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Análise da condição jurídica dos caracterizados refugiados ambientais do Haiti no Brasil

Análise da condição jurídica dos caracterizados refugiados ambientais do Haiti no Brasil

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É necessário revisar o conceito de ‘refugiado’, para ampliá-lo a novas realidades sociais, como as que resultam da destruição paulatina do meio ambiente. Igualmente, são insuficientes as definições atuais de ‘deslocados’ e ‘migrantes’.

1. Introdução

Um refugiado é, de acordo com a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, uma pessoa que, tendo um medo bem fundado de ser perseguida por razões de raça, religião, nacionalidade, participação de um grupo social particular ou opinião política, está fora do país de sua nacionalidade e incapaz a ou, ante esse medo, sem vontade de retomar a proteção desse país. Embora a ideia inicial fosse assegurar a proteção a indivíduos perseguidos por seus ideais políticos ou religiosos no interior de seus próprios Estados, esse termo tem sido expandido por novas convenções mundiais e leis nacionais, como a brasileira, porém sua ideia principal ainda é a de que refugiado é aquele que, por algum perigo em sua terra natal, se vê forçado a fugir para outro território dentro ou fora de seu país.

Em 2007, cientistas independentes do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas afirmaram que, em 100 anos, os oceanos poderiam subir até 60 cm, o que impactaria na vida de, pelo menos, 600 milhões de pessoas por todo o mundo, atingindo em especial os habitantes de áreas costeiras. Outras mudanças climáticas causadas pela poluição e aquecimento global impactam no destino de milhões de pessoas. Afirma-se que somente no ano de 2008 pelo menos 20 milhões de pessoas foram deslocadas por desastres naturais repentinos.

Um dos desastres mais impactantes na América Latina nos últimos anos foi o terremoto que atingiu o Haiti em 12 de janeiro de 2010. Segundo relatórios da ONU, a catástrofe destruiu 10% da capital do país, Porto Príncipe, deixando 300 mil desabrigados. Segundo a organização, em algumas áreas a destruição chegou a 50%, afetando, no total, 3,5 milhões de pessoas. Os cidadãos haitianos atingidos, após a catástrofe, não tiveram opção além de se evadir do país. Em meio a um caos generalizado, sem água, eletricidade e comida, muitos buscaram em outros países, como o Brasil, uma nova oportunidade de viver. Porém, ao chegar às fronteiras brasileiras, muitos foram impedidos de entrar no país, tendo em vista que, como não se enquadram na definição de refugiados dita pela Lei, não tem como residir no Brasil.

Ainda que seja um fenômeno novo e pouco pesquisado, a questão dos refugiados ambientais é latente e já afeta uma grande parcela da população mundial. Além dos alarmantes dados atuais, o que mais assusta são as previsões oficiais de agências governamentais e internacionais e de teóricos da área.

A presente monografia tem o intuito de analisar brevemente a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e a Lei Brasileira nº 9474/97, conhecida como Lei do Refúgio, bem como questionar a sua adequação e possível ampliação em face da nova realidade contemporânea no tocante à problemática dos refugiados ambientais, com especial atenção aos deslocados haitianos, tendo em vista que se entende que estes grupos de migrantes forçados deveriam gozar da proteção do instituto universal do refúgio e não o fazem por não se enquadrarem na definição formal trazida pela Convenção de 1951 e a Lei 9474/97.

Inicialmente, é realizada uma pesquisa com o intuito de se definir e buscar legislação, tanto internacional quanto nacional,a respeito dos institutos“refugiado”, “asilado”, “deslocado interno” e “migrante”, distinguindo-os entre si, bem como se verifica o tratamento dado ao estrangeiro no território nacional.

Após, se busca definir juridicamente a condição de ‘refugiado ambiental’, tomando por base a doutrina sobre o tema. É examinada a classificação de autores sobre estre possível instituto, se verificará a possível aplicação do termo, bem como as condições de sua criação.

Por fim, é analisado o posicionamento do Governo Brasileiro referente à caracterização como ‘refugiados’ ou ‘migrantes’ das pessoas provindas do Haiti desde a catástrofe natural em seu país, tomando por base documentos oficiais, entrevistas e reuniões de órgãos responsáveis pela classificação destes deslocados perante o Estado Brasileiro. Também é analisada a condição em que estes deslocados se encontram atualmente no Brasil e o tipo de ajuda humanitária direcionada a eles.

Para chegar a tais resultados, é realizada pesquisa documental e bibliográfica, bem como estudo de caso, por meio dos quais é possível encontrar as normas aplicáveis e os entendimentos doutrinários acerca dos refugiados ambientais. Da mesma forma, é utilizado o método comparativo para demonstrar as semelhanças e diferenças entre o ordenamento brasileiro e internacional.


2. Compreendendo o processo migratório: uma comparação doutrinária e levantamento legislatório, com aprofundado histórico, sobre migração, asilo e refúgio.

O deslocamento de pessoas, sejam migrantes, asiladas, refugiadas ou deslocadas internas, sempre esteve presente na raça humana. De acordo com Luiz Paulo Teles Barreto (2007, p. 29), “há um reconhecimento praticamente unânime no mundo quanto à importância das migrações e da contribuição dos deslocados aos países de acolhida. Em muitas nações, os estrangeiros foram fundamentais para o desenvolvimento econômico, social e cultural”.

É difícil saber quantas pessoas se deslocam a cada ano, seja dentro de um país ou para o exterior, mas, segundo o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP)1 é provável que, anualmente, mais de cinco milhões de pessoas cruzem fronteiras para viver em um país desenvolvido. O número de pessoas que se deslocam para um país em desenvolvimento é muito maior, embora não seja possível saber os números exatos.

As razões para esta mobilidade são variadas. Indivíduos e, às vezes, até famílias inteiras, se mudam para outros lugares por diferentes motivos e, às vezes, por várias razões simultaneamente. É possível, até, que estas razões se alterem durante o período de deslocamento.

Entender a mobilidade humana e compreender a busca que estes deslocados fazem por sua dignidade, por emprego e por uma vida melhor é fundamental para formular as políticas públicas necessárias para abranger os direitos fundamentais destas pessoas. Para aceitar os deslocados, é necessário conhecer suas dificuldades em relação à adaptação em um novo meio.

2.1. Migração

Nas palavras de Celso D. de Albuquerque Mello (2001, p.1019), é importante enunciar dois princípios a respeito do deslocamento da pessoa humana: o da interdependência dos membros da sociedade internacional e o da soberania do Estado, que alcançam os mesmos resultados apesar de partir de pontos diferentes. O primeiro princípio afirma que os indivíduos têm o 'jus communicationis', ou seja, o direito de emigração e imigração no plano internacional; enquanto o segundo princípio afirma que os Estados não são obrigados a admitir estrangeiros no seu território. Na prática, atingem-se resultados semelhantes com qualquer dos princípios, uma vez que eles não são aplicados de modo rígido.

A migração é uma característica intrínseca aos seres humanos, e pode ocorrer por diversos motivos, quer sejam econômicos, sociais, culturais, religiosos, políticos, etc. Ao longo da História mundial, ela já foi caracterizada tanto como inteiramente livre, assim como restrita.

Na Grécia e Roma antigas, eram concedidos, em alguns casos específicos, salvos-condutos, que podem ser classificados como um tipo de passaporte. Também era comum, na época, a concessão de ‘documentos’ a funcionários que saiam de Roma em alguma missão. (FUNARI, 2011, p. 77)

O feudalismo, com suas características não comerciais, reduziu drasticamente o volume de viajantes, e com isso, o uso de passaportes praticamente desapareceu. Este documento só voltou a ser instituído nos séculos XVI e XVII, sendo três as causas contributivas para este evento: o grande número de mendigos que perambulavam pela Europa; a necessidade, por medida de polícia, de fiscalizar os movimentos dos súditos dentro das fronteiras do próprio Estado; e a necessidade de controlar a entrada e saída de indivíduos do território nacional (MELLO, 2001, p.1023).

As autoridades dos Estados, entre o final do século XIX e início do século XX, viam o fenômeno da migração de forma positiva e, em alguns períodos, até o incentivaram. Para uns, a migração era uma ‘válvula de escape’ que diminuía o número de habitantes, reduzindo as chances de crises demográficas na Europa. Para outros, era a oportunidade de importar trabalhadores e povoar regiões desabitadas, como as Américas.

No século XX, houve uma pequena mudança em relação à imigração, com a adoção pelos Estados de restrições e sistemas de quotas, fixando números máximos, ou porcentagens, para a entrada de estrangeiros nos países. Como exemplo pode-se ter a Inglaterra, que em 1905 publicou o Aliens Act, proibindo em seu território a entrada de indivíduos cujo país de origem não possuí a inspeção e cuidados médicos, como objetivo de diminuir as doenças em seus limites territoriais.

Passou a ser estabelecido um “regime duplo de circulação”, fruto do neoliberalismo, que abriu as fronteiras para mercadorias e capitais e, simultaneamente, inibiu a mobilidade humana. As fronteiras, como afirma o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2007, p. 56), se transformaram em ‘membranas assimétricas’, que permitiam a saída de pessoas, mas protegiam, e ainda protegem o Estado contra o ingresso de migrantes indesejados. Após a Segunda Guerra Mundial, aqueles que antes eram vistos como recursos humanos fundamentais, hoje são considerados bárbaros invasores, uma ameaça para a ordem pública, destruidores da identidade nacional.

Esta opinião é corroborada por Márcia Maria de Oliveira, que entende que:

Atualmente o mundo se polariza entre regiões cada vez mais ricas e outras, cada vez mais pobres. Por um lado, defende-se o capital e as mercadorias podem circular livremente, mas, por outro, o mesmo não ocorre com os trabalhadores. Para estes, erguem-se cada vez mais muros físicos ou políticos, ou seja, implantam-se sempre mais políticas restritivas que entravam a circulação dos imigrantes, ainda que necessários, porém indesejados nos países ricos. (2010, p. 236)

Cançado Trindade (2001, p. 15) também expressa o paradoxo entre a liberdade de circulação de capitais e as restrições à circulação de pessoas ao afirmar que “Em relação ao capital, inclusive o puramente especulativo, o mundo se “globalizou”. Em relação aos seres humanos, inclusive os que tentam fugir de graves e iminentes ameaças a sua própria vida, o mundo se transformou em unidades soberanas”. 2

O Brasil também passou por diversas mudanças em relação à entrada e limitação dos imigrantes, mesmo antes da criação de sua primeira lei em relação a este tema, em 1945. Podem-se tomar como exemplo os relatórios e escritos de celebra dos autores brasileiros entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, como João Batista de Lacerda, Diretor do Museu Nacional e Presidente da Academia de Medicina, e Raymundo Nina Rodrigues, renomado legista e considerado o criador da Medicina Legal brasileira que, com idéias claramente racistas, buscaram realizar um ‘branqueamento’ da população brasileira pela mistura de migrantes arianos, vistos como de classe mais ‘nobre’, com os negros brasileiros, vistos como inferiores.

Claramente influenciado pelo criminologista italiano Cesare Lombroso, o autor Nina Rodrigues afirma, em seu livro que:

A civilisação aryana está representada no Brazil por uma fraca minoria da raça branca a quem ficou o encargo de defende la, não só contra os actos anti-sociaes-os crimes- dos seus proprios representantes, como ainda contra os actos anti-sociaes das raças inferiores, sejam estes verdadeiros crimes no conceito dessas raças, sejam ao contrario manifestações do conflicto, da lucta pela existencia entre a civilisação superior da raça branca e os esboçosdecivilisaçãodasraçasconquistadas,ousubmettidas.(1894,p.169-170)[inverbis].

Uma das políticas brasileiras da época para incentivar este ‘branqueamento’ foi o incentivo para a migração de europeus e a necessidade de autorização especial para imigrantes africanos e asiáticos. Vale ressaltar que esta política de migração foi relativamente comum a todos os países colonizados por europeus, não só no continente Americano, mas também na Oceania e até mesmo África. Esta tentativa de branqueamento foi tão forte que alguns países, como os Estados Unidos, restringiram até mesmo a entrada de imigrantes do sul da Europa, como italianos e portugueses, com receio que estas nacionalidades não fossem ‘puras’ o suficiente.

Além deste incentivo aos migrantes europeus, foram criadas várias barreiras para a entrada de migrantes das raças negra e amarela, como a necessidade de autorização especial do Congresso, em 1890, e menos benefícios do que a autorização comum.

Após este período, a imigração continuou sofrendo mudanças no Brasil, especialmente no curto período de 1930 a 1934, quando foi proibida totalmente. Em 1934 foram abertas novamente as portas aos migrantes, porém com restrições aos semitas e o estabelecimento de uma política de quotas.

Atualmente, a migração está regulamentada pela Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, alterada pela Lei nº 6.964/81, denominada de Estatuto do Estrangeiro que, além de definir a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, também cria o Conselho Nacional de Imigração (CNIg). O CNIg é um órgão colegiado, vinculado ao Ministério do Trabalho, com organização e funcionamento definidos pelos Decretos n° 840, de 22 de junho de 1993, e nº 3.574, de 23 de agosto de 2000, a quem compete, e tem, dentre suas atribuições, ‘formular a política de imigração’, ‘coordenar e orientar as atividades de imigração’ e ‘solucionar casos omissos no que diz respeito a imigrantes’.

Segundo Mirtô Fraga (1985 ,p.30), ainda há uma diferenciação entre o estrangeiro que ingressa no país com ânimo definitivo, sendo chamado de imigrante, e o estrangeiro que aqui permanece temporariamente, como estudantes, turistas, empresários, recebendo a denominação de forasteiro.

Do ponto de vista político, a migração é tipicamente considerada um problema que deve ser resolvido, normalmente com a restrição de entrada de estrangeiros no país, ou um problema essencialmente privado, entre o migrante e sua família. Como resultado, as políticas tendem a controlar os migrantes ou ignorá-los. Entretanto, ao considerar a migração em isolado, se torna muito difícil entender as dimensões socioeconômicas, políticas e ambientais que modelam, e em retorno são transformadas, pelo deslocamento de pessoas. As políticas tendem a lidar com a migração especialmente nas áreas de destino, enquanto é importante considerar tanto as causas quanto as conseqüências da migração e focar tanto no destino quanto na origem dos migrantes.

Interessante pensar, porém, que, na história das migrações, como afirmado acima, nem sempre o fenômeno migratório constituiu ameaça aos Estados. Na verdade, muitos fluxos foram programados ou estimulados tanto pelos países de saída como de chegada. O desenvolvimento, por exemplo, é um fator que combina direitos dos Estados e direitos dos migrantes, salvaguardados os direitos trabalhistas e todos os direitos sociais que permitam que desenvolvimento humano e desenvolvimento sustentável marchem ao mesmo ritmo do desenvolvimento socioeconômico de uma nação, tendo sido amplamente utilizado no passado e, com menor frequência, hoje em dia também. Todavia, outros direitos das pessoas em mobilidade são violados, mesmo indiretamente, não somente por ações propositais diretas de violação de tais direitos, mas também por situações generalizadas de rejeição de migrantes. Outros fatores, como falta temporária de visto de permanência, escassez de dinheiro e saudades dos entes deixados para trás transformam situações de mera vulnerabilidade da situação migratória em grave condição de fragilidade.

Apesar de todo o preconceito que gira em torno dos migrantes, o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas3afirma que, atualmente, existem cerca de 214 milhões de migrantes internacionais, ou seja, aproximadamente 3% da população mundial residem fora de seu país de origem. Em relação aos migrantes internos, ou seja, às pessoas que migram dentro do seu próprio país, o número chega a 740 milhões. A Organização Internacional para Migrações (OIM)4 afirma que este número tende a crescer quase 2,9% ao ano. Hoje, uma em cada seis pessoas é migrante. O maior receptor de migrantes internacionais, segundo a Organização, são os Estados Unidos, que possuía, em 2006, cerca de 38 milhões de migrantes.

Além das migrações em âmbito mundial, existem também as intrarregionais, realizadas entre Estados de uma mesma região, normalmente de países mais pobres para os países mais ricos. Na América Latina, por exemplo, há um grande movimento migratório originário do Nicarágua e destinado à Costa Rica, do Haiti para a República Dominicana, e da Bolívia e Peru para a Argentina e Brasil. Existem várias razões para este fenômeno da migração intrarregional. Entre os mais marcantes, podemos considerar a identidade cultural e as raízes históricas em comum, bem como a proximidade geográfica. A migração causa um impacto grande não só na região aonde o migrante chega, mas também nele mesmo. Migrar para outro país implica em conhecer uma nova cultura, se desapegar de sua família que ficou no seu país natal, ter uma vida totalmente nova. Ao migrar para um lugar que lembre vagamente seu antigo lar, que possua, pelo menos, a mesma língua, ou que ao menos seja próximo e possibilite que visite a família, o migrante se sente num local familiar e tem mais chances de conquistar o que veio procurar no país de destino.

O fenômeno migratório atual alcança uma dimensão global, de acordo com Robert Kurz (2007, p. 17), estando essencialmente relacionado à crise do sistema capitalista, incapaz de promover nas periferias do planeta o mesmo padrão de vida e consumo dos países desenvolvidos.

De acordo com Heidemann (2010, p. 20), a migração contemporânea ainda tem uma nova qualidade, porque não é mais limitada a determinadas arrancadas não-simultâneas da modernização em diversos territórios nacionais ou regionais, mas é universal e global. Ela se realiza quase em todos os lugares simultaneamente e se revela em novas dimensões. Podemos entender que a nova migração maciça, desde o final do século XX, é consequência de uma nova crise socioeconômica da terceira revolução industrial que possui diretamente um amplo caráter global. Como afirma o autor, na ‘crise do trabalho’ cada vez mais pessoas se tornam ‘obsoletas’, continuam desesperadamente a oferecer sua força de trabalho, mas não conseguem mais vendê-la.

Cerca de 10% da população mundial migra atualmente para se salvar dos pavores econômicos e de suas conseqüências. Desemprego em massa e pauperização tornaram-se fatores comuns do mundo contemporâneo. Heidemann (2010, p. 20) afirma que “os migrantes não constituem mais um ‘exército industrial de reserva’, mas sim integram um ‘lixo social’ de difícil reciclagem humanística”.

De acordo com dados do Censo de 20005, foi apontada a existência de 22.850 imigrantes em toda a Região Norte do Brasil. A Polícia Federal, por sua vez, computava, em 2008, a existência de 12 mil imigrantes regularizados no Amazonas, dos quais 1695 são peruanos, 612 colombianos, 229 bolivianos, 117 guianenses e 116 venezuelanos.

A Pastoral do Migrante estimava em 2001 a presença de 40 mil migrantes documentados e indocumentados, sendo que, deste total, 15 mil eram peruanos que viviam nas cidades fronteiriças, na sua maioria indocumentados. De um modo geral, eles são pouco qualificados e se dispõem a aceitar qualquer tipo de subemprego para manter suas famílias, mesmo no caso dos mais qualificados, os quais passam a exercer atividades muito aquém de suas qualificações, o que significa ser mal remunerado, além de ter a sua condição social rebaixada. A atividade de ambulante acaba sendo a saída mais fácil para quem não conhece as regras do mercado e encontra-se numa situação vulnerável de indocumentação, em razão das representações negativas que esta categoria tem no contexto local.

2.2. Asilo

O instituto do asilo é caracterizado como a proteção dada por um Estado a um indivíduo estrangeiro cuja vida, liberdade ou dignidade estejam ameaçadas pelas autoridades de um terceiro Estado, normalmente seu país de origem, por conta de perseguições de ordem política. Conforme afirma o doutrinador Francisco Rezek, o instituto pode ser definido como:

O acolhimento pelo Estado, de estrangeiro perseguido alhures - geralmente, mas não necessariamente, em seu próprio país patrial - por causa de dissidência política, de delitos de opinião, ou por crimes que, relacionados com a segurança do Estado, não configuram quebra do direito penal comum. (2011,p.214-215)

Pode-se inferir da leitura que o principal fundamento do asilo é a perseguição política.

Segundo José H. Fischel de Andrade, a palavra “asilo” deriva do nome grego asylon, formado pela partícula privativa a, que significa não, e o verbo sylon, que equivale aos verbos quitar, arrebatar, tirar, sacar, extrair. (2001,p.101).

Assim como a migração, o asilo tem suas origens na Antiguidade, porém este instituto foi altamente transformado ao longo do tempo. Uma grande alteração a respeito deste tema foi quanto à possibilidade de aplicação: na Antiguidade, o asilo era concedido a qualquer criminoso comum, numa total inversão do que acontece no quadro atual, pois a proteção de dissidentes políticos constituía ato de afronta entre nações que poderia gerar guerra. A partir daRevoluçãoFrancesa, com seus ideais de liberdade e direitos individuais, começou-se a consolidar a aplicação deste ‘benefício’ a criminosos políticos e a extradição de criminosos comuns.

Os primeiros indícios da proteção do asilo remontam à época da Grécia Antiga, onde os asilados, antigos criminosos comuns em outras Cidades- Estados, gozavam de imunidade sem templos específicos, criados especialmente com esta finalidade. Já no Império Romano, somente os considerados culpados por crimes não previstos nas Leis Romanas poderiam ser beneficiários do asilo. Na Idade Média o asilo ocorria em igreja se conventos,criando,assim,a conhecida “inviolabilidade dos lugares sagrados”. Caso houvesse violação, o autor poderia ser excomungado. Naquele período, a Igreja excluiu certos criminosos da possibilidade de concessão de asilo, como os criminosos de alta periculosidade e aqueles que cometessem crimes nas igrejas e suas redondezas.

Após a Revolução Francesa, o asilo não foi adotado de forma igualitária em toda a comunidade internacional, embora seu alcance tenha se tornado muito mais amplo. Alguns Estados, especialmente os com regime monárquico,tardaramumpoucoaaceitaresteinstituto.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 assegurou a possibilidade de concessão de asilos em quaisquer restrições, sendo este, segundo o art.4º, inciso X, um dos princípios pelos quais a República Federativa do Brasil deve se reger nas suas relações internacionais, como se pode inferir da leitura abaixo:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

(..) X - concessão de asilo político.

Embora hoje não haja um tratado de alcance global sobre o instituto do asilo, existem convenções regionais sobre o tema, como a Convenção de Havana sobre Asilo, a Convenção sobre Asilo Territorial de 1954, entre outras. Além das convenções, a Resolução 3.212 de 1967 da Assembleia Geral das Nações Unidas6, contém as diretrizes básicas para a concessão do instituto, afirmando que este é “um direito do Estado baseado em sua s oberania e deve ser concedido a pessoas que sofrem perseguição. A concessão de asilo deve ser respeitada pelos demais Estados, e não deve ser motivo de reclamação.” 7 A qualificação incumbe ao estado asilante, que pode negar o asilo por motivos de segurança nacional. As pessoas que fazem jus ao asilo não devem ter sua entrada proibida pelo país asilante nem devem ser expulsas para Estado onde podem estar sujeitas à perseguição ou repatriamento forçado ao país de origem. Além da definição, a Resolução mencionada reafirma que o asilo é uma arbitrariedade dos Estados, e não um dever internacional. Adecisão do Estado de conceder ou não o beneficio deve ser respeitada pela Comunidade Internacional, porém, caso o Estado sinta que a concessão do asilo trará insegurança nacional, pode optar por não fazê-lo. Estes princípios estão ressalvados na Resolução 2.314 da Assembleia Geral da ONU, conhecida como a Declaração sobre AsiloTerritorial que, em seu art.14 afirma que o ato da concessão de asilo “não pode ser considerado inamistoso por nenhum outro Estado”.

Também não se pode esquecer que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, reza em seu artigo XIV que “todo homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e gozar asilo em outros países”. Ela menciona, ainda, que “este direito não pode ser invocado em caso de processo realmente existente por crime de direito comum ou por atividades contrárias aos fins e princípios das Nações Unidas”.

Nas palavras de Valerio de Oliveira Mazzuoli,

É importante lembrar que a concessão do asilo tem como objetivo não só proteger uma pessoa à qual, por motivos políticos ou ideológicos, foi imputada a prática de um crime, mas também contribuir para a paz social do país do asilado. Como se sabe, no que tange aos crimes comuns- reprováveis em qualquer parte do planeta -os Estados se ajudam mutuamente visando à sua repressão internacional, sendo o instituto da extradição um importante instrumento relativamente a essa cooperação. Mas, no caso dos crimes políticos essa regra deixa de valer, uma vez que o seu objeto não viola bens jurídicos universalmente protegidos (como nos casos em que se opera a extradição), mas sim certa ideologia governamental, que geralmente não dura mais do que o período em que está no poder a autoridade. Em outras palavras, esses ‘crimes’ (políticos ou ideológicos) não resistem à configuração do direito penal comum, somente ocorrendo aos olhos daquelas autoridades que, naquele momento, detêm o poder estatal. (2011,p.734).(grifo nosso)

Da leitura do trecho, é possível inferir o caráter humanitário do asilo, bem como a impossibilidade de que este tenha como princípio a reciprocidade. Resta cristalino que a aplicação deste instituto assegura, primordialmente, a liberdade de pensamento e expressãopolítica, numa tentativa de refrear os regimes totalitários. Quanto à impossibilidade da política de reciprocidade, vale mencionar a opinião de CASELA e SANCHEZ:

A existência ou não de convenção em matéria de cooperação judiciária, seja civil ou penal, ou abrangendo ambas, ou especificamente em matéria de extradição, ou outras questões, não deve, em princípio, interferir com a concessão ou não de asilo territorial. (2002,p.33)

O instituto do asilo é dividido em asilo territorial e asilo diplomático, sendo este último também conhecido como extra territorial. A doutrina minoritária também menciona o asilo naval, aeronáutico e militar, mas o entendimento majoritário é de que estes tipos de asilo estão enquadrados no asilo diplomático.

O asilo territorial consiste no recebimento de estrangeiro em território nacional para evitar perseguição ou punição baseada em crime de natureza política ou ideológica, cometido ou não em seu país de origem. O país asilante recebe o estrangeiro, como dito anteriormente, para preservar sua liberdade ou sua vida, direitos em perigo devido a movimentações sociais ou políticas. Este é o asilo característico, considerado ‘puro’ pela doutrina. A situação típica de concessão de asilo seria esta: o estrangeiro, perseguido em seu país de origem ou de moradia, ingressa no território de um terceiro país e então requer, a este país, a concessão do benefício.

Alémdoasiloterritorial,adoutrinamencionaoasilodiplomático,queé,naverdade,umaformaprovisória,apenasumamodalidadedoasiloterritorial. No entendimento de Roberto Luiz Silva (2008, p. 241), este ‘tipo’ deasilosomenteéreconhecidocomoinstitutodeDireitoInternacional naAméricaLatina,ondeéaplicadodeformamaisregular. Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto também afirma que:

O asilo diplomático sempre foi amplamente praticado na América Latina, provavelmente por causa da constante instabilidade política na região, com sucessivas revoluções e golpes de estado, havendo, assim, a necessidade de se conceder proteção aos chamados criminosos políticos.(2010, p. 13)

Esta modalidade do instituto é caracterizada pela acolhida do indivíduo perseguido em missões diplomáticas, em baixadas, navios de guerra, acampamentos militares e aeronaves dentro do país onde a pessoa está sofrendo perseguição, sendo estes locais imunes à jurisdição do país perseguidor. Vale ressaltar que não pode ser concedido asilo em repartições consulares, sendo necessário que, caso pessoa a dentre este recinto com o fim de obter asilo, esta seja imediatamente restituída às autoridades de seu país perseguidor. Resta claro que este tipo de asilo é usado de forma subsidiária, ou uma forma preliminar do asilo territorial, e para que seja concedido é necessário estado de urgência. Para que o asilo diplomático se transforme em asilo territorial, o asilado precisa receber salvo-conduto para sair do local onde se encontre abrigado. 8 O salvo-conduto pode ser reivindicado apenas se o asilo for concedido regularmente e o Estado não desejar que o refugiado permaneça em seu território.

Em regra, os direitos dos asilados são os mesmos dos demais estrangeiros, porém estes devem respeitar as leis internas do Esta do que lhes concedeu asilo, onde não podem exercer atividades políticas nem interferir da política interna. No Brasil, a Lei 6.815/80, também conhecida como Estatuto do Estrangeiro, nos informa que o asilado não poderá sair do País sem prévia autorização do Governo brasileiro, sendo a inobservância desta regra uma das hipóteses de fim da concessão do benefício e impedimento de reingresso nesta condição. A renúncia do benefício, a fuga do asilado e sua expulsão são outras hipóteses.

O asilo territorial também pode terminar com a eventual naturalização do asilado no Estado asilante ou seu recebimento pelo governo de seu Estado de origem.

Na América Latina desenvolveu-se o conceito de asilo originário do Tratado de Direito Penal Internacional de Montevidéu, de 1889.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 4º, declara que o Brasil rege-se nas suas relações internacionais, dentre outros, pelos princípios da “prevalência dos direitos humanos e da concessão do asilo político”. O asilo político é tratado, ainda, em título próprio da Lei nº 6.815 de 1980, o Estatuto do Estrangeiro, que dispõe que o estrangeiro admitido no território nacional na condição de asilado político ficará sujeito, além dos deveres que lhe forem impostos pelo Direito Internacional, a cumprir as disposições da legislação vigente e as que o governo brasileiro lhe fixar.

Segundo Accioly (2009, p. 377. ), no Brasil o asilo territorial é concedido pelo Ministro da Justiça. A sua solicitação pode ser feita pelo estrangeiro na Polícia Federal do local que se encontre, sendo suas declarações encaminhadas ao Ministério das Relações Exteriores para parecer técnico. Após, o parecer é remetido ao Ministro da Justiça e a ele cabe a decisão final. Concedido o asilo,o asilado é registrado junto à Polícia Federal, que recebe identificação e presta compromisso de cumprir as leis do Brasil e normas de direito internacional. Além do disposto acima, o asilado deve respeito às leis locais e é proibido de participar em atos de agressão a o seu Estado de origem, ressalvado o direito à liberdade de expressão, e é obrigado, também, a cumprir as disposições da legislação vigente.

A maior critica em relação ao asilo é, todavia, a arbitrariedade do Estado de conceder ou não este beneficio. Muitos doutrinadores, entre eles Celso D. Albuquerque Melo, afirmam que o asilo somente atenderá totalmente sua finalidade quando se tornar um direito do indivíduo e um dever doEstado.

2.3. Refúgio

Não há que se falar no instituto de refúgio sem confundi-lo com a antiga terminologia de asilo, tendo em vista que, nos dois casos, um Estado estrangeiro abriga um indivíduo que não pode regressar ao seu país de origem. É muito comum verificar que muitos textos, até mesmo de renomados doutrinadores, como Roberto Luiz Silva, se equivocam no emprego de ambas as expressões. Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto, ex-presidente do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), também não soube como distinguir as expressões. Ele afirma que:

O asilo diplomático, assim, é instituto característico da América Latina. Em outros lugares do mundo, a expressão que se utiliza é refúgio. É certo, contudo, que outros países aplicam o asilo diplomático esporadicamente, não o reconhecendo, todavia, como instituto de Direito Internacional. Esporádicos casos de asilo diplomático ocorreram na Europa, nos séculos XIX e XX, em proteção a criminosos políticos, geralmente sob intensos protestos dos países onde se originavam as perseguições. Isso fez com que o instituto caísse em desuso naquele continente. (2010, p. 13)

Porém, a pósuma análise mais acurada,é possível perceber que estes institutos são similares apenas na superfície.

Embora ambos os institutos compartilhem um estreito vínculo com relação à pessoa, o asilo é, segundo MAZZUOLI( 2011,p.740-741), regulado por tratados multilaterais bastante específicos de âmbito regional, que nada mais fizeram do que expressar o costume até então aplicado no Continente Americano, enquanto o refúgio tem suas normas elaboradas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados( ACNUR), uma organização com alcance global de fundamental importância vinculada às Nações Unidas. Por outro lado, enquanto o asilo tem natureza tipicamente política, o refúgio tem natureza claramente humanitária. Além disso, enquanto para a concessão do refúgio basta um fundado temor de perseguição, para a concessão do asilo se faz necessária uma perseguição concreta.

José H. Fischel de Andrade também busca diferenciar asilo e refúgio, ao afirmar que:

Não obstante as diferenças existentes entre as definições eos estatutos jurídicos de asilado e refugiado, pode ser asseverado que os institutos do asilo e do refúgio são complementares e compartilham as mesmas premissas, nomeadamente, a proteção de indivíduos perseguidos. Ao se comparar asilo e refúgio à luz de suas dessemelhanças e similaridades, e ao se discutir a identificação do melhor sistema para se proteger pessoas perseguidas,aceita-se, geralmente, que o sistema global do refúgio é muito mais preciso, moderno e atual. Este, portanto, brinda melhor e mais ampla proteção internacional àqueles que a necessitam. O sistema regional do asilo é considerado mais estreito, inferior em escopo, e inadequado quando da necessidade de responder aos desafios resultantes dos fluxos forçados de pessoas. Portanto, quando se considera a harmonização de definições de refugiado na AméricaLatina, deve-se preferencialmente ter em mente os conceitos de refugiado a nível global (Convenção de 1951) e, em segundo lugar, a nível regional (Declaração de 1984), deixando portanto de lado, mas não esquecendo, a existência histórica e a importância prática frequente das definições regionais de asilado. (2000,p.84)

Por outro lado, para G. E. do Nascimento e Silva (2001, p.11-15), a distinção mais importante entre refúgio e asilo é que o primeiro pode “abarcar inclusive situações de violações generalizadas de direitos humanos, dispensando-se a perseguição específica ao indivíduo solicitante de refúgio”.

Renato Zerbini Ribeiro Leão (2010, p. 76) também afirma que, apesar de aparentemente sinônimos, os termos ‘asilo’ e ‘refúgio’ somente ostentam características singulares. Embora sua definição não seja a seguida neste trabalho, é válida no sentido de se verificar uma distinção entre os institutos. Para ele, o ‘asilo’ também pode ser uma faculdade discricionária do Estado, ou seja, o Estado concede de maneira arbitrária e por essa decisão não deverá satisfação a ninguém. Trata-se de um ato soberano e ponto. Neste caso, a maioria da doutrina reconhece como sendo ‘asilo diplomático’. O ‘refúgio’, em contraste, é um instituto de proteção à vida decorrente de compromissos internacionais (como a Convenção de 1951 e seu Protocolo de 1967 das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados) e, como no caso brasileiro, constitucional. Este último é costumeiramente conhecido na doutrina como ‘asilo territorial’.

Em que pese o refúgio ter a mesma origem histórica do asilo, aquele se desenvolveu de uma forma independente. O fim da Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa e a ruína do Império Otomano colocaram o mundo diante de movimentos massivos de pessoas, com cerca de 1,5 milhão de deslocados e refugiados. Naquela época, a comunidade internacional teve de enfrentar o problema de definir a condição jurídica dos refugiados, organizar o assentamento ou repatriação e realizar atividades de socorro e proteção. Com a Segunda Guerra Mundial, o problema dos refugiados tomou proporções jamais vistas. Dezenas de milhões de pessoas se deslocaram por diversas partes do globo, a maioria em fuga do expansionismo nazista. Em 1943, foi criada a Administração de Socorro e Reabilitação das Nações Unidas (UNRRA) para auxiliar os deslocados pela Guerra num possível repatriamento ou uma colocação em um novo país.

Também em 1943 foi realizada a Conferência de Bermudas, que ampliou a proteção internacional dos refugiados, os definindo como “todas as pessoas de qualquer procedência que, como resultado de acontecimentos da Europa, tiveram que abandonar seus países de residência por terem em perigo suas vidas ou liberdade, devido a sua raça, religião ou crenças políticas”. Este dispositivo foi origem da futura definição de ‘refúgio’ prevista na Convenção de Genebra de 1951, que será abordada mais adiante.

Em 1946, a Assembleia Geral das Nações Unidas estabeleceu alguns princípios próprios da condição de refugiado. Ela afirmou que o problema do refúgio tem alcance e caráter internacional, decidiu que um órgão internacional deve ocupar-se do futuro dos refugiados e pessoas deslocadas e informou que a tarefa principal consiste em estimular o pronto retorno dos refugiados a seus países e ajudá-los por todos os meios possíveis.

A Assembleia também inovou com outro princípio: não se deve obrigar o regresso ao seu país de origem refugiados que expressem objeções válidas a esse retorno. Foi o início de um princípio consagrado, hoje, pelo nome de ‘non-refoulement’, segundo o qual os países não podem obrigar uma pessoa a retornar ao seu país de origem se houver fundado receio. Foi consagrado nesta Assembleia, também, o princípio de que um órgão internacional deveria ocupar-se do futuro dos refugiados e das pessoas deslocadas em todo o mundo para estimular o pronto retorno dos refugiados a seus países quando a situação política o permitisse.

Em 1947 foi criado o primeiro órgão relacionado ao refúgio. Foi chamado de Organização Internacional de Refugiados (OIR), e se dedicava aos problemas residuais dos refugiados da Segunda Guerra Mundial. Em dezembro de 1950, foi criado o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), uma instituição internacional, humanitária e apolítica com a função de proporcionar proteção internacional aos refugiados. O ACNUR nasceu como agência temporária, com um mandato de curto prazo para refugiados. Foi criado para ajudar milhões de pessoas deslocadas durante a Segunda Guerra Mundial a encontrar um lugar novo lar e se recuperar tanto financeiramente quanto psicologicamente. Posteriormente, o ACNUR foi chamado a prosseguir seu trabalho e responder às crises de refugiados em todo o mundo, acompanhando as profundas transformações no nosso tempo.

O instituto do refúgio se tornou conhecido pela comunidade global pela Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de[195]1 e, posteriormente, pelo Protocolo de 1966. De acordo com a Convenção de 1951, ‘refugiado’ era toda pessoa que, ‘em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões públicas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao temor, não quer voltar a ele’. O parágrafo 1º do artigo segue mencionando que “para os fins da presente Convenção, as palavras ‘acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951’, do art. 1º, seção A, poderão ser compreendidos no sentido de ‘acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa’”.

Percebe-se, pela leitura da definição original de ‘refugiado’, uma limitação temporal, que afirma que somente os perseguidos por motivos relacionados a fatos anteriores a 1951 podem ser considera dos refugiados, bem como uma limitação geográfica, tendo em vista que, de acordo com a alínea ‘a’ doart.1º,B, parágrafo 1º, caput, somente pessoas provenientes da Europa poderiam solicitar refúgio em outros países.

Em razão destas limitações, tornou-se muito difícil para muitos países aplicarem a Convenção de 1951. Houve uma tentativa de ‘correção’ dessa definiçãopeloProtocolosobreoEstatutodosRefugiadosde[196]7,retirando-se as limitações temporais e geográficas,e ampliando-se o conceito, que passou a considerar ‘refugiado’ como pesso a que, ‘temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país no qual tinha sua residência habitual, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele’. Percebe-se que, de forma distinta do asilo, a concessão do refúgio não se dá em virtude de perseguição baseada em crime de natureza política ou ideológica, mas sim em virtude de perseguição por motivos de raça, religião ou de nacionalidade, ou ainda pelo fato de pertencer a certo grupo social ou ter certa opinião política. Justamente por se restritamente vinculado ao direito humanitário, o conceito de refugiado é relativamente mutável e pode ser ampliado por meio de instrumentos regionais, como a Declaração de Cartagena sobre Refugiados de 1984, para que abarque, por exemplo, casos de violência generalizada, agressão interna ou a violação massiva de direitos humanos9. A ideia é que o conceito de refugiado possa abranger qualquer situação específica nas mais distintas regiões.

Nos anos 80, num cenário de muitos conflitos na América Central, surgiram acordos que originaram a Declaração de Cartagena, assinada na Colômbia em 1984. Esta declaração foi um marco no conceito de refugiado, uma vez que, buscando dar amplitude aos dispositivos da Convenção de 1951, introduziu o conceito de violência generalizada, invasão estrangeira e conflito interno como razões para a caracterização do refúgio. A Declaração de Cartagena sobre Refugiados se transformou num ponto de referência que proporcionou um enfoque inovador para a proteção e soluções para os refugiados.

Levando em conta esta inovação, Luis Paulo Teles Ferreira Barreto afirma que:

Estende-se o conceito não só para aquela pessoa que, em razão da raça, naturalidade, grupo social, sexo ou opinião política tenha temor fundado de perseguição, mas também àqueles cujos países tenham entrado em processo de degradação política e social e tenham permitido violência generalizada, violação de direitos humanos e outras circunstâncias de perturbação grave da ordem pública. (2010, p. 16)

Muitos dos princípios constantes na Declaração de Cartagena foram incorporados nas legislações internas dos países da América Latina. O enfoque regional e atualizado desta Declaração foi reiterado pela Declaração de San José sobre Refugiados e Deslocados Internos, de dezembro de 1994, elaborada em comemoração aos dez anos da Declaração de Cartagena sobre Refugiados. Esta Declaração recebeu apoio de diversos países sul-americanos, como Colômbia, Venezuela, e Uruguai.

Em 2004, por ocasião das comemorações do vigésimo aniversário da Declaração de Cartagena, foram assinados a Declaração e o Plano de Ação do México, institutos que reconhecem a responsabilidade dos Estados de garantir a proteção internacional de refugiados, bem como a necessidade de cooperação internacional em busca de soluções duradouras. O Plano de Ação do México (PAM) consolida a estratégia dos governos, do ACNUR e da sociedade civil para fazer avançar a proteção dos refugiados no continente pelos próximos anos. O PAM tem cinco grandes objetivos em relação à proteção dos refugiados, que são promoção de estudos e pesquisas acadêmicas sobre a proteção dos direitos humanos e dos refugiados no contexto latino-americano, capacitação e sensibilização dos funcionários públicos para garantir o acesso à proteção internacional de todos aqueles que dela necessitem, alternativas de auto-suficiência dos refugiados nas sociedades de acolhida, desenvolvimento das comunidades localizadas nas zonas limítrofes às regiões em conflito e o reassentamento solidário.

O conceito de ‘refugiado’, porém, não foi ampliado somente pela Declaração de Cartagena. A Convenção da Organização de Unidade Africana (OUA)10, que entrou em vigor em 20 de junho de 1974, afirma em seu artigo 1º que:

O termo refugiado aplica-se a qualquer pessoa que, receando com razão, ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontra fora do país da sua nacionalidade e não possa, ou em virtude daquele receio, não queira requerer a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país da sua anterior residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude desse receio, não queira lá voltar.

O termo refugiado aplica-se também a qualquer pessoa que, devido a uma agressão, ocupação externa, dominação estrangeira ou a acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública numa parte ou na totalidade do seu país de origem ou do país de que tem nacionalidade, seja obrigada a deixar o lugar da residência habitual para procurar refúgio noutro lugar fora do seu país de origem ou de nacionalidade. (grifo nosso)

Importante mencionar a inovação da OUA ao adicionar, em seu conceito de ‘refugiado’, a não necessidade de caracterização de violações de direitos humanos na totalidade do território de origem, ou país de nacionalidade do solicitante.

O Brasil, em 1989, por meio do decreto nº 98.602, aderiu plenamente à Declaração de Cartagena. Dois anos depois, em 1991, o Ministério da Justiça editou a portaria interministerial nº 394, com dispositivo jurídico de proteção a refugiados, estabelecendo uma dinâmica processual para a solicitação e concessão de refúgio.

O instituto do refúgio foi definitivamente recepcionado no Brasil pela Lei 9474/97 que, com 49 artigos, definiu todo o mecanismo para a implementação do Estatuto dos Refugiados. De acordo com o § 1º desta Lei, é considerado refugiado todo indivíduo que, devido afundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país, ou aquele que, não tendo nacionalidade e estando fora de país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função da perseguição odiosa já mencionada. Além disso, a nossa Lei chega a ser um pouco mais ampla, considerando como refugiado, também, todo aquele que, devido a grave e generalizada violação dos direitos humanos, é obrigado a deixar seu país para buscar refúgio em outro. O art .2 º da Leia firma que o benefício pode ser estendido ao cônjuge e familiares que dependam economicamente do refugiado, desde que se encontrem no território brasileiro.

Estão assim organizados os seus títulos: o primeiro trata dos aspectos caracterizadores do refúgio, vale dizer, do conceito, da extensão, da exclusão e da condição jurídica do refugiado; o segundo título trata do ingresso no território nacional e do pedido de refúgio; o terceiro título trata do CONARE, o quarto título trata do processo de refúgio, ou seja, do procedimento, da autorização da residência provisória, da instrução e do relatório, da decisão, da comunicação, do registro e do recurso; o quinto título abrange os efeitos do reconhecimento da condição de refugiado sobre a extradição e a expulsão; o sexto título trata da cessação e da perda da condição de refugiado; o sétimo título trata das soluções duráveis, como é o caso da repatriação, da integração local e do reassentamento; e, finalmente, o oitavo título apresenta as disposições finais.

Fato interessante é que a Lei 9474/97 foi a primeira lei nacional a implementar um tratado de direitos humanos no Brasil.(MAZZUOLI, 2011, p.742). Além de regular o instituto do refúgio no Brasil, esta Lei, redigida em parceria com o ACNUR e com a sociedade civil, também criou o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) para ditar a política pública do refúgio e decidir quanto às solicitações de refúgio apresentadas no Brasil. O CONARE é um órgão vinculado ao Ministério da Justiça, composto por representantes da área governamental, da sociedade civile das Nações Unidas. Seu comitê é composto pelo Ministério da Justiça, Ministério das Relações Exteriores, Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Departamento da Polícia Federal, Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e Rio de Janeiro, com direito a voz e voto, e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), com direito somente a voz.

A Lei 9474/97 informa o que um estrangeiro pode solicitar refúgio a qualquer autoridade migratória na fronteira nacional, ou até mesmo à Polícia Federal. Os olicitante preencherá um formulário e será entrevistado. Após, a Polícia Federal efetuará um Termo de Declaração e o encaminhará ao CONARE. Ao receber o Termo de Declaração, o CONARE autorizará a emissão de um protocolo provisório de solicitação de refúgio,que terá validade de três meses e será o documento de identidade do solicitante de refúgio até que seu caso seja analisado. Com este protocolo, o solicitante poderá tirar CPF e Carteira de Trabalho. Para auxiliar o CONARE em sua decisão, será feita uma entrevista com o solicitante de refúgio. Caso a decisão final do CONARE seja positiva, o solicitante poderá tirar seu Registro Nacional de Estrangeiros no Brasil. Caso a decisão final seja negativa, ele poderá apresentar recurso ao Ministério da Justiça em 15dias. Vale ressaltar que o benefício do refúgio é concedido pelo Ministro da Justiça pelo prazo máximo de dois anos, sendo renovável enquanto subsistirem as condições adversas na terra natal do refugiado.

É importante afirmar que não é necessária entrada legalizada do estrangeiro em território nacional para solicitar refúgio. De acordo com o art. 8º da Lei 9.474/97, “o ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes”.

Renato Zerbini Ribeiro Leão exalta a iniciativa brasileira ao salientar que:

A Lei brasileira contemporiza a perspectiva conceitual do refúgio, contornando este conceito com características vanguardistas, porque o seu artigo primeiro contempla as definições estatutárias da ONU, em seus incisos I e II, e a contribuição latino-americana no seu início III, para a definição de refugiado ou de refugiada. Atualmente, no Brasil, os refugiados e as refugiadas vêm sendo especialmente amparados por essa Lei, contempladora dos conceitos de Direito Internacional dos Refugiados do século XXI, assim como motivadora da importantíssima relação tripartite Governo, Sociedade Civil e ACNUR. (2010, p. 75)

Liliana Jubilut (2007, p. 195) também elogia a criação do instrumento, ao afirmar que, com o advento da lei dos refugiados, o Brasil passou a ter “um sistema lógico, justo e atual de concessão de refúgio, razão pela qual tem sido apontado como paradigma para a uniformização da prática do refúgio na América do Sul”.

Embora o Brasil tivesse sido pioneiro na América Latina na formalização de um instrumento normativo sobre refugiados, atualmente todos os países latino-americanos partes na Convenção de 1951 dispõem de normativa interna sobre o instituto. Nos últimos anos, países como Argentina, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Chile, Guatemala, entre outros, legislaram sobre este tema.11

O instituto do refúgio recebe, atualmente, fortes críticas sobre a sua atuação. Muitos estudiosos, como Janaína Freiberger Benkendorf Peixer, John K. Bingham e Scott Leckie afirmam que, embora seja um instituto comum a facilidade muito grande de ampliação, não abrange todos os casos necessários nem na esfera global,nem na regional. Tendo em vista que o refúgio, distintamente do asilo, tem como característica atingir uma coletividade, como pessoas de certo grupo social, com certa situação econômica, que saem de seu país de origem por ameaça a suavida ou integridade, é incabível que este instituto não se molde ao ritmo da evolução das sociedades para, por exemplo, abranger aspessoas perseguidas por exercerem seu direito de greve ou de realizarem manifestações políticas, ou até mesmo pessoas cujo país deixou de ser seguro devido a uma catástrofe ambiental. Tendo em vista que a ideia principal a respeito do refugiado é a de que este é a pessoa que, por algum perigo em sua terra natal, se vê forçado a fugir para outro território dentro ou fora de seu país, o conceito de refugiado deveria abranger todas as pessoas nessasituação.

Segundo o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), existiam em outubro de 2010, no Brasil, 4.306 refugiados reconhecidos, de 75 nacionalidades diferentes, com a sua maior parte, em torno de 65%, ou 2.799 pessoas, provinda do continente africano. O país da África que mais envia refugiados para o Brasil, segundo o CONARE, é Angola, com 1688 pessoas. O segundo maior número de refugiados por continente, no Brasil, provém das Américas, sendo 955 refugiados desta região. O país americano que mais envia refugiados para o Brasil, com 589 pessoas, é a Colômbia. Temos 449 refugiados originários da Ásia e, da Europa, este número cai para 98, ou 2,3%.

Embora ainda não haja uma expressão forte de auxílio aos refugiados, é possível se verificar, e aplaudir, iniciativas recentes em relação ao tema. No campo da Educação, por exemplo, existem orientações da Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação para a criação de mecanismos de ingresso de refugiados em cursos de ensino superior. Estas orientações já atingiram a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que, em sua resolução n.03/98, permite a admissão de refugiados nos cursos de graduação mediante documentação expedida pelo CONARE, uma medida que inclui bolsa de manutenção, apoio psicológico, acesso a programas de habitação e práticas trabalhistas remuneradas.

2.4. O Estrangeiro no Território Nacional

Conforme foi debatido anteriormente, o Estado decide arbitrariamente sobre a entrada ou não de estrangeiros em seu território nacional, considerando-se que é um poder, e não um dever do Estado, decidir se permite ou não proteger asilados ou refugiados, ou deixar migrantes transitarem dentrodo seu espaço. Porém, uma vez tendo aceitado a entrada de estrangeiros em seu país, deve conceder-lhes um mínimo de direitos, no que tange a sua segurança, propriedade e liberdade.

Em tese, nacionais e estrangeiros devemt er os mesmos direitos, ressalvada, com relação aos estrangeiros, a liberdade de expulsão. Nas palavrasde Clovis Beviláqua (p.197,1911), o que não se pode atribuira os estrangeiros, mesmo que residente se domiciliados no país, são direitos mais amplos que os concedidos por lei interna aos nacionais.

Normalmente, à pessoa que entra em um Estado estrangeiro são garantidos todos os direitos civis, situação que vinha prevista no Código Civil brasileiro de 1916, em seu artigo 3º, que dispunha que ‘a lei não distingue entre nacionais e estrangeiros quanto à aquisição e ao gozo dos direitos civis’, porém não foi reproduzida no Código Civil brasileiro de 2002, embora as ações com estrangeiros no Brasil ainda sejam pautadas nesta regra.

Em relação aos direitos políticos, vale dizer que, no Brasil, os estrangeiros não podem votar nem ser votados, mesmo quando aqui residem de forma definitiva, conforme se verifica no parágrafo 2º do artigo 14 da Constituição Federal, que reza que “não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os conscritos”. Porém, o estrangeiro pode votar nas eleições de seu país de origem pelo seu consulado.

Com a promulgação do Decreto nº 3.927, de 19 de setembro de 2001, que inseriu no ordenamento jurídico pátrio o Estatuto da Igualdade, abriu-se uma exceção para os portugueses que, caso desejem adquirir igualdade de direitos e deveres, deverão requerê-la ao Ministério da Justiça. Ressalte-se que não se trata de processo de naturalização, porque adquirida a igualdade de direitos, o cidadão português mantém a nacionalidade portuguesa. Para o alistamento eleitoral, o português que adquiriu a igualdade de direitos políticos deverá comparecer ao Cartório Eleitoral portando a Portaria do Ministério da Justiça e documento de identidade, expedido no Brasil, onde há a menção da nacionalidade portuguesa do portador e referência ao Estatuto da Igualdade. De acordo com o Estatuto, os eleitores portugueses do sexo masculino ficam dispensados de apresentar documento de quitação com o serviço militar obrigatório. Vale ressaltar que os portugueses que não solicitarem a igualdade de direitos recebem o mesmo tratamento que os estrangeiros em geral. Importante mencionar, também, que, de acordo com o Decreto, “o gozo de direitos políticos no Estado de residência importa na suspensão do exercício dos mesmos direitos no Estado da nacionalidade.”. É relevante esclarecer, também, que os direitos previstos no Estatuto da Igualdade somente serão reconhecidos aos que preencherem os requisitos listados no artigo 17 do Decreto, quais sejam três anos de residência habitual e a partir de requerimento formal à autoridade competente.

A Constituição Federal de 1988 ainda admite o acesso aos cargos, empregos e funções públicas por estrangeiros, algo ainda discutido por alguns doutrinadores, como MAZZUOLI (2011, p. 714-715), tendo em vista que alguns autores consideram que este dispositivo traga prejuízo à salva guarda dos interesses nacionais. São duas as situações em que o estrangeiro poderá ocupar cargos públicos no Brasil. A primeira está no artigo 207, § 1º, da Constituição Federal, com redação determinada pela Emenda Constitucional nº 11/1996, que faculta às universidades e às instituições de pesquisa científica e tecnológica a admissão de técnicos, cientistas e professores estrangeiros12. A segunda é a regra do artigo 37, I, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/1998 que permite que, na forma da lei, estrangeiros ocupem cargos públicos no Brasil13. Vale ressaltar, novamente que os portugueses gozam de um estatuto diferenciado e favorecido, pelo fato de que a Constituição assegurou a eles, desde que haja reciprocidade em favor de brasileiros, os mesmos direitos inerentes ao brasileiro, salvo as exceções previstas no artigo 12, § 3º da Constituição, como cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, Ministro da Defesa, Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carreira Diplomática, Oficial das Forças Armadas, Presidente da Câmara dos Deputados e Presidente do Senado.

Aos refugiados é necessário cumprir um leque um pouco maior de deveres, que inclui informar a Polícia Federal e o CONARE sobre qualquer mudança de endereço, não sair do território nacional sem autorização prévia do CONARE, não praticar atos contrários à ordem pública, entre outros, sob pena de perder a condição de refugiado.

2.5. Os deslocados internos

A categoria “deslocados internos” é relativamente antiga na dinâmica da mobilidade humana, e parece ser a mais complexa para a análise das teorias migratórias. Apesar de não serem beneficiários de uma convenção específica, como é o caso dos refugiados, os deslocados internos são protegidos por vários instrumentos jurídicos, principalmente pelas legislações de abrangência nacional e a legislação sobre direitos humanos. Ainda no caso de se encontrarem em um Estado que enfrenta conflitos armados, os deslocados são protegidos pelo Direito Internacional Humanitário.

De acordo com John K. Bingham, pessoas deslocadas internamente são:

Pessoas ou grupos que foram forçados a deixar seu lar ou local de residência, para fugir dos efeitos de conflitos armados, situações de violência generalizadas, violações de direitos humanos ou desastres tanto ambientais quanto os provocados pelo ser humanos, e que não cruzaram fronteiras internacionalmente reconhecidas como estatais. (2010, p. 42)

Geralmente os deslocados internos constituem uma categoria de cidadãos do Estado onde se encontram. Nessa condição, têm direito a total proteção das leis nacionais e dos direitos que elas garantem aos cidadãos do país, sem nenhuma implicação resultante da situação de deslocamento na qual estão inseridos. A descrição mais empregada pela comunidade internacional para definir o termo foi formulada em 1998 por Francis Deng, o representante para Deslocados Internos do secretariado geral das Nações Unidas. A definição aparece no documento da ONU intitulado “Princípios Orientadores Sobre Deslocamentos Internos”14 e afirma que “deslocados internos são pessoas ou grupos de pessoas que foram forçadas ou obrigadas a deixar os seus lares ou locais de residência habitual, particularmente como resultado de, ou a fim de evitar, os efeitos de conflitos armados, situações de violência generalizada, violações dos Direitos Humanos, desastres naturais ou provocados pelo homem, e que não cruzaram uma fronteira internacionalmente reconhecida de um Estado”.

Os deslocados internos constituem um grupo crescente de vítimas de deslocamentos forçados, que fogem da violência e perseguição, ou ainda desastres naturais, mas não chegam a cruzar uma fronteira nacional. Os deslocados internos se encontraram, durante muito tempo, fora do sistema internacional de proteção, porém a crescente consciência a respeito de suas necessidades de proteção fez com que as Nações Unidas e a comunidade internacional começassem a estabelecer mecanismos para atender suas necessidades.

Nas palavras de Márcia Maria de Oliveira (2010, p. 245), deslocados internos e refugiados são categorias estreitamente correlacionadas. No campo teórico, estas categorias são analisadas em duas vertentes, sendo uma institucional, marcada pela análise positivista e outra teórico-crítica caracterizada pela análise contextual. Mesmo considerando a similaridade das duas categorias, faz-se necessário tratar cada uma de modo separado justamente porque são tratadas desta forma no campo institucional. A autora também é de opinião que esta descrição não é fácil de ser aplicada em um contexto operacional, pois é muito abrangente e inclui muitos grupos com diferentes necessidades sob a mesma categoria. A autora também afirma que esta definição cria o risco de diminuir a proteção à qual a população civil como um todo tem direito.

Três fatores têm alimentado o debate sobre deslocados internos no seio da comunidade internacional: o fim da Guerra Fria, a proliferação dos conflitos internos e a conscientização sobre a proteção insuficiente concedida aos deslocados. Várias medidas foram tomadas em resposta às preocupações internacionais referentes aos deslocados, dentre elas a nomeação, em 1992, de um Representante do Secretário-Geral para os deslocados, bem como a formulação dos “Princípios orientadores sobre deslocamentos internos”.

O ACNUR tem publicado, também, uma grande quantidade de material sobre o tema dos deslocados, descrevendo sempre o papel de liderança que se propõe a exercer na proteção e assistência dos deslocados, dada a similaridade crescente entre a situação destes e a dos refugiados.

Em dezembro de 1999 as agências da ONU adotaram, através do Comitê Permanente Inter-Agências, um documento sobre a política de proteção aos deslocados, com diretrizes para coordenação interagências. O Comitê Permanente também estabeleceu mecanismos para aprimorar a resposta humanitária às necessidades dos deslocados.

Em julho de 2000 foi criada a Rede Interagências de Alto Nível sobre Deslocamentos Internos. Meses antes, em janeiro do mesmo ano, foi criada a chamada Unidade de Deslocados que é uma equipe não operacional composta de funcionários cedidos das agências principais da ONU e de Organizações Não Governamentais para o atendimento dos deslocados.

A Declaração de San José de 1994, sobre Refugiados e Pessoas Deslocadas, já afirmava que “a problemática dos deslocados internos, não obstante ser fundamentalmente de responsabilidade dos Estados de onde são nacionais, constitui também objeto de preocupação da comunidade internacional, por se tratar de um tema de direitos humanos que pode estar relacionado com a prevenção de causas que originam os fluxos de refugiados.”. O Plano de Ação do México de 2004 corrobora esta estratégia.

Atualmente, vários países possuem mecanismos que permitem proteger os deslocados internos. Esta sendo realizado um trabalho pelo ACNUR em relação a atender, também, os deslocados internos em seu mandato de proteção internacional.

Em relação ao Brasil, é possível verificar, por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que mais da metade dos moradores do Distrito Federal (DF), ou seja, 51,4% de seus moradores, não são naturais da região. Segundo a PNAD, o Distrito Federal e o Estado de Roraima são as duas unidades federativas do Brasil cujos habitantes provenientes de outro lugar no Brasil são mais numerosos do que sua população originária própria. Devido à falta de pesquisas da área, não é possível verificar quantos destes habitantes são migrantes internos ou deslocados internos.

A explicação das desigualdades regionais é relevante para entender as migrações de significativos grupos sociais da região nordeste em direção à região sudeste do Brasil.

Segundo Wilson Fusco (2010, p. 92), ao se levar em conta outros fatores que podem estar associados à maior ou menor probabilidade de migrar, dois deles são sempre considerados importantes: a renda e a escolaridade. Indivíduos com maior renda e escolaridade tendem a migrar mais do que os demais. A razão normalmente citada para justificar esta afirmação é que pessoas com renda maior sofrem menor impacto com os custos da migração e participam de um mercado mais amplo do que as demais pessoas. Quando são analisados os fluxos migratórios no Brasil, pensa-se, geralmente, em pessoas de baixa renda fugindo de condições difíceis e buscando sobreviver. Porém, nem sempre é o que ocorre.

De acordo com as análises de Luiz Bassegio (2004, p. 57), “a migração, portanto, ao longo da história do Brasil, tem sido um fenômeno compulsório: os migrantes são obrigados a deixar sua terra em busca de uma vida melhor em outros lugares ou países. Isso acontece porque os interesses econômicos das elites dominantes sempre estiverem por trás das grandes migrações no Brasil”.

Com relação à migração intrarregional, os dados indicam que muitos migram para escapar de conflitos socioambientais, étnicos e familiares, que ocorrem em várias regiões da Amazônia. A grande maioria dos migrantes entrevistados por Márcia Maria de Oliveira (2010, p. 114) é proveniente de municípios das calhas dos grandes rios que recortam a Amazônia. São trabalhadores sem formação profissional, sem estudos, que migram em busca de um posto de trabalho na capital que concentra todos os bens e serviços de todos os estados da Amazônia.

As estatísticas sobre deslocados internos devem ser vistas com muita cautela. Na verdade, o próprio conceito de deslocados varia de uma organização para outra, visto que depende do escopo de ação da organização específica e dos critérios que esta aplica para definir as causas e duração dos deslocamentos. Como resultado, existem debates e divergências frequentes entre organizações humanitárias e governos a respeito das cifras oficiais das populações deslocadas.

Segundo dados do ACNUR, a Colômbia é o país com mais deslocados internos do mundo. Para o Alto Comissariado, todos os sujeitos em situação de refúgio passaram, anteriormente, pelo deslocamento interno.

O ACNUR também afirma que o número de deslocados internos supera, e muito, o número de refugiados que cruzam as fronteiras internacionais. É possível verificar que, enquanto existem aproximadamente 10 milhões de refugiados, o número de deslocados internos é de aproximadamente 25 milhões de pessoas.


3. Mobilidade populacional e desastres ambientais: a definição jurídica de refugiados ambientais e possibilidade de flexibilização da definição de refugiado.

Tem-se percebido, nas últimas décadas, um sensível aumento no número de pessoas que foram levadas a sair de suas casas, regiões, ou até mesmo a mudar de país por razões ambientais ou climáticas, como desastres naturais, mudanças em relação ao clima ou alterações no meio ambiente. Trata-se de pessoas em busca de refúgio e proteção, impossibilitadas de regressar, de forma temporária ou definitiva, às áreas de sua residência pela destruição de sua terra, em casos como terremotos, tsunami, enchentes ou até mesmo pela elevação do nível do mar.

Obviamente, o deslocamento forçado devido à degradação do meio ambiente não é um fenômeno recente. Desde a Antiguidade, populações foram forçadas a se deslocar pela degradação ou por desastres naturais, que impossibilitaram que tirassem sustento de sua terra. A modificação na atualidade se dá na quantidade de população a se deslocar, bem como o esgotamento total de recursos e a destruição irreversível do meio ambiente. Nas palavras de Fernando Malta (2011, p. 163), “a grande diferenciação dos refugiados como fenômeno da modernidade é justamente a concepção estatal da homogeneidade de sua população, quase um pressuposto à efetivação do imaginário coletivo da nação”.

Levando-se em conta a atual integração entre os Estados, é impossível conceber a ideia de um Estado visualizar esta grave violação de direitos humanos em outro país e não se mobilizar para dirimi-la.

Ao versar sobre o tema, Susana Borràs Pentinat afirma que:

Nos últimos anos, os desastres naturais produziram, pela primeira vez na história, mais movimentos de população do que as guerras e os conflitos armados de vários tipos.Segundo a FederaçãoInternacional da Cruz Vermelha e a Sociedade do CrescenteVermelho,uma média de[211] milhões depessoas foram afetadasanualmentedurante a última décadapor desastres naturais, triplicando a médiada décadaanterior esendocincovezes o número depessoas afetadaspor conflitos armados(2011, p. 12) 15.

O que se vê, atualmente, é um choque cada vez maior entre o homem e a natureza, que leva, em alguns casos, sociedades inteiras a deixarem seus países em busca de um lugar que lhes dê não só sustento, mas também moradia e a mínima possibilidade de sobreviver. É necessário que estas pessoas, que claramente não se enquadram na definição de ‘migrante’, tendo em vista seu deslocamento não ser voluntário, sejam protegidas por algum mecanismo, de forma internacional, para que se possa dirimir não só seu sofrimento, mas também o sobrecarregamento de apenas alguns países receptores com o fluxo de pessoas ali direcionadas.

Estes migrantes forçados são popularmente chamados, por falta de um termo técnico para denominá-los, de ‘refugiados ambientais’, embora esta expressão não seja universalmente conhecida, especialmente por não ser passível de encaixe na Convenção de Genebra. Tendo em vista esta deficiência, é necessário analisar o status jurídico destes migrantes forçados que, mesmo passando por situações análogas às dos refugiados clássicos, não são amparados de forma adequada pelos instrumentos internacionais de proteção, para ampliar o conceito tradicional de refugiado e estender esta proteção internacional aos refugiados ambientais.

3.1. Possíveis motivos para o deslocamento populacional

Além do questionamento a respeito da possível flexibilização do termo ‘refugiado’ na Convenção de Genebra para abarcar os também denominados ‘refugiados ambientais’, é importante refletir a respeito das razões que levam estes migrantes a se deslocarem de seus lares: seriam seus motivos puramente ambientais ou climáticos, ou este deslocamento é simplesmente o estopim de uma condição de vulnerabilidade que não tem tanta relação com o meio ambiente?

As causas para este deslocamento forçado de população são as mais variadas, podendo tanto ser derivadas da atividade humana como exclusivamente naturais.

As causas derivadas da atividade humana podem ser baseadas em um crescimento populacional desmedido, na situação de pobreza em que se encontra a população ou na escassez de recursos naturais. Dentro das causas derivadas da atividade humana, existem, ainda, as atividades bélicas e nucleares. Exemplificando estas causas, temos o caso de Chernobyl, na Ucrânia, cujas pesquisas mostram que, mesmo 26 anos após o acidente, os níveis de material radioativo ainda estão muito altos, impossibilitando que os sobreviventes do desastre, que se deslocaram para outras partes da antiga União Soviética, voltem à cidade. Estas causas podem gerar uma degradação ambiental gradual, como a desertificação, ou definitiva, como as construções que desflorestam toda uma área.

Dentre as causas exclusivamente naturais, temos como exemplo as atividades sísmicas, normalmente exemplificadas por terremotos e erupções vulcânicas, atividades atmosféricas, cujos maiores exemplos são os tornados e furacões, e hidrológicas, exemplificadas pelas inundações. Estas causas normalmente trazem muito mais danos à região que atingem, especialmente se a área afetada for menos desenvolvida economicamente e não dispor de meios para detectar estes possíveis desastres naturais, nem para diminuir suas consequências.

Existe um debate entre aqueles que enfatizam o impacto direto do ambiente sobre os movimentos da população e aqueles que destacam o papel determinante do contexto social, econômico e político na vida da sociedade afetada pelo desastre ambiental, sendo o nexo entre mudanças ambientais, deslocamentos populacionais e a situação de vulnerabilidade social em que se encontram as populações atingidas salientado por inúmeros autores, que afirmam este terceiro fator ser determinante no que diz respeito às estratégias de adaptação e possibilidade de migrar.

Fernando Malta, em sua reflexão sobre o tema, afirma que:

Esta vulnerabilidade é acirrada pelas anomalias do conceito de ‘refugiados ambientais’ em relação ao moderno sistema internacional de Estados e ao conceito ‘clássico’ de refugiado, o que dificulta o reconhecimento internacional e pode agravar as consequências sociais de um fenômeno que, conforme os prognósticos, tende a se tornar mais frequente e atingir um número crescente de pessoas. (2011, p. 175)

É possível perceber que, em países atingidos por extrema pobreza ou forte desigualdade social, o desastre ambiental ou a mudança climática é o ápice do problema. Numa sociedade com problemas sociais, a mudança no meio ambiente somente transforma uma situação difícil em insustentável, forçando os habitantes do local a se deslocar por falta de comida ou impossibilidade de trabalhar, tendo em vista a dependência econômica da criação de animais ou agricultura.

Susana Borràs Pentinat (2011, p. 13), em seu texto, afirma que “um estudo da ONU em 1998 estimou que 96% das mortes causadaspor desastresocorrem em 66% da populaçãodos países mais pobresdo mundo”.Combater a pobreza, para ela, é a melhor maneira dereduzir o número decorpos que seráremovidodos escombros,lama, inundações e secas16.

Numerosos autores partilham da opinião de que as populações que sofrem mais drasticamente os impactos ambientais são as de com menor renda. Cecilia Tacoli afirma que:

São osgrupos mais pobres, aqueles que muitas vezes sãoforçados a viverem locais perigosos, comoencostas íngremes ou assentamentos 'informais' com pouca ou nenhumadisposição paradrenagem de águas pluviais, acesso limitado dos serviços de emergência, como ambulâncias ecaminhões de bombeiros,distantes decentros de saúde e com habitaçõescheias e inadequadas,que mais sofrem. Eventos extremos, quando afetam as pessoascom altos níveis devulnerabilidade, se tornamdesastres.Com relação à mobilidade,na maioria dos casosas pessoas voltamo mais rápido possívelpara reconstruir suas casase meios de subsistência. Se e o quãorapidamenteeles são capazes de fazê-lo depende muito donível de apoioque recebem dosgovernos e da sociedade civil17. (2011, p. 114-115)

Resta cristalino que as pessoas mais influenciadas pelos impactos no meio ambiente são, naturalmente, as que necessitam dele como meio de subsistência. É óbvio verificar que são mais afetadas pela desertificação e degradação do solo as pessoas do meio rural, que dependem primordialmente do ambiente para plantar, do que as pessoas do meio ambiente urbano, geralmente mais abastadas e possuidoras de outro modo de produzir sua renda. Vale ressaltar, também, eventos como secas severas ou chuvas intensas, que tem um impacto a longo prazo na economia local.

Apesar de estar constatado que esta emergência humanitária crescente existe e suas possíveis conseqüências serão devastadoras, não há nenhum meio de proteção internacional para estas populações que perderam suas casas, família, nacionalidade, tudo, posto que, formalmente, não há uma proteção internacional específica para essa categoria de pessoas. É comprovado que estes desastres repentinos ou até mesmo a degradação paulatina do meio ambiente não provocam somente o deslocamento de um crescente número de pessoas, mas também uma grave, porém velada, violação aos direitos humanos e fundamentais destes deslocados. Não é incomum ouvir em televisões ou ler em revistas sobre a morte de deslocados, tanto migrantes quanto refugiados que, sem outra opção visível, buscam cruzar fronteiras e passar por rotas migratórias, porém sendo atingidos pela militarização ou por políticas restritivas a respeito da migração em diversos países.

O exemplo mais marcante sobre o tema é o fechamento das barreiras perante os estrangeiros na fronteira entre o México e Estados Unidos, nos estados americanos de Arizona e Novo México, onde morrem centenas de pessoas todos os anos. O número de pessoas que tenta atravessar os três mil quilômetros de fronteira entre o México e os Estados Unidos, a cada ano, já atinge a casa dos milhões. A patrulha de fronteira americana informa que anualmente, 775 mil imigrantes ilegais são detidos apenas no Arizona. Grande parte é enviada de volta, mas a maioria tenta atravessar a fronteira outra vez. As causas das mortes destas pessoas que tentam atravessar a fronteira são bem abrangentes. O caso mais comum é a desidratação, tendo em vista que os migrantes necessitam passar por um deserto na fronteira do estado do Arizona. Todavia, também existem casos de capotamento de carros ao atravessar o deserto e outros acidentes. Também existem casos em que segmentos da população americana, tomados pelo preconceito aos migrantes, buscam parar este fluxo de pessoas matando-os, como ocorreu em agosto de 2010. Na ocasião, dentre os 72 supostos migrantes ilegais assassinados, quatro eram brasileiros, segundo informações do Itamaraty.

3.2. Desastres ambientais emblemáticos

O fator que caracteriza melhor a possível abertura do termo ‘refugiado’ para abranger também os refugiados ambientais é a sua condição de deslocados forçados, ou seja, o fato de serem pessoas constrangidas a abandonar seu ambiente natural por uma grave ameaça a sua sobrevivência e aos seus direitos, e não apenas porque acreditam que seu país de destino ofereça mais oportunidades de emprego ou de sustento do que seu país de origem. Esta característica auxilia na distinção entre os refugiados ambientais e migrantes econômicos, que abandonam voluntariamente suas casas em busca de condições melhores de vida, mas que têm a opção de regressar a seu país de origem sem sofrer perseguições nem ter seus direitos violados.

É possível, também, distinguir os migrantes econômicos dos refugiados ambientais ao visualizar a vulnerabilidade destes ante a natureza. Em muitos casos, os refugiados ambientais necessitam sair de seus países de origem por não ter mais possibilidade de encontrar água, alimento ou até mesmo pela inundação ou instabilidade do solo. Sua principal característica é a vulnerabilidade, e esta é evidenciada ao percebermos o crescente número de desastres ambientais, tanto previstos quanto não, nos últimos anos.

O primeiro grande desastre a nos fazer perceber a força da natureza ante a população humana foi o terremoto submarino de Sumatra-Andaman, que ocorreu no Oceano Índico em 2004, com epicentro na costa oeste de Sumatra, na Indonésia, e que teve como consequência o tsunami do Oceano Índico. O terremoto desencadeou uma série de tsunamis devastadores ao longo das costas da maioria dos continentes banhados pelo Oceano Índico, matando mais de 230 000 pessoas em quatorze países diferentes e inundando comunidades costeiras com ondas de até 30 metros de altura. Foi um dos mais mortais desastres naturais da história, sendo a Indonésia o Estado mais atingido, seguido pelo Sri Lanka, Índia e Tailândia. O fator que mais ajudou a maximizar os danos causados por este terremoto foi, sem dúvida, a impossibilidade de prever a sua chegada, tendo em vista que os países atingidos não possuíam capacidade financeira para arcar com os custos de instrumentos de controle meteorológico.

Um pouco após este evento, em 2005, os Estados Unidos, especificamente no Estado da Louisiana, foram atingidos pelo Furacão Katrina, mostrando ao mundo que todos os países, e não só os menos desenvolvidos, correm o risco de serem atingidos por um grande desastre ambiental. O Furacão Katrina, que chegou a alcançar a categoria 5 da Escala de Furacões de Saffir-Simpson, foi o responsável por aproximadamente duas mil mortes, sendo descrito por muitos como a pior catástrofe a atingir os Estados Unidos. Katrina foi responsável pela migração de mais de um milhão de pessoas na região da Louisiana e em outros lugares nos Estados Unidos, sendo o maior deslocamento interno conhecido na história dos Estados Unidos. Porém, mesmo com este grande número de deslocados, ainda não há comparação com um desastre ocorrido em um país menos desenvolvido.

Porém existem ocasiões em que estes desastres naturais podem ser previamente detectados e antecipados, para não causar aos habitantes dos lugares onde ocorrem graves danos, como mortes ou acidentes. Um caso em que houve efetividade nos sistemas de controle e previsão foi em fevereiro de 2011, quando o Furacão Yasi passou por Queensland, na Austrália, destruindo edifícios e casas, mas sem atingir nenhuma pessoa. Como houve a possibilidade de prever o percurso que o furacão iria fazer, tendo em vista a Austrália ser equipada por mecanismos de previsão de furacões, foram evacuadas mais de 300 mil pessoas de suas casas, fazendo que este fosse um dos poucos furacões a passar por um local habitado e não fazer nenhuma vítima.

A situação dos pequenos Estados insulares é especialmente grave. O aumento do nível do mar intensifica inundações, erosão e outros fenômenos que ameaçam diariamente os assentamentos e instalações de cuja subsistência dependem estas comunidades. No caso das Ilhas Carteret, por exemplo, os moradores praticamente não têm água potável para beber, pois a água salgada invade os sistemas de canalização e a atinge. Também o solo fica improdutivo, as plantas não vingam e as palmeiras morrem. Além disso, as mudanças climáticas tornaram os furacões mais frequentes e estes já devastaram algumas ilhas do arquipélago.

Entre as nações especialmente ameaçadas pela elevação do nível dos mares se encontram a Federação dos Estados da Micronésia, Tuvalu, Fiji e as Ilhas Maldivas, entre outros. No arquipélago da Indonésia, por exemplo, somente durante a última década já desapareceram um pouco mais de vinte ilhas e a previsão é que mais uma centena de suas 17.000 ilhas desapareça até o fim deste século. Este é só um caso dentre vários, tendo em vista que estes pequenos Estados enfrentam uma contínua perda de território, que levará a inevitável desaparição do país e, consequentemente, de todas as competências que este país exerce sobre sua população. Vale ressaltar que a perda de território não é o único problema pelo qual os moradores destas ilhas passam.

Com o fim de proteger a população que seria futuramente afetada, o governo da Ilha de Tuvalu realizou um acordo com a Nova Zelândia para transladar seus 11.000 habitantes para este país, após realizar estudos acerca do nível do mar e perceber que seus habitantes seriam vítimas, num futuro próximo, de uma inundação devido à elevação deste nível. Estando aproximadamente 3m acima do nível do mar, é previsto que esta ilha desapareça nos próximos 50 anos.

Outro país fora do continente asiático, mas com grandes chances de ter um desastre derivado das mudanças climáticas é o Egito. Dono de uma costa baixa sucedida por planícies não mais elevadas e de um dos deltas historicamente mais famosos do mundo, em um país de alta densidade demográfica e com contínuo crescimento populacional, próximo do maior deserto do mundo e em comprovado processo de desertificação, não há um cenário favorável ao país, tendo sido declarado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, em 2007, um dos lugares mais vulneráveis à elevação do nível do mar. Como exemplo desta vulnerabilidade, temos a região do Delta do Nilo que, de acordo com o documento “3784: Adaptation to Climate Change in the Nile Delta through Integrated Coastal Zone Management”, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em parceria com o Ministério de Recursos da Água e Irrigação do Egito, de uma população de 40,2 milhões de pessoas, caso inundada apenas 2 metros afetaria cerca de 10,7 milhões de pessoas, ou mais 25% da região, que não teria alternativa que não o deslocamento. Ademais, mais de 1/3 dos 1,5 milhões de hectares de terra cultivada na região seria igualmente perdida, enfraquecendo severamente a produção de alimentos no país e afetando de forma grave a vida da população egípcia.

Temos, ainda, o exemplo recente do terremoto seguido de um tsunami, seguido ainda de um desastre nuclear no Japão, em 2011. Localizado exatamente no limite da placa tectônica Euroasiática, o Japão é um país comumente atingido por terremotos e tsunamis, sendo que dois em cada dez terremotos no mundo com magnitude superior a 6 graus na escala Richter atingem o país. No entanto, no dia 11 de março de 2011, o país foi atingido por um terremoto de magnitude de 9 graus na escala Richter, segundo informações do Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS). O abalo sísmico ocorreu a 24 quilômetros de profundidade, a 160 quilômetros da costa, desencadeando um tsunami com ondas de até 10 metros de altura que atingiram a costa nordeste do Japão. As ondas invadiram a cidade e provocaram mortes e a destruição de casas e ruas. Milhões de residências ficaram sem energia elétrica. Autoridades japonesas divulgaram que 9.079 pessoas morreram e milhares ficaram feridos em consequência do terremoto e do tsunami.

O terremoto e o consequente tsunami provocaram, ainda, danos na usina nuclear de Fukushima. Vazamentos radioativos foram registrados e a comunidade internacional preparou-se para um iminente desastre nuclear. Os níveis de radiação no entorno da usina superaram em oito vezes o limite de segurança, forçando a evacuação da população em um raio de 20 km ao redor da usina, porém, felizmente, não houveram mortes causadas pelo vazamento radioativo. Esses danos, tão graves, foram considerados pequenos se em comparação com outros acidentes do mesmo tipo. Embora não tivesse previsto o desastre, o país teve danos ‘mínimos’ por possuir construções de boa qualidade e realizar simulações de ação perante terremotos com a população.

Em muitas situações catastróficas, os deslocados retornam a seus lares assim que as circunstâncias os permitem e iniciam rapidamente a árdua e difícil tarefa de reconstruir sua condição de vida anterior. Em outros casos, impede-se aos deslocados, de maneira arbitrária ou ilegal, de regressar e recuperar seu lar. Por exemplo, no Sri Lanka e Aceh, segue-se impedindo fisicamente a milhões deles de regressarem a seus lares depois do Tsunami asiático de 2004, apesar de seu evidente desejo de fazê-lo. Ainda que se tenha dedicado consideráveis esforços para tratar o deslocamento e o retorno no contexto de conflitos armados, faz muito pouco que os profissionais começaram a explorar os vínculos essenciais entre o deslocamento, os desastres naturais e meio-ambientais e as soluções duradouras relativas ao deslocamento no marco dos direitos humanos.

Os exemplos acima servem para demonstrar que, num futuro próximo, qualquer país, mesmo com boa condição econômica, poderá enfrentar graves problemas derivados de desastres ambientais, especialmente em relação aos deslocamentos de pessoas.

Conforme explicitado acima, é possível ver uma conexão entre as situações de degradação ambiental e migração. Os deslocados não passam somente por mudanças em relação ao desenraizamento de sua cultura antiga para novo aculturamento, mas também em relação à desintegração familiar e social, porque, muitas vezes, estão obrigados a se separar de pessoas muito próximas.

O deslocamento forçado de uma pessoa implica em muito mais do que apenas na mudança do local de residência. O Juiz A. A. Cançado Trindade, em voto na audiência pública perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos em 08 de agosto de 2000, referente ao caso dos haitianos e dos dominicanos de origem haitiana na República Dominicana afirma que:

Com o desenraizamento, uma pessoa perde, por exemplo, a familiaridade do cotidiano, o idioma materno como forma espontânea de expressão das ideias e sentimentos, e o trabalho que da a cada um o sentido da vida e a utilidade aos demais na comunidade em que vive. A pessoa perde seus meios genuínos de comunicação com o mundo exterior, assim como a possibilidade de desenvolver um projeto de vida. É, então, um problema que concerne todo o gênero humano, que envolve a totalidade dos direitos humanos e, sobretudo, que tem uma dimensão espiritual que não pode ser esquecida, especialmente no mundo desumanizado de nossos dias.

O problema do desenraizamento deve ser considerado em um marco da ação orientada a erradicação da exclusão social e pobreza extrema - se é que se deseja chegar a suas causas e não somente combater seus sintomas. Impõe-se o desenvolvimento de respostas a novas demandas de proteção, ainda que não estejam literalmente contempladas nos instrumentos internacionais de proteção do ser humano vigentes. O problema só pode ser enfrentado adequadamente tendo sempre presença a indivisibilidade de todos os direitos humanos (civis, políticos, econômicos, sociais e culturais)18.

Ao ser forçosamente deslocado de seu país natal para outro, estrangeiro, o indivíduo não perde somente seus familiares e seus bens, mas também o seu modo de viver. Ao ser transportado para outro país, ele perde sua cultura, sua vida como era até o momento do desastre, sua caracterização como indivíduo pertencente a certo grupo de pessoas. Tendo em vista a função primordial destes fatores na vida de um indivíduo, chega a ser impossível acreditar que exista uma reparação para compensar esta perda cultural que os deslocados sofrem, ou que, ao receber uma casa ou um emprego em outro lugar, esta pessoa se considere indenizada pelo dano que sofreu.

Para dirimir os grandes prejuízos que estes indivíduos sofreram imotivadamente, é necessário que se outorgue a eles, um status equivalente ao de outros refugiados, que, em geral, inclui proteção legal, assistência sanitária, asilo e ajuda para regressar a seu país de origem, caso seja possível regressar a ele.

Conforme já visto, a Convenção de Genebra especifica quatro elementos que auxiliam a definir o termo ‘refugiado’, afirmando que este deve estar fora de seu país de origem, seu país de origem deve ser incapaz de lhe proporcionar proteção ou facilitar o retorno, esta incapacidade deve se atribuir a uma causa inevitável que provocou o deslocamento e, por fim, que esta causa se baseie em razões de raça, nacionalidade, grupo social ou questões políticas.

Porém, este caráter restringente da Convenção não deveria ser obstáculo para a adoção de políticas estatais mais liberais, tendo em vista que, a partir dos anos setenta, novas circunstâncias acerca do refúgio obrigaram os Estados a fazerem uma interpretação diferente a respeito do termo. Os conflitos armados e a violência generalizada forçaram os Estados a ampliar o conceito previsto na Convenção de Genebra por meio de outros instrumentos, como a Convenção da Organização para a Unidade Africana e a Declaração de Cartagena sobre Refugiados.

3.3. Origem do termo ‘refugiado ambiental’ e sua atual classificação

O termo “refugiado ambiental” foi abordado pela primeira vez em 1985, num informe do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), elaborado por Essam El- Hinnawi, professor do Egyptian National Research Centre, do Cairo, e popularizado por Wangari Maathai, ganhadora do prêmio Nobel da Paz. De acordo com o informe, Essam El- Hinnawi definiu originalmente “refugiados ambientais” como:

Pessoas que foram forçadas a deixar seu habitat tradicional, temporariamente ou permanentemente, por uma destruição ambiental, natural ou acionada por pessoas, que botou em xeque sua existência e/ou seriamente afetou a qualidade de sua vida. Por “destruição ambiental”, entende-se qualquer mudança física, química e/ou biológica no ecossistema (ou na fonte de recursos) que o torna, temporária ou permanentemente, incapaz de manter a vida humana. (1985, p. 4)19

Uma das maiores críticas ao conceito de “refugiado ambiental”, compartilhada por Diane Bates (2002, p. 465) é a opinião de que ele é um pouco vago. Nesta definição, na opinião de Bates, o autor simplesmente generalizou o termo criado, não utilizando formas de distinguir os refugiados ambientais de outros tipos de migrantes nem especificando diferenças entre os próprios tipos de refugiados ambientais. Não há, por exemplo, diferença entre os refugiados por um terremoto e os refugiados pela gradativa evolução do nível do mar na definição de El-Hinnawi, mesmo que nós vejamos muitas diferenças entre estes dois tipos de migrantes, como se verá a seguir. Este problema corrobora a opinião dos autores que acreditam que, por ser um termo tão abrangente, a proteção dos refugiados ambientais não terá muito valor prático.

Para aperfeiçoar o uso do termo, BATES (2002, p. 467) criou uma classificação prática de tipos de refugiados ambientais. Para ela, existem três tipos de refugiados ambientais enquadrados na classificação original de El-Hinnawi: Os primeiros são os temporariamente deslocados por desastres, podendo ser naturais ou antropogênicos. Os segundos são os permanentemente deslocados por mudanças ambientais drásticas, como a construção de usinas hidrelétricas. Os terceiros, por fim, são os que migram baseados na deterioração gradual das condições ambientais. Levando em conta as situações descritas por El-Winnawi, a autora decidiu basear sua classificação em critérios relacionados à origem, à intenção e à duração da destruição ambiental. Para melhor visualização da classificação de BATES, foi criada, por Fernando Malta (2011, p. 166), um quadro explicativo de sua teoria, que será explicada adiante:

Quadro 1: Tipos de Refugiados Ambientais a Partir da Classificação de Bates

Desastres

Expropriações

Deteriorações

Um evento catastrófico não intencional causa migração humana

A destruição intencional do meio ambiente o torna desapropriado para habitação humana

Deterioração gradual do ambiente compele à migração ao dificultar a sobrevivência humana

Sub-Categoria

Natural

Tecnológico

Desenvolvimento

Ecocídio

Poluição

Depleção

Origem

Natural

Antropogênica

Antropogênica

Antropogênica

Antropogênica

Antropogênica

Intenção

Não intencional

Não intencional

Intencional

Intencional

Não intencional

Não intencional

Duração

Abrupto

Abrupto

Abrupto

Abrupto

Gradual

Gradual

Prazo de Retorno

Curto/ Médio

Longo/ -

Não há retorno

Longo/ -

Médio/ Longo

Médio/ Longo

Causalidade

Uni/ Multicasual

Uni/ Multicasual

Unicasual

Unicasual

Multicasual

Multicasual

Exemplo

Terremoto

Acidente Nuclear

Hidrelétrica

Desfolhação

Aquec. Global

Desflorestamento

Exemplo Real

Haiti

Chernobyl

Três Gargantas

Vietnã

Bangladesh

Amazônia Equat.

Fonte: MALTA, Fernando. A anomalia da anomalia: os refugiados ambientais como problemática teórica, metodológica e prática. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana. V. 19, n. 36. p.166, jan-jun/ 2011.

As destruições que dão origem aos fluxos migratórios podem ser divididas em três categorias: desastres, expropriações e deterioração. Os desastres são eventos abruptos sem a intenção de produzir fluxos migratórios, e podem ser causados por eventos naturais ou acidentes tecnológicos. As expropriações são resultado, também, de um evento abrupto, porém deslocam a população intencionalmente, e podem ser resultado do desenvolvimento econômico ou de guerras. A deterioração, por fim, é o resultado de uma mudança gradual e antropogênica no ambiente que não tinha a intenção de produzir deslocamento da população. Este último grupo tende a ter ecossistemas que foram degradados, gradualmente, pela diminuição ou depleção, até um ponto que a população não pode tirar seu sustento de seu habitat natural.

Como afirmado anteriormente, os desastres são as destruições abruptas do meio ambiente que causam migração não planejada. Normalmente, produzem refugiados que retornam após pouco tempo. Podem ter origem natural ou antropogênica, ou ainda uma mescla das duas.

Os desastres naturais se distinguem dos antropogênicos por uma diferença significante na sua origem. Estes desastres são o resultado de furacões, inundações, terremotos e outros eventos climáticos ou geológicos que tornem um local, previamente habitado, incapaz de abrigar a vida humana, de forma permanente ou temporária.

Os desastres tecnológicos são inteiramente antropogênicos, mas como os naturais, são abruptos e não intencionais. Diferentemente dos desastres naturais, o tecnológicos resultam mais das escolhas humanas a respeito das tecnologias do que de eventos causados por condições naturais.

Porém nem todos os desastres estão posicionados dentro da categoria de natural ou tecnológico, por existirem desastres que resultam de uma interação entre a destruição natural e antropogênica no meio-ambiente. São eventos naturais cujos efeitos são ampliados por atividades humanas como, por exemplo, a destruição da usina nuclear de Fukushima.

Os refugiados por desapropriação são deslocados para que seu habitat tenha algum outro uso ou porque se tornou incompatível para sua residência. Estes refugiados são permanentemente relocados, normalmente com ajuda governamental. A situação é normalmente abrupta, antropogênica e o deslocamento é intencional. A desapropriação pode ser causada para o desenvolvimento, como para uma construção de usina hidroelétrica, ou por motivos de guerra, nos casos da destruição do meio ambiente humano para relocar ou retirar a população em uma guerra. Temos como exemplo o deslocamento dos vietnamitas que moravam na área rural do Vietnã durante os anos 1970 e que foram deslocados pelo uso de herbicidas que destruíram os recursos florestais pelos Estados Unidos, causando um ‘ecocídio’.

Os refugiados pela deterioração são aqueles afetados pela deterioração paulatina do meio ambiente pela alteração antropogênica. A migração causada pela deterioração não é planejada, embora a destruição do meio ambiente seja feita de forma deliberada, tendo em vista a sociedade compreender o que suas atitudes ocasionarão. Por este tipo de destruição ser ocasionado de forma paulatina, é extremamente difícil caracterizar este último grupo como refugiados, e não como migrantes. Normalmente, as pessoas tipificadas dentro desta classificação são consideradas refugiadas somente nos casos em que a deterioração se torna um desastre.

A deterioração antropogênica do ecossistema pode ser causada tanto pela poluição quanto pela depleção, que é a remoção gradual de partes do ecossistema, como o desmatamento. Até recentemente, a concentração de poluição nas regiões desenvolvidas nos levava a acreditar que as doenças derivadas da contaminação iriam aparecer primeiramente lá, porém é possível perceber, hoje, que a poluição não atinge somente uma região, mas todo o planeta. A degradação gradual da atmosfera pelo dióxido de carbono e outros gases que causam o efeito estufa pode causar aumentos do nível do mar que, de acordo com algumas pesquisas, causará um possível alagamento e diminuição de terras para cultivo em todo o planeta.

A degradação do meio-ambiente afeta a migração humana, mas isso pode resultar de uma pressão externa ou da decisão feita pelo próprio migrante. A decisão de se relocar, geralmente feita no nível individual ou com todo o núcleo familiar, caracteriza a migração voluntária. Esta migração tem como motivo mais comum o desejo de melhora econômica. Outros migrantes são forçados a se relocar por forças externas. Estes são os refugiados.

3.4. Posicionamentos acerca da possível ampliação do termo

Embora haja várias opiniões no sentido de ampliar a Convenção de 1951 para incluir os refugiados ambientais, dentre elas Janaína Freiberger Benkendorf Peixer e Fabiano Menezes, outros autores e organismos internacionais não partilham da mesma opinião.

Enquanto MENEZES (2010, p. 97-109) protege a ampliação do conceito por verificar a patente responsabilidade do Estado ao falhar diretamente na proteção dos seus cidadãos em face dos impactos ambientais, bem como a responsabilidade dos Estados mais poluidores, por contribuírem diretamente para as mudanças climáticas, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), por exemplo, considera que é possível que qualquer iniciativa para modificar esta definição cause o risco de uma renegociação da Convenção de 1951, o que, no momento atual, pode dar lugar a uma redução das normas de proteção do refugiado ou ainda apagar todo o regime de proteção internacional do refugiado.

Outros autores apoiam o posicionamento do ACNUR, como CASTLES (2002, p. 10), que acredita que a expansão da definição irá afetar e tornar mais dificultosa a proteção dos refugiados que buscam abrigo fugindo de situações de violência. Maria Oliveira (2010, p.125) afirma, também, que o reconhecimento da categoria de refugiados ambientais poderá causar uma desvalorização na atual proteção dos refugiados, bem como uma necessária intervenção na soberania interna dos Estados, pois a maioria dos deslocamentos populacionais ocasionados por mudanças climáticas ocorre dentro dos limites Estatais.

De acordo com o pensamento de PENTINAT (2011, p.29), é possível perceber duas restrições para criar a figura jurídica do refugiado ambiental. A primeira se centra na desvalorização que teria esta nova denominação, posto que os asilados na grande maioria dos casos são considerados desta maneira pelas distintas opressões políticas, ao que o termo ‘refugiado’ também cabe às pessoas vítimas de pobreza ou outras questões culturais ou sociais. A segunda razão se dá pelo fato de a maior parte das pessoas deslocadas o serem dentro do seu próprio país, e não cruzando fronteiras. Por isso, uma nova definição do termo refugiado não iria abranger estas pessoas, ocasionando, ainda, uma alteração jurídica com pouca aplicação prática.

A extensão do reconhecimento do Estatuto do Refugiado aos deslocados ambientais suporia, além de excluir a situação dos deslocados internos por causas ambientais, a possibilidade de aplicar as mesmas soluções que são aplicadas aos refugiados políticos, ou seja, a repatriação voluntária ou o retorno voluntário ao país de origem, ou o translado dos refugiados a um terceiro país e a integração local no país que lhes deu acolhida. Esta solução, ao ver de PENTINAT, é impossível, pois os recursos disponíveis para quem sofre perseguições políticas, religiosas ou de outra índole já são insuficientes. A seu ver, a extensão do termo iria somente diminuir a capacidade de apoio aos já considerados refugiados.

Porém, vale lembrar que a ampliação do conceito de ‘refugiado’ já foi efetuada de forma regional, através tanto da Convenção da Organização para a Unidade Africana quando da Declaração de Cartagena de 1984.

Em relação ao quesito dos refugiados internos, o ACNUR, a Organização Internacional da Migração e o Grupo Político dos Refugiados optaram por não utilizar a denominação ‘refugiado ambiental’, e sim a denominação ‘pessoas ambientalmente deslocadas’, entendendo este termo se referir tanto às pessoas deslocadas dentro de seus próprios países quanto às pessoas que se deslocaram através de fronteiras internacionais devido à degradação ou destruição do meio ambiente.

Embora não haja nenhuma Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas nem nenhum outro instrumento protegendo este tipo específico de refugiado, é possível preencher esta lacuna jurídica por meio da aplicação dos princípios do Direito Internacional do Meio Ambiente, bem como os Direitos Humanos.

Desde a Convenção de Genebra, em 1951, a visão que se tinha a respeito dos refugiados mudou drasticamente. Agora, o refugiado não é somente aquele que foge de regimes políticos repressivos ou de conflitos armados. Os novos processos de migração devem ser tomados em conta, buscando reconceituar o conceito de ‘refugiado’, lembrando sempre de vinculá-lo à proteção dos Direitos Humanos.

Ante a lacuna jurídica existente no Direito Internacional dos Refugiados, a proteção destes deslocados ambientais poderia vir pela aplicação da teoria dos Direitos Humanos e dos princípios do Direito Internacional do Meio Ambiente, como possível via de proteção jurídica ao refugiado ambiental. Embora não seja possível responsabilizar os Estados por desastres como furacões e terremotos, o direito à vida e outros importantes direitos humanos criam obrigações positivas para os Estados, que devem tomar as medidas adequadas para proteger a vida, a integridade física e os bens de quem se encontra abrangido pela sua jurisdição. Se for possível prever um desastre e o Estado puder prevenir as possíveis ameaças para a vida e propriedade das pessoas, deve tomar as medidas adequadas, tendo em vista suas obrigações perante o direito à vida de seus cidadãos.

Neste sentido, vale ressaltar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 estabelece em seu artigo 25 que “toda pessoa tem direito a um nível de vida adequado que lhe assegure, assim como a sua família, saúde e bem estar”. Em seu artigo 13, reconhece o “direito de todas as pessoas de circular livremente e escolher sua residência em um território do Estado”. De acordo com esta disposição, a pessoa deslocada ou que se encontra em risco de deslocamento por razões ambientais goza de liberdade de circulação, incluindo o direito de optar livremente por regressar a sua casa, fixar-se em qualquer outro lugar do país ou integrar-se localmente no lugar em que tiver sido deslocada.

O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 também fazem referência ao direito inerente a toda pessoa de desfrutar e utilizar plena e livremente dos recursos naturais, bem como o fato de nenhuma pessoa poder ser privada de seus meios de subsistência. Desta forma, os dois pactos garantem ao indivíduo um meio ambiente saudável.

A Assembleia Geral das Nações Unidas, na Resolução nº 45/1994, de 14 de dezembro de 1990, declara, também, que todas as pessoas têm direito a viver em um meio ambiente adequado para garantir sua saúde e bem estar.

Toda esta prática jurídica estabelece a progressiva vinculação entre a proteção dos direitos humanos e a proteção do meio ambiente, permitindo uma ampliação da proteção jurídica da Convenção de Genebra também aos refugiados ambientais.

Renato Zerbini Ribeiro Leão afirma a importância de analisar atentamente os casos de solicitação de refúgio com um particular interesse na possível ou patente violação de direitos humanos, conforme segue:

À luz das reiteradas manifestações sobre o campo conceitual do refúgio, em sua dimensão mais ampla, por parte da Presidência e do Pleno do CONARE, é crucial destacar que a configuração do refúgio está intimamente vinculada a duas circunstâncias que se podem dar individualmente, consequentemente e/ou simultaneamente: a perseguição materializada e/ou o fundado temor de perseguição consubstanciado da parte da/o solicitante. Esta vinculação conceitual, ou seja, a concessão do refúgio ao fato da perseguição consubstanciada e/ou o fundado temor de perseguição, é tão cristalina que, que sempre e quando fatos novos apresentados posteriormente à conclusão de algum caso forem capazes de caracterizar a perseguição e/ou o seu fundado temor, o CONARE, costumeiramente e em sessão plenária, entende que este caso em questão poderá ser reaberto para uma nova apreciação. (2010, p. 75).

Esta afirmação mostra que, tendo em vista a questão humanitária emergencial que envolve o instituto do refúgio, é necessário que ele seja avaliado sempre levando em conta a proteção dos direitos humanos do estrangeiro.

Como alternativa à possível não alteração da Convenção de 1951, tendo em vista que esta atitude geraria muita insegurança jurídica por parte do Direito Internacional dos Refugiados, é proposto por muitos autores o adendo de um novo protocolo para a Convenção, que leve à adoção de uma nova normativa internacional para esta matéria. É reconhecida a importância de promover uma norma jurídica internacional para dar proteção às vítimas das mudanças climáticas que, até agora, estão marginalizadas de qualquer instrumento de proteção do Direito Internacional.

Promover e defender os direitos humanos de migrantes é garantir também às pessoas desterritorializadas que lhes seja assegurada a dignidade humana e o acesso aos processos de respeito à vida e aos direitos inalienáveis. Trata-se de garantir a migrantes, refugiados e todas as pessoas itinerantes o direito a ter direitos, independente de sua condição de mobilidade e que tais direitos sejam reconhecidos pela lei e não somente pela indignação, suscitada pela sua violação.

Embora não haja uma limitação política para o instrumento do refúgio, é possível perceber que ele é fundamentalmente utilizado neste sentido. Liliana Lyra Jubilut (2005, p. 144-145) brilhantemente afirma que “para efeitos de proteção, verifica-se que as organizações e os Estados privilegiam os casos ligados a violações de direitos civis e políticos, em detrimento dos direitos econômicos, sociais e culturais”.

Na busca de uma regulamentação internacional a respeito do tema, a Delegação do Brasil, durante a Sexagésima- Quarta Sessão da Assembleia Geral do Sexto Comitê da ONU, questionou a possível aplicação do conceito no Direito Internacional. Conforme afirmado em relatório:

A Legislação Internacional exibe uma distinta inadequação no campo mencionado. O problema se origina da dificuldade para separar a migração normal do refúgio, ou seja, as pessoas que estão fora de seus países pela perseguição ou fundado medo de perseguição por diferentes razões; então, esta definição não inclui os refugiados ambientais e nunca foi conferida existência a este grupo. O ACNUR, em um documento chamado ‘Os deslocamentos ambientalmente induzidos da população e os impactos ambientais que resultam das migrações em massa’ enfatiza que a migração é normalmente causada por mais de uma razão, como econômica, cultural, política, étnica, religiosa e outras. No mesmo documento, o ACNUR enfatiza como o meio ambiente e suas mudanças podem influenciar o deslocamento de pessoas.20

A Delegação Brasileira afirma, ainda, que o “Brasil tem notado, de forma alarmante, que normalmente os desastres ambientais são resultado de decisões econômicas e políticas das Nações Poderosas. (...) O Brasil esta convencido que os refugiados ambientais são gerados pela condução errônea das políticas energéticas.” No final do relatório, a Delegação Brasileira requer ao Sexto Comitê que, em conformidade com a deficiência da teoria sobre os refugiados ambientais, elabore um projeto com a intenção de, em conjunto com o ACNUR, regulamentar a nova condição de refugiado. É possível verificar, desta forma, a intenção do governo brasileiro de regulamentar o tema.


4. Estudo de caso: deslocados haitianos no Brasil desde o início de 2010- Refugiados ou Migrantes?

Foi amplamente divulgado por todos os canais de comunicação, sendo um fato sabido, que o Haiti, país latino-americano localizado na ilha La Espaniola, em janeiro de 2010 foi atingido por um terremoto de intensidade 7,3 na escala Richter, especialmente nas proximidades da capital, Porto Príncipe, onde se concentra a maior parte da sua população, causando a morte de aproximadamente 222.570 pessoas, e deixando um pouco mais de 1,5 milhão das pessoas sobreviventes sem suas casas, ou seja, cerca de 80% da população, ocasionando um caos no país mais pobre do Hemisfério Ocidental. Segundo reportes da ONU, há, ainda, em torno de 800.000 deslocados vivendo em condições miseráveis, sendo que, destes 800.000 deslocados, 380.000 são crianças, que ainda não tiveram condições de encontrar um novo lar. Embora o terremoto tenha sido momentâneo, seus efeitos foram duradouros para a população haitiana.

Vale ressaltar que o Haiti, antes mesmo da profunda tragédia que o atingiu, já vivia uma catástrofe social, fruto de sua recente trajetória política, delineada entre mudanças drásticas e violentas de governos, que levaram o Haiti ao empobrecimento. O terremoto físico apenas destruiu o pouco que havia de precária infraestrutura, construída no período compreendido entre os governos Duvalier até a transição de Jean Bertrand Aristide a René Préval, com a necessária intervenção de forças militares da ONU para garantir a ordem social. A história do Haiti foi marcada por violações dos direitos humanos e revoluções. Isto pode ser comprovado pelo elevado número de habitantes que migravam do país.

4.1. Histórico do Haiti

A ilha foi descoberta, em 1492, por Cristóvão Colombo. A partir de 1520 a colonização espanhola na região teve sua decadência. Nesta época, praticamente toda a população nativa, compostapelos índios aruaques, havia sido exterminada.

A partir de 1697, piratas franceses passaram a ocupar partes da ilha, e esta, finalmente, passou para o domínio francês. Durante o Século XVIII, franceses incrementaram a lavoura açucareira na região, trazendo uma grande quantidade de escravos africanos. No início da Revolução Francesa, viviam na ilha aproximadamente 500 mil negros, 24 mil mestiços e 32 mil brancos. Por sua rentabilidade, o Haiti foi apelidado de ‘Pérola do Caribe’, sendo sua produção açucareira tão expressiva que contribuiu significativamente para decadência da cultura canavieira no Brasil colônia.

Com a Revolução Francesa, ocorreram rebeliões e fuga em massa de escravos, que chegaram a massacrar seus senhores. Financiados pelos ingleses e espanhóis, inimigos dos franceses, negros e mulatos se uniram sob a liderança de L’Ouverture, um escravo negro. Em 1794, a França declarou a abolição da escravidão nas colônias, conseguindo que L’Ouverture passasse a apoiar as autoridades francesas. Bonaparte, porém, enviou o general Leclerc para tomar o lugar de L’Ouverture, que foi mandado ao exílio, e recuperar a colônia.

Um dos generais de Toussaint, o ex-escravo Jean-Jacques Dessalines, indignado com a situação, iniciou uma rebelião e expulsou as tropas francesas, proclamando a independência em 1804 e se autoproclamando imperador. A ex-colônia passou a se chamar Haiti, sendo a primeira República Negra das Américas e o primeiro país latino-americano a se declarar independente. A elite, composta por mulatos, ficou insatisfeita com a nova política instalada no país, e, em 1806, tomou o poder após o assassinato de Dessalines. O Haiti teve sua administração fragmentada, o norte sob domínio de Christophe e o sul governado por Pétion. Somente em 1820, sob o governo de Jean-Pierre Boyer, o país foi unificado.

A instabilidade do país levou os Estados Unidos a intervir no país. Em 1905, passaram a controlar as alfândegas e, em 1915, invadiram militarmente a ilha e assumiram o governo. A intervenção reorganizou as finanças e impulsionou o desenvolvimento da nação. Os americanos impuseram uma nova constituição e se comprometeram a respeitar a soberania do país. Seguiram-se sucessivos governos da elite mulata. A presença das tropas americanas parecia impedir a guerra civil, porém não puderam conter a constante oposição dos nacionalistas. Em 1934, os EUA retiraram suas tropas e, em 1941, abdicaram do controle alfandegário.

Em 1946, uma rebelião popular derrubou o presidente mulato Lescot, levando ao poder o negro Estimé, que foi destituído por um golpe militar liderado por Magloire em 1950. Durante o governo de Magloire, foi promulgada uma nova constituição que, pela primeira vez, deu ao povo haitiano o direito de eleger diretamente o presidente. Magloire, porém, decidiu perpetuar-se no poder com o apoio do exército, o que provocou uma violenta reação popular, resultando na renúncia do presidente. Segue-se novo período de instabilidade: nos nove meses seguintes à queda de Magloire, o Haiti conheceu sete governantes diferentes. Finalmente, em 1957, após eleições de validade duvidosa, foi eleito o médico negro François Duvalier.

Um dos períodos mais conturbados da história do Haiti teve início quando François “Papa Doc” Duvalier, como também era chamado, foi eleito presidente da nação, instalando um regime ditatorial baseado na repressão militar que perseguiu muitos opositores, inclusive a Igreja Católica, torturando-os e assassinando muitos deles. Sua guarda pessoal, denominada ‘bichos papões’, era responsável pelos massacres. Apoiado no vodu, Papa Doc foi morto em 1971, após ter conseguido que seu filho fosse declarado seu sucessor.

Seu filho Jean Claude Duvalier, também conhecido como Baby Doc, assumiu o poder aos 19 anos e deu continuidade ao regime de terror imposto pelo pai. O regime dos Duvalier, que durou até 1986, e foi marcado por sistemáticas violações aos direitos humanos. Centenas de prisioneiros políticos foram detidos em uma rede de prisões conhecidas como "triângulo da morte", e morreram em decorrência de maus tratos ou vítimas de execuções extrajudiciais. O governo de Duvalier repetidamente fechou jornais e estações de rádio independentes. Jornalistas foram espancados, em alguns casos até torturados, presos, e forçados a deixar o país.

Em 1986 Baby Doc foi deposto por um golpe militar. Os militares que assumiram o poder sucederam-se no governo por vários anos, em uma série de governos provisórios. Em 1987, uma nova constituição foi feita e, em dezembro de 1990, Jean-Bertrand Aristide foi eleito com 67% dos votos. Porém, poucos meses depois Aristide foi deposto por um novo golpe militar e a ditadura foi restaurada no Haiti. Em 1994, Aristide retornou ao poder, novamente com auxílio dos Estados Unidos. Porém, mesmo com um governo democrático, Aristide não conseguiu melhorar a vida da população, que vive em condição de miséria, vivendo com menos de um dólar por dia. Em dezembro de 2003, Aristide fugiu para a África e o Haiti, desde fevereiro de 2004, sofre intervenção de forças militares da Organização das Nações Unidas (ONU), sendo o Brasil o país responsável pelo processo de pacificação no território.

O Haiti é a nação economicamente mais pobre das Américas e possui problemas socioeconômicos semelhantes aos de algumas nações africanas: os serviços de saneamento estão presentes apenas em uma pequena parcela dos domicílios, a população subnutrida corresponde a 58% do total, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é baixo, 45% dos habitantes são analfabetos, entre outros fatores. A economia nacional é pouco desenvolvida e se baseia em atividades primárias. O principal produto de exportação é o açúcar, o país também cultiva manga, banana, milho, entre outros. Esse segmento da economia emprega a maioria dos haitianos.

De acordo com pesquisas da ONU, somente 19% dos domicílios haitianos tem acesso a rede sanitária e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país é 0,404. Como comparação, o IDH do Brasil em 2011 era 0,718.

Tendo em vista este histórico conturbado, o Haiti não estava preparado para o terremoto que o atingiu, e não foi capaz de se recuperar imediatamente. Além da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (MINUSTAH), que auxilia o país desde 2004, foram prometidos, por vários países, valores exorbitantes para ajudar a reconstruir o país. De acordo com o jornal The Guardian21 os países que prometeram as maiores somas para reconstrução foram a Venezuela e Estados Unidos, conforme se pode inferir do gráfico 1.

Embora tenham prometido valores que, juntos, perfaziam mais de US$ 1,8 bilhão, o valor efetivamente aplicado foi somente 24% pela parte da Venezuela e 30% por parte dos Estados Unidos. O Brasil, por outro lado, ofereceu US$ 163,6 milhões para ajudar na reconstrução do país, além de apoio do exército brasileiro. Até o momento, o país já entregou US$ 113,5 milhões de todo o valor prometido.Em relação ao direcionamento deste capital, 1% dos valores totais arrecadados foi endereçado ao governo do Haiti, 34% foi oferecido para organizações de ajuda ligadas aos governos dos países doadores e 25% foi remetido para ONGs.

Gráfico 1: Ajuda prometida e entregue para a reconstrução do Haiti

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Fonte: Jornal ‘The Guardian’22.

Muitos dos habitantes haitianos, diante da situação desesperadora que lhes atingia, sem abrigo, água e alimento, decidiram se deslocar daquele país para outros que, a seu ver, lhes dariam condições mais dignas de vida.

4.2. Perfil dos deslocados haitianos

Estima-se que, após o terremoto, o fluxo de haitianos direcionados ao Brasil tenha passado de quase inexistente para aproximadamente quatro mil migrantes ao ano. O Brasil se tornou o segundo maior destino de migrantes haitianos, atrás apenas dos Estados Unidos. Os deslocados haitianos aportam ao Brasil fazendo um longo caminho que chega a durar até quatro meses. A primeira parte do percurso é por via aérea, onde o deslocado faz escalas na República Dominicana, Panamá, Equador e Peru. Ao chegar neste último país, fazem um percurso que pode ser terrestre ou fluvial até Tabatinga, no Amazonas, ou Assis Brasil e Braziléia, no Acre. Há uma pequena parcela dos migrantes que se desloca do Peru à Bolívia e, lá, chega ao Brasil por Corumbá, no Mato Grosso. Segundo os migrantes, muitos são lesados pelos chamados ‘coiotes’, que são responsáveis pela organização de grande parte do deslocamento, e que chegam a cobrar até quatro mil dólares no trajeto.(COSTA, 2012, inf.pess.)23

Esta entrada clandestina, na opinião de Anselmo Henrique Cordeiro Lopes, Procurador da República do Estado do Acre24, é propiciada pela ausência de uma política oficial do governo brasileiro consistente em formalizar o amparo legalizado de haitianos pelo Brasil. Sem um caminho formalizado e adequado, os haitianos caem na clandestinidade e passam a ser vítimas potenciais de toda espécie de criminalidade.

A maioria dessas pessoas segue um longo e desgastante caminho para chegar até o Brasil, o que debilita ainda mais suas condições físicas e psicológicas, além de agravar seu estado de vulnerabilidade. No mapa 1 é possível verificar as principais rotas percorridas pelos deslocados haitianos para chegar ao Brasil.

Vale ressaltar que o Brasil não é o destino específico dos haitianos. De acordo com o Padre Gelmino Costa(2012, inf.pess.), a primeira opção dos haitianos são os Estados Unidos, que abrigam aproximadamente dois milhões de haitianos, sendo 27 mil no Estado da Flórida. O motivo para esta prioridade é o salário que, nos EUA, é um pouco maior. Alguns migrantes haitianos também chegam ao Brasil após haverem tentado se estabelecer no Equador, porém saíram de lá pelo pouco oferecimento de trabalho, temperatura muito baixa e o alto índice de racismo.

Mapa 1: Principais rotas do fluxo migratório de haitianos para o Brasil

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Fonte: Brasil, haitianos e os desafios da Lei de Migrações, 201225.

Assim que chegam ao Brasil, a primeira ação que os deslocados haitianos realizam é solicitar refúgio perante a Polícia Federal. Após alguns dias, é fornecido ao migrante um protocolo confirmando que a sua solicitação será analisada pelas autoridades brasileiras e, no máximo em seis meses, haverá uma decisão sobre o caso. Com este documento, os haitianos normalmente se deslocam para Manaus, no Amazonas e, uma vez chegando à capital, buscam auxílio junto à Pastoral do Imigrante, na Paróquia de São Geraldo, e são orientados a providenciar Carteira de Trabalho e Comprovante de Pessoa Física (CPF).

Como explicado anteriormente, a solicitação de refúgio é analisada pelo CONARE, que avalia o amparo legal para a concessão do refúgio. A demanda é, na sua maioria, negada, por se tratar de uma situação onde a maior razão alegada relaciona-se às consequências do terremoto de janeiro de 2010, situação esta que não se enquadra na definição de refúgio da Convenção de 1951. No entanto, considerando a vulnerabilidade por que passam estes haitianos, agravada pelo terremoto e pelo surto de cólera que assolou o país26, o CONARE encaminha a documentação para o CNIg , que faz uma avaliação sobre a possibilidade de concessão de visto de permanência no Brasil, dentro das normas do CNIg.

Ao avaliar o primeiro conjunto de solicitações, o CNIg entendeu que, no caso dos haitianos, haveria suficientes elementos que permitiriam a concessão do visto de permanência aos haitianos, por razões humanitárias, com base na Resolução Normativa n. 27, de 1998, que disciplina a avaliação de situações especiais e casos omissos pelo CNIg. Conforme afirma o artigo 1º da Resolução:

Art. 1º Serão submetidas ao Conselho Nacional de Imigração as situações especiais e os casos omissos, a partir de análise individual.

§ 1º Serão consideradas como situações especiais aquelas que, embora não estejam expressamente definidas nas Resoluções do Conselho Nacional de Imigração, possuam elementos que permitam considerá-las satisfatórias para a obtenção do visto ou permanência.

§ 2º Serão considerados casos omissos as hipóteses não previstas em Resoluções do Conselho Nacional de Imigração.27

O CNIg, com este procedimento, regularizou a situação de 379 haitianos até o fim de 2011.De acordo com dados do CNIg28, 434 deslocados haitianos solicitaram refúgio entre 19 de janeiro de 2010 e 27 de fevereiro de 2011 e que, após terem seus pedidos negados, tiveram seus processos encaminhados ao CNIg. Este número corresponde, vale ressaltar, a uma ínfima parcela dos aproximadamente quatro mil migrantes haitianos e, por isso, não devem ser considerados como válidos para todo o universo de haitianos atualmente no Brasil.

Rosita Milesi, diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos e grande defensora da causa dos refugiados, em entrevista ao site Mundo Sustentável29, afirmou que até 23 de dezembro de 2011, o CONARE recebeu 3.396 solicitações de refúgio por parte dos haitianos. Segundo a diretora, haveria, ainda, quase dois mil haitianos na fronteira do Brasil aguardando para formalizar seus pedidos de refúgio.

Segundo o CNIg, de todas as 434 solicitações de refúgio retro- mencionadas, 95,5% foram apresentadas na Região Norte, sendo 58% dos pedidos realizados no Amazonas e 36,6% realizados no Acre. O tempo em que os migrantes levaram para realizar todo o percurso até o Brasil varia de menos de uma semana a 26 meses.

Gráfico 1: Faixa etária dos deslocados haitianos no Brasil

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Casos analisados: 434

Fonte dos dados: Conselho Nacional de Imigração- 201130

A idade destes solicitantes de refúgio varia de 18 a 62 anos, sendo que a grande maioria destes solicitantes tem entre 28 e 32 anos, seguida pelos solicitantes de 23 a 27 anos, mostrando que a maior parte destes deslocados é jovem. Há um número mínimo de migrantes acima de 47 anos, e não houve requisição de refúgio por menores de 18 anos. Pode-se analisar melhor estas pesquisas ao visualizar o gráfico 1.

Em relação ao nível de instrução, percebe-se que aproximadamente 60% deles concluíram o Ensino Fundamental e 12,7% deles concluíram o Ensino Médio. Quanto ao Ensino Superior, percebe-se que os que o iniciaram somados aos que o concluíram somam 7,9 dos migrantes.

Gráfico 2: Deslocados haitianos segundo nível de instrução

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Casos analisados: 434

Fonte: CNIg, 2011.31

Foi perguntado aos migrantes, também, em qual setor de ocupação estavam inseridos no Haiti. Da leitura do gráfico, é possível perceber que a maior parcela dos solicitantes trabalhava na Construção Civil, seguida dos Serviços e Comércio.

Gráfico 3: Setor Ocupacional Originário dos Deslocados Ambientais

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Casos analisados: 434

Fonte: CNIg, 2011.32

Em relação aos municípios de naturalidade dos solicitantes de refúgio, temos como principais pontos, além de Porto Príncipe, a capital, as cidades de Croix de Bouquets, Dessalines e Gonaives.

Mapa 2: Municípios de naturalidade dos deslocados haitianos

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Casos analisados: 434.

Fonte: Migración en la Frontera Norte de Brasil: flujos e nuevas redes-201133.

Vale ressaltar que a cidade de Gonaives, como muitas outras que originaram migrantes para o Brasil, situa-se fora da área atingida pelo terremoto de 2010. Porém, não foi registrada pela pesquisa a informação sobre a cidade onde os solicitantes de refúgio efetivamente moravam, não sendo possível saber se houve ou não alguma migração interna por parte dos solicitantes de refúgio.

4.3. Posicionamento brasileiro perante os deslocados haitianos

A situação lamentável pela qual os deslocados haitianos passam no Brasil é agravada pela conduta omissiva por parte da Administração Pública, visto que os custos do apoio humanitário prestado aos haitianos vêm sendo arcados quase que exclusivamente da própria comunidade. De acordo com o Padre Gelmino Costa, pároco da Paróquia de São Geraldo, ligado à Pastoral do Migrante, a Administração Municipal não contribuiu em nada para ajudar na alimentação e habitação dos migrantes. A Administração Estadual ofereceu 600 colchões, alimentos e 26 mil reais em viagens ao município de Tabatinga, para ajudar nos transportes dos deslocados haitianos. A Administração Federal, que havia prometido ajudar a custear os valores de aluguéis de casarões para a moradia provisória dos deslocados, bem como kits de saúde e higiene, contribuiu apenas com poucos valores. Nas palavras do Padre, “prometeu-se pouco e fez-se menos ainda”.

Segundo ele, foram arrecadados em doações aproximadamente 400 mil quilos em alimento, o que auxiliou os haitianos a sobreviverem em um primeiro momento. Além disso, foram oferecidos alguns cursos de português pelo CETAM e SENAI, o que possibilitou que alguns deslocados, após algumas aulas, ingressassem no mercado de trabalho. Para o Padre, a maior dificuldade em relação aos agora migrantes é a pouca oferta de emprego fixo, o que dificulta a possibilidade dos migrantes se sustentarem sozinhos. Porém, ele diz que a situação tende a mudar, tendo em vista que aproximadamente 1500 migrantes haitianos legais já se deslocaram de Manaus para cidades como Pato Branco, no Paraná, com emprego e moradia.

A situação no Estado do Acre é um pouco diferente. De acordocom Anselmo Henrique Cordeiro Lopes, o Estado do Acre teria gasto, até dezembro de 2011, mais de seiscentos mil reais em sua busca de ajudar os haitianos, sem ajuda da União Federal.

Nas palavras do Procurador, “Os haitianos buscam no país proteção, sobrevivência e oportunidade de trabalho, sendo que a demora no registro e apreciação do pedido de refúgio inviabilizava o reconhecimento dos direitos a eles conferidos pelo arcabouço jurídico brasileiro e, por consequência, a possibilidade de retomada do curso normal de suas vidas, mesmo fora de seu país de origem”.

Perante a pressão tanto social interna quanto internacional, o Governo Brasileiro decidiu tomar uma atitude em relação à migração haitiana. No dia 12 de janeiro de 2012, foi publicada a Resolução Normativa n. 97, editada pelo CNIg, que regula a concessão de um visto humanitário aos haitianos, porém com o fechamento das fronteiras para os migrantes ilegais. A resolução informa que:

Art. 1º Ao nacional do Haiti poderá ser concedido o visto permanente previsto no art. 16. da Lei 6.815, de 19 de agosto de 1980, por razões humanitárias, condicionado ao prazo de 5 (cinco) anos, nos termo do art. 18. da mesma Lei, circunstância que constará da Cédula de Identidade do Estrangeiro.

Parágrafo único. Considera-se razões humanitárias, para efeito desta Resolução Normativa, aquelas resultantes de agravamento de condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em 12 de janeiro de 2010.

Art. 2º O visto disciplinado por esta Resolução Normativa tem caráter especial e será concedido pelo Ministério das Relações Exteriores, por intermédio da Embaixada do Brasil em Porto Príncipe.

Parágrafo único. Poderão ser concedidos até 1.200 (mil e duzentos) vistos por ano, correspondendo a uma média de 100 (cem) concessões por mês, sem prejuízo das demais modalidades de vistos previstas nas disposições legais do País.34

Pode-se inferir da leitura que, embora o Governo Federal tenha decidido efetuar um apoio humanitário aos haitianos que se encontram no território nacional, a política de recebimento destes deslocados foi alterada drasticamente, de forma que a entrada de novos imigrantes haitianos, atualmente, está condicionada à apresentação de visto, negando a estes a possibilidade de solicitar refúgio. Desta forma, o haitiano que agora ingressar no Estado Brasileiro sem o visto humanitário estará condicionado à deportação.

Seguindo esta nova política imigratória, a Polícia Federal fechou as fronteiras brasileiras, impedindo a entrada de migrantes haitianos que, após uma longa viagem para chegar ao Brasil, se encontraram encurralados entre o Brasil e o Peru, tendo em vista que este país, no início de 2012, também tornou a entrada de haitianos condicionada à apresentação de visto.

Pode-se perceber, então, a modificação da política brasileira ante a entrada mais quantitativa de haitianos no país. Como nos informa Anselmo Henrique Cordeiro Lopes:

O grande problema retratado pelo Ministério Público Federal em seu inquérito civil era a falta de assistência humanitária aos refugiados haitianos pela União e a demora na expedição dos documentos legais. Com a alteração da política humanitária promovida pelo Governo Federal a partir de janeiro de 2012, determinou-se um corte temporal que discrimina a população haitiana entre aqueles que conseguiram ingressar no território brasileiro até 12 de janeiro de 2012 e aqueles que não haviam, naquele momento, logrado o ingresso. Para os primeiros, o Estado brasileiro prometeu um auxílio humanitário (moradia provisória, comida, água e serviços básicos de saúde) e a legalização de suas permanências no Brasil e, para os demais, determinou um endurecimento de tratamento, com fiscalização das fronteiras para impedir o ingresso de novos haitianos, com ameaças de deportação e com a limitação da expedição de vistos para haitianos, até o limite anual de 1.200 vistos. (2012, p. 13)35

A política americana em relação às pessoas provenientes do Haiti vem sendo um pouco distinta da brasileira. Enquanto o governo nacional, mesmo que de forma branda, auxilia a integração dos deslocados no país ou pelo menos os torna migrantes legais, o governo americano, o maior destino dos deslocados haitianos, ao capturar os migrantes haitianos ilegais em seu país, os deporta para o Haiti.

Após críticas da comunidade internacional, o Presidente Obama afirmou, em inúmeras entrevistas, que a política de sua administração seria priorizar as deportações de criminosos perigosos, apenas, para o Haiti. Porém, segundo pesquisas do Florida Center for Investigative Reporting36, um em cada dois haitianos abordados pelo governo americano não foram condenados por crimes nos Estados Unidos.

Segundo dados do Centro de Investigações, a Agência Americana para Imigração e Alfândega deportou, coercitivamente, 514 imigrantes de volta ao Haiti desde que iniciou suas deportações em janeiro de 2011.

Em resposta a questionamentos a respeito da possível caracterização dos deslocados haitianos como refugiados ambientais por parte da Organização Conectas Direitos Humanos, o Dr. Renato Zerbini Ribeiro Leão, Coordenador- Geral do CONARE, expediu o Ofício nº 042/CONARE/201237, informando à citada organização, bem como à sociedade em geral, os motivos para não considerar esta possível designação de refugiados aos haitianos.

Em relação à concessão do refúgio, o Coordenador afirmou que a obrigação pátria com relação ao refúgio provém, majoritariamente, da Convenção de 1951, bem como do Protocolo de 1967, somados à Lei n. 9.474/97. Conforme o Ofício:

Em que pese a precariedade da situação objetiva do Haiti, que se arrasta até os dias atuais, milhares de haitianos continuam a viver em abrigos, contando com a comunidade internacional para a reconstrução do país. Entretanto, à luz do direito internacional dos refugiados, o atual drama humanitário do Haiti, fincado em pilares naturais e econômicos, não é capaz de levar aos haitianos a serem reconhecidos como refugiados. Eis que nem a Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e tampouco o seu Protocolo de 1967 estabelecem os desastres naturais e/ou dificuldades econômicas como fatores capazes de ensejar o refúgio. (...) No caso dos cidadãos haitianos o Estado brasileiro arquitetou uma proteção jurídica complementar de viés humanitário. Posição essa, alias, muito elogiada pelo ACNUR.

O Coordenador afirma, ainda, que a Lei n. 9.474/97 não contempla, também, a possibilidade de reconhecer um refugiado em decorrência de desastres naturais ou problemas econômicos. Para ser reconhecido como refugiado no Estado Brasileiro, é necessário que o solicitante apresente fundado temor de perseguição causado por seu Estado de origem ou seja nacional de um Estado que apresente uma grave e generalizada violação dos direitos humanos. Nas palavras do Coordenador, “todos os casos resolvidos pelo CONARE materializam, em maior ou menor grau, a importância crucial da perseguição materializada e/ou o fundado temor de perseguição consubstanciado por parte do solicitante para a concessão de refúgio face à Lei n. 9.474/97”.

Segundo o entendimento do CONARE, o conceito de grave e generalizada violação de direitos humanos alavanca-se em consequência das condições clássicas de inclusão previstas na elegibilidade do refúgio. À luz da prática jurisprudencial do CONARE este conceito possui, para sua materialização, três relevantes condições especialmente consideradas:

1) A total incapacidade de ação ou mesmo a inexistência de entes conformadores de um Estado Democrático de Direito, como podem ser as instituições representativas dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de um Estado qualquer. Ou seja, a dificuldade mesmo em se identificar a existência de um Estado, tal qual conceituado pelo direito internacional público, em um território específico. 2) a observação naquele território da falta de uma paz estável e durável. 3) o reconhecimento, por parte da comunidade internacional, de que o Estado ou território em questão se encontra em uma situação de grave e generalizada violação de direitos humanos. (2010, p. 89)

Em relação à possibilidade de aplicação de ‘refugiado’ a todo aquele que, devido a grave e generaliza da violação dos direitos humanos, é obrigado a deixar seu país para buscar refúgio em outro, segundo o Coordenador:

A possibilidade de aplicação do inciso III, do artigo primeiro da Lei n. 9.474/97, no caso dos haitianos, foi e é discutida pelos membros do CONARE desde as primeiras solicitações de refúgio por parte de haitianos atingidos pelo terremoto de janeiro de 2010. Por isso, a finais de 2011, o plenário do CONARE é firme em sua opinião da não inclusão dos solicitantes haitianos na condição de refugiados à luz dos três incisos do artigo primeiro da Lei brasileira de refúgio38.

Tendo em vista o acima explicado, o Coordenador afirma que as situações mencionadas pelos haitianos, quando da solicitação de refúgio, não se enquadram nas cláusulas clássicas de inclusão do refúgio. Ainda assim, cada solicitação individual de refúgio será particularmente analisada, tendo em vista que o CONARE defere a solicitação de refúgio de forma particular, valendo-se da situação e percurso de cada solicitante.

A decisão do CONARE em não caracterizar os deslocados provindos do Haiti como refugiados foi tanto aplaudida quanto, em bem maior grau, condenada. As opiniões, que se confrontam, são fundamentadas em diversos motivos.

Os motivos que levam autores e até mesmo membros da sociedade em geral a concordar com o posicionamento do CONARE são variados. Como analisado no capítulo anterior, muitos autores temem que, ao ampliar-se o conceito de refugiado para abarcar, também, os refugiados ambientais, possa-se diminuir o valor e a efetividade deste instituto, não só porque será necessário repartir verbas já diminutas com este novo tipo de refúgio, mas também pela inclusão de um grande numero de pessoas que se enquadram no conceito original de “refugiado ambiental”.

Além desses motivos, há também os problemas que surgem com a chegada de novas pessoas, migrantes ou refugiados, em um local. A estes deslocados será necessário providenciar moradia, um emprego digno, acesso à educação, inclusão nos programas de saúde entre outros. Num país onde a população originária já recebe este tipo de recurso não deve ser difícil incluir os estrangeiros que, no Brasil, só perfazem 1% da população. Porém, num país acometido pela desigualdade social, grande parte da população pensa que é injusto ajudar um estrangeiro antes dos nacionais. De acordo com PENTINAT:

Os refugiados chegam muitas vezes a locais de baixa oferta e frágeis, colocando demandas que contribuem para os problemas existentes. Assim, a presença permanente de grandes massas de refugiados em áreas urbanas e rurais dos países em desenvolvimento submete à economia e ao meio ambiente dos países consideráveis?? pressões sociais e possíveis conflitos com populações locais acolhedoras dos refugiados. (2011, p. 23)39

Muitos são, também, os motivos que levam segmentos da população a discordarem do posicionamento do CONARE. O primeiro e mais marcante motivo está relacionado à dignidade humana. Vale lembrar que o ser humano, independente de sua condição, deve ter reconhecida sua dignidade humana, que não somente é fundamento da República, mas também de todos os direitos humanos. Este princípio visa resguardar a intangibilidade da vida do indivíduo, retirando-se daí, também, o respeito à integridade física e psíquica das pessoas, a existência de pressupostos materiais mínimos para viver e o respeito pelas condições fundamentais de liberdade e igualdade, independente da nacionalidade.

Carlos B. Vainer é da opinião que:

No mundo no qual parece se aproximar a realização plena da utopia neoliberal, muitos milhões são os deslocados compulsórios, os reassentados, os refugiados e repatriados e deportados, os expulsos e clandestinos. Proibidos de ficar, confinados, interditados de entrar, obrigados a sair, eles nos dizem da natureza perversa da liberdade operada sob a hegemonia da globalização contemporânea: o mundo desterritorializado e sem fronteiras de uns é o mesmo mundo territorializado e guetificado de outros. Entre estes dois mundos, regulando suas relações e controlando seus conflitos e confrontos, os Estados que, através de suas múltiplas agências, locais e multinacionais, se fazem mais presentes do que nunca (2001, p. 182).

É cristalino perceber que a dignidade humana não pode ser reconhecida apenas aos indivíduos nacionais. Se todos os seres humanos têm o mesmo valor e a mesma dignidade, todos eles devem ter plenamente reconhecido um núcleo básico de idênticos direitos, os quais devem ser gozados independentemente da nacionalidade ou de qualquer outra característica pessoal do indivíduo. Tais direitos básicos são justamente os direitos humanos, que devem ser dotados de universalidade subjetiva. Considerando a universalidade subjetiva, um direito não deve ser garantido pelo Estado somente a seus nacionais, mas a todos que se encontram, mesmo que momentaneamente, sujeitos a seu poder soberano. Não é cabível que haja uma distinção entre nacionais e internacionais em relação aos direitos humanos.

Entre os direitos humanos reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, encontram-se o direito à vida, à liberdade, de acesso ao trabalho, à moradia, alimentação e vestimenta adequadas, entre outros. Estes direitos, por serem direitos humanos, devem ser respeitados pelo Estado em relação tanto aos seus nacionais como aos estrangeiros localizados em seu território, não importando se lá ingressaram legal ou ilegalmente. Desta forma, percebe-se que não é discricionariedade do Estado, e sim um dever, decidir se deve ou não respeitar os direitos humanos dos migrantes haitianos localizados no Brasil, tendo em vista que a soberania brasileira não pode ultrapassar o conteúdo da Carta Magna e das normas de direitos humanos. Nas palavras de Anselmo Henrique Cordeiro Lopes:

Os migrantes haitianos que se encontram no Brasil, pelo mero fato de serem pessoas, merecem a proteção de todos os direitos humanos. E ainda, por estarem fisicamente no Estado Brasileiro, merecem sua proteção, (...) hajam ou não adentrado o território nacional de forma documentada e legal. (2012, p. 17)

O Procurador afirma, também, que o reconhecimento como refugiado só é relevante para o haitiano que se encontra fora das fronteiras brasileiras e pleiteia sua entrada no país como refugiado.

Como anteriormente mencionado, a garantia do refúgio e da proteção dos refugiados remete ao início da construção moderna da estrutura jurídica para a proteção de direitos humanos. Até pouco tempo atrás, entendia-se que a maior ameaça aos direitos humanos básicos residia nas situações de conflito militar e de distúrbio político. Dessa forma, numa busca de proteger as pessoas ameaçadas por essas situações especiais, concebeu-se o chamado Direito Humanitário e o Direito Internacional dos Refugiados. Vale ressaltar que o espírito da Convenção de 1951, que trata sobre os refugiados, não foi dirimir a perseguição propriamente dita, mas amparar os indivíduos vítimas da crise humanitária decorrente de tal violação.

Naquele contexto histórico não se havia uma grande preocupação com o meio ambiente e com as consequências de sua destruição, pois não havia, na época, a alteração climática que ocorre hoje. O grande risco que os grupos humanos passaram a sofrer em razão de catástrofes naturais começou a ocorrer em razão das mudanças climáticas globais associadas a problemas regionais sociais, econômicos e políticos. Não se atentou naquele contexto, portanto, para o chamado refúgio ambiental.

Como explicado, o refúgio não é um instituto isolado no plano do Direito Internacional, mas deve ser compreendido como instrumento para efetivação dos direitos humanos. De acordo com a legislação brasileira, portanto, paralelo ao ‘refugiado político’, encontra-se o refugiado de grave e generalizada violação de direitos humanos. Essa ampliação do conceito denota a proteção ampla de direitos humanos no Brasil.

O caso dos Haitianos que migram ao Brasil é um exemplo nessa possível ampliação do conceito de refúgio. Diante de tanta pobreza e caos, causados pelos constantes golpes de Estado e pela catástrofe natural em 2010, a maior parte da população haitiana passou a se ver privada do efetivo gozo de seus direitos humanos mais primários, como à alimentação, à água potável, à moradia digna, à saúde, etc.

Assim, considerando que os haitianos não estão migrando para o Brasil por outro motivo que não a extrema necessidade de buscar uma vida mais digna, de fugir de uma situação de absoluta privação dos direitos humanos mais básicos, que representa uma “grave e generalizada violação de direitos humanos”, não é possível deixar de reconhecer a condição de refugiados desses migrantes.

Conforme a opinião do Procurador (2012, p. 22), “ao conceder ‘vistos humanitários’ aos haitianos, o Governo Brasileiro teve como objetivo mascarado impedir a entrada de haitianos no Brasil e reconhecer seu status de refugiados”.

Omar Ribeiro Thomaz e Sebastião Nascimentocorroboram com esta opinião, ao afirmar que:

Vozes oficiais insistem que estipular um limite de cem vistos mensais e vedar a entrada legal para os que estão na região seriam medidas humanitárias. Poucos conseguiram entender o raciocínio tortuoso que tenta transformar restrições em benesses. Sem qualquer novidade, requenta-se a política histórica de cerceamento à imigração oriunda de determinados países ou regiões. O limite foi estabelecido ao sabor do arbítrio. Ele não se apoiou em qualquer avaliação da demanda por mão de obra ou do tamanho da dinâmica da diáspora haitiana. (2012, p. 22)40

Não é necessário refletir por muito tempo para perceber que a migração haitiana é uma realidade que não irá ser estancada por meio de uma tentativa de fechamento das fronteiras pelo Brasil. Considerando-se a extensão da fronteira brasileira, não é possível crer que o Governo Brasileiro consiga eliminar a migração haitiana em razão de um simples ato de vontade política, especialmente se tomamos como comparação os Estados Unidos, um país com elevado grau de desenvolvimento e com fronteiras muito bem guardadas, mas que possui um elevado número de migrantes ilegais. Os haitianos, inevitavelmente, continuarão ingressando no Brasil, porém a política de marginalização dos haitianos implicará no aumento da vulnerabilidade desses refugiados, que passarão a ser obrigados a viver na clandestinidade no território brasileiro. Tal resultado é uma grave ameaça aos direitos humanos dos haitianos, uma vez que tal vulnerabilidade é fator que propicia diversas formas de exploração dos seres humanos.

Como afirmam MILESI e CARLET:

Se impõe como desafio atualíssimo formular políticas públicas pautadas por uma visão holística, capazes de garantir os direitos dos migrantes e refugiados através da incorporação das múltiplas dimensões da realidade migratória, tais como trabalho, seguridade social, saúde, educação, gênero, combate ao racismo, participação política, direito à diversidade entre outros. (...) É necessário estabelecer mecanismos que efetivem os direitos econômicos, sociais e culturais já reconhecidos na Constituição Brasileira e nos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos. (2007, p. 136-137)

Adotar uma postura frente às mudanças climáticas a partir do ponto de vista dos direitos humanos com base no princípio da dignidade inerente à pessoa implica que a cifra total de deslocados não seja o único que importa. Cada pessoa que se vê obrigada a abandonar seu lar contra sua vontade deve receber uma solução que respeite seus direitos, proteja-os e, se necessário, cumpra-os segundo reconhece a legislação internacional em matéria de direitos humanos.

Milhões e milhões de pessoas perderam e perdem diariamente suas casas devido a desastres naturais. Infelizmente, são poucos os que viram seus direitos respeitados, os que se beneficiaram com uma melhoria lenta e gradual de sua moradia e condições de vida depois de cessada a situação que provocou seu deslocamento. Segundo LECKIE (2010, p. 82), a história revela que o tratamento que a maioria dos países dispensa às vítimas quanto ao seu direito à moradia, à terra e à propriedade, nestes deslocamentos, é muito deficiente.

Por tais razões, torna-se necessário reconhecer que a legalização dos migrantes haitianos, por meio da condição jurídica de ‘refugiados’, é algo importante até mesmo para o interesse dos próprios nacionais brasileiros, tendo em vista que se baseia nos seus ideais de igualdade e fraternidade.

Têm sido tomados vários esforços no sentido de auxiliar e impelir a regulamentação dos refugiados ambientais. Entre eles destaca-se a Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal do Estado do Acre, na pessoa do Procurador Anselmo Henrique Cordeiro Lopes, instaurada a partir do Inquérito Civil n. 1.10.00.000134/2011-90, destinado a acompanhar o tratamento dispensado pelas autoridades administrativas competentes aos haitianos que se encontram no Brasil, visando garantir o respeito aos seus direitos fundamentais. Atualmente, o processo corre em segredo de justiça.


5. CONCLUSÃO

Existe uma importante lacuna normativa em relação ao termo específico, e aos direitos provindos dele, quando do deslocamento forçado de pessoas através de uma fronteira internacional devido a destruições ambientais. Quando as pessoas que se veem afetadas pelos denominados desastres ambientais tiverem que cruzar uma fronteira internacional, por exemplo, porque as únicas rotas de fuga as levem a elas, dentro do atual conceito internacional de refugiado estas pessoas normalmente não são caracterizadas como “refugiados”, e não possuem direito a receber proteção internacional.

O objetivo do presente trabalho monográfico foi estudar brevemente os conceitos indicados na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e a Lei Brasileira nº 9474/97, conhecida como Lei do Refúgio, bem como os instrumentos regionais relacionados ao tema do refúgio, com o intuito de questionar sua possível ampliação em face da nova realidade contemporânea no tocante à problemática dos refugiados ambientais, com especial atenção aos deslocados haitianos, tendo em vista que, de acordo com um segmento do entendimento doutrinário, se entende que estes grupos de migrantes forçados deveriam gozar da proteção do instituto universal do refúgio e não o fazem por não se enquadrarem na definição formal trazida pela Convenção de 1951 e a Lei 9474/97.

Foi realizada pesquisa com a finalidade de se definir e buscar legislação, tanto internacional quanto nacional,a respeito dos institutos“refugiado”, “asilado”, “deslocado interno” e “migrante”, distinguindo-os entre si, e também se verificou o tratamento dado pela legislação brasileira ao estrangeiro no território nacional.

Buscou-se, também, definir juridicamente a condição de ‘refugiado ambiental’, tomando por base a vasta doutrina sobre o tema. Foi analisada a classificação de BATES sobre este possível instituto, com o objetivo de defini-lo para casos específicos, o que auxilia a sua possível aplicação. Também foi estudado o histórico do termo e sua possível aplicação no atual ordenamento jurídico. Por fim, foi analisada a opinião de vários autores sobre a possível ampliação do termo ‘refugiado’ para abranger também os ‘refugiados ambientais’.

Foi realizado, por fim, o estudo de caso dos deslocados haitianos devido ao terremoto que se deu neste país no início de 2010, que ocasionou a destruição de várias áreas do país, especialmente na capital, Porto Príncipe. Verificou-se o posicionamento do Governo Brasileiro referente à caracterização como ‘refugiados’ ou ‘migrantes’ destas pessoas, tomando por base documentos oficiais, entrevistas e reuniões de órgãos responsáveis pela classificação destes deslocados perante o Estado Brasileiro. Também foi analisada a condição em que estes deslocados se encontram atualmente no Brasil e a política brasileira em relação à ajuda humanitária a eles designada.

Para chegar a tais resultados, foi utilizada pesquisa documental e bibliográfica, bem como entrevistas com pessoas relacionadas a este caso. Também foi utilizado o método comparativo para demonstrar as semelhanças e diferenças entre o ordenamento brasileiro e internacional.

Da pesquisa sobre o tema, foi possível verificar que é necessário revisar não somente o conceito jurídico de ‘refugiado’, para poder ampliá-lo a novas realidades sociais, como as que resultam da destruição paulatina do meio ambiente, mas também a necessidade de redefinir os termos ‘deslocados’ e ‘migrantes’, conceitos que correspondem a um momento histórico determinado e que se tornam antiquados para sua aplicação às novas realidades. Assim, a regulação do chamado ‘refugiado ambiental’ pelo ordenamento jurídico internacional é imprescindível para preencher esta lacuna jurídica e proporcionar uma proteção jurídica exaustiva aos cada vez mais numerosos deslocados por razões ambientais.

No caso específico dos deslocados haitianos, o Governo Brasileiro, por meio do CONARE, decidiu que estes não se enquadram do termo ‘refugiado ambiental’, tendo em vista que não há nenhuma convenção ou acordo internacional sobre o tema ratificado pelo Brasil.

Porém, pode-se ver que existem esforços, tanto no ordenamento nacional quanto no internacional, com o intuito de regulamentar este termo, para que saia do mundo puramente doutrinário e tenha uma aplicação prática na sociedade, tendo em vista que há a necessidade de um instituto, com força internacional, que busque proteger os atingidos por desastres ambientais.

É possível que não se possa determinar com certeza se os movimentos de atravessar fronteiras sejam forçados ou voluntários, porém este não é o elemento mais importante dentro do Direito Internacional. O aspecto mais importante é avaliar a necessidade ou não destas pessoas deslocadas receberem proteção internacional e o motivo desta necessidade se converter em direito.


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Notas

1 UNDP. Human Develoment Report, p. 9. 2009.

2 “En relación al capital, inclusive el puramente especulativo, el mundo se ‘globalizó’. En relación a los seres humanos, inclusive a los que intentan huir de graves e inminentes amenazas a su própria vida, el mundo se atomizo en unidades soberanas.”

3UNDP. Human Develoment Report, p. 9. 2009.

4IOM, World Migration Report 2007

5 IBGE. Censo demográfico 2000: Migração e Deslocamento- Resultados da Amostra.

6Importante mencionar que, no que tange à legitimidade das Resoluções oriundas da Assembleia Geral das Nações Unidas, obrigando aos Estados- Partes a seguirem obrigatoriamente as regras ali contidas, tal preceito não vem sendo aceito pela doutrina e pelos países que participam da ONU, haja vista ser uma regra muito limitadora da soberania de cada Nação. Por outro lado, há a pressão política para a aceitação das Resoluções.Como exemplo, temos a Resolução sobre a moratória universal da pena de morte. Votada no dia 18 de dezembro de 2007, com 104 votos favoráveis, 54 contrários e 29 abstenções, foi aprovada a mencionada Resolução. No entanto, por ser uma ação resultante de uma resolução da Assembleia Geral, não terá efeito vinculante para os Estados-membros da ONU. Assim sendo, países que atualmente retêm a pena de morte (como, por exemplo, Estados Unidos, Irã e China) não serão forçados pela legislação internacional a pararem de executar os condenados; de agora em diante, estarão somente sob forte persuasão moral.

Por outro lado, as Decisões provenientes do Conselho de Segurança da ONU tem caráter vinculante e devem ser seguidas por todos os Estados.Como exemplo, temos a Resolução nº 687, que versou sobre o embargo financeiro e comercial imposto pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre a nação do Iraque, em 6 de agosto de 1990, quatro dias após a invasão do Kuwait pelo Iraque.

7 Como exemplo, temos o Caso Haya de La Torre, que foi um político que, segundo Roberto Luiz Silva (2008, p. 242), tentou dar um golpe político no Peru na década de 40, não obtendo sucesso. Pediu asilo na embaixada da Colômbia em Lima, o qual foi concedido pelo Embaixador da Colômbia no Peru em 1949, porém o governo peruano se recusou a dar o salvo-conduto, alegando que ele era perseguido por crime comum. A questão foi levada à Corte Internacional de Justiça (CIJ) que, em 1950, afirmou não competir à Colômbia a caracterização unilateral de um crime político, não a obrigando, todavia, a entregar o político, pois não poderia ser privada de sua jurisdição sobre a embaixada. Os dois países entraram com recurso de interpretação que não foi aceito. O político permaneceu na embaixada colombiana até 1954, quando Peru e Colômbia entraram com novo pedido junto à CIJ, que confirmou a sentença anterior, informando que a Colômbia o entregaria se quisesse. