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Peculato em prol da Administração Pública: contraditio in terminis

Peculato em prol da Administração Pública: contraditio in terminis

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Para a configuração do peculato, não basta a vontade de apropriar, desviar, ou furtar. É imperiosa a finalidade de haver proveito próprio ou alheio.

Resumo: Este trabalho tem o escopo de demonstrar a patente contradição quando se afirma que comete o delito de peculato quem utiliza o bem a favor da Administração. Não é uma tese, em verdade, para beneficiar os que amiúde violam os preceitos legais. É, com efeito, uma concretização de justiça, evitando-se que os possíveis infratores da lei civil/administrativa sejam sancionados com os rigores do Código Penal.

Palavras-chaves: Peculato. Administração beneficiada. Contradição.


1. INTRODUÇÃO

Não há dúvidas que a corrupção pública é um indigesto problema que assola o cenário nacional. Tanto pior: as notícias de impunidade causam um misto de revolta e sensação de desamparo à população, mormente porque os “escândalos” alcançam todos os “Poderes”[1]: Executivo, Legislativo e Judiciário.

Por seu turno, é clarividente a necessidade de respostas enérgicas, pois que a corrupção além de causar o descrédito do País no âmbito internacional, impede (por aumentar a escassez de recursos) que a população exerça os direitos constitucionalmente assegurados, a exemplo da saúde e da educação.

Nesse contexto, alguns juristas, ao se depararem com a letra fria do art. 312 do Código Penal, argumentarão no sentido de que seja qual for o destino dado ao bem móvel, público ou particular, o funcionário público merece ser sancionado com as penas previstas no artigo.

Entretanto, tal asserto merece um pouco mais de reflexões. Com efeito, para que haja a compreensão do sentido de algo é mister a presença de um pré-conhecimento daquilo que se quer compreender.

Ocorre que para o jurista, notadamente o que atua na seara penal, esse “pré-juízo” não deve ser inquinado. Assim, não se pode querer sancionar com a Cártula Penal quaisquer condutas que firam o ordenamento jurídico.

Eis que uma questão se mostra interessante: o funcionário público que age em benefício da própria Administração comete o delito de peculato? A proposta do presente trabalho, pois, é traçar uma análise crítica sobre a questão ora aventada.

É preciso dizer, ainda, por imperioso, que se torna patente uma “inversão de valores”: o common law vem se calcando na positivação do direito pela norma legal. Ao revés, o civil law (forma de sistematização adotada por nós) vem percorrendo a vereda das decisões jurisprudenciais. Isso, então, explica a quantidade de jurisprudência exarada no presente trabalho.


2. ESCORÇO HISTÓRICO

Roma. O uso de moeda cunhada ainda não tinha sido introduzido. O gado (pecus), então, nos primeiros tempos, servia para realizar compras, pagar tributos e multas. Costumava-se, outrossim, oferecer tal espécie de animal em sacrifício aos deuses pagãos[2].

Século V a. c. Sérvio Túllio (Servius Tullius) introduz a utilização da moeda. Nela fora inserida a figura de bois. Assim, seja de forma simbólica ou não, é certo que o gado era uma das formas de expressão de riqueza[3].

É justamente daí, como bem lembra João Vieira de Araújo[4], que vem a origem da palavra “peculato”[5], derivada de pecus, consistente na subtração de coisas que pertenciam ao Estado, sendo reprimida como peculatus ou depeculatus[6]

Assinale-se, en passant, que ao erigir o peculato à figura de delito autônomo, o Direito Penal romano não o caracterizou pela qualidade especial do agente, podendo este ser funcionário público ou particular. O foco principal, todavia, era a qualidade do bem móvel (pública, religiosa ou sacra) sobre o qual recaía a ação, enfocando-o sempre como delito contra o Estado[7]. Só depois de certo tempo é que se tornou o furtum pecuniæ vel fiscalis[8].

Mencione-se, ainda, que malgrado o delito em comento ter pululado com a supracitada denominação entre os romanos, tanto o Código de Hamurabi como o Código de Manu já tratavam das subtrações de bens pertencentes ao rei, apenando o agente com a morte[9].

É de bom alvitre trazer ao lume que o peculato abrangia, além do furto, também a apropriação indébita, alcançando particularmente a quantia devida ao erário pelos funcionários encarregados da contabilidade, na soma resultante da tomada de contas (crimen de residuis): Lege Julia de residuis tenetur qui publicum pecuniam delegatum in usum aliquem retinuit, neque in eum consumpsit[10] (L. 4, §3º, 4, D. ad. leg. Jul. de peculatum).

A maior preocupação, ressalte-se, era impedir que houvesse dano ao erário, chegando-se, então, a considerar peculato toda fraude cometida contra o tesouro público, ainda que não representasse subtração ou desvio de dinheiro[11].

Há inúmeros exemplos dessa conduta delituosa: o fato de autoridades competentes para o recebimento de uma dívida em favor do erário romano perdoarem ilegalmente a referida dívida; a alteração do valor da moeda cunhada nas oficinas do Estado, utilizando-se liga diversa daquela estabelecida em lei; a hipótese de se cunhar moeda pública acima da quantidade autorizada, visando beneficiar os funcionários encarregados de tal função; a manipulação fraudulenta dos livros da contabilidade pública ou o seu desaparecimento[12].

O delito, todavia, é preciso dizer, não se limitou à subtração dos bens pertencidos ao Estado. Anota GALDINO SIQUEIRA que

Pela lex Julia peculatus, o crime passou a comprehender tambem o furto de coisas sagradas, e ainda o desvio de dinheiros privados confiados a depositarios publicos: non solum pecuniam publicam, sed etiam privatum peculatum facere (L. 9, §3º, eod tit.).[13]

A ação penal, no tocante ao peculato, podia ser interposta inclusive em relação aos herdeiros do agente.

O delito em exame foi reprimido inicialmente com a pena capital, ao lado do sacrilégio, passando-se, a posteriori, para a aplicação da interdictio aquæ et ignis[14], a deportação e o confisco.

A pena capital, entretanto, por ocasião do Império, voltou a ser aplicada ao peculato praticado pelos magistrados. Nessa época, as condutas mencionadas quando praticadas contra bens do Imperador também constituíam peculato, já que os bens deste se equiparavam aos do Estado.

Contra os fundos municipais, por seu turno, o peculato era punido com arrimo nos estatutos locais. No entanto, a partir de Trajano e Adriano, o peculato municipal foi equiparado ao público[15].

Também em Atenas os depositários das autoridades públicas que subtraíam dinheiro do Estado eram sancionados com a morte, sendo a pena capital substituída pela pecuniária no caso de o arrecadador incorrer em mora no recolhimento do dinheiro estatal.

Observa-se que a aplicação de penas cruéis aos peculadores fora marcante. Tal posição, aliás, fora mantida na Idade Média. Cite-se o exemplo do Código de Florença, no qual se previa que aquele que empreendesse fuga com dinheiro público deveria ser amarrado à cauda de um burro e arrastado pelas vias públicas da cidade[16].

Em Veneza, os condenados pelo crime de peculato tinham seus nomes esculpidos numa prancha de mármore, como infâmia eterna. Alguns estatutos, no entretanto, aplicavam as mesmas reprimendas destinadas aos ladrões. As reprimendas previstas para o referido delito foram mitigadas apenas com o advento do movimento humanista do século XVIII.

Na Espanha, as Partidas e as Recompiladas puniam rigorosamente o peculato perpetrado pelo tesoureiro, arrecadador e juiz, além dos cúmplices, cujo delito consistia em furtar dinheiro do erário. Os Códigos italianos (o das Duas Sicílias, de 1819; o Toscano, de 1853, e o Sardo, de 1859) também reprimiam com certo rigor o peculatário.

