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Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no âmbito do direito sucessório

Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no âmbito do direito sucessório

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O Código Civil reconhece a condição de filho à pessoa gerada por meio de inseminação artificial homóloga post mortem, todavia, nada dispõe acerca da existência de direitos sucessórios.

Resumo: A presente pesquisa analisa a possibilidade de atribuição de capacidade sucessória ao indivíduo concebido por meio de inseminação artificial homóloga, ocorrida após a morte de seu pai, autor da herança. É notável a desproporcionalidade entre a evolução científica no campo da biotecnologia e a elaboração de leis capazes de disciplinar a utilização das técnicas de reprodução humana assistida e suas consequências. O Código Civil reconhece a condição de filho à pessoa gerada por meio de inseminação artificial homóloga post mortem, todavia, nada dispõe acerca da existência de direitos sucessórios. Este cenário vem fomentando grandes discussões quando do exame em conjunto, dos dispositivos legais atinentes à capacidade sucessória e os princípios constitucionais vigentes. O problema que norteia esta pesquisa, em razão da mencionada lacuna legislativa, até o momento não encontrou resposta pacífica na doutrina.

Palavras-chave: Inseminação artificial, Sucessão, Post mortem.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1 A REPERCUSSÃO JURÍDICA DA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL EM FACE DOS INSIGNES AVANÇOS CIENTÍFICOS. 1.1 Definição de Inseminação Artificial. 1.2 Evolução histórica. 1.3  Das espécies de inseminação artificial. 1.4 Relato do Caso “Affair Parpalaix”: limiar das discussões sobre a Inseminação Artificial Homóloga post mortem. Infertilidade e Esterilidade: causas e consequências. 1.6 A Problemática da Carência Legislativa frente aos Avanços Científicos: A Bioética e o Biodireito como respostas. 2 ASPECTOS RELACIONADOS À CONCEPÇÃO POST MORTEM NA PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL. 2.1 Princípio da dignidade da pessoa humana. 2.2 O Direito à procriação e a Paternidade Responsável. 2.3 Princípio da Igualdade de Direitos e o Princípio da Igualdade entre os filhos. 3 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: PRINCÍPIOS APLICÁVEIS. 3.1 A Doutrina da Proteção Integral. 3.2 Princípio do melhor interesse da criança. 4 PATERNIDADE, FILIAÇÃO E DIREITOS SUCESSÓRIOS DO CONCEBIDO POST MORTEM. 4.1 A paternidade presumida em caso de Inseminação Artificial Homóloga post mortem. 4.2 Direito à filiação. 4.3 O Direito das Sucessões. 4.3.1 Momento da abertura da sucessão. 4.3.2 Espécies de sucessão. 4.3.3 Tipos de sucessores. 4.3.4  O Instituto da Prole eventual. 4.3.5 Capacidade sucessória: considerações doutrinárias. 4.3.6 Ação de Petição de herança. 5. FERTILIZAÇÃO ARTIFICIAL PÓSTUMA: PANORAMA JURÍDICO INTERNACIONAL E SITUAÇÃO BRASILEIRA. 5.1 Principais aspectos em legislações estrangeiras. 5.2 A necessidade brasileira de regulamentação jurídica no que tange às técnicas de reprodução humana assistida. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

O presente estudo volta-se à análise de questão coetânea e polêmica que tem enfrentado omissões no ordenamento jurídico pátrio: a inseminação artificial homóloga post mortem. Este procedimento representa técnica de reprodução humana medicamente assistida, em que a criança será concebida após o falecimento do seu genitor, cujo material fecundante se encontrava criopreservado e foi posteriormente introduzido no útero da receptora.  O aspecto mais controverso no que tange à temática reside na seara do direito sucessório, alimentando várias discussões com o propósito de confirmar ou negar por completo capacidade sucessória à pessoa concebida após o a morte do autor da herança, uma vez que, não há em nosso país legislação que regulamente de maneira específica as técnicas de reprodução humana assistida e seus desdobramentos.  Isso nos conduz ao seguinte questionamento: considerando que para efeitos sucessórios a inseminação póstuma não está prevista no Código Civil (art. 1798), o filho gerado após a morte do autor da herança será considerado legitimado para sucedê-lo?O objetivo central de nossa pesquisa consiste em verificar de qual condição gozará o indivíduo gerado por meio de concepção post mortem: filho dos dois, mas, herdeiro apenas de sua mãe ou filho e herdeiro de ambos, como qualquer indivíduo concebido naturalmente. A análise da questão proposta neste trabalho se justifica pela rápida evolução científica na esfera da reprodução humana, principalmente após a segunda metade do século XX, em contraponto com a ausência de mecanismos legais capazes de ordenar suas práticas. Essa omissão legislativa tem fomentado grandes discussões na esfera jurídica. O Direito, enquanto fenômeno histórico, social e cultural não pode se colocar à margem dos problemas que atingem a sociedade. Pelo contrário, deve acompanhar as mudanças, amparado por seus princípios norteadores e sempre primando pelo bom senso. À medida que tratar de modo específico sobre a matéria em tela, o legislador estará evitando a tomada de decisões equivocadas que acarretariam danos irreparáveis aos envolvidos.Por essas razões, expostas preliminarmente, no primeiro capítulo, procuraremos situar a inseminação artificial no campo da reprodução humana assistida, abordando ainda a repercussão dos avanços científicos na seara jurídica. O segundo e terceiro capítulos se destinam, respectivamente, à verificação das repercussões no âmbito constitucional e no Estatuto da Criança e do Adolescente, em face do concebido post mortem. No penúltimo capítulo, trataremos da paternidade e Direito à filiação, após a análise das matérias pertinentes ao tema, exploraremos a questão da inseminação artificial homóloga post mortem no contexto do direito sucessório, enfocando, especificamente, a capacidade sucessória da criança advinda por meio desta técnica. Por fim, no quinto capítulo, abordaremos aspectos contidos em algumas legislações estrangeiras, enfatizando a situação brasileira. Em função do vácuo legislativo relacionado ao tema sob estudo, emana a necessidade da promoção de debates e reflexões, com o objetivo de formular solução para as questões sucessórias que envolvam concebidos artificialmente post mortem, uma vez que seus direitos estão sujeitos à tutela jurisdicional.


1 A REPERCUSSÃO JURÍDICA DA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL EM FACE DOS INSIGNES AVANÇOS CIENTÍFICOS

1.1 Definição de Inseminação Artificial

Os estudos empreendidos por Fernandes (2005) asseveram que das diversas técnicas de reprodução assistida, a inseminação artificial ocupa posição de vanguarda. Através dela, sem que tenha ocorrido o ato sexual e mediante manipulação, promove-se a união de materiais fecundantes (sêmen e óvulo), com o objetivo de obter a gestação. Torna-se possível, desta feita, a facilitação de algum procedimento que constitua obstáculo para a reprodução natural. Todavia, seu sucesso depende essencialmente do cálculo exato da ovulação, uma vez que o material germinativo masculino é introduzido no útero (inseminação homóloga), devendo se desenvolver naturalmente a gestação. Logo, a fecundação se dá no corpo da receptora. Para Machado (2008, p. 32), inseminação artificial: “Constitui-se, portanto, na prática, do conjunto de técnicas que objetivam provocar a geração de um ser humano, através de outros meios que não o do relacionamento sexual”.

Nesse sentido, a inseminação artificial possibilita a ocorrência da geração de um indivíduo por meios não vinculados à relação sexual. Esta técnica constitui solução para os problemas relacionados às dificuldades de reprodução normal e tem recebido diversas denominações: concepção artificial, fertilização artificial e fecundação ou fertilização assistida. Leite (1995) citado por Ferraz (2009, p. 44) ocupou-se em descrever o procedimento de forma bastante pormenorizada:

Na realização da inseminação artificial, primeiramente recolhem-se os espermatozóides do marido ou do companheiro ou de um doador, através da masturbação. Os espermatozóides, então, são analisados quanto à quantidade e mobilidade, separando-se os normais dos anormais. O esperma, então, é diluído em uma solução crioprotetora composta por um glicerol misturado a frutose, antibióticos e gema de ovo, a qual é distribuída automaticamente em tubos de plástico numerados, os quais estão prontos para serem conversados em azoto líquido a uma temperatura de 196 graus abaixo de zero; os capilares são colocados em botijões de estocagem cheios de azoto líquido, podendo ser conservados pelo prazo atualmente de 20 anos.

Como percebemos, a criopreservação conserva com qualidade o material fecundante masculino, fazendo com que a concepção post mortem seja uma possibilidade completamente factível e em razão dos avanços científicos, cada vez mais próxima do cidadão comum. No que tange à origem do termo, Machado (2008) nos ensina que, etimologicamente o vocábulo inseminação deriva do latim inseminare, constituído pela preposição in (em) acrescida de seminare (semente, grão, princípio, origem), já o adjetivo artificial, também deriva do latim artificialis, significa “feito com arte”, ou seja, concepção feita com arte.

1.2 Evolução histórica

A fertilidade sempre foi uma preocupação dos homens, que predominantemente enxergavam nos filhos a maneira de alcançar a imortalidade, pela simples representação de sua descendência. Por outro lado, Fernandes (2005) enfatiza que a esterilidade era encarada pelas sociedades antigas como uma mácula, falha humana, sendo natural a busca por cura.  

Para Ferraz (2009, p. 39): “O desejo de procriar é antigo. Na Grécia e em Roma a procriação tinha como principal objetivo perpetuar o culto aos mortos”. Bem próximo a nós, na América pré-colombiana, não raro nos deparamos com rituais e deuses da fertilidade.

Nesse sentido, segundo Leite (1995, p. 22): “As primeiras manifestações de arte, que remontam à época primitiva, representavam a mulher fecunda, grávida, capaz de gerar novos seres a exemplo da mãe natureza”.

Machado (2008) menciona que desde o século V a.C. os gregos já haviam iniciado pesquisas embriológicas e que no século IV a.C., Aristóteles foi o responsável pela elaboração de um tratado sobre embriologia. Contudo, apenas com Galeno no século II d.C., encontramos obra que versasse sobre a formação do feto, inclusive contemplando o aspecto do desenvolvimento embrionário.Já nos primeiros relatos bíblicos, no livro de Gênesis temos a clássica história de Abrão e sua mulher Sarai, que sendo incapaz de conceber um filho, vivia em profundo desespero.Sob esse aspecto, até o século XV, somente a mulher era considerada estéril. A impossibilidade de gerar filhos representava motivo de degradação familiar, podendo inclusive, dar causa à anulação do casamento. A mulher estéril era vista como amaldiçoada e merecia o banimento do convívio social (COULANGES, 1993).Ao findar do século XVI, os avanços científicos foram mais expressivos em razão do surgimento do primeiro microscópio e felizmente, segundo Fernandes (2005), em meados do século XVII, passou-se a admitir a esterilidade para ambos os sexos, fazendo com que a ciência começasse a pensar diversos métodos e técnicas, tendentes a solucionar o problema da infecundidade. Todavia, somente em 1777, o monge italiano Lazzaro Spallanzani, pretendendo demonstrar a possibilidade de fecundação sem a ocorrência do ato sexual, realizou a primeira experiência científica e comprovada, envolvendo mamíferos. O religioso fez uso do sêmen de um cachorro e o implantou em uma cadela no cio, que pariu três filhotes sessenta e dois dias depois. No entanto, as investigações na esfera da inseminação artificial humana somente ocorreram em 1790, por meio de Cary (MACHADO, 2008).Somente no final do século XIX os pesquisadores concluíram que o surgimento de um novo ser humano ocorria através da união do espermatozóide ao óvulo.  Oliveira (2002) destaca que em 1884, na Filadélfia, William Pancoast obteve sucesso ao inseminar uma mulher com sêmen doado por terceiro. O procedimento  a princípio era realizado de forma empírica, porém, com o desenvolvimento das técnicas de manipulação e criopreservação do sêmen, ganharam cientificidade e tornaram-se mais frequentes.  Para Ferraz (2009), na primeira metade no século XX, várias descobertas ocorreram na área da genética, tais como a possibilidade de determinar com exatidão o período fértil da mulher (1932) e a criopreservação de espermatozóides (1945). A partir dos anos 50, as técnicas de inseminação artificial se propagaram rapidamente. Nos Estados Unidos da América, mais de vinte mil crianças nasceram em um ano pelo emprego dessa técnica. Diante do aprimoramento da ciência no que toca à geração de um novo ser humano, a reprodução assistida passa a ser significativamente utilizada, permitindo meios eficazes para a procriação (FERNANDES, 2005).Após vinte anos, na década de 70, ocorreu o nascimento do primeiro bebê concebido pela fecundação in vitro, através da utilização do material fecundante dos seus pais, na Inglaterra (MACHADO, 2008). Desde então, com os grandes avanços da ciência, a inseminação artificial é cada vez mais empregada pelas pessoas, o que demonstra o alcance dos efeitos desejados, destacando sua importância.  

