as revoluções, portanto, transformam a própria luta de classes que as alimentou até aquele momento. Na seguinte síntese apresentada por Engels temos uma (re) visão histórico e crítica feita por Marx:

“O materialismo é filho nato da Grã-Bretanha” [...] O verdadeiro pai do materialismo inglês é Bacon. Para ele, a ciência da natureza é a verdadeira ciência, e a física experimental a parte mais importante da ciência da natureza [...] Toda ciência se baseia na experiência e consiste em aplicar um método racional de investigação ao que é dado pelos sentidos. A indução, a análise, a comparação, a observação, a experimentação são as condições fundamentais desse método racional [...] Hobbes sistematiza o materialismo de Bacon. A sensoriedade perde o seu brilho e converte-se na sensoriedade abstrata do geômetra [...] Se os sentidos fornecem ao homem todos os conhecimentos – argumenta Hobbes partindo de Bacon -, os conceitos, as ideias, as representações mentais, etc., não são senão fantasmas do mundo físico, mais ou menos despojado da sua forma sensorial. A ciência não pode fazer mais do que dar nomes a estes fantasmas [...] Locke, na sua obra [...] Ensaio sobre o Entendimento Humano fundamenta o princípio de Bacon e Hobbes [...] Assim se expressa Karl Marx referindo-se às origens britânicas do materialismo moderno (Engels, s/d, pp. 10-12).

Em seguida, Marx formula, no dizer de Engels, uma crítica mais rotunda acerca do conatus ou endeavor de Hobbes (1983). No fundo, uma crítica de base à ideia da reta razão (Angoulvent, 1996), porque a razão nunca seria reta se mais adiante sempre se colocassem obstáculos, diatribes62, estranhamentos do mundo material — atuando como sufocação das subjetividades:

Corpo, ser, substância, vêm a ser uma e a mesma ideia real. Não se pode separar o pensamento da matéria que pensa. Ela é o sujeito de todas as mudanças [...] Toda a paixão humana é movimento mecânico que termina ou começa. Os objetos do impulso são o bem [...] O poder e a liberdade são coisas idênticas [...] Hobbes sistematizou Bacon, mas sem oferecer novas provas a favor do seu princípio fundamental: o de que os conhecimentos e as ideias têm a sua origem no mundo dos sentidos (Engels, s/d, p. 11).

Em parte, este é o esforço analítico principiando pelo materialismo histórico, tendo-se a acumulação primitiva e a colonização (ultramar) como suportes extratores de riquezas que originaram ou “suportaram” o Estado Moderno — em seguida, ainda socorre-se especialmente do “papel político-institucional” exercido pelo Estado-Nação. Portanto, cabe bem uma distinção/complemento quanto à dialética, especificamente para que possamos destacar o papel do Estado na condição/condução das suas superestruturas: direito, educação, “função pública”. Então, vejamos um relato sobre o Renascimento, a partir da perspectiva do Materialismo Histórico:

As fortunas da Espanha, da Holanda, da Inglaterra, da França foram obtidas, não somente com o trabalho excedente de seu proletariado, não somente destroçando sua pequena burguesia, mas também com a pilhagem sistemática de suas possessões de ultramar. A exploração de classes foi complementada e sua potencialidade aumentada com a exploração das nações. A burguesia das metrópoles se viu em situação de assegurar uma posição privilegiada para seu próprio proletariado, especialmente para as camadas superiores, mediante o pagamento com lucros excedentes obtidos nas colônias [...] Espoliando a riqueza natural dos países atrasados e restringindo deliberadamente seu desenvolvimento industrial independente, os magnatas monopolistas e seus governos concedem simultaneamente seu apoio financeiro, político e militar aos grupos semifeudais mais reacionários e parasitas de exploradores nativos [...] A luta dos povos coloniais por sua libertação, passando por cima das etapas intermediárias, transforma-se na necessidade da luta contra o imperialismo e, desse modo, está em consonância com a luta do proletariado nas metrópoles [...] O capitalismo tem o duplo mérito histórico de ter elevado a técnica a um alto nível e de ter ligado todas as partes do mundo com os laços econômicos [...] No entanto, o capitalismo não tem condição de cumprir essa tarefa urgente. O núcleo de sua expansão continua sendo os estados nacionais circunscritos com suas aduanas e seus exércitos. Não obstante, as forças produtivas superaram faz tempo os limites do Estado nacional, transformando consequentemente o que era antes um fator histórico progressista numa restrição insuportável. As guerras imperialistas não são mais que explosões das forças produtoras contra os limites estatais, que se tornaram limitados demais para elas (Trotsky, 1990, p. 71-73-75).

Este texto de Trotsky sobre a colonização, o imperialismo e o papel do Estado-Nação europeu na exploração das colônias, foi escrito em 1939. Mas, historicamente, o movimento social e político que mais se aproximou disso foi à intentona perpetrada pela Comuna de Paris, em 1871, mas desde a Revolução Francesa, os partidários de Rousseau já saiam às ruas. Classes Fundamentais: no capitalismo, burguesia e proletariado:

Foi nas profundezas do submundo intelectual que esses homens se tornaram revolucionários: ali nasceu a determinação jacobina de exterminar a aristocracia do pensamento [...] O mundo dos subliteratos não tinha princípios; tampouco alguma instituição de tipo formal. Era um universo de gente à deriva — nada de cavalheirescos discípulos de Locke resignados às regras de algum jogo implícito, mas brutos partidários de Hobbes colhidos em meio à briga pela sobrevivência. Isso não ficava a menor distância de le monde que o café do salon (Darnton, 1987, pp. 31-33).

As revoluções foram intensas não só no aspecto material (acumulação primitiva, inversão de capitais), mas igualmente nas “mentalidades”: “Onde quer que tenha chegado ao poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas” (Marx & Engels, 1993, p. 68). Para Marx, o papel do Estado Moderno nunca foi de relevância muito superior ao que vimos em alguns de seus interlocutores e comentadores: “O poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê (Ausschuss) para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa” (Marx & Engels, 1993, p. 68. – grifos nossos). Em momento de reflexão semelhante, Marx ainda dirá que, entrelinhas, que o juiz crê que para chegar à verdade, é preciso aplicar a subsunção e, como se aplica a isto reiteradamente, acaba por atribuir à subsunção a própria força da verdade objetiva dos fatos sublimados, colimados pela ocorrência histórica e não pela retórica:

As relações, na jurisprudência, política etc. — convertem-se em conceitos na consciência; e por eles não se situarem acima dessas relações, os conceitos das mesmas, em suas cabeças, são conceitos fixos; o juiz, por exemplo, aplica o código e por isso, para ele, a legislação é tida como verdadeiro motor ativo. Respeito pela sua mercadoria; pois sua ocupação tem a ver com o geral (Marx, 1984, p. 134).

Por isso, pela ausência de realidade substancial que funcione como anteparo ao achaque à consciência do aplicador do Judiciário (e agindo quase que por inércia, osmose , sob o efeito direto da subsunção), a partir do Estado Moderno, não poderia ter havido um típico Renascimento do Direito. De modo complementar também se destaca o Estado Moderno como fixador material/ideológico do “sistema capitalista” já a partir do Renascimento. Em suma, trata-se de uma leitura complementar, crítica/realista acerca do Renascimento e da Renascença, pois, nem todas as ideias, vocações ou habilidades puderam (re) nascer livremente.

Poder Social e Legitimidade

O Poder Social é definido como a capacidade de organizar relações sociais, a fim de agir em relativa harmonia. Ainda diz-se que se constitui na capacidade de acessar recursos humanos e/ou materiais para obter e controlar os resultados almejados. Enfim, pode-se dizer que o Poder é social porque pertence a um grupo. Contudo, deve-se indagar se o Poder Social sempre será uma atividade racional. De modo simples, o Poder Social reflete a capacidade humana para se propor formas de organização social. Sendo assim é a capacidade humana:

  • · Constitutiva ou própria à fabricação de resultados que afetem outros;

  • · Sistêmica de realizar objetivos coletivamente vinculatórios;

  • · Organizacional de disciplinar e modelar desejos, ações, discursos e a própria subjetividade;

  • · Racional e voltada à dominação, em busca de determinados resultados.

Para Arendt: “A forma extrema de poder é o Todos contra Um, a forma extrema da violência é o Um contra Todos” (Arendt, 1994, pp. 35-6 – grifos nossos). Lembrando-se que este Um tanto pode ser um príncipe, um déspota quanto o próprio Estado quando assume a forma totalitária. Se há um revés nesta lógica da “luta por sobrevivência, mas com reconhecimento da intersubjetividade” (Honneth, 2003) ou simples práxis social, então, é porque já estão em vigor a impotência, a violência e a corrupção (o exato contrário, o oposto da política, para Arendt). Destacada que o “acordo genuíno” que constituiu o poder social não poderia se converter em coerção pelo sistema, uma vez que esta mutação simplesmente converteria poder em violência. Afinal, o poder do consenso/legítimo repousa na persuasão: “imposição singularmente não impositiva63”. Porque é um “poder proposto”, não imposto. Ainda é preciso lembrar que Habermas considera que o significado de poder em Arendt origina-se na vita activa, na sua práxis social — em outros termos, na “capacidade de se alcançar um acordo visando à ação conjunta”.

Ainda é preciso retomar algumas diferenciações, neste caso entre Arendt e Weber, pois o “poder como consenso” não se avalia pelo êxito dos atores, mas sim pela “aspiração comum à validade razoável”. Para Habermas, o poder em Arendt é fonte da legitimidade validada pela práxis social e figura, portanto, como fruto de um consenso almejado/alcançado na própria comunicação ou comunidade política (Habermas, 1980, 103). Ou, então, como quer definir a própria Hannah Arendt, de modo preciso, que vita activa é sinônimo de ação política e que esta estreita relação constitui o “cerne humano”. O homem é um animal social, de múltiplas relações de convivialidade, conectividade, civilidade, isonomia64, isegoria: sem liberdade de expressão, não há manifestação pública e todos seriam aneu logou: sem direito e sem voz ativa (Arendt, 1998). Mas, indubitavelmente, o homem é um animal político, aprioristicamente, com a vita activa que requer movimento e ação (Arendt, 1991, p. 15).

Em suma, para Arendt, o poder seria efeito da ação comunicativa, mas também se revelaria em três níveis ou modalidades: a) regulamento que sobrevém à práxis; b) resistência à opressão; c) atos revolucionários inaugurais (Habermas, 1980, p. 103). O poder é práxis, mas a práxis de Arendt vem da polis (Habermas, 1980, 104). Mesmo que limitado, esse conceito de práxis procura exasperadamente pelo reconhecimento de uma “intersubjetividade não mutilada”, mas multifacetada. O efeito direto dessa práxis no poder seria preservar a luta pelo reconhecimento da própria intersubjetividade no interior do mundo da vida. Mais especialmente, na modernidade, práxis e vita activa se aproximam do que chamamos de espaço público ou “esfera pública” — quando se encontram, na modernidade e diferentemente da polis grega, o sistema político-institucional com o mundo da vida: aí estaria, sobretudo, a ideia da representação política, parlamentar ou legislativa (como “transferência da capacidade de ação, da práxis, mas não postulativa da soberania popular”).

De todo modo, se o direito obedece à política (enquanto poder social ou instrumental do Estado), não é menos verdade que o direito precisa ser mais concreto do que a moral para, assim, não se diluir na própria arena política originária. Isto, evidentemente, evitaria um ciclo vicioso, opondo-se perigosamente o teleológico ao social. Aliás, este “mecanismo institucional de monopólio da produção legislativa” somente pode funcionar se o direito for aceito e reconhecido pela maioria como legítimo, isto é, se o direito se tornar verdadeiramente social. Portanto, uma das maiores dificuldades enfrentadas diante da realidade pragmática do direito (inclusive do “direito ao reconhecimento”) é, justamente, entender/encarar o direito como parte do poder social e não só como recurso instrumental do poder extroverso/funcional do Estado (Sundfeld, 2004, p. 94). Quanto mais for concreto o caráter socialmente impositivo65 do direito, tanto maior a legitimidade e a aceitabilidade das normas fundamentais de sociabilidade e tanto mais auto-reguláveis os projetos teleológicos de poder: os fins seriam mais comedidos pelos meios: Justamente porque as vontades ou os valores estariam “controlados” pelo direito positivado — este que é aberto à interpretação, mas já se partindo de um sentido firmado e não “figurado”. Enfim, como se vê, todo o “problema do direito” (mas também seria da arte, da política, da educação) é primeiro, quanto à legitimidade e, depois, quanto à validação. É sabido desde os romanos que “o direito não socorre a quem dorme”.


7. Mapa Histórico: A Modernidade Tardia

A Modernidade Tardia é um conceito/realidade amplo e complexo — complexus: “algo que se tece em conjunto” (Morin, 2000) — de utopias/entropias; contradições e distopias; afirmações ou “promessas descumpridas da democracia e da modernidade” (Bobbio, 1986). Tanto é uma fase de retomada quanto de negação, de afirmação e de interrogações, mas, é do domínio do real ou, melhor dizendo, pertence ao mundo real/virtual. É o ultramoderno posto em evidência:

A modernidade econômica implica a livre mobilidade dos fatores de produção, o trabalho assalariado, a adoção de técnicas racionais de contabilidade e de gestão, a incorporação incessante da ciência e da técnica ao processo produtivo. A modernidade política implica a substituição da autoridade descentralizada, típica do feudalismo, pelo Estado central, dotado de um sistema tributário eficaz, de um exército permanente, do monopólio da violência, de uma administração burocrática racional. A modernidade cultural implica a secularização das visões do mundo tradicionais [...] e sua diferenciação em esferas de valor [...] até então embutidas na religião: a ciência, a moral, o direito e a arte (Rouanet, 2002, pp. 237-8).

Além disso, os bens culturais agora também poderão se movimentar com mais independência em razão da laicização e da secularização do espaço público. Isto é o que vemos com os indícios trazidos pelo tema insurgente da modernidade já no século XVII. Também por isso prefere as expressões Ultramodernidade e Modernidade Radical (Giddens, 1991) à ideia de pós-modernidade (Sevcenko, 1987) ou mesmo modernidade tardia. A Modernidade Tardia, em uma ampla hermenêutica, ainda corresponde à mudança da luta por conservação em luta pelo reconhecimento (Honneth, 2003). Assim, é um mix entre negação e vir-a-ser; é a negação ou a véspera da utopia; é a entre-safra entre o esperar, calcular (estratégia) e a ação (da tática à prática); é uma espera, mas como um que fazer: “Não te esperarei na pura espera / Porque o meu tempo de espera é um / Tempo de que fazer” (Freire, 2000 - frontispício). É um ir e vir pela história, a exemplo da entropia, que atua como eixo da Teoria do Caos (e da pós-modernidade: indeterminação, instabilidade, dúvida metódica), mas que tem suas bases na termodinâmica de Newton:

Por que existe a entropia? Antes, muitas vezes se admitia que a entropia não era senão a expressão de uma fenomenologia, de aproximações suplementares que introduzimos nas leis da dinâmica. Hoje sabemos que a lei de desenvolvimento da entropia e a física do não-equilíbrio nos ensinam algo de fundamental acerca da estrutura do universo: a irreversibilidade torna-se um elemento essencial para a nossa descrição do universo, portanto devemos encontrar a sua expressão nas leis fundamentais da dinâmica [...] De qualquer forma [...] é do caos que surgem ao mesmo tempo ordem e desordem (Prigogine, 2002, pp. 79-80 – grifos nossos).

Marx conhecia e teria aliançado à dialética que transforma quantidade em qualidade. Entropia e luta de classes podem estar associadas em analogia, mas como metáforas do ciclo vicioso/virtuoso entre passado-presente e presente-futuro. Portanto, não se trata nem da teleologia, nem do fim da história; sequer de uma filosofia da história ou mesmo da modernidade, uma vez que, todo o século XX e o breve século XXI indicam e fazem sobressair o realismo cotidiano das variadas formas de luta e de conflituosidades que cercam o poder no âmbito do Estado Moderno (tanto lá, no pós-Renascimento, quanto cá, diante dos dilemas da Modernidade Tardia). Se observarmos através de um largo lapso histórico, podemos dizer que a Modernidade Tardia remonta à Rota da Seda, visto que sem esta não teríamos o Renascimento, o Iluminismo, o Estado-Nação e o Mercantilismo como forças do capitalismo e da sociedade moderna. Talvez, tendo-se algumas mudanças ou inversões mais bruscas na rota da luta pelo reconhecimento (agora perdendo terreno para a mera conservação do poder) — especialmente com a criação (legislação) de formas e meios de agir de exceção, no Iluminismo que já se via convertido em Jacobinismo — possamos dizer que lá onde havia um estado da Razão, veio a vigorar ainda mais fortemente uma Razão de Estado. Mais especificamente, datam 1793 as primeiras bases do Estado de Exceção, e que tanto nos assombra desde então (Agamben, 2004). Todavia, a chave teórica para o entendimento de seu alcance e dimensão iremos encontrar em meados do século XX, no esforço retórico-constitucional de Carl Schmitt (2006). Desse modo, ainda podemos analisar o trabalho em seu argumento central e, muito genericamente, quanto à metodologia empregada.


8. Outras Formas de Validação e de Reconhecimento

Inicialmente, em vias, em prol da luta pelo reconhecimento do Outro, é possível afirmar-se a necessidade de um “compromisso ético regulador da democracia, de um dever-ser, também re-configurado pela ação individual e social (mas, sempre política), vê-se modificado na plenitude da própria ação ética do agora-ser-sendo. Assim, da tensão entre autoridade e liberdade, pode surgir uma ética em si (mas, sobretudo, para verter-se na ética-para-si) como meio de condução democrática da ação educativa (do direito à educação como luta, se for o caso) e da vida social. A ética, enfim, seria o resultado da ação pedagógica democrática, a síntese da assunção da autoridade civil e não de sua imposição. O reconhecimento, a seguridade e a internalização da autoridade e da autonomia individual. Como exemplo concreto desta assertiva, vejamos uma ação trabalhista que conjuga da 1ª à 5ª gerações de direitos fundamentais. No caso, trata-se de Direito de Imagem de professor/pesquisador e da exploração do chamado trabalho imaterial (Negri, 2001) ou vivo, não-remunerado e que constitui estelionato intelectual (na alçada criminal). Vejamos em Marx:

Trabalho não-objetivado, um não-valor – se o considerarmos positivamente, ou negativamente em relação a si mesma, eis o que é a existência não-objetivada, isto é, não objetiva, - em outras palavras, subjetiva – do próprio trabalho. É o trabalho não como objeto, mas como atividade (Tätigkeit); não como auto-valor, mas como a fonte viva do valor (lenbendige Quelle dês Werts). (... O trabalho vivo é) a riqueza universal – comparada com o capital, dentro do qual existe objetividade, - como possibilidade universal, possibilidade que se realiza na atividade enquanto tal (Dussel, 1995, p. 39).

Juridicamente, ainda é chamado de teletrabalho ou de sobreaviso no teletrabalho, mas para uma interpretação sobre novos direitos autorais:

Una vez refinadas las licencias, Ito y Creative Commons proponen ahora convertirlas en parte de La infraestructura de la Red. De hecho, bajo la dirección de Ito, la idea es que Creative Commons se convierta en una especie de organización de estándares del copyright, creando los formatos tecnológicos por los que los creadores, el público, los buscadores, los gestores de derechos, los programadores de navegadores y todos los demás agentes de Internet se comuniquen entre sí qué derechos están disponibles sobre las obras, e incluso qué derechos están reservados.

Mensagem enviada por e-mail, de Erick Iriarte Ahron, mas também disponível em: https://www.consumer.es/web/es/tecnologia/internet/2008/10/02/180170.php.

Os meios de prova, neste exemplo, também se baseiam no mundo real/virtual (no passado, no presente e no futuro-presente: novos direitos). Há afirmativa de documento obtido em cartório atestando a veracidade das informações virtuais e quanto à exploração indevida da imagem do professor. O documento ratifica o compromisso do Estado, em determinados momentos e circunstâncias, na luta pelo reconhecimento e seguridade de direitos — como se fosse uma virtualização (Lévy, 1996) constante da Luta pelo Direito (Ihering, 2002). A Fé Pública pertence ao âmbito da 3ª geração de direitos (Wolkmer, 2003), à formação do Estado de Direito, no século XIX (Canotilho, 1999) e à célebre disposição política ou salvaguarda jurídica da intitulada regra da bilateralidade da norma jurídica, também vista pelo provérbio latino do “suportas a lei que criastes” (Malberg, 2001). O referido processo e seus meios de prova foram gestados por aproximadamente um ano, incluindo ainda e-mails, documentos oficiais da instituição reclamada, declarações de boa-fé de terceiros, testemunhas e outros.

A Fé Pública, no exemplo tomado, reflete-se no documento denominado de Ata Notarial (em anexo). Isto também se chama, doutrinariamente, sair da abstrata/ainda-que-legítima expectativa do direito (Dallari, 1999) e propugnar pela construção de outro saber jurídico. Outro recurso adotado foi elaborar um parecer técnico-jurídico, detalhando-se o alcance da referida imagem profissional ou pública do autor prejudicado, naquele momento. Então, na Modernidade Tardia temos a passagem/conversão da luta por conservação (a sobrevivência advinda do trabalho intelectual ou, genericamente, “o trabalho como o primeiro ato histórico” — Marx, 2002) à luta pelo reconhecimento de novos e outros direitos, sujeitos, demandas individuais e sociais, no aqui chamado mundo real/virtual. No próprio exemplo indicado, temos direitos de 1ª geração: a imagem associada à identidade, intimidade, integridade e (re) produção essencial da personalidade. O “trabalho real” e/ou imaterial (vivo), reclamado como hora-extra, refere-se à 2ª geração de direitos: à época áurea das lutas sociais e populares pelo reconhecimento de direitos: da Revolução Russa, de 1917, à Constituição de Weimar, de 1919, ou ainda a Revolução Mexicana, a partir de 1910. Nesta fase da luta pelo reconhecimento do direito a ter direitos (Bobbio, 1992), a 3ª geração deve ser atualizada, pois nem o Estado, nem o movimento sindical mostram-se preparados para os novos desafios: o Judiciário sofrerá variadas provocações. No caso, são espécies de direitos individuais e sociais que rebatem/repicam no Estado e provocam a insurgência de direitos políticos mais legítimos. São exemplos disso, desde as décadas de 1970-80, no movimento sindical e como fonte social e jurídica do pluralismo, a coletivização dos conflitos, a politização das lides (Faria, 1989), e, mais genérica e recentemente, a judicialização da política. Quanto à quarta geração, notabiliza-se, ainda pelo exemplo da RT, a luta pelo reconhecimento e seguridade dos direitos sociais (Verdú, 2007), mas, mais amplamente, os direitos coletivos, difusos e os interesses individuais homogêneos. Já a quinta geração, inerente ao cotidiano do mundo real/virtual, entrelaça as várias gerações quanto ao direito personalíssimo — na luta pelo direito do trabalho e no reconhecimento do ser, de sua imagem e persona. Os gregos antigos já sabiam disso, desde que utilizaram a famosa Persona: o nome da máscara usada pelos atores do teatro grego clássico. Sua função era dupla: aproximar o ator à aparência exigida pelo papel e amplificar sua voz, permitindo que fosse bem ouvida pelos espectadores. A palavra deriva do verbo personare, ou “soar através de”. Nesta época de crise e descobertas, a Modernidade Tardia e o mundo real/virtual também metamorfoseiam e mascaram formas simbólicas de obtenção e de exploração de direitos de outrem, sem a devida compensação. Empresas utilizam-se indevidamente do nome de muitos professores titulados — já demitidos, nunca contratados ou contratados só de fachada — para (a) trair alunos e obter grandes vantagens materiais. Portanto, neste curso do debate, o direito na Modernidade Tardia é tanto processo/produto ideológico (Filho, 2002) quanto é um medium propício à requisição de legitimação social (Schumacher, 2000). Por isso, contrariando a objetividade extremada, não há um método claro-escuro:

Eu sou um homem espanhol que ama as coisas em sua pureza natural, que gosta de recebê-las tal e como são, com claridade, recortadas pelo meio-dia, sem que se confundam umas com outras, sem que eu ponha nada sobre elas: sou um homem que quer, antes de tudo, ver e tocar as coisas e que não se contenta imaginando-as: sou um homem sem imaginação (Ortega y Gasset, 1991, p. 9. – grifos nossos).

É óbvio que sempre há objetividade, a partir de um projeto, mas isto não implica em total controle do objeto. É em relação a este controle que nos referimos, quando falamos em objetividade extremada. Não há um método do meio-dia, quando pensamos em tratar desta fase da Modernidade Tardia. Assim, a luta pelo reconhecimento acaba intrinsecamente vinculada à luta pelo conhecimento do Outro e de si. Portanto, trata-se de uma luta por (re) conhecimento, mas, infelizmente, talvez o exemplo que melhor caracterize esta Modernidade Tardia seja mesmo a reincidência do Estado de Exceção, pelo menos, nos últimos três séculos.

Direito à Educação e Esclarecimento

A principal referência é Kant e o melhor produto teórico é o seu texto O que é Esclarecimento. Em suma, o Aufklärung instiga a que se “ouse pensar” e assim “ouse fazer”: “Sapere aude!”. “Tenha coragem de fazer uso do teu próprio entendimento”. Desse modo, o esclarecimento instiga à saída do homem de sua menoridade. E o que é menoridade? “A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção (tutela) de outrem”. O homem da menoridade precisa de um condottiere, seja na vida privada, seja para assuntos de relevância pública. Depois de libertos do primitivo estado de natureza (naturaliter maiorennes), as causas internas à permanência do indivíduo na menoridade (intelectual, moral, política, cultural) são a preguiça ou comodidade e a covardia. É cômodo não ter de fazer por si mesmo – no senso comum, diz-se que “pensar dói”. Também não se tem necessidade de pensar ou fazer, se é possível apanhar tudo pronto[viii]. Alguns ainda consideram difícil esta passagem, mas o perigo não é grande, porque só se aprende a andar após algumas quedas (está aí o método da “tentativa e erro”). Então, a maioridade corresponde a abandonar primeiramente o embrutecido estado de gado doméstico. Para a menoridade ainda concorrem à adesão e a aceitação de verdades prontas, dogmas e preceitos inquestionáveis: preceitos e fórmulas, esses instrumentos mecânicos de uso “racional” ou dons naturais, são os grilhões da consciência à menoridade. Esta razão domesticada é, portanto, uma das causas centrais da menoridade. Também pode incorrer em grave erro quem considera ser viável saltar o fosso da liberdade sozinho, pois a liberdade é uma construção social.

Todavia, alguns podem iniciar essa cruzada, sozinhos e mesmo que seja longa e penosa. Alguns que tenham pensamento próprio, libertando-se do jugo de tutores e da comodidade, espalharão ao redor de si o espírito da avaliação racional do próprio valor e da vocação inata ao homem de pensar (e agir) por si mesmo. Instigada por um líder consciente, a massa oprimida e subjugada pode gritar e lutar por sua liberdade (mas, desde que seja um líder e não outro tutor). Por isso, o preconceito, a indiferença, o ranço da menoridade[ix] podem voltar-se contra seus agentes e ainda alimentar, em alguns sobreviventes, o direito de rebelião ou sedição. Neste movimento social e temporal, de que tratam os libertários, o povo seria levado a pensar — até porque é rara a germinação natural. Mas, a instigação a se rebelar contra o status quo viria de uma vanguarda, uma vez que, raramente, pensa-se em ser livre, sendo-se criado como escravo. Por esta dialética negativa, o próprio Senhor de Escravos não é um liberto, nem se encontra na maioridade, simplesmente porque necessita (para tudo) de seus escravos, ou seja, de alguém que faça por ele. Neste caso, ainda é interessante pensar a aliança que se pode tecer entre cultura e política: Uma revolução talvez realize a queda do despotismo pessoal, da opressão pelo lucro incessante ou da dominação descabida, porém nunca produzirá verdadeira reforma (libertária) no modo de pensar. Este seria o real limite da própria vanguarda que conduz à liberdade, uma vez que ninguém é conduzido à liberdade, como estado de ser, sem saber do que se trata, isto é, sem ter a consciência dessa mesma liberdade. Portanto, só a iniciativa leva à liberdade e esta conduz ao esclarecimento — sendo que a base da liberdade (para os antigos) estava na isegoria e na isonomia. Então, o que é liberdade? Simplesmente, fazer uso público de sua razão em todas as questões.

Por sua vez, o uso público da razão traz um interstício entre esclarecimento e conhecimento: quando o homem SÁBIO se expressa, livremente, diante do grande público do mundo letrado. Já o uso privado da razão é de pertencimento do SÁBIO que pode fazer uso de sua razão em função de certo cargo/função pública a ele atribuídas. Assim, para Kant, há certos casos inevitáveis ou necessários em que se constroem mecanismos de comportamento passivo ou de unanimidade artificial: em tais casos, não é permitido raciocinar, porque se espera a obediência. A educação dos antigos falava no temor reverencial. Pergunta-se: sob esta análise, o educador (professor) está mais para o SÁBIO (como especialista ou intelectual que faz um uso público da razão) ou se aparenta ao sacerdote (restrito ao uso privado da razão)?