Em França, o delito atingiu índice muito alto e, por consectário, muitos peculatários foram condenados à morte. Os editos baixados em 1530, 1532 e 1540 determinavam que aquele que praticasse fraude nas finanças públicas deveria ser enforcado.

A Ordenança de 1629 disciplinou amplamente as diversas formas de subtração do dinheiro público, utilizando-se freqüentemente da pena de morte. O peculato foi ainda severamente reprimido durante o reinado de Luís XIV, com as Ordenanças de 5 de maio de 1690 e de 2 de junho de 1701.

Posteriormente, como a severidade da reprimenda não conseguiu arrefecer a prática de tal crime, as penas foram mitigadas, sendo inclusive decretada uma anistia geral para os acusados desse crime em 1717.

O Código Penal Francês de 1810, por sua vez, arts. 166 e segs, não deixou de reprimir aqueles que cometiam o crime de peculato. Entretanto, não fora utilizada tal denominação específica. Punia-se, em verdade, os abusos funcionais sob a genérica denominação de forfaiture (prevaricação).

As Ordenações Filipinas tratavam do peculato no Livro V, no Título LXXIV, sob a rubrica “Dos Officiaes del-Rey”, que lhe furtam, ou deixam perder sua Fazenda per malicia[17]. O Código de 1830, por sua vez, previu o aludido crime no Título VI (segunda parte), que tratava dos crimes contra o “thesouro publico e propriedade publica”, mais precisamente no artigo 170[18].

O Código de 1890 inseriu o peculato no Título V, atinente aos crimes contra a boa ordem e administração publica, nos artigos 221 a 223[19]. Os contínuos desfalques promovidos nos cofres públicos levaram o legislador penal a alterar várias vezes a supracitada norma, para clarear o seu conteúdo e majorar as penas, culminando por editar o Decreto 4.780, de 27 de dezembro de 1923, cujos artigos 1.º a 4.º passaram a fazer parte da Consolidação das Leis Penais, como artigos 221, 222 e 223.

O Código de 1940, embora seguisse o diploma italiano como modelo básico, dele se afastou, não distinguindo bens públicos e particulares. Com efeito, o Código italiano denomina peculato tão-somente a conduta que recai sobre um bem público, reservando a denominação de malversação para a ação do agente que lesa um bem particular, quando se encontra este sob a tutela da Administração Pública.


3. OBJETIVIDADE JURÍDICA

No que tange ao delito de peculato, o direito penal quer assegurar a normalidade do desempenho funcional das pessoas que integram a Administração, cujo escopo é fazer com que os fins que lhes são próprios sejam corretamente concretizados, notadamente os que alcançam o bem comum, além de garantir que os bens móveis (públicos ou particulares) não sejam deslocados dos seus destinos.

O escopo é punir, decerto, a disfunção pública[20]. Afasta-se o interesse particular; sobreleva-se o interesse coletivo.

Enfatize-se que mesmo se tratando de bens particulares a Administração é efetivamente afetada, porquanto pode advir uma responsabilidade injusta da Administração frente ao particular[21]. É de bom alvitre gizar, no entanto, que se o bem é utilizado em prol da Administração, essa responsabilidade não será mais injusta, o que faz descaracterizar o delito de peculato.

Explique-se melhor: o funcionário público (lato sensu) ao empregar os bens em proveito da Administração, age como uma longa manus Desta, única beneficiada. Não há abuso do cargo, emprego ou função, tampouco dano ao erário. Assim, uma eventual responsabilização que o Estado venha sofrer, desse modo, não será mais injusta.

Mais a mais, é imperioso ter em mente que aquele que utiliza um bem em benefício da administração tem uma conduta diametralmente oposta daquele que age com o escopo de beneficiar a si ou a terceiro.

Protege-se a Administração, portanto, em dupla vertente: do ponto de vista patrimonial, pois que se busca zelar pelo erário e, do ponto de vista moral, já que impõe ao funcionário público um dever de lealdade, probidade, honestidade. Por isso, costuma-se dizer que o peculato é um crime pluriofensivo[22].

Em suma, visa-se punir aquele que age exclusivamente contra o interesse coletivo. Quem o homenageia, d’outra banda, não merece os rigores do Código Penal:

Peculato – Não caracterização – Desvio de combustível para levar doente em veículo particular – Hipótese em que a ambulância estava quebrada – Serviço prestado em benefício da coletividade – (...) Ausência, ademais, de dolo ou proveito próprio ainda que irregular a conduta – Recurso não provido[23] (destaque nosso).


4. SUJEITOS DO DELITO

Como bem salienta CLAUS ROXIN, “só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que não seja simplesmente pecaminoso ou imoral[24]”. Eis o motivo de a autolesão não ser crime[25].

Para existir algum delito, portanto, é mister que alguém viole o direito de outrem, ou seja, há de haver, no mínimo, um sujeito ativo e um sujeito passivo, sendo que ambos não podem ser confundidos na mesma pessoa. Analisemos, então, cada um dos sujeitos do peculato.

4.1. SUJEITO PASSIVO

Pode-se definir sujeito passivo como sendo aquele que possui a titularidade do interesse cuja ofensa indica a essência do crime.

O sujeito passivo do crime em comento é, sem dúvidas, a Administração Pública, ou seja, a União, o Estado-membro, a autarquia ou a entidade paraestatal. Poderá, também, o particular sofrer o delito quando o seu bem for apropriado, desviado ou furtado. Nesse caso, ele será sujeito passivo secundário.

4.2. SUJEITO ATIVO

O sujeito ativo, a seu turno, é aquele que pratica o fato descrito na norma penal[26].

No caso do peculato, por se tratar de um crime próprio, só pode ser sujeito ativo o funcionário público[27], ou aquele expressamente equiparado para fins penais (art. 327, § 1.º, CP). Entretanto, por se tratar de elementar do crime em balha, comunica-se essa circunstância ao particular que atue como co-autor ou partícipe do delito (art. 30, CP), desde que tenha consciência da qualidade especial do funcionário público.

Assim, se o particular ignora que o sujeito qualificado é funcionário público, não responderá pelo crime de peculato, podendo ser aplicado, no caso, o disposto no artigo 29, § 2.º, do Código Penal (cooperação dolosamente distinta).

4.2.1. QUANDO O PREFEITO É SUJEITO DO CRIME (DL 201/67)

Pelo princípio da especialidade, evitando-se, assim, o conflito de normas, aplica-se o Decreto-Lei 201/67 quando a apropriação ou o desvio forem realizados pelo Prefeito. Eis o teor do art. 1º, I, do diploma legal supracitado:

Art. 1º. São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara de Vereadores:

I – apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio.

Mas esse dispositivo só pode ser aplicado em alguns casos. Isso porque há um detalhe claro que não é lembrado pela doutrina[28]: os bens ou rendas precisam, necessariamente, ser públicos.

Destarte, para que não se chegue ao absurdo de tornar atípico o fato de o prefeito se apropriar ou desviar os bens particulares para benefício próprio ou de terceiro, é mister que se aplique, nesse caso, o Código Penal (art. 312).

Ademais, é imperioso saber se o Prefeito Municipal tem a posse da coisa. Pois do contrário, ele somente poderá cometer o crime de peculato-furto, tendo que antes subtrair ou facilitar que seja subtraída a coisa, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário.

Aplica-se neste particular, raciocínio análogo ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça concernente à apropriação indébita previdenciária. Ou seja, o Burgomestre não pode cometer peculato-apropriação ou peculato-desvio acaso não seja o responsável direto:

Apropriação indébita. Falta de recolhimento de contribuição previdenciária. Não inclusão do Prefeito como sujeito ativo. O Prefeito não é responsável direto, nem pelo desconto e nem pelo recolhimento das contribuições previdenciárias.[29]


5. TIPO OBJETIVO

É cediço que para se configurar, sob o aspecto do injusto penal, um crime, há, incontestavelmente, necessidade de ocorrer fato típico e antijurídico (para outros, ainda, a culpabilidade; terceiros, averbe-se, acrescem a punibilidade).

O fato típico, por demais conhecido, é o comportamento humano (conduta) que se amolda ao enquadramento previsto no tipo penal (tipicidade), provocando, em regra, um resultado.

Mencione-se, sob tal reflexão, que se tem como necessário punir o funcionário que flexiona o núcleo do tipo de forma consciente e voluntária. É mister, pois, a presença do tipo objetivo e do subjetivo.

O tipo objetivo ou aspecto objetivo do tipo legal é composto por um ou mais núcleos, representado por seus verbos (ação ou omissão) correspondentes, além de elementos secundários (objeto da ação, resultado, nexo causal etc). Configura-se, pois, no aspecto externo do tipo doloso, ou seja, na manifestação de vontade no mundo físico exigida pelo tipo.

Adverte-nos WELZEL que o fundamento material de todo delito é a concretização da vontade num fato externo, pois crime não é somente a vontade má, mas a vontade má concretizada num fato. O fato externo é, assim, a base da construção dogmática do delito[30].

Entende-se imperioso, nesse contexto, por ser mais didático, separar o tipo objetivo do tipo subjetivo, mormente porque, como é cediço, os crimes dolosos se caracterizam pela coincidência entre o que o autor quis e o que ele realizou.

Averbe-se, ainda, que não será possível estudar todos os núcleos do peculato, mormente porque isso alteraria o foco do presente trabalho. Para nós, portanto, só será interessante escarafunchar as espécies contidas no caput e §1º, do art. 312, do Código Penal brasileiro, quais sejam, peculato-apropriação (1ª parte), o peculato-desvio (2ª parte) e o peculato-furto (§1º)

Para isso, então, mister exarar de que forma fora tipificado, pelo legislador pátrio, o delito de peculato:

Art. 312 do CP – Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio

Pena – reclusão de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa

§ 1º Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário.

Tracemos, nesse contexto, uma breve análise de cada uma das espécies já mencionadas.

5.1. PECULATO-APROPRIAÇÃO

O bom vernáculo assim define um dos núcleos do tipo em baila:

Apropriar [do lat. appropriare]: 1. tomar como propriedade, como seu; arrogar-se a posse de; 2. Tomar como próprio ou conveniente; adequar, adaptar, acomodar; 3. tornar próprio, seu; apossar-se de; (...)[31] (destaque nosso).

Nesse tanto, há de se ter como elementos de sua estrutura conceitual a precedente posse (ou detenção)[32] lícita da coisa alheia móvel, a sua conseqüente apropriação por dolo e, implicitamente, o elemento subjetivo especial do tipo.

Com efeito, em sintonia com doutrina e jurisprudência pátria pacífica, para que haja a apropriação é indispensável que haja a inversão da posse, de modo a transformá-la em o domínio, devendo o agente agir como se fosse dono, ou seja, é fundamental que haja a incorporação da res apropriada, ainda que temporariamente, ao patrimônio do réu, sendo este o pressuposto material do crime, além do proveito próprio ou alheio.

Sobre o tema, ANTONIO PAGLIARO e PAULO JOSÉ DA COSTA JR. esclarecem que

Poderá perfazer-se a conduta do peculato dito próprio, previsto no art. 312, caput, de dois modos: mediante apropriação ou desvio.

Apropriar-se é assenhorar-se da coisa móvel, passando a dela dispor como se fosse sua, usufruindo-a como se fosse seu senhor (uti dominus), em proveito próprio ou alheio.[33] (destaque nosso).

Podemos citar como exemplo o carcereiro que recebe os objetos do preso e os toma para si ou mesmo o policial que apreende objeto do bandido e fica com ele.

5.2. PECULATO-DESVIO

Essa segunda modalidade requer que o funcionário público mude a direção do bem a destino diverso daquele que originariamente tinha sido atribuído, com o escopo de ter proveito para si ou para outrem. Vale dizer: se o funcionário público, v. g., emprestar dinheiro público de que tem a guarda para ajudar amigos, estará cometendo o delito em questão.

5.3. PECULATO-FURTO

Enquanto o caput do art. 312 é classificado como peculato próprio, o peculato-furto é tido como peculato impróprio, caracterizando-se pelo animus furandi, ou seja, o funcionário possui vontade consciente de subtrair ou concorrer para que seja subtraída, em proveito próprio ou alheio, a coisa, pública ou privada, sob guarda ou custódia da Administração, valendo-se da facilidade que lhe proporciona o cargo, emprego ou função.

Eis o que preleciona WALDO FAZZIO JÚNIOR acerca do tema:

Subtração é a retirada às escondidas, sub-reptícia. É o furto. O bem móvel fica sujeito a exclusiva titularidade dispositiva do agente público. Este quer a coisa para si, com ânimo definitvo (animus rem sibi habendi) ou para terceiro. Se objetiva, apenas, utilizá-la, transitoriamente, restituindo-a na seqüência ao dono, não há furto (ou qualquer outro ilícito penal). Para o peculato-furto, deve o agente público ter disponibilidade uti dominus da coisa.[34]

Exemplo de tal conduta delituosa é o do funcionário público que abre o cofre da repartição onde trabalha e leva os valores que nele estavam guardados. Ou mesmo do policial que subtrai o cd player de carro apreendido que está no pátio da delegacia.


6. TIPO SUBJETIVO

O tipo subjetivo é constituído de um elemento geral – dolo[35] –, que, por vezes, é acompanhado de elementos especiais – intenções e tendências, que são elementos acidentais[36]. Não é demasiado comentar que, na definição da conduta típica, os elementos subjetivos assumem considerável importância, mormente porque é através do animus agendi que se consegue identificar e qualificar a atividade comportamental do agente.

Assim, para poder classificar um comportamento como típico, precisa-se conhecer e identificar a intenção (vontade e consciência) do agente, notadamente quando a figura típica exige também o elemento subjetivo especial do tipo.

6.1. ELEMENTO SUBJETIVO ESPECIAL DO TIPO: EM PROVEITO PRÓPRIO OU ALHEIO

Em todas as modalidades mencionadas, com efeito, é imperioso que o proveito esteja presente, ainda que implícito. Desprezá-lo, pois, é malbaratar as regras mais comezinhas da hermenêutica[37]. Ipso facto, é mister ter em mente a concepção bem lançada de MAGGIORE:

Tanto l’appropriazione che la distrazione devono essere acompagnate dalla finalità del profitto. La legge parla di tale estremo solo a proposito della distrazione, perchè nella appropriazione esso è implicito: che fa sua una cosa è, per ciò stesso, già un profittatore.[38]

Por certo, alguns tipos penais não se limitam, necessariamente, ao dolo. Muita da vez é mister a presença do elemento subjetivo especial do tipo, que a doutrina clássica denominava, impropriamente (a nosso sentir), de dolo específico. No sempre apropriado ensinamento de WELZEL:

Ao lado do dolo, como elemento genérico pessoal-subjetivo, que leva e forma a ação como um acontecer dirigido a um fim, aparecem no tipo, freqüentemente, elementos especiais pessoais-subjetivos, que dão um colorido ao conteúdo ético-social da ação em um sentido determinado.[39]

Desse modo, ao subtrair uma coisa alheia, age-se dirigido a um fim por imperativo do dolo. Mas seu sentido ético-social pode ser distinto a depender de como o autor direciona sua ação: pode-se ter o fim de uso passageiro ou o propósito de apropriar.

O especial fim ou motivo de agir, é preciso dizer, amplia o aspecto subjetivo do tipo, todavia não integra o dolo, nem com ele pode ser confundido. Enquanto o dolo se esgota na consciência e vontade, materializando-se no fato típico, o especial fim de agir condiciona ou fundamenta a ilicitude do fato. Acresça-se, ainda, que a ausência do elemento subjetivo especial descaracteriza o tipo subjetivo, independentemente da presença do dolo.

Sobre a questão, preconiza DAMÁSIO E. DE JESUS:

É o dolo, vontade livre e consciente de concretizar os elementos objetivos do tipo. Exige-se o animus rem sibi habendi, i. e., a intenção definitiva de não restituir o objeto material e de obter um proveito, próprio ou de terceiro, de natureza moral ou patrimonial. Assim, além do dolo, o tipo requer um fim especial de agir, o elemento subjetivo contido na expressão ‘em proveito próprio ou alheio’. Esse elemento é exigido nas duas modalidades (peculato-apropriação e peculato-desvio).[40]

A preocupação com o “proveito próprio ou alheio”, vale mencionar, não está adstrita ao direito pátrio. O Código Penal Português (Decreto-Lei n.º 48, de 15 de Março  de 1995) expressamente aduz:

Artigo 375º

Peculato

1 - O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. (destaque nosso).

O Código Penal Espanhol (Ley Orgánica de 23−11−1995, núm.10/1995), ressalte-se, vai além, exarando a necessidade do ânimo de lucrar:

DA MALVERSAÇÃO

Artigo 432.

1. A autoridade ou funcionário público que, com ânimo de lucro, subtrai ou consente que um terceiro, com igual ânimo, subtraia as riquezas ou efeitos públicos que tenha a seu cargo por razão de suas funções, incorrerá na pena de prisão de três a seis anos e inabilitação absoluta por tempo de seis a dez anos.[41] (negrito nosso).

6.2APROPRIAÇÃO, DESVIO OU FURTO REVERTIDOS EM PROVEITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: FATO ATÍPICO

Depreende-se da leitura que, para a configuração do peculato, não basta a vontade de apropriar, desviar, ou furtar. É imperiosa a finalidade de haver proveito próprio ou alheio. Como bem lembram EUGENIO RAÚL ZAFFARONI e JOSÉ HENRIQUE PIERANGELI: “A vontade implica sempre uma finalidade, porque não se concebe que haja vontade de nada ou vontade para nada (...)[42]

Com efeito, a literatura, muita da vez, nos fornece maiores elementos do que um estudo científico. Ipso facto é que se costuma afirmar que se aprende mais psicologia em Machado de Assis e em Dostoiévski do que em Freud, ou mesmo mais “arte da persuasão” em Shakespeare do que em Max Horkheimer, Theodor Adorno e Jürgen Habermas, só para exemplificar.

Sob tais reflexões, abeberando-se das lições de ANDRÉ GIDES, podemos observar como, em seu fantástico “Os Subtarrâneos do Vaticano”, ele nos conta minudentemente o momento em que Lafcadio resolveu matar Fleurissoire:

(...)‘Quem o veria?’, pensava Lafcadio. ‘Aqui, pertinho da minha mão, debaixo da minha mão, esta fechadura dupla que posso fàcilmente manejar; essa porta que, cedendo de repente, o deixaria cair para frente; um empurrãozinho bastaria; êle cairia, dentro da noite, como uma massa; nem se ouviria um grito... E amanhã a caminho para as ilhas!... Quem o saberia?

(...)

Um crime sem motivo’, continuava Lafcadio, ‘que atrapalhação para a polícia! De resto, nessa bendita encosta, qualquer pessoa pode, do carro vizinho, reparar que uma porta se abre, e ver a sombra do chinês pular. Ao menos as cortinas do corredor estão fechadas...[43] (destaque nosso).

Em verdade, poder-se-ia acreditar, numa visão apriorística e açodada, que o crime de Lafcadio fora cometido sem motivo. Entretanto, não foi o caso.

O que se quer demonstrar com excerto acima? Simples: toda conduta humana, máxime no caso particular do crime, é baseada em um motivo. Aliás, há muito o preclaro Nelson Hungria já ensinava que não há crime sem motivo. Lafcadio, por exemplo, queria demonstrar para si mesmo que ele era livre e por isso poderia cometer o homicídio. Percebe-se isso, principalmente, na seguinte passagem: “Não é tanto dos acontecimentos que eu tenho curiosidade, mas de mim mesmo. A gente se julga capaz de tudo, mas, diante da ação, recua...[44]

Além do motivo, é preciso, outrossim, esquadrinhar a finalidade contida na psique do autor (no caso do peculato: intuito de obter proveito para si ou para outrem). A depender do motivo e do fim, o delito de peculato pode inexistir, pois, para a ocorrência do delito, é necessária uma ação com significação penal.

Nesse contexto, é curial observar que o delito em comento está topograficamente localizado no título “Dos crimes praticados por funcionário público contra a Administração Pública” (destaque nosso). Assim, o proveito em prol da Administração não caracteriza o peculato.

O “alheio” a que a lei se reporta não pode englobar a própria Administração Pública. Seria ilógico pensar em um ato que seja ao mesmo tempo contra e em prol da Administração. Os Tribunais vêm corroborando tal afirmação:

Delito atribuído a prefeito municipal – Acusado que, tão logo tomou posse do cargo, determinou o levantamento da contabilidade da administração anterior – Ausência de autorização orçamentáriaDespesa que não redundou, porém, em proveito próprio ou alheio, mas da própria Administração Pública – Dolo (rectius, elemento subjetivo do tipo), portanto, inexistente. É indispensável, para a existência do crime de peculato, que o desvio se faça em proveito próprio ou alheio. Se redunda em benefício da própria Administração, inocorre infração[45]. (destaque nosso)

Alguns até poderiam questionar que o título não é vinculativo. E mais: ainda que fosse, existe, sob o mesmo título, o delito de emprego irregular de verbas ou rendas públicas (art. 315), que se configura mesmo quando as verbas ou rendas são aplicadas em favor da Administração.

Conquanto interessante, a tese não pode prosperar.

Isso porque a questão do título é só mais um argumento. De qualquer sorte, o que se visa a proteger é a Administração. Ou seja, deseja-se impedir que o funcionário, eivado de má-fé, aja de modo tumultuado, irracional.

Aquele que, efetivamente, reverte a coisa em benefício da própria Administração não é, nem de longe, um criminoso.

Ademais, o art. 315 sequer deveria ser um tipo penal, por não ter, ontologicamente falando, força para tanto. É uma mera irregularidade administrativa.

No mesmo sentido PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR, comentando o artigo 315 do Código Penal, assevera:

A conduta é comum na administração pública. Por isso, não são poucos os que condenam erigir semelhante conduta à categoria de delito, mormente diante da moderna tendência de descriminalização. Outros (Basileu Garcia) chegam a alertar, a propósito: ‘Não acreditem muito na punição desse crime...’.[46]

Desse modo, é mais correto acreditar, reitere-se, que quem desvia, apropria ou furta para concretizar uma finalidade de cunho coletivo não comete, em tese, o delito de peculato. Esse também é o posicionamento exposto por ANTONIO PAGLIARO E PAULO JOSÉ DA COSTA JR., trazendo à baila que:

(...) é necessário observar que o desvio da coisa que venha a destinar-se, ainda que indevidamente, a uma finalidade pública não poderá constituir-se o crime de peculato.

Nessa hipótese não há lesão à imparcialidade da administração e não deverá ser aplicada ao agente a grave pena prevista para o peculato, nem mesmo se a coisa vier a ser destinada a um ente público diverso daquele ao qual a coisa pertença.

Para que se configure o peculato é necessário o uso da coisa em contrariedade a qualquer finalidade de utilidade pública.[47] (destaque nosso).

Um exemplo, no que cerne bens particulares, parece ocorrer com freqüência: quando o Município desconta parcela do servidor e, no entanto, não repassa para o credor. Esse fato, inclusive, ocorreu em Juazeiro, Bahia, motivo, aliás,  que deu início ao presente trabalho.

Pois bem.

Foi celebrado um contrato entre o banco Sudameris S. A. e o Município baiano para que os servidores deste efetuassem, junto à instituição financeira, empréstimos bancários cujos valores seriam descontados em folha de pagamento e repassados para o contratado.

Ocorre, todavia, que aconteceram alguns atrasos no repasse. Nesse tanto, o Ministério Público entendeu ser necessário denunciar o ex-prefeito (Processo nº 690084-8/2005), pois que o contrato vinha sendo continuamente desrespeitado, em virtude dos atrasos mencionados. E mais: presumiu-se que o denunciado havia se apropriado das quantias em virtude da mora do Município. Utiliza-se o verbo “presumir” porque não havia provas de tal conduta nos autos. Ao revés, tudo levava a crer que jamais houve apropriação por parte do acusado.

Data venia, não foi o melhor viés a ser adotado. Não se pode olvidar que a lei penal é um ato solene de resposta aos problemas sociais fundamentais que se apresentam como gerais e duradouros numa sociedade. Ademais, consoante o princípio da proporcionalidade abstrata, só as graves violações aos direitos humanos podem ser objeto de sanções penais. As penas, pois, devem ser proporcionais ao dano causado pela violação[48].

Assim, proporcionalmente, tal irregularidade enseja apenas uma ação de cobrança, até mesmo porque só se pode sancionar penalmente quando houver prova cabal da inexistência de modos não-penais de intervenção para dirimir as situações conflitantes. Como é de costume se afirmar, o direito penal é a ultima ratio.

Percebe-se, ainda, que a conduta do Alcaide não é revestida de dolo, já que ele não se apropria, desvia ou furta as quantias. Carece, outrossim, de elemento subjetivo especial do injusto, mormente porque inexiste proveito próprio ou alheio. Apenas a Administração é beneficiada, ante as necessidades momentâneas apresentadas. Desse modo, somente a Ela pode se cobrar as quantias.

Vale ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça, ao decidir sobre o tema, se posicionou no mesmo sentido:

Recurso Especial - Prazo - Férias Forenses - Peculato atribuído a prefeito - Desconto de servidores sem repassar o montante ao credor - Tribunal "a quo" que não recebe a denúncia, por ausência de dolo (...)[49] (destaque nosso).

Em seu voto, o relator aduz:

O Tribunal local, por expressiva maioria, não recebeu a peça acusatória, que enquadra o chefe do executivo municipal no art. 312, do CP (peculato), fulcrado no voto condutor do Desembargador Dário Rocha (fls 92/93), no sentido de que a mera retenção de dinheiro dos credores, por parte do Poder Público, não caracteriza uma apropriação indébita (mais apropriadamente peculato), sendo apenas viável uma ação de cobrança. Assim, não teria havido a intenção do prefeito em ficar com o dinheiro, e, sem o dolo requerido pela figura, não seria típica a sua conduta.[50] (destaque nosso)

Pensar, portanto, de modo diverso é o mesmo que entender que sempre que a Administração Pública se tornar inadimplente com alguém restará configurada uma hipótese de peculato. Tal quimera não pode ser aceita, tanto é que já fora rechaçada pelo Superior Tribunal de Justiça:

Recurso Especial - Peculato-desvio - Denúncia que não descreve, suficientemente, circunstâncias essenciais à caracterização do delito - Responsabilização objetiva - Suposto delito que se confundiria com mera responsabilidade civil, por quebra de contrato. 1. Não se pode confundir o mero descumprimento de contrato, com o peculato-desvio, o qual exige o elemento subjetivo do tipo, que é o de desviar em proveito próprio, ou alheio, sob pena de incorrer-se na inaceitável responsabilidade objetiva. 2. Não se reveste de plausibilidade enxergar-se essa figura penal, toda vez que houver um descumprimento contratual, transmudando um problema do campo administrativo-civil, para o criminal. (...). [51] (destaque nosso).

Com a mesma prudência e reflexão, o Tribunal de Justiça de São Paulo firmou o seguinte posicionamento:

CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA - Peculato e emprego irregular de verbas ou rendas públicas - Descaracterização - Prefeito municipal que retém parcelas descontadas dos funcionários devidas ao IAPAS - Importâncias que não são consideradas verbas ou rendas públicas, e sim patrimônio do servidor - Quantias devidamente contabilizadas e empregadas em obras e serviços - Inexistência de apropriação ou desvio em proveito próprio ou alheio – (...).[52] (destaque nosso).

O ilícito cometido na seara cível/administrativa, por certo, é bem menos grave daquele cometido na seara penal. A diferença entre um e outro, portanto, não é ontológica, mas de grau.

Na sempre festejada lição de NELSON HUNGRIA

A ilicitude é uma só, do mesmo modo que um só, na sua essência, é o dever jurídico. Dizia Betham que as leis são divididas apenas por comodidade de distribuição: todas podiam ser, por sua identidade substancial, dispostas sobre um mesmo plano, sobre um só mapa-múndi. Assim, não há falar-se de um ilícito administrativo ontologicamente distinto de um ilícito penal. A separação entre um e outro atende apenas a critérios de conveniência e oportunidade, afeiçoados à medida do interesse da sociedade e do Estado, variável no tempo e no espaço.[53]

Com habitual clareza, CRETELLA JR. se posiciona no mesmo sentido, entendendo que

No campo do direito, o ilícito alça-se à altura de categoria jurídica e, como entidade categorial, é revestida de unidade ôntica, diversificada em penal, civil, administrativa, apenas para efeito de integração, neste ou naquele ramo, evidenciando-se a diferença quantitativa ou de grau, não a diferença qualitativa ou de substância.[54]

Sob tais reflexões, é preciso, pois, separar o infrator da lei civil/administrativa daquele que infringe a lei penal. Nesse viés, ALESSANDRO BARATTA preleciona que

A lei penal, portanto, não pode ser uma resposta imediata de natureza administrativa, como, por outro lado, o é freqüentemente na prática. Os problemas que se deve enfrentar têm que estar suficientemente decantados antes de pôr em prática uma resposta penal.

(...)

Uma pena pode ser cominada somente se se puder provar que não existem modos não penais de intervenção aptos para responder a situações nas quais estejam ameaçados os direitos humanos. Não basta, portanto, haver provado a idoneidade da resposta penal; também, requer-se demonstrar que esta não é substituível por outros modos de intervenção de menor custo social.[55]

Em suma, o funcionário que utiliza os bens particulares em proveito da Administração não tem o intento (tampouco seria possível) de auferir proveito para si ou para outrem. Ele pode até não ser um herói, mas tem por objetivo sanar algumas necessidades momentâneas.

O que dizer, d’outra banda, de um funcionário que utiliza os bens públicos em favor da Administração? O Tribunal de Minas Gerais, ao se posicionar sobre o tema, exarou:

Apelação criminal – Justiça militar – Peculato – Crime contra a administração pública – Absolvição – Recurso ministerial – Alegada existência de provas para condenação – Militar que utiliza doação de combustível para quitar dívidas do pelotão – Não-utilização em proveito próprio ou alheio – Ausência de infração penal – Recurso improvido – Se restar comprovado nos autos que o militar utilizou doação de combustível para quitar dívidas do pelotão, não utilizando em proveito próprio ou alheio, não há falar em infração penal de peculato, devendo ser improvido o recurso ministerial[56]. (destaque nosso)

O objetivo é punir, com efeito, aquele que intenciona obter proveito para si ou para outrem. Sem a prova dessa intenção, o crime de peculato inexiste, pois a ausência do elemento subjetivo especial do injusto acarreta atipicidade na conduta do agente, segundo a teoria finalista da ação. O fato, pois, é atípico.

O Egrégio Tribunal de Justiça da Bahia, corroborando a tese aventada no presente trabalho, exarou:

Não se encontrando na atuação do acusado o dolo que caracteriza o peculato-apropriação, e que pressupõe, conceitualmente, o animus rem sibi habendi, scilicet, a intenção definitiva de não restituir a coisa e a obtenção de proveito próprio ou alheio, não há falar no delito de peculato de que cogita o art. 312 do código penal. / Nas hipóteses de peculato-desvio, faz-se necessário, além do dolo genérico (vontade consciente e livre de empregar a res em fim diverso daquele que era destinada), o dolo específico, ainda quando excluido o animus rem sibi habendi. Não há falar, por igual, em peculato-desvio, se o agente muda o destino da coisa em proveito da própria administração. / Inocorrência de peculato por não ter sido efetivada apropriação sine jure de dinheiro, valor ou outra vantagem, por abuso do cargo ou infidelidade para com a administração. / Improvimento do apelo e confirmação da decisão absolutória do primeiro grau de jurisdição[57]. (destaque nosso).

É de se lembrar que a Administração é o sujeito passivo principal do crime, ou seja, ainda quando se trata de bens particulares, a Administração é “vítima” do delito, pois que Ela poderá ser injustamente responsabilizada pelo particular (verdadeiro dono do bem).

Ora, se a Administração é beneficiada, seu interesse maior queda-se tutelado: a coletividade. Acresça-se, ainda, que resulta injustificada a pretensão do sistema penal de tutelar interesses gerais que vão além dos da vítima. Assim, estando seu interesse-mor tutelado, não há que se falar em ato contra a Administração.


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com efeito, o peculato é o delito que mais demonstra a infidelidade para com a Administração, atingindo-a diretamente. Isso porque o funcionário público, aproveitando-se de sua posição “privilegiada”, atua de forma contrária à sua função, pois, tendo a posse da coisa móvel, intenciona obter proveito para si ou para outrem, violando o Estado sob o aspecto moral e patrimonial.  Não por outra razão, talvez, ele encabece os crimes contra a Administração.

A contrario sensu, é possível pensar, então, que aquele que reverte os bens em prol da Administração faz soçobrar a má-fé e o egoísmo, mormente porque não há uma determinação (individualização) dos sujeitos beneficiados. Quem busca satisfazer a coletividade, pois, age de modo impessoal.

Assim, aquele que favorece a Administração não pode, concomitantemente, ser infiel a Ela, máxime porque a boa-fé e o dolo se repelem. Sob tais reflexões, frente a manifesta contradictio in terminis, não há como subsistir o delito de peculato quando os bens são aplicados em favor da Administração Pública.


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Notas

[1] Posto que consideremos que se trata de “Funções”, exaramos a expressão “Poder” por se tratar de terminologia utilizada pela própria Constituição Federal.

[2] O peculato foi inserido no mesmo grupo do sacrilegium (furto de bens pertencentes aos deuses), já que os romanos não distinguiam juridicamente os bens divinos daqueles pertencentes ao Estado. (MOMMSEN, Teodoro. Derecho Penal romano. Trad. P. Dourado. Bogotá: Temis, 1991, p. 471-472)

[3] Ariosvaldo Pires (PIRES, Ariosvaldo de Campos. Compêndio de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 328), citando Luiz A. P. Victoria, nos informa que a palavra pecus serviu de origem, outrossim, para as palavras “pecúnia” e “pecúlio”.

[4] ARAUJO, João Vieira de. O código penal interpretado. Vol. I. Ed. Fac-similar – Brasília: Senado Federal: Superior Tribunal de Justiça, 2004, p. 126.

[5] Demetrio Tourinho traz ao lume que a repressão ao peculato foi ditada no Direito romano pelas Lex Julia peculatus, Lex Julia de residuis, além das leis Calpúrnia e Conélia. (TOURINHO, Demetrio Cyriaco Ferreira. Do peculato. 2. ed. Salvador: Progresso, 1954., p. 29-30)

[6] COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Comentários ao Código Penal. 4. ed. reform. e atual. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 986.

[7] Segundo alguns, o peculato era classificado no Direito Penal romano em próprio e impróprio. O primeiro se manifestava pela apropriação por parte do funcionário dos fundos públicos (aerarium) que lhe haviam sido confiados. O segundo representava a apropriação praticada pelos particulares (VILLADA, Jorge Luís, op. cit., p. 391).

[8] SIQUEIRA, Galdino. Direito penal brazileiro: (segundo o código penal mandado executar pelo Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890, e leis que o modificaram ou completaram, elucidados pela doutrina e jurisprudência) – Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003, p. 294. Tradução realizada pelo Professor da UnEB, Titular da Cadeira de Filosofia do Direito, José Pereira da Costa: “Furto de pecúnia pelo fiscal”.

[9] Dispunha o artigo 6.º do Código de Hamurabi: “Se um homem rouba qualquer coisa de propriedade de Deus ou do Palácio, será morto, e o que haja aceitado de suas mãos o produto do roubo, será também executado”. Determinava, ainda, o artigo 8.º: “Se um homem roubou um boi, ou uma ovelha, ou um asno, ou um porco, ou uma barca, sejam de Deus ou do Palácio, o restituirá trinta vezes mais; se são de um indivíduo qualquer, o restituirá dez vezes. Se o ladrão não tem com que restituir, será executado”. Destaquem-se, ainda, as seguintes normas do Código de Manu: “Art. 691. Que o rei faça perecer por diversos suplícios as pessoas que furtam seu tesouro (...); Art. 696. O rei deve fazer perecer sem hesitação aqueles que praticam uma brecha na casa do tesouro público, no arsenal ou em uma capela ou que furtam elefantes, cavalos ou carros pertencentes ao rei”. (Código de Hamurabi; Código de Manu, excertos: livros oitavo e nono: Lei das XII tábuas. Supervisão editorial Jair Lot Vieira. Bauru. Série clássicos. São Paulo: EDIPRO, 1994.)

[10] Tradução realizada pelo Professor da UnEB, Titular da Cadeira de Filosofia do Direito, José Pereira da Costa: “A Lei Julia qualificava como crime de resíduo, quando o funcionário público distraía dinheiros públicos que lhe tinham sido confiados para fim determinado”.

[11] MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Penal, v. III, t. VIII. Trad. Santiago Sentís Melendo e Marino Ayerra Redín. Buenos Aires: Ediar, 1961, p. 132; SOLER, Sebastian. Derecho Penal argentino, t. V. Buenos Aires: TEA, 1953, p. 189.

[12] MOMMSEN, Teodoro. Derecho Penal romano. Trad. P. Dourado. Bogotá: Temis, 1991, p. 473-474.

[13] Idem, ibidem. Tradução realizada pelo Professor da UnEB, Titular da Cadeira de Filosofia do Direito, José Pereira da Costa: “Não somente o furto do dinheiro público, mas também o do privado pode ser considerado peculato”.

[14] Tradução realizada pelo Professor da UnEB, Titular da Cadeira de Filosofia do Direito, José Pereira da Costa: interdição da água e do fogo.

[15] VILLADA, Jorge Luis, Delitos contra la función pública. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, s/d, p. 391.