1.3  Das espécies de inseminação artificial

Conforme o Enunciado número 105 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil, a concepção artificial pode ser classificada em quatro modalidades, quais sejam: Homóloga, Homóloga post mortem, Heteróloga e Bisseminal.  A inseminação artificial homóloga está prevista no inciso III do art. 1597 do Código Civil Brasileiro de 2002, que dispõe acerca do reconhecimento da filiação. Consiste na implantação do material fecundante, ou seja, do espermatozóide, do marido ou companheiro no útero da mulher. Para Ferraz (2009, p. 44) a inseminação artificial homóloga: “Foi a primeira técnica de reprodução humana praticada pelos médicos [...]”.

Já a fertilização artificial na modalidade homóloga post mortem, de acordo com as pesquisas realizadas por Machado (2008), baseia-se na implantação do material fecundante (sêmen criopreservado) do marido ou companheiro, no útero da mulher, sendo que, à época da fecundação, o marido ou companheiro já se encontrava falecido. Esse procedimento tem suscitado grandes discussões no âmbito dos direitos sucessórios, cerne deste trabalho, e que serão oportunamente tratadas nos capítulos subsequentes.    

A concepção artificial heteróloga corresponde à utilização de material fecundante de um doador fértil, que não seja do marido ou do companheiro (doador que, em regra, tem sua identidade preservada), a ser implantado no útero da mulher, com o consentimento do casal. Este procedimento é utilizado nos casos de insuficiência ou ausência de espermatozoides, bem como doenças hereditárias.

Por fim, a técnica da procriação artificial bisseminal é empregada nos casos de insuficiência de espermatozoides do marido ou companheiro. Procede-se à implantação no útero da mulher de uma mistura de materiais fecundantes de duas pessoas distintas (marido e doador fértil cuja identidade fica preservada), porém com características físicas similares (FERNANDES, 2005).

Em razão do exposto, a reprodução humana medicamente assistida, especialmente a inseminação artificial, possibilita a satisfação do casal estéril que poderá gerar seus próprios filhos.

1.4 Relato do Caso “Affair Parpalaix”: limiar das discussões sobre a Inseminação Artificial Homóloga post mortem.

Segundo Pinto (2008), o marco inicial das discussões sobre a Inseminação Artificial Homóloga post mortem, originou-se do romance protagonizado por um casal francês que enxergava na utilização desta técnica a única chance de realizar o sonho de gerar filhos.  O caso ficou conhecido pela denominação de “Affair Parpalaix”. No ano de 1984, Corine Richard e Alain Parpalaix se apaixonaram e semanas após o início do namoro, Alain tomou conhecimento que era portador de câncer nos testículos. Desejando deixar herdeiros e diante da impossibilidade de ter filhos após o tratamento quimioterápico que lhe causaria esterilidade, resolveu previamente procurar um banco de sêmen, onde depositou seu material fecundante, para que  fosse criopreservado e em seguida implantado no útero de Corine Richard. Com o passar do tempo, a doença de Alain Parpalaix se desenvolveu aceleradamente, situação que levou o casal a contrair núpcias. Dois dias após a cerimônia de casamento Alain veio a falecer. Em decorrência da morte dele e diante do desejo de ter um filho como resultado do amor vivenciado, Corine alguns meses após o falecimento de seu marido, procurou o banco de sêmen, onde se encontrava depositado o material fecundante do de cujus, para se submeter à inseminação artificial na modalidade homóloga post mortem. Neste momento ela iniciou uma árdua jornada rumo à concretização do seu intento, uma vez que o banco de sêmen se recusou a lhe disponibilizar o material criopreservado de Alain, sob a alegação de que a prática desta inseminação não comportava previsão legal. Inconformada com a postura do banco de sêmen, Corine resolveu promover ação judicial.  Em face de contrato de depósito, reconhecido pelo judiciário, o banco de sêmen tinha o dever de devolver o esperma de Alain. Todavia, a instituição em sua defesa fundamentou-se na legislação francesa e alegou que não era permitida a prática de inseminação post mortem, bem como, não existia pacto de entrega, visto que o material fecundante de pessoa já falecida não é passível de comercialização, não estando, portanto, obrigados a fazer qualquer restituição. Após um longo período de debates, o tribunal francês de Créteil se pronunciou no sentido de condenar o banco de sêmen a enviar o esperma do de cujus, ao médico indicado por Corine, para que ele realizasse a inseminação, e em caso de recusa, o banco de sêmen sofreria sanção pecuniária.No entanto, em razão do longo período decorrido para solucionar o caso, a inseminação artificial não logrou êxito, uma vez que os espermatozóides não estavam mais potencializados para a finalização da fecundação, causando em Corine uma grande decepção. Foi a partir do advento deste caso que se iniciaram as discussões acerca do que deveria ser feito com o material criopreservado destinado a inseminação, inclusive post mortem. Se na época em que se deram estes acontecimentos já houvesse regulamentação jurídica, muito sofrimento teria sido evitado.

1.5 Infertilidade e Esterilidade: causas e consequências

Em seus estudos, Machado (2008) esclarece que “infertilidade” e “esterilidade” são conceitos distintos por essência. No primeiro caso, a fecundação é obtida pelo casal, mesmo com certa dificuldade, através de relações sexuais. No entanto, a gravidez não irá prosperar, ocorrendo o aborto espontâneo. Na esterilidade, a fecundação não é alcançada, visto que o casal mesmo depois de um longo período de vida sexual ativa, contínua e sem o emprego de métodos contraceptivos, não obtém a gestação.Leite (1995, p. 17) aborda a questão dos problemas psicológicos decorrentes da esterilidade, pela ótica do homem estéril, enfatizando que:

[...] a esterilidade não coloca em xeque só a organização psíquica do indivíduo, mas atinge também o casal. Se a esterilidade é difícil de viver individualmente para o homem solteiro, ela é mais ofensiva para o homem casado que sofre em não conseguir proporcionar à sua mulher o sonho da gravidez e a alegria de ter um filho.

Didier (1984) citado por Ferraz (2009, p. 40) esclarece de forma sensível e até poética que:

[...] a esterilidade fere como a morte, esta atinge à vida do corpo, aquela à vida através da descendência. Ela rompe a cadeia do tempo que nos vincula àqueles que nos precederam e àqueles que nos sucederão; é a ruptura da cadeia que nos transcende e nos liga à imortalidade. O homem estéril é um excluído, o tempo lhe está contado, a morte que o espera está sempre presente, a vida se abre sobre o nada. Sua rapidez, sua brutalidade, sua enormidade levam o homem, quase sempre, a negá-la, num primeiro momento.  

A exclusão tratada no texto normalmente vem acompanhada de forte sensação de incapacidade, fazendo com que o fardo psicológico da pessoa impossibilitada de gerar seja insuportável.

Aspecto importante, trazido à baila por Machado (2008), são as causas da infertilidade e da esterilidade, que podem ter origens psicológicas ou físicas. No homem, são mais frequentes: a ocorrência da varicocele (inversão na direção do fluxo sanguineo), infecções do trato genital, causas congênitas, causas genéticas, tais como a azzospermida e a oligozoospermia severa; causas hormonais e causas idiopáticas, que são todas aquelas desconhecidas. No indivíduo do sexo feminino, podem ser apontadas como causas da esterilidade: disfunções de ovulação, doenças das tubas de Falópio, endometriose pélvica, doenças congênitas e genéticas.   

Diante destas variantes, os futuros pais iniciam o tratamento realizando exames capazes de detectar o fator responsável pela impossibilidade de procriação e só então se dará a escolha da técnica mais adequada para o caso.

1.6 A Problemática da Carência Legislativa frente aos Avanços Científicos: A Bioética e o Biodireito como respostas

Em razão do expressivo desenvolvimento científico na esfera das ciências biomédicas, da engenharia genética, da embriologia e das altas tecnologias aplicadas à saúde, cuja contribuição tem trazido inúmeros benefícios para a humanidade, a sociedade necessita de medidas coativas capazes de regular adequadamente este progresso. Nessa perspectiva, surge a bioética e biodireito como reações emblemáticas à possível manipulação indigna da vida promovida pela biotecnociência. Para Diniz (2009, p. 10): “A bioética seria, em sentido amplo, uma resposta da ética às novas situações oriundas da ciência no âmbito da saúde”. Assim sendo, englobaria um conjunto de reflexões de teor filosófico sobre a vida e em particular acerca das práticas médicas.  Convêm ainda à bioética averiguar os acontecimentos biotecnológicos de modo geral, inclusive aqueles tendentes a exercer influência nos Direitos Constitucional, Civil e Penal (FERNANDES, 2005).Em virtude da necessidade de uma legislação competente para regular situações relevantes no campo da genética, que carecem de previsão legal como forma de garantir o respeito à dignidade da pessoa humana, eis que surge o biodireito, que segundo Pelegrini (2008), consiste em ramo do Direito Público  que tendo por fundamento os princípios da boa-fé e da prudência, estuda as relações jurídicas entre o direito e os avanços tecnológicos conexos à medicina e à biotecnologia, sendo-lhe atribuído o encargo de jurisdicionar as medidas aplicáveis, procurando equilibrar o avanço biotecnológico e a realidade. A este ramo do direito é permitida a positivação das normas que versem sobre biotecnologia, estabelecendo permissões, proibições e até mesmo sanções (SILVA, 2006).É possível vislumbrar atualmente uma grande carência na legislação brasileira, que não vem acompanhando a contento, sob o aspecto da criação de normas, os avanços obtidos na área da engenharia genética. Dentre esses progressos, estão àqueles ligados à inseminação artificial, mormente na modalidade homóloga post mortem. Por óbvio, devem ser impostos limites às pesquisas científicas, como forma de preservar os direitos fundamentais do homem, em respeito também ao princípio da dignidade da pessoa humana. Segundo Fernandes (2005), inexiste na legislação brasileira dispositivo que  discipline a reprodução humana assistida, questão que tanto tende a repercutir na família em várias perspectivas: na paternidade, na filiação e na sucessão.  O diploma que mais se aproxima da ideia de um dispositivo de lei destinado a regulação do uso destas técnicas, é a Resolução do Conselho Federal de Medicina n.º 1358, de cunho deontológico, que comporta um conjunto de normas éticas e traz princípios gerais que deverão ser observados na realização de procedimentos de procriação artificial. Contudo, a referida resolução não é adequadamente aplicável aos casos de inseminação post mortem, lacuna cujo preenchimento compete ao Direito, que o fará mediante construção de regras específicas. Torna-se cada vez mais inconcebível que atualmente o Direito não forneça soluções para os conflitos surgidos em decorrência dos avanços científicos na área da reprodução humana, sendo submetidos à apreciação do judiciário, casos sem previsão legal, que expõe as pessoas a decisões eivadas de erro pelo próprio desconhecimento técnico-científico ligado à matéria. Esses equívocos a que estão sujeitos os envolvidos são capazes de acarretar danos irreparáveis.Ao estudar a necessidade de elaboração de normas que regulamentem as técnicas de procriação, Diniz (2009, p. 546), conclui que: “Essa conquista científica não poderá ficar sem limites jurídicos, que dependerão das convicções do legislador, de sua consciência e de seu sentimento sobre o que é justo”. Dessa maneira, a professora Maria Helena Diniz clama por uma manifestação significativa do poder legislativo no sentido de regulamentar as técnicas de procriação, que tanto reverbera na sociedade. Salienta ainda que essa produção  normativa deve obedecer necessariamente ao bom senso, aos valores morais, sociais e acima de tudo, aos princípios constitucionais.  

No que toca à Lei de Biossegurança Nacional que versa acerca da produção e comercialização de organismos geneticamente modificados, vale destacar que é omissa no que diz respeito às técnicas de reprodução assistida.

 Em pesquisa realizada por Fernandes (2005) e também por Ferraz (2009), no Congresso Nacional tramitaram em 2002 três projetos de lei destinados a regular a reprodução assistida. O primeiro, de iniciativa do Deputado Luiz Moreira registrado sob nº 3.638/93, encontra-se arquivado na mesa diretora da Câmara dos Deputados. O segundo, de autoria do Deputado Confúcio Moura de nº 2.855/97, foi apensado ao Projeto de Lei de autoria do Senado Federal número 1184/2003. Ambos na realidade apenas transcrevem as disposições constantes da Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina. Por fim, o terceiro projeto, de autoria do Senado Federal nº 1184/2003, apensou 12 projetos que tratavam do assunto e atualmente aguarda parecer na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC), tendo sido designado em maio / 2011 como relator o Dep. João Campos (PSDB-GO). Trata da matéria de forma mais ampla, proibindo a gestação por substituição, conhecida por “barriga de aluguel”, bem como os experimentos de clonagem. De acordo com o art. 14, III do referido projeto, em caso de falecimento do depositante, o material fecundante deve ser destruído, salvo se houver manifestação de sua vontade (expressa em documento de consentimento livre e esclarecido ou em testamento), permitindo a utilização póstuma dos gametas. Já no capítulo VI discorre sobre a filiação, mas, nada dispõe acerca de direitos sucessórios.   

Segundo Ferraz (2009, p.58):

Tais projetos de lei foram finalmente apensados e seguem tramitação, sendo objeto de revisões e alterações, sem que o debate envolva as diversas camadas da sociedade, em especial, os profissionais da área de saúde e pessoas que se encontram na situação vulnerável de esterilidade ou infertilidade diagnosticada. Desta feita, o vazio legislativo permanece.

Não obstante a existência dos mencionados projetos de lei, seu teor em nada contribuiu para solucionar as questões atinentes ao direito sucessório do indivíduo concebido após a morte do autor da herança. Os projetos propostos na tentativa de regular o tema em análise, não obtiveram bons resultados vez que, apesar de a humanidade ter evoluído significativamente em vários aspectos e principalmente no campo científico, ainda falta embasamento técnico e humano suficiente que resulte na formação de uma legislação mais concisa e específica (FERNANDES, 2005).

A previsão relacionada às técnicas de reprodução assistida é encontrada de forma sucinta e tímida no Código Civil Brasileiro de 2002, que em seu art. 1597, abordando a questão da filiação, fez menção a algumas delas, de modo que, nos incisos III, IV e V do referido artigo, proclamou-se a presunção de paternidade das pessoas concebidas na constância do casamento, originadas através de fecundação artificial homóloga, inclusive post mortem, de fecundação in vitro (homóloga) e inseminação artificial heteróloga. Tais previsões, no entanto, não são suficientes para atender a todas as facetas do problema, fazendo-se necessária a elaboração de lei especial que regule a matéria, sobretudo no que concerne aos direitos sucessórios.

Considerando o exposto, para evitar injustiças e afrontas aos princípios constitucionais, nosso país deve, o quanto antes, superar a carência legislativa no que tange aos procedimentos de reprodução medicamente assistida, sem subestimar a complexidade da temática e a relevância das questões por ela suscitadas.


2 ASPECTOS RELACIONADOS À CONCEPÇÃO POST MORTEM NA PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL

Para (PAULO; ALEXANDRINO, 2009) nossa atual Constituição tem forte caráter cidadão e socialdemocrata. O legislador constituinte consagrou como princípio fundamental da República, à dignidade da pessoa humana (um dos pilares estruturais fundamentais da organização do Estado brasileiro), previsto no art. 1º, inciso III da Constituição de 1988.  Em seguida, no art. 5º encontram-se elencados os direitos e garantias fundamentais.Segundo Krell (2009), diante da inexistência de legislação específica capaz de regulamentar a inseminação artificial, toda e qualquer decisão deve estar amparada nos princípios constitucionais, conforme preceitua a Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) em seu art. 4°: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Assim sendo, nenhum procedimento ou técnica poderá ferir, mesmo que superficialmente, à dignidade da pessoa humana ou à igualdade, dentre outros princípios. Nesse sentido, a Lei nº 9263/96 que regulamenta o § 7º do art. 226 da Constituição Federal de 1988, ao tratar sobre o planejamento familiar, dispõe em seu artigo 9º que: “para o exercício do direito ao planejamento familiar, serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção”. Por conseguinte, entendemos que o dispositivo legal supramencionado recepciona a utilização de métodos artificiais com objetivo de gerar filhos, quando constatada a impossibilidade da procriação por meios naturais. Assim, com supedâneo no princípio da dignidade da pessoa humana, todos gozam de legitimidade para utilizar fazer uso da inseminação artificial, pois o direito à procriação é constitucionalmente garantido, cabendo ainda ao Estado o fornecimento dos meios para que ocorra com segurança.

2.1 Princípio da dignidade da pessoa humana

O princípio da dignidade da pessoa humana, elemento basilar de todo o nosso ordenamento jurídico, assegura ao indivíduo o direito de ter uma qualidade mínima de vida e gozo de proteção estatal adequada as suas necessidades.

No pensamento de (CUNHA JUNIOR, 2008) se traduz em vetor para identificação material dos direitos fundamentais. A dignidade apenas estará presente quando for permitida a plena fruição de todos os direitos fundamentais. Foi fruto de uma conquista e construção histórica, forjado para proteger o ser humano contra sua destruição. É imposição que recai sobre o Estado de respeitar o ser humano, o protegê-lo e promover as condições que viabilizem a vida com dignidade.            Por seu caráter abstrato e intangível, conceituar a dignidade da pessoa humana é tarefa demasiado complexa. Para Moraes (2001, p. 48) é: “[...] constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais [...]”. Esse princípio situa-se no coração da ordem jurídica brasileira tendo em vista que concebe a valorização da pessoa humana como sendo razão fundamental para a estrutura de organização do Estado e para o Direito. Estabelece um dever de praticar condutas positivas tendentes a efetivar e proteger a pessoa humana.

Nesse contexto, pode-se afirmar que há forte ligação entre o conceito de dignidade da pessoa humana e outros princípios e direitos fundamentais. De alguma forma, este princípio dá sustentação às diretrizes estabelecidas na Constituição Federal para todo o ordenamento. Assim sendo, da proteção a dignidade humana decorre os direitos da personalidade que são inerentes ao ser humano e tem se refletido no entendimento do bem jurídico da família. É essa inovadora orientação que possibilitou a regulamentação da união estável e da família monoparental e com a contribuição da ciência, a cada dia, novas técnicas de concepção são empregadas no auxílio da formação da família.Destarte, diante desta situação, se torna necessário que os progressos científicos sejam limitados por princípios éticos e morais, tendo por parâmetro a dignidade da pessoa humana, pois os seres humanos não podem ser manipulados como coisas inanimadas (OLIVEIRA, 2002).

2.2 O Direito à procriação e a Paternidade Responsável

A Declaração Universal dos Direitos do Homem assegura a todos o direito de constituir uma família. Da mesma maneira, no texto constitucional brasileiro, o direito à procriação está presente tanto na perspectiva da inviolabilidade do direito à vida (caput do art. 5º), quanto na previsão do planejamento familiar como livre decisão do casal (§7º do art. 226).  Para a efetivação deste direito, cabe ao Estado:

a) promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico (artigo 218);

b) proteger a família (caput do artigo 226);

c) propiciar recursos educacionais e científicos para o planejamento familiar (§7º do artigo 226).

Por esses dispositivos que mencionamos, fica clara a possibilidade de utilização dos meios artificiais de inseminação para geração de filhos e consequente formação da família. O direito à procriação está intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. O art. 226 § 7º da CF/88 foi regulamentado pela Lei de Planejamento Familiar n.º 9263/96, que destinou ao homem e a mulher a titularidade de direitos de procriação, e por extensão o direito básico de constituir uma família, estabelecendo a quantidade de filhos e o melhor momento para que ocorra sua geração. Procriar é um direito e o Princípio da Paternidade Responsável traz as obrigações inerentes a ele, no sentido de exigir dos pais a dedicação e empenho não apenas no momento da concepção, mas também e, principalmente, durante a formação da criança, provendo-lhe toda a assistência necessária que inclui afeto, educação, saúde, alimentação e formação de valores morais. Só se pode falar em paternidade responsável na presença de um planejamento familiar adequado, que é temática contemporânea, e não tem recebido dos Órgãos públicos no Brasil, a merecida e necessária atenção. Planejamento familiar pressupõe ato de escolha livre e consciente, que se inicia com um processo educativo e de esclarecimento quanto à decisão do número de filhos que a pessoa deseja ter e se dispõe de condições para prover as condições mínimas de vida digna.   Apesar do termo se referir a paternidade responsável, por óbvio, as obrigações são responsabilidade do casal e não apenas do polo paterno, em respeito inclusive ao dispositivo constitucional que se refere à igualdade entre os cônjuges, explícito em seu art. 226 § 5º: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. Esse entendimento tem levado alguns autores, a exemplo de Krell (2009), a considerar mais adequado o termo “parentabilidade”. Desta forma, o direito à procriação, bem como seu corolário - princípio da paternidade responsável se relaciona às técnicas de reprodução medicamente assistidas, por serem elementos autorizadores de sua utilização.

2.3 Princípio da Igualdade de Direitos e o Princípio da Igualdade entre os filhos

A Constituição Federal de 1988 consagrou o Princípio da Igualdade de direitos em seu art. 5º, caput e inciso I do Título Dos Direitos e Garantias Fundamentais, tratando-o ainda de forma implícita no art. 3º, a medida que integra os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

Esse princípio prevê a igualdade de aptidão, de oportunidade e de tratamento pela lei, em sintonia com os valores acolhidos pelo legislador constituinte e que norteiam o Estado Democrático de Direito.Inobstante nossa Lei Maior defender a igualdade de todos perante a lei, sem quaisquer distinções, não se pode apenas considerar em isolado o aspecto da igualdade formal, mas também a igualdade material, ou seja, a lei deve dar tratamento igual para os iguais e tratamento desigual para os desiguais na medida de suas desigualdades. Um emblemático exemplo dessa desigualdade constitucional consiste na diferença de duração da licença maternidade e da licença paternidade que se justifica por óbvios aspectos fisiológicos (PAULO; ALEXANDRINO, 2009).

O Princípio da Igualdade entre os filhos, variante do Princípio da Igualdade, tem grande relevância para a compreensão da condição sucessória do indivíduo concebido post mortem, objeto central de nossa pesquisa. O Código Civil Brasileiro de 1916 guardava dispositivos que promoviam a diferenciação entre os filhos, fossem eles nascidos de relacionamento conjugal, extraconjugal e, ainda recebidos por adoção. Os primeiros eram considerados legítimos; aos concebidos em decorrência de relacionamento extraconjugal restava a mácula da ilegitimidade e para os adotados, a lei estabelecia diferenças quanto aos direitos sucessórios. Contudo, com a promulgação da atual Constituição Federal, como não poderia ser diferente, dado seu espírito igualitário e social, surgiu o princípio da igualdade entre os filhos regulado no art. 227, § 6º. Posteriormente reafirmado por força do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei nº 8.069/90), em seu art. 20, e por fim no atual Código Civil Brasileiro de 2002 no art. 1.596. Esse princípio veda qualquer diferenciação de tratamento entre filhos, estabelecendo uma igualdade absoluta entre eles. Desta forma, não mais é aceitável qualquer classificação entre filhos legítimos ou ilegítimos que vigorava anteriormente à atual Carta Magna (DINIZ, 2008).Considerando que o aludido princípio expurgou classificações descabidas e há muito superadas de legitimidade, não amparando qualquer distinção entre filhos, quer na esfera das sucessões, dos alimentos, do nome e do poder familiar, emerge o questionamento no que tange aos direitos sucessórios da criança concebida por meio de procriação artificial ocorrida após a morte do genitor.


3 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: PRINCÍPIOS APLICÁVEIS

Os direitos da Criança e do Adolescente são fruto de uma construção social que tem como marco inicial a Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, que pretendeu o resgate dos valores de igualdade e liberdade, esquecidos durante a II Guerra Mundial. A partir de então, surgiram diversos tratados internacionais e normativas constitucionais e infraconstitucionais dos Estados membros da Organização das Nações Unidas – ONU, a exemplo da Declaração de Genebra de 1924 e Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, que embasaram a formulação da chamada Doutrina da Proteção Integral das Nações Unidades para a Infância. A partir dessa doutrina as crianças passaram a ser vistas como sujeitas de direitos próprios e proteção especial. Este entendimento se estruturou ao longo dos anos e foi consolidado na Convenção Internacional sobre Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 (RANGEL; VAGO CRISTO, 2004).  Segundo entendimento de Bezerra (2008), nosso país passou por três fases no decorrer da sua história, no que diz respeito à proteção da criança e do adolescente. A primeira delas foi marcada pela doutrina penal do menor, a segunda pelo Código de Menores de 1979 e a última, pela doutrina da proteção integral. Na doutrina penal do menor, o foco era única e exclusivamente a prevenção da delinquência juvenil. Reflexo disso são os Códigos Penais Brasileiros de 1830 e 1890, bem como o Código de Menores de 1927:

Na esfera penal, o Código Criminal do Império do Brasil, sancionado no dia 16 de dezembro de 1830, instituía a inimputabilidade relativa dos menores de 14 anos, eis que adotando a teoria da ação com discernimento, estipulava também a pena de recolhimento a casas de correção aos que, compreendidos nessa faixa etária, cometessem crimes conscientes de sua conduta ilícita. [...] Semelhantemente, o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, promulgado pelo Decreto n.º 847, de 11 de outubro de 1890, portanto, já no período republicano, não reconhecia como criminosos os menores de 8 anos e os maiores de 9 e menores de 14 anos que cometessem crimes sem discernimento. [...] O Código de Menores de 1927, em seu art. 1º, previa uma série de medidas de assistência e proteção ao menor de 18 anos de idade abandonado ou delinquente (ROSA, 2010).  

Como percebemos a preocupação do legislador era voltada apenas aos menores que potencialmente poderiam causar algum prejuízo a sociedade através da prática de delitos. Desta forma, os demais direitos essenciais de proteção infanto-juvenil e dos quais são titulares todos os menores, acabaram por serem esquecidos. Para Custódio (2006), na fase seguinte, surge o Código de Menores de 1979, fundamentado na doutrina da situação irregular, que previa a assistência para os menores que estivessem fora do padrão ideal de comportamento, formatada sob a égide da Política Nacional do Bem-Estar do Menor adotada em 1964. Com o advento deste Código, evidenciou-se o fortalecimento das desigualdades e da discriminação contra os menores pobres em situação irregular, promovendo ainda, a cultura do trabalho que legitimava toda a sorte de exploração contra crianças e adolescentes.

Esta doutrina apresentava graves distorções. Camuflada de sistema de proteção, servia apenas para punir condutas praticadas por menores, como assevera Liberati (2008, p. 13):

O Código revogado não passava de um Código Penal do “Menor”, disfarçado em sistema tutelar; suas medidas não passavam de verdadeiras sanções, ou seja, penas disfarçadas de medidas de proteção. Não relacionava nenhum direito, a não ser aquele sobre a assistência religiosa; não trazia medida de apoio à família; tratava da situação irregular da criança e do jovem, que, na realidade, eram seres privados de seus direitos.

Em resumo, o Código de Menores em nada contribuiu para a proteção da criança e do adolescente.Na década seguinte, com o surgimento da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, inicia-se o terceiro momento de proteção à criança e ao adolescente, desta vez, fundado na doutrina da proteção integral, de caráter efetivamente protecionista.  Os menores passaram a ser vistos como sujeitos de direitos, merecedores de proteção integral do Estado, da sociedade e da família, por sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento.  Desta feita, toda a proteção lhes deve ser dada de forma exclusiva e diferenciada.

3.1 A Doutrina da Proteção Integral

A doutrina da proteção integral, consagrada pela Constituição Federal de 1988 e também pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, como a própria denominação sugere, representa uma filosofia que se funda na proteção plena dos direitos das crianças e dos adolescentes e a absoluta prioridade do atendimento de suas necessidades. Seu expoente máximo é o Princípio do Melhor Interesse da Criança, que estudaremos adiante.O Estatuto da Criança e do Adolescente materializou a doutrina da proteção integral, tanto que em seu art. 1º estabeleceu que: “Esta Lei dispõe sobre a proteção à criança e ao adolescente”. O mesmo Estatuto afirma ainda que, além dos direitos fundamentais a todos atribuídos, as crianças contam com outras medidas protetivas almejando possibilitar seu perfeito desenvolvimento.

A ausência de legislação específica sobre reprodução humana assistida, em especial da inseminação artificial homóloga post mortem, causa impacto negativo no que diz respeito a proteção integral destinada à criança concebida, principalmente nas questões relacionadas à sua capacidade sucessória.

3.2 Princípio do melhor interesse da criança

A Constituição Federal de 1988 contemplou no caput do seu art. 227 o princípio do melhor interesse da criança, estabelecendo que:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (grifo nosso).

Desta maneira, fica latente a intenção do legislador de maximizar a proteção jurídica conferida à criança e ao adolescente, em razão de serem pessoas em desenvolvimento, ainda incapazes de defenderem seus direitos. Em síntese, aplica-se esse princípio que representa a supremacia do interesse da criança, com o intuito de evitar que ocorram abusos de poder pelas partes mais fortes da relação jurídica em que o menor está envolvido.  

Segundo Vilas-Bôas (2011, p. 01): “[...] o princípio do melhor interesse do menor pode ser traduzido com todas as condutas devem ser tomadas levando em consideração o que é melhor para o menor. Lembrando que, nem sempre o que é melhor para o menor, é o que ele deseja”.  

Assim sendo, o princípio do melhor interesse deve considerar primariamente as ações direcionadas à população infanto-juvenil. Tem ampla aplicabilidade e influencia a interpretação das normas, significando que, em qualquer circunstância, em toda decisão referente a uma criança/adolescente, deve-se optar pela melhor solução para ela (PAIS, 1999).

Esse princípio segundo entendimentos de Pereira (2008) e Vilas-Boas (2011), teve origem no instituto do parens patriae da Inglaterra, pelo qual primeiramente a Coroa e depois o Chanceler tinham a obrigação de proteger as crianças e suas eventuais propriedades na ocorrência de litígios.Em nosso país, o princípio do melhor interesse da criança foi introduzido por meio do Decreto n.° 99.710/90 que ratificou a Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 20/11/89, a qual determinava em seu artigo 3º que: “1- Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o melhor interesse da criança”.

Reportando-se ao melhor interesse da criança, Pereira (2008, p. 2), esclarece que:

No entanto, não há receita mágica para a identificação do melhor interesse da criança. Podemos apontar aqui como indicativos para tal identificação a opção menos prejudicial ou a que cause menos dano à criança ou ao adolescente. Cabe lembrar que as regras, sejam constitucionais ou infraconstitucionais, constituem apenas o primeiro grau de adensamento dos princípios constitucionais. Cabe notadamente ao Poder Judiciário, por meio de sua atividade jurisdicional, consolidar em sua prática diária, a aplicabilidade do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

Em razão dos já comentados posicionamentos de Pais (1999) e Vilas-Boas (2011), entendemos que o princípio do melhor interesse da criança também se aplica, com perfeição, às questões que envolvam crianças e adolescentes concebidas artificialmente após a morte de seu pai, tema do presente trabalho monográfico, contribuindo significativamente para encontrar a melhor solução em caso de litígios sucessórios.  Por outro lado, é fato que o princípio em questão não possui conceito determinado nos documentos que o mencionam, ensejando as críticas de alguns doutrinadores, cuja razão esclarece Pereira (2004, p. 91):

“Isto porque os princípios, diferentemente das regras, não trazem em seu bojo conceitos predeterminados. A aplicação de um princípio não o induz à base do tudo ou nada, como ocorre com as regras; sua aplicação deve ser “prima facie”. Os princípios, por serem standards de justiça e moralidade, devem ter seu conteúdo preenchido em cada circunstância da vida, com as concepções próprias dos contornos que envolvem aquele caso determinado. Têm, portanto, conteúdo aberto.”

Pelo exposto, há que se adotar uma linha hermenêutica protetiva da população infanto-juvenil, e, por conseguinte valer-se da elasticidade do princípio para estender o espectro de proteção, assegurando desta forma, a efetivação dos seus direitos.


4 PATERNIDADE, FILIAÇÃO E DIREITOS SUCESSÓRIOS DO CONCEBIDO POST MORTEM

4.1 A paternidade presumida em caso de Inseminação Artificial Homóloga post mortem

Contemporaneamente o conceito de paternidade que se coaduna com os princípios da dignidade da pessoa humana, do melhor interesse da criança e também da paternidade responsável, tem característica multifacetada, podendo ser analisado na perspectiva biológica, jurídica e socioafetiva.Segundo Krell (2009), sob a influência do Código Civil de 1916 na ausência de mecanismos científicos e diante da possibilidade de uma mulher poder se relacionar sexualmente com mais de um homem, o instituto da paternidade tornava-se incerto, por isso, surgiu o sistema de filiações matrimoniais que considera uma série de presunções conferindo segurança a determinação da paternidade.  A Constituição Federal de 1988 inspirou significativa mudança no direito de família, em decorrência do princípio da igualdade entre os filhos. Da mesma forma, tendo em vista o surgimento das técnicas de reprodução medicamente assistida, o art. 1.597 do Código Civil de 2002, passou a considerar a existência de outras modalidades de filiação (decorrente de inseminação artificial), além da concepção natural e da adoção.No entendimento dos professores Nery Junior e Nery (2002, p. 543):

Dúvidas quanto ao tempo da concepção já não são capazes de ocultar a verdade da filiação biológica, diante de todos os métodos cientificamente reconhecidos como hábeis a comprovar o momento da concepção e o vínculo da filiação.

           Desta feita, o exame de DNA revolucionou o procedimento de determinação da paternidade biológica, tornando superada a contagem de prazo que era feita no Código anterior para fins de reconhecimento da filiação. Para Gonçalves (2007), o instrumento hábil para a declaração judicial da condição de filho consiste na ação de investigação de paternidade, que segundo a súmula número 149 do Supremo Tribunal Federal - STF traz como característica a imprescritibilidade, podendo ser manejada a qualquer tempo, pelo filho, ou seu representante legal, se incapaz, contra o genitor ou na hipótese dele já haver falecido, em face de seus herdeiros ou legatários. A referida ação poderá ser cumulada com as ações de alimentos, petição de herança e de anulação de registro civil. Como demonstramos, no que tange à inseminação artificial homóloga, não restam dúvidas quanto a filiação uma vez que o material fecundante é proveniente do marido doador e o art. 1.597, inc. III do Código Civil garante a filiação da criança gerada artificialmente, independente da época do seu nascimento, que em sendo assim, pode dar-se após a morte de seu pai. O reconhecimento da filiação ocorrerá tanto para aqueles que estão legalmente casados, bem como, para os que vivem em união estável.O art. 1.597 do Código Civil se adéqua aos avanços científicos ocorridos na área da reprodução assistida, sendo aplicado para determinar a presunção da paternidade nas situações em que o filho foi originado por meio de fecundação homóloga, inclusive póstuma.Por outro lado, para alguns pesquisadores, dentre os quais podemos citar Gabriella Rigo, não há o que se falar em presunção, uma vez que a paternidade neste caso além de ser jurídica é biológica. Na fecundação homóloga post mortem no que toca à paternidade, não se vislumbram questões polêmicas uma vez que ela é biologicamente inegável. Na esfera do direito sucessório, objeto de análise mais aprofundada no item 4.3.5 deste capítulo. 

4.2 Direito à filiação

O Direito Sucessório existe em decorrência da filiação. O instituto da filiação está previsto nos artigos 1.596 a 1.606 do Código Civil. Segundo Gonçalves (2007, p. 102): “filiação é a relação de parentesco consangüíneo, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa àqueles que a geraram ou a receberam como se a tivesse gerado”. O estado de filiação é, pois, a qualificação jurídica dessa mencionada relação de parentesco, compreendendo um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados.Em resumo, o ordenamento jurídico brasileiro enaltecendo o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio do melhor interesse da criança e com base na doutrina da proteção integral, concede o direito ao reconhecimento da filiação, garantindo a possibilidade do nascido conhecer sua origem, bem como, tê-la declarada.Considerando os artigos 227 § 6º da Constituição Federal e art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, Liberati (2008, p. 25), nos ensina que:

[...] o reconhecimento da filiação é direito personalíssimo (só pode ser exercido pelo filho); se menor, será representado ou assistido (art. 142); é indisponível (não pode ser objeto de renúncia ou de transação); é imprescritível (a ação judicial poderá ser proposta a qualquer tempo), podendo ser exercido contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça.

Isto posto, temos que o direito ao reconhecimento da filiação deve ser exercido sem qualquer limitação. Por ser imprescritível, o filho tem direito a ter reconhecida sua filiação mediante ação de investigação de paternidade que pode ser interposta a qualquer tempo.

4.3 O Direito das Sucessões

A palavra sucessão deriva do latim succedere, e corresponde segundo entendimento de Monteiro (2006), a substituição de uma pessoa por outra, de maneira não transitória, no todo ou em parte e à qualquer título, dos direitos que competiam à primeira. A atual Carta Magna contempla em seu art. 5º, inciso XXX, o direito à herança que se encontra disciplinado no Código Civil de 2002, no livro V – Do Direito das Sucessões. Para Venosa (2009, p. 1):

Quando se fala, na ciência jurídica, em direito de sucessões, está-se tratando de um campo específico do direito civil: a transmissão de bens, direitos e obrigações em razão da morte. É o direito hereditário, que se distingue do sentido lato da palavra sucessão, que se aplica também à sucessão entre vivos.  

Logo, direito sucessório é o ramo ao qual, em decorrência da morte do autor da herança, cabe a responsabilidade pela transferência do patrimônio ativo e passivo, bem assim dos direitos e obrigações do de cujus, a seus sucessores. Esta transferência de caráter total ou parcial se dará por lei ou por testamento. Neste mesmo sentido afirma Rodrigues (2007, p. 3): 

Assim sendo, o direito das sucessões se apresenta como conjunto de princípios jurídicos que disciplinam a transmissão do patrimônio de uma pessoa que morreu a seus sucessores. A definição da palavra patrimônio, em vez de referir-se à transmissão de bens ou valores, por que a sucessão hereditária envolve a passagem, para o sucessor, tanto do ativo como do passivo do defunto.

O direito das sucessões regula, desta feita, a projeção das situações jurídicas existentes, no instante da morte da pessoa, a seus sucessores. O pensamento clássico, historicamente, considera que o patrimônio transfere-se dentro da própria família, disto decorre o destaque que ganhou a vocação hereditária na lei: a denominada sucessão legítima. Por ela, o legislador fixa uma ordem de sucessores na hipótese do morto não ter deixado testamento, ou quando este carecer de validade. Na realidade, em nosso país o testamento é usado com pouca frequência,  provavelmente porque a ordem de chamamento hereditário estabelecida na lei, atende na maioria dos casos, a preferência que seria feita pelo testador em função de seus vínculos familiares.   

4.3.1 Momento da abertura da sucessão

De acordo com Leite (2010), o princípio basilar que fundamenta o direito das sucessões é conhecido como droit de saisine ou simplesmente princípio da saisine, de origem germânica que chegou até nós através do Direito francês, o qual estabelece que  o próprio de cujus  transmite automaticamente e imediatamente, aos seus sucessores a herança.

O momento da abertura da sucessão ocorre, portanto, quando da morte do autor da herança, instante em que com base no princípio da saisine, a herança será transmitida incontinenti para os herdeiros legítimos e testamentários, conforme estipula o art. 1.784 do Código Civil. Referente ao momento da transmissão da herança, Veloso (2001) citado por Gonçalves (2008, p. 17) esclarece que:

[...] a morte, a abertura da sucessão e a transmissão da herança aos herdeiros ocorrem num só momento. Os herdeiros, por essa previsão legal, tornam-se donos da herança ainda que não saibam que o autor da sucessão morreu, ou que a herança lhes foi transmitida. Mas precisam aceitar a herança, bem como podem repudiá-la, até porque ninguém é herdeiro contra a sua vontade.

            Assim, quando da morte do autor da herança, todos os herdeiros receberão automaticamente a herança, por força do princípio da saisine, competindo a eles aceitá-la ou renunciá-la.A aceitação da herança é definitiva conforme art. 1.804 do Código Civil. Quanto à renúncia, com base no mesmo artigo em seu parágrafo único, entende-se que quando processada, o renunciante nunca chegou a herdar. Caso venha a ocorrer a prática de atos compatíveis com a aceitação, estaremos diante de uma aceitação tácita. Segundo Monteiro (2003) a transmissão não é imediata quanto aos legatários de bens fungíveis, só ocorrendo quando verificada a solvência do espólio. No caso de bens infungíveis a transmissão se dá desde a sucessão. 

4.3.2 Espécies de sucessão

A sucessão, segundo Gonçalves (2008) classifica-se conforme o art. 1.786 do Código Civil em: legítima (proveniente de lei) e testamentária (decorrente do ato de última vontade, do testamento). Vale ressaltar que a sucessão pode ser ao mesmo tempo legítima e testamentária (mista), quando o testamento não englobar todos os bens do falecido.A sucessão legítima ou ab intestato, acorre quando por ocasião da morte do autor da herança não verificar a existência de testamento válido. Nesse caso a herança é transmitida aos herdeiros legais, especificados em ordem pelo art. 1.829 do Código Civil, conforme assevera Monteiro (2003, p. 9): “Se não há testamento, se o falecido não deixar qualquer ato de última vontade, a sucessão é legítima ou ab intestato, deferido todo o patrimônio do de cujus às pessoas expressamente indicadas na lei, de acordo com a ordem de vocação hereditária”. A relação de herdeiros mencionada no art. 1.829 é preferencial. Assim, uma categoria só será chamada quando faltarem herdeiros da classe precedente. Por exemplo, herdam os ascendentes em concorrência com o conjugue apenas quando não existirem descendentes. Já a sucessão testamentária é aquela em que a destinação dos bens pertencentes ao morto se dá por ato de última vontade, revestido da solenidade exigida pela lei e expressa através do testamento ou codicilo. Para Madaleno (2011, p. 2):

O testamento é um ato pessoal, unilateral, espontâneo e revogável, sendo disposição de derradeira vontade com que a pessoa determina o destino de seu patrimônio ou de parte dele para depois de sua morte, devendo o testamento atender as exigências formais para não ser posteriormente invalidado, sem chance alguma de ser repetido, porque só tem validade e pertinência depois do óbito do testador.

O autor da herança faz uso do testamento para indicar no plano patrimonial da destinação futura dos seus bens, bem assim, consigna suas vontades e o que gostaria de ter dito em vida. No que toca às características, Rodrigues (2002, p. 145) sintetiza que o testamento é um:

Negócio jurídico unilateral, pois se aperfeiçoa com a exclusiva manifestação de vontade do testador. Personalíssimo porque sua feitura reclama a presença do testador, afastada a interferência de procurador. Solene, porque a lei estabelece forma rígida para sua feitura, sob pena de invalidação. Gratuito porque o testador não visa, em troca de sua liberalidade feita causa mortis, a nenhuma vantagem corespectiva. E revogável porque pela ilimitada prerrogativa de revogar o ato de última vontade, assegura o legislador, a quem testa a mais ampla liberdade; assim, a mera existência de um testamento ulterior válido, se for incompatível com o anterior, revoga o mais antigo, uma vez que o direito de dispor de seus bens só se exauri com o falecimento da pessoa (grifo nosso).

Como vimos, a manifestação da vontade do testador pode ser, a qualquer tempo, revogada por outro ato solene (novo testamento).   

No que diz respeito à sucessão testamentária, a parcela do patrimônio que poderá ser transmitida para quem o testador quiser, corresponderá a 50% do patrimônio, caso tenha herdeiros necessários e não seja casado em regime de comunhão total de bens.

Havendo testamento e existindo herdeiros necessários, também haverá sucessão legítima. Estaremos, portanto, diante da denominada sucessão mista. Da mesma forma, quando todos os bens do de cujus não forem contemplados no testamento, a parte não mencionada será deferida ao herdeiro legítimo na ordem de vocação hereditária (sucessão legítima), conforme dispõe o art. 1.788 e 1.966 do Código Civil.

Uma possibilidade bastante peculiar de sucessão testamentária está prevista no inciso I do art. 1.799 do Código Civil e refere-se à prole eventual. Abordaremos a questão de forma mais detalhada em subtítulo exclusivo, em razão da sua importância para a compreensão de alguns posicionamentos doutrinários que serão abordados adiante. 

Por fim, esclarece Gonçalves (2008) que quanto aos efeitos, a sucessão pode ainda ser classificada em: a título universal ou a título singular. Na primeira, o herdeiro não é destinatário de um bem determinado, mas de uma quota-parte da totalidade da herança, assumindo a responsabilidade relativamente ao passivo. Na sucessão a título singular o testador deixa ao beneficiário, chamado de legatário, um bem certo e determinado, ou seja, um legado. O legatário não se responsabiliza pelas dívidas (passivos) da herança. Logo, enquanto a sucessão legítima será sempre a título universal, a sucessão testamentária poderá ser a título universal ou singular.  

4.3.3 Tipos de sucessores

Sucessor é o indivíduo que substitui o autor da herança, se sub-rogando nos direitos dele, recebendo do de cujus parte de seu patrimônio, compreendendo bens e também obrigações.  Conforme Gonçalves (2008), os sucessores são classificados em legatários, herdeiros legítimos, necessários ou testamentários.

O sucessor legatário é aquele que herda a título singular. De acordo com Pereira (2006, p. 3) “legatário é aquele a quem o testador deixa uma coisa ou quantia, certa, determinada, individuada, a título de legado”.

O herdeiro legítimo herda a título universal e está determinado por lei. No caso, o art. 1.829 do Código Civil estipula uma ordem de preferência e ao mesmo tempo de concorrência com o cônjuge.  Atinente aos herdeiros necessários, Gonçalves (2008), lembra que podem também ser chamados de legitimário ou reservatário, e encontram-se previstos no art. 1.845 do Código Civil. Eles não podem ser privados da herança, salvo nos casos de indignidade e deserdação. Como herdeiros necessários têm-se os descendentes, os ascendentes e o cônjuge, este último foi trazido à classe dos herdeiros necessários com o advento do Código Civil de 2002. Em relação ao herdeiro testamentário, Gonçalves (2008), ressalta que também pode ser chamado de instituído, herdando a título universal, sendo contemplado pelo testador em ato de última vontade com uma quota-parte do acervo, sem individualização de bens.

4.3.4  O Instituto da Prole eventual

O art. 1.798 do Código Civil tratando sobre a vocação hereditária, determina que: “Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”. A legislação, portanto traz certa proteção ao nascituro, uma vez que por sua simples concepção, já possui legitimidade para receber herança, ficando esta possibilidade na dependência do seu nascimento com vida, ou seja, a ocorrência de pelo menos um processo respiratório (GONÇALVES, 2008). O atual Código Civil previu a possibilidade de concessão da capacidade sucessória por parte daqueles que ainda não foram concebidos, quando dispôs sobre a prole eventual. Conforme determina o art. 1799, inciso I do Código Civil de 2002, serão considerados herdeiros testamentário “os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão”.Em síntese, a prole eventual consiste na deixa testamentária a ser conferida aos filhos das pessoas indicadas pelo testador, ainda não concebidos no momento do testamento. Contudo, só terão direito à herança, ou seja, ao patrimônio que lhes foram reservados, caso a concepção ocorra em até dois anos contados da abertura da sucessão (DINIZ, 2008). A prole eventual prevista desde o Código Civil de 1916, foi mantida no atual regulamentada nos art. 1.799, inciso I e art. 1.800, caput e § 1º a § 4º. Na vigência do Código Civil de 1916, o instituto da prole eventual era atribuído, apenas aos filhos biológicos, não beneficiando o filho adotivo, salvo se o testador de forma expressa manifestasse esta intenção. No entanto, com o advento da atual Constituição Federal que contempla o princípio da igualdade entre os filhos previsto em seu art. 227 § 6º, não mais se concebe qualquer distinção entre os filhos. Desta forma, o Código Civil de 2002 ao dispor sobre a prole eventual, ressaltou que a deixa testamentária será destinada aos filhos das pessoas por ele indicadas, não importando se forem biológicos ou adotivos, gozando os mesmos direitos ao recebimento de herança por meio do testamento.Venosa (2009, p. 199) fazendo referência à prole eventual reconhece que: “A matéria ganha maior importância agora, com as técnicas de reprodução assistida”. Com o advento da popularização das técnicas de inseminação artificial, de certo, o instituto da prole eventual foi afetado, uma vez que a geração não depende agora apenas dos meios naturais para acontecer.

4.3.5 Capacidade sucessória: considerações doutrinárias

A capacidade sucessória, segundo Gonçalves (2008), consiste na legitimidade para suceder. Aqueles dotados de capacidade estarão aptos para receber a herança deixada pelo falecido.Assim sendo, o indivíduo que não esteja impedido legalmente de receber a herança, e tenha preenchido os requisitos exigidos por lei, gozará de legitimidade sucessória e fará jus a herança ou legado, salvo se recusá-los, conforme assevera Gonçalves (2008, p. 50): “No direito sucessório vigora o princípio de que todas as pessoas têm legitimação para suceder, exceto aquelas afastadas pela lei.”Conforme dispõe o art. 1.798 do Código Civil, terão capacidade sucessória todos aqueles que estejam vivos ou ao menos concebidos quando da morte do autor da herança. A regra anunciada pelo código admite uma exceção, em que o individuo mesmo não tendo sido concebido, terá legitimidade para suceder, hipótese fundada na prole eventual, que tratamos anteriormente, disciplinada no art. 1.799, inciso I do Código Civil. Conforme constatamos, neste caso, o autor da herança por meio de testamento contempla o filho da pessoa por ele apontada, devendo o futuro herdeiro ser concebido no prazo máximo de dois anos, caso contrário perderá a legitimidade para receber herança.

Como vimos, o Código Civil trata em seu art. 1.597, inciso III, da paternidade presumida nos casos de filhos nascidos por inseminação artificial homóloga, inclusive post mortem. Todavia, Nader (2008), lembra que não houve manifestação expressa no sentido de atribuir ao concebido post mortem, legitimidade para suceder na herança deixada pelo de cujus, situação capaz de gerar embates jurídicos, agravados pela ausência de consenso doutrinário. Na visão de Rigo (2009), o Código Civil de 2002 apenas solucionou a questão quanto ao status de filho do indivíduo gerado por meio de inseminação artificial homóloga, inclusive post mortem, todavia, no âmbito do direito sucessório a qualidade de herdeiro necessário é questão doutrinariamente polêmica.A corrente doutrinária mais numerosa defende a negação da capacidade sucessória do concebido post mortem. Integram esse grupo renomados especialistas como Maria Helena Diniz, José de Oliveira Ascensão e Sílvio Venosa. Seu posicionamento se funda no dispositivo legal do art. 1798 do Código Civil, o qual determina que: “Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”. Deste modo, na hipótese de inseminação artificial homóloga póstuma, tendo o filho sido concebido após a abertura da sucessão, estaria afastado do recebimento da herança deixada por seu pai, muito embora seja considerado filho do pré-morto, conforme garante o art. 1.597, inciso III do Código Civil. Esse pensamento prima pela proteção dos herdeiros que já se encontravam nascidos ou concebidos quando da morte do autor da herança, evitando assim insegurança jurídica, vez que eles teriam que esperar indefinidamente pelo nascimento de criança, ou crianças, oriundas de inseminação, o que causaria revisões sempre possíveis de seus quinhões hereditários.  A partilha seria algo, portanto, provisório e frágil. Defende Diniz (2003, p. 44) que:

[...] a capacidade para adquirir herança, inclusive por via testamentária, pressupõe existência de herdeiro, ou legatário, à época da morte do testador. [...] Ao tempo do falecimento do autor da herança o herdeiro deve estar vivo, ou pelo menos concebido, para ocupar o lugar que lhe compete. Pessoa ainda não concebida (nondum conceptus) ao tempo da abertura da sucessão não pode herdar, salvo a hipótese do artigo 1.799, I, do Código Civil.

A respeitada professora, ao discorrer acerca da capacidade sucessória, se mostra totalmente fiel ao princípio da saisine, base de todo o direito sucessório brasileiro. O princípio da dignidade da pessoa humana acabaria, desta forma, sendo vencido pela Segurança Jurídica. No mesmo sentido, Ascensão (1999) citado por Machado (2008, p.107) afirma que:    

[...] toda a estrutura da sucessão está arquitetada tendo em vista um desenlace da situação a curto prazo. Se se admitisse a relevância sucessória destas situações, nunca seria praticamente possível a fixação dos herdeiros e o esclarecimento das situações sucessórias. E a partilha que porventura se fizesse estaria indefinitivamente sujeita a ser alterada.

Venosa (2004) corrobora com esse entendimento, afirmando que não se deve atribuir a qualidade de herdeiro para a criança que através de inseminação artificial foi concebida após a abertura da sucessão, em razão da incompatibilidade com a previsão legal do art. 1798 do Código Civil, sendo apenas possível na hipótese de prole eventual.Se de um lado Venosa (2004, p. 96) nega a capacidade sucessória ao  concebido postumamente, por outro, com relação ao reconhecimento da filiação diz que:  

[...] o reconhecimento da filiação gera efeitos patrimoniais. Os filhos reconhecidos equiparam-se em tudo aos demais, no atual estágio do nosso ordenamento, gozando de direito hereditário, podendo pedir alimentos, pleitear herança e propor ação de nulidade de partilha.

Na convicção de Diniz (2003), a prática da fertilização artificial após a morte do doador do material fecundante, deve ser proibida, visto que a criança oriunda desta procriação artificial não poderá herdar, tendo em vista que quando da morte do autor da herança, ainda não estava concebida.

Assim como Diniz (2003), Gonçalves (2008) é um dos adeptos da corrente que nega a capacidade sucessória do concebido post mortem, e seu fundamento encontra também respaldo no conteúdo do artigo 1.798 do Código Civil.Veementemente contrários a esse grupo de doutrinadores que mencionamos, estão nomes como Maria Berenice Dias, Silmara Chinelato, Juliane Fernandes Queiroz e Carlos Cavalcanti Albuquerque Filho. Segundo Chinelato (2007) negar a capacidade sucessória do concebido por inseminação artificial póstuma, consiste em retroagir ao sistema jurídico anterior, em que vigorava a discriminação entre os filhos. Contudo, prevalece no atual sistema o princípio da igualdade entre os filhos e tendo a filiação reconhecimento por força do art. 1597, inciso III do Código Civil de 2002, da mesma forma deverá ser atribuído o direito sucessório aos concebidos postumamente. Na concepção de Albuquerque Filho (2006, p.190): “[...] vedar reconhecimento e direito sucessório a quem foi concebido mediante fecundação artificial post mortem pune, em última análise, o afeto, a intenção de ter um filho com a pessoa amada. Pune-se o desejo de realizar um sonho”.Queiroz (2001) utiliza como elemento de autorização a prole eventual, situação em que o genitor através de testamento resguardaria os direitos sucessórios de seu futuro filho, o qual só iria ser concebido após a sua morte dentro de um prazo máximo de dois anos. Assim, a aplicação desse instituto ao passo que protegeria a criança fruto desta modalidade de inseminação artificial, também evitaria uma insegurança jurídica para os herdeiros nascidos ou já concebidos quando da morte do autor da herança, pois se dentro do prazo de dois anos não fosse concebida a criança, os demais herdeiros não teriam que esperar indefinidamente pela divisão da herança. Portanto, Queiroz (2001, p. 80) conclui que “[...] se o testador pode atribuir a sua herança à prole eventual de terceiros, também o pode, sem qualquer restrição à sua própria prole”. Ocorreria então o emprego de analogia para assegurar direito sucessório resultante das técnicas de inseminação artificial.  Contudo, para alguns operadores do direito, entre eles Vargas (2008), este entendimento é inaceitável, visto que o Código Civil estaria dando tratamento diferenciado aos filhos, pois aqueles naturais, adotivos ou havidos por inseminação enquanto o doador estava vivo, teriam direitos à sucessão legítima, enquanto que os concebidos por meio de inseminação post mortem somente teriam direito à herança através da sucessão testamentária, com base na previsão de prole eventual. Essa situação ensejaria um tratamento discriminatório, proibido pelo ordenamento jurídico brasileiro e nos remeteria a outras questões: haveria justiça em privar de direitos sucessórios filho concebido sem previsão testamentária?Que razões levariam uma pessoa a depositar em um banco de sêmen seu material fecundante se não o desejo de ser pai?Leite (2010) reconhece o direito sucessório apenas na hipótese da concepção ter ocorrido in vitro, enquanto o genitor estava vivo, ainda que a implantação no útero da receptora se dê após sua morte. Faz, portanto, uma distinção entre o embrião (desenvolvimento do óvulo já fecundado) e o sêmen criopreservado. Corrobora com esse entendimento Chinelato (2007), salientando que o embrião disporá de capacidade sucessória, pois o Código Civil (art. 1.798) não distingue o locus da concepção e nem obriga que seja implantado. Requer tão somente a concepção.Na opinião de Hironaka (2003), a inseminação homóloga post mortem só deve ser permitida se houver autorização do doador, que expressamente mencione o uso de seu material fecundante após a morte, produzindo efeitos tanto na esfera do direito de família como no campo do direito sucessório. Contudo, ainda que realizada esta técnica de procriação artificial, sem permissão do doador do material fecundante, não há o que se cogitar em direito sucessório, por se tratar de um ato anulável em razão da ocorrência do vício de vontade.Mesmo entre aqueles que reconhecem o direito sucessório do filho concebido mediante fecundação artificial póstuma, existe certa tendência a estabelecer o prazo de dois anos para que ocorra a concepção, fazendo analogia ao prazo fixado em hipótese de prole eventual (CC 1.800 § 4º). Com relação a isso, Dias (2011, p. 124) alerta que:

A tentativa de emprestar segurança aos demais sucessores não deve prevalecer sobre o direito hereditário do filho que veio a nascer, ainda que depois de alguns anos. Basta lembrar que não há limite para o reconhecimento da filiação por meio de investigação de paternidade, e somente o direito de pleitear a herança prescreve no prazo de 10 anos (CC 205).

Decerto que o ordenamento jurídico brasileiro não vem acompanhando na mesma proporção os avanços científicos alcançados nas áreas médicas. Especificamente no âmbito da inseminação artificial homóloga. Essa situação de descompasso, comprometeria a solução de casos que envolvam os direitos das crianças advindas por meio dessa técnica de reprodução humana assistida.

Para Dias (2011, p. 125):

Mesmo que tenha o autor da herança autorizado por escrito a fecundação depois de sua morte, questiona-se se o filho dispõe de direito sucessório, uma vez que não existia quando da abertura da sucessão. Claro que estas novidades alimentam acaloradas discussões e o surgimento de posições díspares, até porque a fecundação pode correr anos após o falecimento de quem em vida manifestou o desejo de ter filhos.    

O melhor caminho a se percorrer seria a elaboração de uma legislação específica que regulamente as técnicas de reprodução assistida, principalmente no tocante à inseminação artificial homóloga post mortem, prevendo inclusive, a incidência das questões sucessórias.

4.3.6 Ação de Petição de herança

A ação de petição de herança (artigos 1.824 a 1.828 do Código Civil de 2002) é ordinária e declaratória. Através dela o herdeiro legítimo ou testamentário que por alguma circunstância não foi habilitado no inventário ou contemplado na partilha, poderá ter reconhecido os seus direitos sucessórios e a partir de então, ser-lhe devolvida a herança a que faz jus. Retroagirá o direito até a data da abertura da sucessão, sendo-lhes restituídos todos os frutos e rendimentos (GONÇALVES, 2008). Temos em seu polo passivo os herdeiros que estão na posse da herança, ou mesmo o herdeiro aparente, ou seja, aquele que de boa ou má-fé não sendo herdeiro, possui a herança como se fosse.No que tange à natureza jurídica da ação de petição de herança, existem diversos posicionamentos doutrinários, que divergem entre si. Segundo Nader (2008), doutrinadores como Colin e Capitant partem do fundamento de que a mencionada ação é de natureza pessoal, pois tem como objetivo principal o título de herdeiro, conseguido através do reconhecimento do direito sucessório. Para outros doutrinadores como Carlos Roberto Gonçalves, a petição de herança é considerada uma ação real, visto que a herança é bem imóvel. Defendem, portanto, que a petição de herança não se trata de uma ação de estado, cujo objetivo é apenas o reconhecimento da qualidade de herdeiro, mas vai além, pois com a declaração de herdeiro busca-se reaver a herança que é cabível para quem de direito. Para a terceira corrente, defendida por outros estudiosos, entre eles Luiz da Cunha Gonçalves, a petição de herança é uma ação mista, pois a princípio busca a declaração de herdeiro, onde tem caráter pessoal e logo após, almeja a restituição da herança, passando a apresentar caráter real. A ação de petição de herança, não recebeu por parte do legislador do Código Civil de 2002, designação de tempo mínimo exigido para que se dê o seu ingresso, porém o entendimento pacífico jurisprudencial disposto na súmula 149 do Supremo Tribunal Federal - STF determina que a ação de petição de herança está sujeita a prescrição. Quanto ao tempo desta prescrição, aplicar-se-ia o contido no art. 205 do Código Civil: “A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor”. De outra forma, na ação de investigação de paternidade, é assegurado ao filho a qualquer tempo o reconhecimento do seu status familiae, conforme determina o artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, uma vez que é direito indisponível, personalíssimo e principalmente imprescritível.

Desta feita, conforme esclarece Gonçalves (2007) a contagem do prazo prescricional para a ação de petição de herança se inicia do momento em que houve o reconhecimento da paternidade, visto que o prazo prescricional surge quando da existência do direito à ação.Para Vargas (2008), em face da existência de um herdeiro concebido através de inseminação artificial homóloga póstuma, a solução encontrada reside no manejo da ação de petição de herança, ao amparo dos princípios da igualdade entre os filhos e da dignidade da pessoa humana. Inicialmente, devem ser realizados os mesmos procedimentos empregados no caso filhos concebidos quando o genitor estava vivo, ou seja, ação de investigação de paternidade post mortem. Sendo declarado o seu status de filho, passará o indivíduo a gozar dos mesmos direitos daqueles filhos nascidos ou concebidos enquanto o pai vivia. Em seguida, para o reconhecimento dos direitos sucessórios, bastaria apenas que os novos herdeiros ingressassem com ação de petição de herança, cumulada com a nulidade de partilha. Neste sentido, o Enunciado n.º 267 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil, determina que: “A regra do art. 1.798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição da herança”.Em resumo, a solução encontrada para atribuir a qualidade de herdeiro ao filho concebido após a morte de seu pai, por meio inseminação artificial, reside na propositura tempestiva da ação de petição de herança (em até dez anos após ter declarada sua condição de filho).  Logo, decorrido o prazo de dez anos e não sendo ingressada a devida ação, o direito sucessório não mais poderá ser atribuído ao concebido post mortem. Quanto ao Direito de filiação, este poderá ser suscitado a qualquer tempo por ser imprescritível à luz da súmula 149 do STF e do art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente.  


5.FERTILIZAÇÃO ARTIFICIAL PÓSTUMA: PANORAMA JURÍDICO INTERNACIONAL E SITUAÇÃO BRASILEIRA

5.1 Principais aspectos em legislações estrangeiras 

Em face dos progressos nas áreas conexas da biotecnologia e engenharia genética, que permitiram a aplicabilidade de procedimentos como a inseminação artificial, várias lacunas foram suscitadas e devem ser preenchidas no ordenamento jurídico. Para tal, apresenta-se oportuna uma análise das experiências estrangeiras. Nesse viés, Fernandes (2005) empreendeu estudos sobre a regulamentação jurídica das técnicas de reprodução humana assistida, com ênfase na inseminação póstuma, sob a ótica do direito comparado, tendo compilado os diversos posicionamentos adotados por vários países. Na França, é proibida a prática da inseminação artificial homóloga post mortem. Para o direito francês a criança concebida após a morte do seu pai seria filha apenas de sua genitora.Em solo espanhol, existe regulamentação jurídica acerca das técnicas de reprodução assistida. No que tange ao emprego da concepção artificial homóloga post mortem, não se verifica vedação, todavia, se o material fecundante do marido não foi implantado até o dia do falecimento do mesmo, não se perfaz a filiação. No entanto, através de escritura pública ou testamento poderá o marido determinar que seu material fecundante possa ser implantado no útero de sua mulher meses seguintes a sua morte, e nesta hipótese a geração do novo ser, produzirá os efeitos que derivam da filiação. Para os ingleses, a realização da fecundação assistida post mortem, é permitida, contudo, não se vislumbra a proteção aos direitos sucessórios da criança gerada por este tipo de procriação artificial, salvo se existir previsão expressa em testamento.Assim como Fernandes (2005), Ferraz (2009) também realizou pesquisa no mesmo sentido, acrescentando que os Estados Unidos foram o país em que se difundiu a inseminação artificial heteróloga, razão pela qual, a de natureza homóloga não tem enfrentado quaisquer obstáculos de ordem moral. Atualmente mais de 30 Estados americanos (tendo em vista sua autonomia legislativa) possuem disposições legais próprias acerca da reprodução assistida, homóloga e heteróloga, conferindo-lhe a posição de país mais rico em produção legislativa e jurisprudencial no que diz respeito a esse tema. Cabe mencionar ainda que, os Estados Unidos são a única nação do mundo onde a venda de óvulos e sêmen humano não é proibida, inclusive utilizando como canal de comercialização a internet, cujos sites especializados expõe verdadeiros “cardápios” de referências genéticas, descrevendo qualidades, etnias e até características de produção universitária e profissional. Essa negociação se dá desta forma, generalizada e facilitada, em função da lei americana considerar óvulos e espermatozoides partes renováveis do corpo humano. Ferraz (2009, p. 66), menciona que:

O jornal americano The New Republic veiculou matéria jornalística com o título “Banco de esperma quer sêmen ‘inteligente’”, informando que o California Cryobank, um dos principais bancos de esperma dos Estados Unidos, publicou anúncios em jornais da Universidade de Harvard e do Massachusets Institute of Technology – MIT, visando angariar espermas inteligentes com o seguinte texto: “Procura-se espermas inteligentes.” ‘Idiotas não se candidatem’. (...) Seu fundador, Charles Sims, diz que faz esforço para adquirir espécimes de alta qualidade dos melhores e mais inteligentes doadores, para oferecer às clientes ‘um doador que elas teriam orgulho de apresentar às suas mães’”.

Procedimentos como esse que mencionamos, ilustram a postura flexível e até permissiva da legislação americana frente às técnicas de reprodução humana assistida, fazendo com que muitas vezes sejam alvo de críticas por induzirem a eugenia.Em Portugal, foi aprovada em 2006 a Lei 32/2006, que entrou em vigor a partir de janeiro de 2007, versando sobre a reprodução humana assistida, denominada procriação medicamente assistida, prevendo inclusive sanções penais em caso de descumprimento. Logo em seu artigo 3º, o referido dispositivo consigna que essas técnicas devem respeitar a dignidade humana, sendo vedada qualquer discriminação direcionada aos concebidos artificialmente. No que tange à inseminação póstuma, Ferraz (2009, p.69), informa que:

A lei permite a criopreservação do sêmen do doador, porém veda a inseminação post mortem, ainda que o companheiro ou o marido tenha autorizado. No item 3, no entanto, permite a utilização post mortem desde que seja para cumprir um projeto parental claramente estabelecido por escrito antes do falecimento do pai, desde que decorrido um prazo considerável razoável para realização de tal projeto.

Vale salientar que a lei portuguesa, com o intuito de proteger os interesses da criança, não tornando incerta sua paternidade, estabelece no art. 23, que em caso de violação da norma e realização da inseminação post mortem, deverá ser atribuída a paternidade ao falecido companheiro ou cônjuge, exceto se, à data da inseminação a mulher tiver contraído novas núpcias ou se encontrar vivendo em união estável há pelo menos dois anos com homem que haja consentido o procedimento, hipótese em que ele será considerado o pai. Na Itália, em virtude da forte influência da Igreja Católica, a aplicação das técnicas de reprodução humana é bastante restrita. Para Ferraz (2009) a lei praticamente impede esse tipo de intervenção, proibindo a doação de esperma, de óvulos, o emprego de barriga de aluguel e pesquisas com embriões. Apenas autoriza que pessoas legalmente casadas ou que comprovem a estabilidade da relação tenham acesso à procriação artificial, mesmo assim, com seus próprios materiais fecundantes. A criopreservação de embriões é vedada, logo, a inseminação post mortem torna-se impossível.No Direito Brasileiro, vimos ao longo de nossas pesquisas que não há legislação específica que regulamente as técnicas de reprodução assistida, principalmente na esfera da inseminação artificial homóloga post mortem. Atualmente, o documento que tenta disciplinar a realização dessas técnicas, é a Resolução do Conselho Federal de Medicina de nº 1358/92 que traz apenas um norteamento ético aos profissionais da medicina. Nesse sentido, a mencionada resolução não comporta todas as hipóteses tendentes a regulamentar a procriação artificial, nem tão pouco possui força coercitiva, razão pela qual, faz surgir à necessidade da elaboração de diploma legal que se posicione no sentido de proibir ou permitir o exercício dessa prática, bem como, regulamente como se dará o processo sucessório do patrimônio deixado pelo doador póstumo.  Após essa concisa análise de direito comparado, percebemos que nossa carência legislativa é por demais acentuada, tendo em vista que, sem qualquer juízo de valor, os demais países tem procurado exteriorizar seus preceitos  éticos e sociais através da elaboração de leis específicas que versem sobre o tema.

5.2 A necessidade brasileira de regulamentação jurídica no que tange às técnicas de reprodução humana assistida

O progresso científico no campo da biotecnologia aplicada à reprodução humana popularizou procedimentos como a inseminação artificial póstuma, que possibilita a geração de filhos mesmo após a morte do doador do material fecundamente. Em decorrência disso, grandes problemas surgem quanto à determinação da capacidade sucessória da pessoa concebida após a morte do autor da herança. Nesse sentido, a grande problemática jurídica reside na ausência de legislação infraconstitucional brasileira que aborde de maneira específica estas técnicas de procriação artificial e suas conseqüências, fomentando por meio do silêncio da lei, a construção de várias e via de regra conflitantes, soluções propostas pelos juristas (FERNANDES, 2005).Nossos doutrinadores tendem ao reconhecimento da filiação dos concebidos por meio de inseminação artificial homóloga post mortem, conforme advogam Sílvio Venosa, Sílvia da Cunha Fernandes, Carlos Alberto Ferreira Pinto, dentre tantos outros, ao amparo do art. 1597 do Código Civil. Todavia, é no campo dos direitos sucessórios que o Código mantém-se silente, acarretando acalorados debates.Como vimos, no contexto das legislações estrangeiras, de acordo com Fernandes (2005) e Ferraz (2009), países como Itália, Suécia, França e Alemanha proíbem a fertilização artificial post mortem.  No entanto, a Inglaterra, permite a realização da inseminação post mortem, mas não reconhece os direitos sucessórios do filho concebido. Na Espanha, a concepção é permitida mas, só produzirá os efeitos da filiação, caso o marido ou companheiro antes de seu falecimento tenha deixado testamento ou escritura pública permitindo a realização deste tipo de inseminação para além de sua morte.   Frente à ausência de leis capazes de regulamentar as técnicas de reprodução assistida, em especial a inseminação artificial homóloga post mortem, díspares são os posicionamentos doutrinários, no que diz respeito à existência de capacidade sucessória por parte do concebido após a morte de seu pai.  É bastante razoável afirmar que a solução para as divergências passa necessariamente pela elaboração de regramento jurídico específico. Seguindo esse entendimento, Fernandes (2005), defende ser imprescindível a criação de uma lei específica que regulamente as técnicas de reprodução humana assistida pela repercussão que a temática alcançou na família e na sucessão. Como vimos, a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1358, não é suficiente para disciplinar a realização destas técnicas, por carecer de coercitividade. É da competência do Direito tratar sobre este assunto, pois a ausência de uma legislação que determine conceitos, imponha limites e regule práticas, pode ocasionar decisões equivocadas e por conseguinte, danos de difícil ou impossível reparação.

Para Diniz (2009, p. 546):

[...] urge regulamentar a fecundação humana assistida, minuciosamente [...] Apesar de sermos contrários a essas novas técnicas de reprodução humana assistida, temos consciência de que o jurista não poderá quedar-se inerte ante essa realidade, ficando silente diante de tão intrincada questão, nem o legislador deverá omitir-se, devendo, por isso, regulá-la, rigorosamente, se impossível foi vedá-la.   

A notável professora Maria Helena Diniz, mesmo declarando-se contrária à inseminação post mortem, não deixa de expor seu ponto de vista, salientando que a omissão do legislador frente à regulamentação do uso de tais técnicas não pode mais ser aceita. Cada vez mais, outras vozes se unem àquelas que hoje protestam pelo regramento desses procedimentos. Todavia, as tentativas até o momento esboçadas, não foram fruto de qualquer reflexão feita pelos cidadãos, nem tampouco foram ouvidos os profissionais da saúde. A questão precisa ser amplamente discutida e nesse processo, a construção de soluções legitimadas pelo debate, terão consistência e força. É preciso, antes de tudo, entender a razão que justifica o fato de que tanto tempo após a propositura do primeiro Projeto de Lei, nenhuma decisão ter sido tomada.   Destarte, apresenta-se claramente a problemática envolvendo as técnicas de reprodução humana assistida ocorrida após a morte do doador fecundamente, em especial no que diz respeito ao tema abordado neste trabalho. Resta comprovada a necessidade e premência da regulamentação dessas técnicas, tendo em vista que questões dessa envergadura não podem permanecer por mais tempo sem claras delimitações jurídicas.


CONCLUSÃO

Em razão do desenvolvimento das pesquisas voltadas ao emprego de técnicas de reprodução humana assistida, inúmeras discussões surgiram na esfera jurídica, especialmente no âmbito do direito sucessório e no que diz respeito, em particular, à questão da capacidade sucessória do indivíduo concebido após a morte de seu pai, autor da herança. Na perspectiva do direito de família, não se vislumbram expressivas discordâncias quanto ao reconhecimento do status de filho ao concebido por inseminação artificial, inclusive post mortem, posto que a paternidade seja biologicamente inegável. Além do que, o Código Civil no art. 1597, inc. III, claramente admite como filho o indivíduo concebido por meio de fecundação homóloga mesmo após a morte do genitor. Já no campo do direito sucessório, em função da ausência de legislação infraconstitucional, capaz de regulamentar as técnicas de procriação artificial e suas consequências, nos deparamos com significativas divergências doutrinárias. A primeira corrente doutrinária, e que vem se consolidando, defendida por Maria Helena Diniz, Sílvio Venosa e José de Oliveira Ascensão, dentre outros, nega a capacidade sucessória ao concebido post mortem, em razão do disposto no art. 1.798 do Código Civil e sob o fundamento de que pelo princípio da saisine torna-se indispensável a existência ao menos do concebido para que se dê a transferência da herança. Adotam, portanto, um critério de análise legalista do código, aparentemente mitigando a aplicabilidade do princípio constitucional da igualdade entre os filhos ao caso. Fundamentam sua posição na necessidade de manutenção da segurança jurídica do herdeiro existente ou concebido quando da abertura da sucessão, vez que a superveniência do nascimento de novo herdeiro seria capaz de comprometer seu quinhão hereditário, tornando a partilha algo provisório.Por outro lado, advogam pela possibilidade de reconhecimento de capacidade sucessória ao concebido post mortem, Maria Berenice Dias, Juliane Fernandes Queiroz, Márcio Rodrigo Delfim e Aline de Castro Brandão Vargas, partindo do pressuposto de que a criança advinda por meio desta técnica, não pode ficar desamparada. Esta corrente alberga seu posicionamento nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade entre os filhos, buscando ainda fundamento na doutrina da proteção integral com fulcro no princípio do melhor interesse da criança. De outro turno, há quem defenda a possibilidade daqueles gerados postumamente figurarem como herdeiros testamentários através do instituto da prole eventual, bem assim, em sentido contrário, condenando esse entendimento, existem juristas que consideram essa ideia uma afronta ao princípio da igualdade entre os filhos. Numa perspectiva mais elaborada, encontramos Eduardo de Oliveira Leite, alegando que o direito sucessório apenas deve ser concedido em caso da concepção in vitro, ocorrida enquanto o genitor ainda estava vivo, mesmo que a implantação do óvulo fecundado na receptora se dê após sua morte. Logo, a fecundação ocorrida no útero da mulher partindo de sêmen criopreservado do doador pré-morto não ensejaria qualquer direito sucessório.Como demonstramos, o problema não encontra solução pacífica na doutrina. Até que surja legislação específica sobre a matéria, que engendre e formule meio de resolver a questão, o julgador deve intervir estabelecendo limites, consubstanciado nos princípios constitucionais, de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.Nesse contexto, defendemos a criação de legislação específica que discipline a aplicação da inseminação artificial, bem como, seja capaz de regular as questões sucessórias, posição corroborada por diversos autores e operadores do direito, tais como: Maria Helena Diniz, Maria Berenice Dias, Silvia da Cunha Fernandes e Aline de Castro Brandão Vargas. Por certo, a elaboração do referido diploma legal deve guardar conformidade com os princípios já mencionados anteriormente. A questão da capacidade sucessória do concebido post mortem será tratada obrigatoriamente de modo a proporcionar uma solução adequada, que ao mesmo tempo proteja os direitos da criança advinda por meio desta técnica, como também não cause incerteza prolongada em demasia aos herdeiros nascidos ou já concebidos quando da abertura da sucessão. Lamentavelmente o Projeto de Lei número 1184/2003 que apensou doze outros projetos, que tratavam da reprodução assistida em nosso país, nada dispôs acerca dos direitos sucessórios, deixando transparecer a intenção do legislador de postergar a abordagem deste aspecto. Consideramos que a solução mais acertada envolve, à exemplo da legislação espanhola e do disposto no art. 14 § 2º, III do referido projeto de lei, a exigência de manifestação do doador no que tange à possibilidade de inseminação após sua morte, fixando um prazo de até dois anos para que se dê a concepção, sob pena de decadência (mesmo prazo adotado na hipótese de prole eventual). Desta forma, a partilha não estaria sujeita a alterações por um período demasiadamente longo. Ademais, no silêncio dessa autorização expressa e formal, qualquer procedimento deveria ser proibido, e se caso viesse a ocorrer, o profissional da medicina que o realizou, bem como, a mulher receptora que contratou seus serviços deveriam sofrer severa sanção penal. No tocante aos direitos sucessórios, acreditamos que o filho concebido mediante autorização seria legitimado para suceder na condição de herdeiro necessário. Ainda se a concepção ocorreu sem autorização, que a pena imposta não atinja a pessoa do filho e nem tampouco tenha o condão de impedir ou limitar seus direitos sucessórios, pois seria inadmissível puni-lo unicamente por ter nascido.Esta pesquisa não teve a pretensão de esgotar as muitas discussões que a temática sugere, dada sua complexidade e relevância. Todavia, firmamos nosso entendimento de que o caminho para a resolução da problemática, não passa pela simples negação dos direitos sucessórios, em face da inexistência de regramento jurídico. Os interesses das crianças, independentemente da forma como foram geradas, devem ser protegidos. Assim sendo, enquanto não se cuidar na elaboração de lei que discipline de forma adequada as técnicas de reprodução humana assistida, o direito sucessório dessas pessoas deverá ser interpretado à luz da Constituição Federal.


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LIMA JÚNIOR, Daniel Verissimo de. Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no âmbito do direito sucessório. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3546, 17 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23960. Acesso em: 19 abr. 2024.