Em todo caso, para ficarmos nos casos sugeridos por Kant, pensemos na democracia representativa e no princípio da legalidade. Para o administrador público, a liberdade de agir está cercada, cerceada pela legalidade, impondo-se a este uma condição de agente público da obediência. O administrador público só pode fazer (agir), estritamente, diante do que a lei (anterior a seus atos) assim prescrever e autorizar[x]. Outro caso considerado por Kant se refere à obrigatoriedade do pagamento de impostos que recai sobre todo cidadão. Obrigação da qual ninguém se desobriga, dado o caráter social da arrecadação dos impostos: originário e necessário à conservação do Contrato Social. A recusa ao pagamento de impostos pode gerar ou fortalecer o sentimento de descompromisso social ou de anomia (Durkheim, 1988) e daí derivar-se no movimento social da Desobediência Civil (Thoreau, 1966).

Do que não se depreende, obviamente, o imobilismo: Nada existe aqui que possa constituir um peso na consciência. Isto é, constitui-se em dever cívico (ou da consciência daquele que não é senhoreado) questionar e se impor contra a opressão e a injustiça: um “Ouse questionar!”. Mesmo o religioso tem o dever de se impor contra o erro, a exemplo das alegações da Reforma e de Lutero, insurgindo-se contra a venda de indulgências. Ao se deparar com tal nível de estranhamento ou de contradição, o indivíduo que ousa pensar (e agir) é compungido a renunciar à adesão ou promover uma ampla reforma dos pressupostos: Pois se acreditasse encontrar esta contradição, não poderia em sã consciência desempenhar sua função, teria de lha renunciar. A este tempo de Kant, um século antes, do liberalismo clássico de Locke (1632-1704) já havia anunciado a urgência da tolerância, principalmente religiosa. Portanto, nem sob o impacto do Contrato Social (ou da deliberação religiosa, invocando-se dogmas e preceitos sagrados), nem sob o codinome o livre-arbítrio, há legitimidade (para ser coerente com o uso pessoal da razão) para se abrir mão da liberdade ou, o que dá no mesmo, colocar-se livremente sob o jugo da escravidão (há contradição interna aos termos). Pela lógica (ou sob o império da lei) não são válidas ou legítimas tais cláusulas leoninas ou ainda as assim chamadas Leis de Plenos Poderes (porque se não se admite a divergência, não há liberdade e nem esclarecimento ou maioridade). De tal modo, condenar o povo à ignorância (negando-lhe o acesso à informação, a educação) é um crime de lesa pátria, pois o progresso é natural ao esclarecimento.

Mas o povo como coletivo, pode impor a si próprio leis de restrições, a começar da “liberdade de pensamento[xi]”? Pensemos no chamado Estado de Emergência[xii]: Seria certamente possível, como se esperasse por lei melhor, mas por determinado e curto prazo, e para (re) introduzir certa ordem. Ao que ainda se poderia acrescentar sob rígida vigilância e estrita ou crítica e urgente circunstância (ou em condições determinadas, espaço delimitado e um curto prazo pré-estabelecido). Historicamente, mesmo sob condições gravíssimas, seria difícil de se legitimar a opressão desmedida e sem fim. Este era o caso da nomeação de um Imperador[xiii] romano, a fim de se normalizar graves instabilidades institucionais, suspendo-se a vigência das garantias da República (mas não se subtraindo ao Senado, que continuava como seu juiz). Durante a República, o título de imperator sinaliza apenas um “comandante das forças militares” e não Imperador. É óbvio, mas Imperador não combina com a ideia de República. Já a figura do Cônsul implicava que este comandante teria o mais importante cargo executivo da República. Por outro lado, renunciar ao esclarecimento não seria um direito individual, sagrado e consagrado pelo liberalismo e pelo Iluminismo?

Um homem sem dúvida pode, individualmente, e mesmo assim por tempo limitado, no que lhe diz respeito, adiar o seu esclarecimento. Contudo, renunciar ao esclarecimento, para si ou para seus descendentes, é ferir os direitos mais sagrados da Humanidade. Portanto, se não é lícito ao povo tomar tal decisão, menos ainda será lícito a um governante decidir sobre esse fim. Renunciar ao esclarecimento é ir contra o “caminho normal, natural” da vida em sociedade, da Humanidade como um todo. É como se dissesse: a ninguém é dado o direito de se escusar da tarefa de ser humano. Seguindo Max Weber (1979), ainda se diria: “o desencantamento do mundo é inevitável, inexorável”.

O BOM governo, ao contrário, deve evitar que um súdito impeça a outros de trabalharem, de acordo com sua capacidade (e mais ainda se de forma violenta), para a determinação e a promoção de si mesmos. Também aquele se expõe à censura, sem reagir, ou o censurador padecem do mesmo mal: Ceaser non est supra grammaticos (“erra muito quem censura”). De tal modo, a obrigatoriedade do ensino — como parte do direito à educação — teria reflexos diretos na tarefa da construção social do conhecimento e da consciência e da responsabilidade social. Assim, se é verdade que “erra muito quem censura”, então, deve-se concluir pela afirmação tanto do “direito de livre pensamento” quanto pela “livre expressão”, e se esta última condição for tomada, igualmente, como parte do direito à educação, logo, concluiremos pela necessidade da constância da “liberdade de cátedra”. Neste contexto, o laicisismo (o Estado Laico como empuxo ao Estado Moderno) mostrou-se muito eficaz à luta pela liberdade e pelo reconhecimento de direitos, incluindo-se aí a educação. Isto se deu, em parte pela via armada da guerra civil, a exemplo da Inglaterra do século XVII, em parte como movimento social e cultural pela tolerância e pela liberdade. Serve de exemplo o fato de que num regime de liberdade, a tranqüilidade pública e a unidade social apaziguam fontes de inquietação.

Nesse estado de liberdade pública, os indivíduos se desprendem progressivamente do estado de selvageria inicial e, talvez, sobrevivente à vida social contingente. Portanto, se fizermos uso de um raciocínio equivalente, podemos concluir que a não-liberdade ou o autoritarismo não podem nos conduzir à liberdade: não há como forçar à liberdade. Há sedução pela liberdade (como ação política ou religiosa, no caso dos movimentos pela tolerância religiosa) ou por seu ideal e isto, por si, já esclarece e elimina o que não é liberdade. Esse estado de liberdade pública, entretanto, encontrará uma ressalva quanto ao alargamento da liberdade ou, em sentido inverso, quanto a suas restrições: a Razão de Estado. Somente aquele, embora sendo esclarecido[xiv], não tendo medo de sombras e com um exército numeroso à disposição, bem treinado, pode dizer aquilo que não é lícito[xv] a um Estado livre supor: raciocinais tanto quanto quiserdes e sobre qualquer coisa, contanto que obedecei! Parece clara a minuta da Razão de Estado que se constituiria sob o Estado Moderno.

Em síntese, para o Iluminismo, a dignidade está em pensar livremente, para que o indivíduo deixe de ser máquina, a fim de se ver livre do jugo da cangalha do tutor ou do moinho da fortuna — e que geralmente falha em termos políticos. Por fim, vale indagar, hoje, será que experimentamos um mundo em tempos de esclarecimento? Ousemos um pouco e logo saberemos — como queria aquele Kant de há muito tempo:

“Ouse saber!”

“Ouse querer!”

“Ouse questionar!”

“Ouse fazer!”

“Ouse lutar!” “Ouse vencer!”


9. Por que retornar aos clássicos?

Em primeiro lugar, retomamos os clássicos para escapar dos modismos. Em segundo lugar, porque podemos ver mais longe. Em terceiro lugar, porque, como diz Max Weber, podemos corrigir os erros. Além disso, em quarto lugar, seremos capazes de produzir leituras inovadoras e originais da realidade. Em quinto lugar, por definição, os clássicos são legitimamente virtuosos:

O virtuosismo legítimo que, entre os historiadores, Ramke possuía em tão elevado grau, costuma manifestar-se precisamente pelo poder de criar algo de novo através da referência de certos fatos conhecidos a determinados pontos de vista, igualmente conhecidos [...] A luz dos grandes problemas culturais deslocou-se para mais além. Então a Ciência prepara-se também para mudar o seu cenário e o seu aparelho conceitual, e fitar o fluxo do devir das alturas do pensamento. Ela segue a rota dos astros que inicialmente podem dar sentido e rumo ao seu trabalho {como o Fausto de Goethe}: “...desperta o novo impulso./ Lanço-me para sorver sua luz eterna./ Diante de mim o dia e atrás à noite./ Acima de mim o céu, abaixo as ondas” / (Weber, 1989, p. 127. – grifos nossos).

Por um lado, isso ocorre porque precisamos buscar dados que as páginas marcadas dos livros igualmente conhecidos já não nos satisfazem (com isto ainda escapamos dos manuais). Por outro lado, porque os clássicos podem abrir novas portas e janelas. No caso deste trabalho, essa nova onda da chamada ultramodernidade (Giddens) ou, como preferimos, modernidade tardia, exige este outro olhar, como sugerido por Newton e por Goethe. Por isso, sempre se deve retornar aos clássicos e neles buscar a eterna fonte de inspiração para reviver a fase atual. Clássicos são aqueles autores e suas obras que deixaram marcar definitivas na civilização – que moldaram/transformaram não só sua cultura como sempre serão parte do porvir/devir. Não são apenas as obras e/ou autores gregos e latinos, mas realmente as “obras fundamentais da cultura” – obras que por sua originalidade e pelos valores e práticas sociais que ajudaram a criar em seu curso, conservam extrema atualidade (daí seu traço de genialidade). Os clássicos guardam a legitimação de fundadores; têm uma dimensão política e de implementação política:

O ato de fundar é uma “teorização política” precisamente porque os princípios inferidos a partir do trabalho dos fundadores legitimam dimensões básicas da atividade intelectual. Nessa batalha retrospectiva, para que algumas ideias possam “vencer”, obviamente, outras precisam ser derrotadas. Nesse contexto, a ação política significa uma luta mais ou menos constante entre forças diferentes em relação à constituição legítima de uma arena intelectual. A “política” da herança intelectual se torna obscura no mesmo grau em que se registram, com sucesso, reivindicações monopolizadoras: as pressuposições dominantes avalizam, então, ideias e procedimentos (Giddens, 1998, pp. 14-15).

Porém, mais especificamente no que concerne às Ciências Sociais, mais do que autores ou fundadores, há uma tendência de se verem os seus mentores “tornados clássicos”:

Todas as disciplinas intelectuais têm fundadores, mas apenas as ciências sociais têm a tendência de reconhecer a existência declássicos66. Os clássicos, eu afirmaria, são fundadores que ainda falam para nós com uma voz que é considerada relevante. Eles não são apenas relíquias antiquadas, mas podem ser lidos e relidos com proveito, como fonte de reflexão sobre problemas e questões contemporâneas (Giddens, 1998, p. 15).

Sem dúvida nenhuma que os clássicos instituem “políticas de pensamento”, porém, além de sua genialidade e vigor científico e intelectual, há que se notar que as forças dominantes de certa época, impõem a referência a ser seguida pelos demais – esse é o monopólio da legitimação da política de pensamento67. O clássico, via de regra, também é um “guerrilheiro do pensamento” em sua época, porque luta contra o estabelecido, contra o pré-conceito e o conhecimento limitado do momento – o que certamente também nos atinge em nosso cotidiano. Este salto no conhecimento acumulado, muitas vezes, pode sinalizar mais claramente uma revolução do status quo do conhecimento. Como vemos no caso do marxismo:

Sem dúvida, estavam acumulados os elementos essenciais para um salto na história do conhecimento social. Contudo, como enfatiza justamente Joseph Fontana, o materialismo histórico de Marx e Engels não é soma ou síntese de elementos anteriores. Não surgiu, sem dúvida, no vazio cultural, porém trouxe uma visão profundamente nova do desenvolvimento da sociedade humana e um projeto de lutas sociais com vistas à transformação radical da sociedade existente. O que conta não é tão-somente identificar a procedência dos ladrilhos, mas ressaltar o autor do plano do edifício (Gorender, 1998, XVII-XVIII – grifos nossos).

Assim, ressaltar o autor do plano do edifício é procurar não só pela arquitetura e por sua estrutura, mas também pelo autor e por seu esforço de construção, por seu projeto (modificado ou não) e, enfim, pela teleologia que o cerca. Engels já chamara a atenção para as dificuldades que ele e Marx enfrentaram para definir o materialismo histórico e dialético, apontando para o único método viável: “Há, como Engels chamou a atenção de Bloch, um meio satisfatório de evitar tais dificuldades: “estudar profundamente à teoria em suas fontes originais e não em fontes de segunda-mão” (Hobsbawm, 1991, p. 21. – grifos nossos). Neste sentido, antes de conclamar aos princípios da previsibilidade, objetividade, neutralidade, é preciso inventariar o que podem dizer/desvelar ao mundo social, que se abre ou se acentua nos séculos XX e XXI. Em sentido complementar, já no curso do século XIX, a globalização acirrou conflitos, contradições e entropias que nos acompanham desde as origens da sociedade capitalista, mas que hoje se agravam e ameaçam conter até mesmo as forças expansivas do capital, como as forças democráticas que impuseram tanto a Revolução Americana (1776), quanto a Revolução Francesa (1789). Os clássicos são uma porta aberta para o futuro, pois sua visão profunda, radical, realista ou utópica, revela-se singular, angular na relação espaço-temporal, personalíssima dentro de seu contexto. Esta riqueza mostra-se transversal quanto às sociedades avaliadas, porque a posição clássica se torna uma obra especializada em determinada área do saber em que se propunham debater, mas amplamente refinadas na abrangência da cultura geral e na dedicação à intelectualidade: Marx e a economia política e a matemática; Freud, na filosofia, na mitologia e na psicologia; Einstein, na física, na cultura e na análise de conjuntura; Shakespeare, na literatura e nas humanidades ou “entendimento humano”; Rousseau e sua democracia radical e socialista; sem contar a genialidade dos gregos clássicos, da medicina à matemática, da filosofia à política. A visão clássica é projetiva porque nunca tergiversou com a realidade: seus prognósticos são longevos, contundentes, no melhor sentido da análise do “clínico geral”, isto é, como análise holística, de quem procura encontrar no mundo a sua própria casa. Todo clássico tem o holos como referência porque quer saber de tudo um pouco, sabendo muito de algo em especial e, por isso, o clássico tem os olhos abertos para o futuro. O clássico é altamente especializado, mas o que impede sua miopia é esta disposição para ver (sem medo) de uma posição privilegiada, mas não do alto em postura insípida, inodora arrogante, superior. O clássico ultrapassa seu tempo porque está aberto e sensível à visão longitudinal e latitudinal da realidade. O clássico reinventa os significados, os sentidos e as conclusões muito alusivas, lendárias ou até óbvias, em algo surpreendentemente inovador, transformador, quase fantástico.

Vejamos uma interpretação da obra criadora de Goethe, com o Fausto:Esta talvez seja uma das melhores definições de clássico: a capacidade de se apropriar de uma narrativa transmitida com sutis variações de geração em geração, dando-lhe nova fisionomia, pessoal e intensa a ponto de negar ou reescrever o enredo tradicional” (Pinto, 2006, 05 – grifos nossos). Por isso, é preciso pensar nos clássicos como um esforço conjunto, um trabalho de engenho social, e não apenas como reflexo das expressões ou dos fatos sociais evidentes (Durkheim), suscetíveis à dominação legítima (Weber) ou não, ou ao uso dócil, à manipulação do espaço público pelas forças econômicas (Marx, no Manifesto). Ou como disse de forma célebre e objetiva Isaac Newton: “Se vi mais longe, Foi porque estava sobre os ombros de gigantes”.


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Notas

1 Refere-se à derrota da Comuna de Paris: as grandes avenidas serviram ao propósito de facilitar o tráfego das forças militares e da repressão dos movimentos populares.

2 Alguns diriam Internet, mas aí é mais complicado, diante da característica da interatividade.

3 Uma série de movimentos sociais, estudantis e grevistas toma conta de Paris, depois, da França e se espraia pela Europa como hino à liberdade, na base do “é proibido, proibir”.

4 Os nós marcados pela cola do aço e do concreto.

5 Da alma ou do corpo.

6 Essa coisificação da política, nos moldes do Estado Capitalista Moderno, também pode ser entendido como processo ideológico, quando se crê que o Estado possa ser realmente coisa pública.

7 Basta lembrar que o Estado Moderno foi constituído à base da soberania, da laicização e do nacionalismo. No mínimo, hoje tudo é relativo e questionável.

8 Como se diz, basta olhar pela janela – para além do mundo Windows – para que se perceba isso. No Rio de Janeiro, aliás, muitas janelas são blindadas para fugir do fogo amigo e inimigo.

9 Retornaremos a essa questão na última parte do texto.

10 (1518-1520) — o quadro é baseado na transfiguração de Jesus Cristo, tal como descrita no Novo Testamento.

11 O que preferimos chamar de modernidade tardia.

12 Veja-se ainda em: https://jus.com.br/artigos/5123/as-primeiras-letras-do-biopoder.

13No Brasil, o jargão diz que: “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”.

14Diferente de escritura.

15 Tal qual no futuro remoto viria a ser a micro eletrônica (para a TV) e o silício (para o ciberespaço - o mundo virtual).

16 Veja-se Estado de Direito Republicano, publicado em 1º de janeiro de 2007, no site: https://jus.com.br/artigos/9308/estado-de-direito-republicano.

17 O Renascimento seria o verdadeiro Iluminismo porque teria realmente enfrentado o “obscurantismo”, ou seja, a Idade Média e a Inquisição.

18 O Liberalismo é uma filosofia política e econômica que prioriza o indivíduo, o trabalho e valores associados à livre-concorrência, competição, lucratividade, patrimônio e capital, exploração da força de trabalho; ao mesmo tempo em que se conjuga com voto livre, direto e universal (democracia liberal), direitos individuais (civis), profissionalização da produção e da burocracia do Estado.

19 Veja-se o famoso § 27 do Segundo Tratado sobre o Governo Civil: “Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade [...] Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens [...] Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade” (Locke, 1994, p. 98. – grifos nossos).

20 Na Grécia antiga, Demócrito é considerado o criador do Mecanismo (dinâmica e não estática) e com Platão, as formas tornam-se os verdadeiros objetos do conhecimento, como formas empíricas. No século XIX, o materialismo seria retomado por Karl Marx.

21 Realismo: a realidade, nua e crua, como conselheira. “A vida como ela é”, não como poderia ser.

22 Metafísica foi o nome dado, no século 1 a.C., “às coisas que estão atrás das coisas físicas”. Metafísica: do Grego meta = depois de/além de e physis = natureza ou físico.

23 A Sociologia é um ramo das Ciências Sociais que tem como objeto a interação social: um mínimo de convivialidade; ajuda mútua; sociabilidade e de regras sociais de cunho generalizante – e ainda que não se excluam áreas de oposição, conflito, contradição e até negação entre indivíduos, grupos e classes sociais.

24 Dedução é uma inferência (processo mental com o qual se chega a uma conclusão) que parte do universal para o particular. A dedução é um raciocínio que tem como referência todos os elementos de um conjunto, concluindo-se com uma proposição particular: uma parte dos elementos de um conjunto, que se apresenta como necessária, ou seja, que deriva logicamente das premissas. Exemplo: 1) Todo metal é dilatado pelo calor (Premissa maior); 2) A prata é um metal (Premissa menor); Logo, a prata é dilatada pelo calor (Conclusão). O raciocínio é o percurso mental que vai de uma premissa a uma conclusão, passando por outras premissas intermediárias: logo, o raciocínio é um processo de conhecimento mediato, pois tem fases intermediárias.

25 Na indução observamos casos particulares, isolados, procurando um padrão, uma lei geral que os explique ou que se aplique a todos os casos isolados, mas análogos aos casos observados.Vejamos um exemplo numérico: 1) Todo número que apresenta o algarismo das unidades igual a 4 é um número par; 2) Logo, 64 é um número par.

26 Tanto no que se refere à observação, descrição (metódica e neutra dos fatos e eventos selecionados), enumeração, catalogação quanto à matematização das mesmas experiências científicas. O que pode mover a pesquisa é apenas o progresso do saber, reformulando-se o conhecimento humano. Porém, para o Positivismo, a ciência deve servir à humanidade.

27 Retomemos uma descrição do próprio Bacon, para definir Empirismo e experiência: “Consiste no estabelecer os graus de certeza, determinar o alcance exato dos sentidos e rejeitar, na maior parte dos casos, o labor da mente, calcado muito de perto sobre aqueles, abrindo e promovendo, assim, a nova e certa via da mente, que, de resto, provém das próprias percepções sensíveis [...] Resta como uma única salvação reempreender-se a cura da mente. E, nessa via, não seja ela, desde o início, entregue a si mesma, mas permanentemente regulada, como que por mecanismos (Bacon, 2005, pp. 27-28 – grifos nossos).

28 O filósofo grego Plutarco (46-119) é considerado o inventor da biografia comparada.

29 A analogia é o raciocínio que se desenvolve a partir da semelhança (com um caso particular) como premissa, e se utiliza da comparação para chegar à outra proposição de caráter particular. Exemplo: se a minissaia fica bem numa atriz; logo, muitas espectadoras tendem a pensar que também ficaria bem nelas.

30 Para Max Weber, na Ciência como Vocação, a fé transmuta-se em vocação.

31 “O Despotismo da Liberdade”.

32 A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (a original) definia soberania de modo bastante distinto (artigo 3): “O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação. Nenhum corpo, nenhum indivíduo, pode exercer uma autoridade que não emane expressamente dela” (Brandão, 2001, p. 44). A diferença básica está em que o conceito de Nação corresponde a um todo orgânico, como se lhe faltassem irregularidades, oposições (direito de sedição), contradições. Já a ideia de povo pode (ou não) incluir (excluir) a realidade da luta de classes que, a seu tempo, Michelet bem visualizou.

33 NE: Louis Clouet (1751-1801) descobriu o princípio do aço fundido e impulsionou a fábrica de armas.

34 Trata-se da nota de pé de página, n. 01, à página 121, de O Povo, de Michelet, conforme citado.

35 O romance Ilusões perdidas revela os bastidores do jornalismo francês, que nascia àquela época.

36 Repare o leitor que, quando chega ao hotel, pensa em mil francos e no final da conversa está em quatrocentos.

37 David, o melhor amigo de infância de Lucien, era filho de gráfico e impressor. Lucien viria a trabalhar algum tempo nesta gráfica.

38 Cidade natal de Lucien e de David.

39 Em carta a Riemer disse que no inconsciente estão mergulhadas as raízes do homem (Holanda, 1997, p. 453).

40 Refere-se à segunda parte do livro.

41 Entende-se aqui um Estado de Direito que propugna pela Justiça e não se guia segamente pela formalidade.

42 Lembrando-se que o fato social é composto de quatro fenômenos intercambiantes: coercibilidade; externalidade; generalidade; universalidade.

43 No Estado Jurídico uma dessas duas pessoas é o próprio Estado — que se obriga pela auto-regulação — e, por isso, poderá ser tratada como pessoa política.

44 Entendido enquanto direito individual e que permite agir ou não-agir em razão do arbítrio que decorre desse mesmo direito.

45 Como indicava Durkheim: “a norma é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter”.

46 Aqui, a ideia da norma geral se apresenta como a bilateralidade em sentido social, como intersubjetividade.

47 O fato social não deixa de ser contratualista.

48 É de se lembrar que se trata, obviamente, dos estatutos próprios do funcionalismo público (a exemplo do Estatuto do Magistério) ou do Direito Administrativo em geral.

49 E aqui se encaixa a primeira parte da definição de Durkheim: É fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior. Direito = coerção.

50 Vendo-se o direito objetivo como conjunto global do direito positivo, positivado: o Direito Civil, o Direito Penal etc.

51 Pode-se lembrar aqui as chamadas gerações de direitos humanos.

52 Essa necessidade subordina igualmente a possível inteligência social.

53 Mas isso não impede que sejam analisadas a exemplo dos trabalhos do jovem Marx.

54 Pode-se denominar a isto de ontologia.

55 Assim, também não haveria uma condição humana que nos leva, conduz ou obriga a viver socialmente, pois o próprio modo de vivermos socialmente é amplamente diversificado – sendo contraditório na perspectiva histórica. A exclusão do trabalho, por exemplo, é a forma mais aguda dessa contradição, pois, com isso, está impedido o caminho para o ser social.

56 Trabalhar para produzir ao mundo e a si mesmo.

57 Talvez com um sentido próximo de civilidade.

58 Não é preciso lembrar, mas esta sociedade também passará por múltiplas formas de organização. Não há uma sociedade, portanto, mas sim formas de organização social que se alteram ao longo da história.

59 Perfeitamente distinguível no texto Ciência e Política: duas vocações.

60 Será somada à Constituição Mexicana, de 1917, e à Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado (Constituição Russa, de 1917-18).

61 Beagle foi o navio em que viajou por quase uma vida toda, escrevendo sobre geologia e história natural, também rumo à América do Sul.

62Leia-se mais, em: https://www.ricardocosta.com/pub/advogados.htm.

63 Aqui o cuidado exigido seria o de não confundir “persuasão” com massificação e é isto o que Honneth (2003) chama claramente de “reconhecimento intersubjetivo”, sem imposição heterônoma e sem manipulação coletiva das vontades individuais. Persuasão como “validação legítima”.

64 O reconhecimento da igualdade formal é essencial ao “reconhecimento do discrímen”.

65 Como consenso obtido pelo reconhecimento e validado pela livre comunicação dos sujeitos envolvidos e requerentes, e não como heteronomia política, jurídica ou moral. Mas aí o problema seria quanto aos costumes, tanto comus quanto ethos, porque são entes culturais relativamente fechados em torno de regras sociais anteriormente definidas e não predispostas a modificações substanciais subrepticiamente.

66 Se bem que, é indiscutível o papel e o status desempenhados por pensadores como Galileu, Newton, Einstein e tantos outros.

67 “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina sua consciência” (Marx, 2003, p. 05). Marx ainda asseguraria que as ideias dominantes em uma época, são as ideias da classe dominante.


Comentários

[i] Marx também fez sua tese de doutorado com base em Epicuro.

[ii] Durante muito tempo, as Ciências Cognitivas também debateram a “dicotomia mente-cérebro”.

[iii] Talvez o que tenha faltado a alguns aborígenes na sua jornada civilizatória tenha sido a descoberta ou o uso mais sistemático do “movimento”.

[iv] O mesmo tipo de pensamento que havia levado os navegadores a questionarem a veracidade de a Terra ser chata e dessa “dúvida” terem tirado a certeza da navegação ultramarina, após a centralização de Portugal.

[v] Hoje, esse “agir racional” seria oposto a todo pensamento dogmático , refratário às críticas, e diga-se ele de si mesmo ser consciente ou não, como ocorre quase sempre com a ideologia.

[vi] Foi este o sentido mais forte do “penso, logo existo”, resgatado por Kant e depois por Rousseau: a potência racional (Canivez, 1991).

[vii] A ideia de virtù como ato de um arqueiro que busca seu alvo, não é diferente disto.

[viii] No sentido moderno, corresponde a “copiar, colar”.

[ix] O ditado popular também diz: “Vamos deixar como está, para ver como fica”.

[x] Poderíamos relembrar dos militares que, em certas situações, o questionamento ou não-cumprimento de determinadas ordens (justas ou, pelo contrário, ilegais) pode ser (quase sempre é) considerado motim, e isto leva os leva à Corte Marcial.

[xi] Veja-se, do ponto de vista constitucional o art. 5º, inciso IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. É vedado o anonimato para coibir os crimes contra a honra.

[xii] O art. 136. da Constituição Federal de 1988 trata das medidas de exceção, mas, ao invés de falar em Estado de Emergência, designa como estado de defesa. No § 1º expressa às limitações ou restrições que lhe são próprias: “O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem...”. Ver a íntegra das restrições à liberdade (inclusive de “esclarecimento”) no Anexo I.

[xiii] Imperador: poder total (título de Augusto = “Preferido dos deuses”).

[xiv] Kant poderia estar se referindo aos “déspotas esclarecidos” ou antecipando-se ao próprio jacobinismo que se seguiria à Revolução Francesa.

[xv] É exatamente este o argumento dos que defendem o Estado de Exceção – como um Estado legalizado, não age fora dos limites da lei ou do “controle social” da própria liberdade. Para que se tenha melhor compreensão do alcance dos meios de exceção mais severos, veja-se art. 137. e ss. da CF/88 – Anexo II.


Autor

  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Para uma teoria do Estado pós-moderno: a razão política no entendimento do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3524, 23 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23782. Acesso em: 24 abr. 2024.