[16] COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Op. cit, p. 987.

[17] Continha a norma em epígrafe a seguinte redação: “Qualquer official nosso, ou pessoa outra, que alguma cousa por nós houver de receber, guardar, despender, ou arrendar nossas rendas, ou administrar por qualquer maneira, se alguma das ditas cousas furtar, ou maliciosamente levar, ou deixar levar, ou furtar a outrem, perca o dito Officio, e tudo o que de Nós tiver, e pague-nos anoveado a valia daquillo, que assi fòr furtado, ou levado, e mais haja a pena de ladrão, que por nossas Ordenações aos ladrões he ordenada, segundo fòr a quantidade da cousa. E as mesmas penas haverão lugar nos nossos Officiaes, conteúdos nesta Ordenação de qualquer Officio que seja, que derem ajuda, conselho, ou favòr aos Officiaes para fazer cada huma das ditas cousas”.

[18] O aludido artigo definia o peculato como sendo a conduta de “apropriar-se o empregado publico, consumir, extraviar ou consentir que outrem se aproprie, consuma ou extravie, em todo ou em parte, dinheiros ou effeitos publicos, quer tiver a seu cargo: Penas. No grao maximo-perda do emprego, dous annos e um mez de prisão com trabalho e multa de 20% da quantia ou valor dos effeitos apropriados, consumidos ou extraviados. No gráo médio-perda do emprego, dous annos e um mez de prisão com trabalho e multa de 12 ½% da quantia ou valor dos effeitos apropriados, consumidos ou extraviados. No gráo mínimo-perda do emprego, dous mezes de prisão com trabalho e multa de 5% da quantia ou valor dos effeitos apropriados, consumidos ou extraviados”.

[19] Dispunham as referidas normas incriminadoras: “Art. 221. Subtrahir, consumir ou extraviar dinheiro, documentos, effeitos, generos ou quaesquer bens pertencentes à fazenda publica, confiados à sua guarda ou administração, ou á de outrem sobre quem exercer fiscalisação em razão do officio. Consentir, por qualquer modo, que outrem se aproprie indevidamente desses mesmos bens, os extravie ou consuma em uso proprio ou alheio: Penas – de prizão cellular por seis mezes a quatro annos, perda do emprego e multa de cinco a 20% da quantia ou valor dos effeitos apropriados, extraviados ou consumidos. Art. 222. Emprestar dinheiros, ou effeitos publicos, ou fazer pagamento antecipado, não tendo para isso autorização: Penas – de suspensão do emprego por um mez a um anno e multa de cinco a 20% da quantia emprestada ou paga por antecipação. Art. 223. Nas penas dos artigos antecedentes, e mais na perda do interesse que deveriam perceber, incorrerão os que, tendo por qualquer título a seu cargo, ou em deposito, dinheiros ou effeitos publicos, praticarem qualquer dos crimes precedentemente mencionados”.

[20] Waldo Fazzio Júnior preleciona que disfunção pública “é o exercício da atividade administrativa em nome da função pública, com má-fé, para promover, precisamente, seu contrário, ou seja, uma disfunção. É o desvio de poder radical, porque subsidiado pelo ânimo predeterminado de exercitar uma potestade administrativa em desfavor do interesse público, comprometido com um objetivo privado.” (FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Corrupção no poder público: peculato, concussão, corrupção passiva e prevaricação. São Paulo: Atlas, 2002, p. 24)

[21] Féu Rosa, com razão, afirma que “a Administração Pública – O Estado, enfim – se compromete, quando o funcionário não corresponde à confiança que lhe foi depositada (...)”. (ROSA, Antonio José Miguel Feu. Direito Penal: Parte especial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 854)

[22] Entendemos ser incompleta a tese exarada por Ney Moura Teles, para quem “o bem protegido é o patrimônio dos entes da administração pública direta e indireta.” (TELES, Ney Moura. Direito penal: parte especial: arts. 213 a 359-H, volume 3. São Paulo: Atlas, 2004, p. 386). Concepção mais bem fundamentada é a de Maggiore, entendendo que o “objeto jurídico da incriminação não é tanto a defesa dos bens patrimoniais da administração pública, quanto o interesse do Estado à probidade e à fidelidade do funcionário público, razão pela qual Carrara não hesitava em classificar o peculato entre os crimes contra a fé pública. Na mesma linha reforçava Manzini, sustentando que além do interesse meramente patrimonial, há outro, de elevado conteúdo ético-político: a probidade na administração pública, resultado do progresso moral e da educação política dos povos.” (Apud Caderno de Direito Penal nº 2 – volume 1 – 2005 – Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região – Módulo IV, p.122).

[23] TJSP – RCr 114.917-3 – Piracicaba – Rel. Des. Luiz Betanho – J. 04.11.1992.

[24] Apud CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral: volume 1. 2 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 17.

[25] Ressalve-se, no entanto, a hipótese de quando há intenção de fraudar o seguro (art. 171, §2º, V). Mas ainda nesse caso, a seguradora será vítima de estelionato.

[26] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. Parte Geral. Vol. I, 24. ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 165.

[27] Malgrado termos adotado no corpo do trabalho a expressão “funcionário público”, até mesmo porque constante no Código Penal, preferimos a expressão “agentes públicos”, por ser mais atual e estar em consonância com a sistemática do ordenamento jurídico (art. 2º da Lei 8.429/92). Consoante ensina José Carvalho, agente público tem sentido amplo, significando o conjunto de pessoas que, a qualquer título, exercem uma função pública, remunerada ou gratuita, definitiva ou transitória, política ou jurídica, como prepostos do Estado. (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 15ª edição revista, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 487.)

[28] Altamiro Filho, ao comentar sobre o dispositivo, afirma que “a semelhança da figura descrita neste inciso (art. 1º, I, DL 201/67) com a constante no Código Penal, sob a rubrica de peculato, praticamente as tornam irmãs siamesas”. (LIMA FILHO, Altamiro de Araújo. Prefeitos e vereadores: Crimes e infrações de responsabilidade. Editora de Direito: São Paulo, 1997, p. 109). No mesmo sentido, afirma Waldo Fazzio: “Acrescente-se que, entre os crimes definidos no art. 1º do Decreto-Lei nº 201/67 e no art. 312 do Código Penal, inexiste diferenciação típica, pois ambos objetivam a apropriação, pelo funcionário público ou pessoa a ele equiparada, de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel de que tenha a posse em razão do cargo, ou desvia-lo em proveito próprio ou alheia.” (destaque nosso) (Op. cit., p. 127). Tais concepções, a nosso sentir, não podem ser aceitas.

[29] RSTJ 90/407.

[30] WELZEL, Hans. Derecho penal parte general. Traducción de Carlos Fontán Balestra. Roque Depalma Editor: Buenos Aires, 1956, p. 71.

[31] HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª ed, rev. e atual. e aumentada. 12ª impressão. Rio de janeiro: Editora Nova fronteira, 1986, p. 149.

[32] Ensina Waldo Fazzio, com propriedade, que “nosso código penal seguiu o exemplo do italiano, onde se substituiu a redação casuística (administração, exação e custódia) pelo uso genérico do vocábulo posse, independentemente de seu título.

É bom somar que, quando trata da apropriação indébita (art. 168), o Código Penal refere-se à posse ou à detenção, resumindo-se o texto tão-somente à posse, poderia dar causa à dúvida: de um lado, pareceria que a expressão posse, com a amplitude de sua acepção vulgar, compreenderia a detenção; de outro, por força do sistema adotado pelo direito (‘de que, na espécie, o direito penal é meramente receptício ou sancionatório’), seria possível entender-se excluída a mera detenção, uma vez proibida a analogia (salvo in bonam partem), em matéria criminal.

O legislador poderia ter sido mais coerente: ou no art. 168 mencionaria apenas posse, tal como no art. 312; ou, no art. 312, utilizaria a expressão posse ou detenção , tal como no art. 168. (...)

Contudo, se tanto há apropriação de bem possuído, como há apropriação de bem detido por permissão ou tolerância; (...) Tenha o agente público detenção ou posse, tanto faz, é agente público; o crime que pratica não é particular, é funcional.” (Op. cit., p. 104/105).

[33] Op. cit, p. 43.

[34] Op. cit., p. 108.

[35] O dolo penal, no ensinamento de Welzel, é o conhecimento e querer da concreção do tipo e tem sempre duas dimensões: não somente a vontade tendente à concreção do fato, mas também a vontade apta para a concreção do fato. Querer, acrescenta o mestre alemão, não quer dizer, em direito penal, querer ter ou alcançar (no sentido de aspirado), mas querer concretizar. (WELZEL, Hans. Op. cit., p. 74).

[36] BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: parte geral, volume 1. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 205.

[37] Nosso hermeneuta clássico ensina que “Não se deve ficar aquém, nem passar além do escopo referido; o espírito da norma há de ser entendido de modo que o preceito atinja completamente o objetivo para o qual a mesma foi feita, porém dentro da letra dos dispositivos.” (destaque nosso). (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito – Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 125).

[38] Apud Enciclopédia Saraiva do Direito, op. cit., p. 320. Nossa tradução: “Tanto a apropriação quanto a distração devem ser acompanhadas da finalidade do proveito. A lei fala de tal extremo só a propósito da distração, porquanto na apropriação isso é implícito: quem faz sua uma coisa é, por isso mesmo, já um aproveitador.”

[39] Op. cit., p. 83. No original: “Al lado del dolo, como elemento genérico personal-subjetivo, que lleva y forma la acción como un acontecer dirigido hacia un fin, aparecen en el tipo, frecuentemente, elementos especiales personales-subjetivos, que colorean el contenido ético-social de la acción en un sentido determinado.”

[40] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, Parte Especial. Vol. 4, 4. ed., São Paulo: Saraiva, 1993, p. 109.

[41] No original: DE LA MALVERSACIÓN - Artículo 432. 1. La autoridad o funcionario público que, con ánimo de lucro, sustrajere o consintiere que un tercero, con igual ánimo, sustraiga los caudales o efectos públicos que tenga a su cargo por razón de sus funciones, incurrirá en la pena de prisión de tres a seis años e inhabilitación absoluta por tiempo de seis a diez años.

[42] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral – 5 ed. rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 393.

[43] GIDE, André. Os Subterrâneos do Vaticano. Título do Original: Les Caves du Vatican. Tradução de Miroel Silveira e Isa Leal. 1ª Edição. São Paulo: Editora Abril, 1971, p. 222/223.

[44] Idem, p. 223.

[45] RT 490/203, apud Antonio Pagliaro e Paulo José da Costa Junior, Op. Cit., p. 63/64.

[46] Op. cit., p. 1001.

[47] Op. cit, p. 47.

[48] BARATTA, Alessandro, Criminología y Sistema Penal (Compilación in memoriam), Editorial B de F:Buenos Aires, 2004, p. 309. No original: “Principio de proporcionalidad abstracta. Sólo graves violaciones a los derechos humanos pueden ser objeto de sanciones penales. Las penas deben ser proporcionales al daño social causado por la violación.”

[49] REsp 155894 / PE - RECURSO ESPECIAL 1997/0083157-4 - Relator(a) Ministro ANSELMO SANTIAGO - SEXTA TURMA - Data do Julgamento 02/06/1998 - Data da Publicação/Fonte DJ 29.06.1998 p. 351. No mesmo sentido: “Denúncia. Rejeição. Peculato. Ausência de indícios de sua ocorrência. Prefeitura (rectius, Município) que retém percentual de parcela de contrato administrativo. Exigência de que o desvio tenha ocorrido em proveito próprio do agente. Atipicidade. Decisão confirmada. Recurso improvido. Exigindo o tipo do art. 312 do C. Penal que o desvio de bens ou valores tenha ocorrido em proveito do agente público que detinha a posse dos mesmos, e inexistindo indícios da ocorrência dessa elementar do delito, deve ser confirmada a decisão que rejeitou a denúncia, por atipicidade da conduta.” (TJMG - Número do processo: 1.0000.00.301793-6/000(2)  - Relator: HERCULANO RODRIGUES Data do acordão: 01/07/2004 - Data da publicação: 03/08/2004).

[50] Idem.

[51] REsp 77183 / SE - Relator Ministro ANSELMO SANTIAGO - SEXTA TURMA - Data do Julgamento 24.11.1997 - Data da Publicação 16.02.1998, p. 136.

[52] RT 618/291. No mesmo sentido: “Recurso Especial - Denúncia de peculato sem os detalhes necessários - Responsabilização objetiva - Suposta prática delituosa, que se confunde com mero descumprimento de contrato.

1. Não se pode presumir a existência de peculato, no simples descumprimento de um contrato, sem os detalhes próprios do tipo, que obrigatoriamente deveriam constar na inicial acusatória.

2. Nem sempre, na ocorrência de inadimplemento contratual, ocorre um ilícito penal, o que demanda, para evitar uma abusiva denúncia, detalhes suficientes para separar um fato que realmente resvala para o direito criminal, de outro que simplesmente se mantem no campo do direito administrativo-civil.

3. Recurso conhecido e provido.” (REsp 140675 / SE - Relator Ministro ANSELMO SANTIAGO - SEXTA TURMA - Data do Julgamento 24.03.1998 - Data da Publicação 04.05.1998, p. 220).

[53] Apud PAGLIARO, Antonio. COSTA JR., Paulo José da. Dos Crimes contra a Administração Pública. - 3. ed. rev. e atual. – São Paulo: Perfil, 2006, p. 19.

[54] Idem, ibidem.

[55] Op. cit., p. 308. No original: “La ley penal, por tanto, no puede ser una respuesta inmediata de naturaleza administrativa, como, en cambio, lo es frecuentemente en la práctica. Los problemas que se debe enfrentar tienen que estar suficientemente decantados antes de poner en práctica una respuesta penal. (...) Una pena puede ser conminada solo si se puede probar que no existen modos no penales de intervenión aptos para responder a situacioenes en las cuales se hallan amenazados los derechos humanos. No basta, por tanto, haber probado la idoneidad de la respuesta penal; se requiere también demonstrar que ésta no es sustituible por otros modos de intervención de menor costo social.”

[56] TJMS – ACr 2003.010888-2/0000-00 – Campo Grande – 2ª T.Crim. – Rel. Des. José Augusto de Souza – J. 19.11.2003. No mesmo sentido: “(...) diretor de escola pública – Venda de bem do estabelecimento sem autorização e sem observância dos procedimentos legais –Desvio não configurado – Produto da venda transferido parte para Associação de Pais e Mestres e o restante utilizado para pagamento de despesas da entidade – Intenção de desviar para proveito próprio ou alheio não demonstrada” (TJSP – ACr 229.491-3 – Taubaté – 4ª C. Crim. – Rel. Des. Passos de Freitas – J. 08.02.2000 – v.u.).

[57] APELAÇÃO CRIMINAL - 1296 - 2ª CÂM. CRIMINAL - PROC./ANO: 19107-3/95 - RELATOR (A): DES. GÉRSON PEREIRA - COMARCA: SALVADOR - DATA DE JULGAMENTO: 11.04.96.



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FRANÇA, Nadielson. Peculato em prol da Administração Pública: contraditio in terminis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3551, 22 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24026. Acesso em: 26 abr. 2024.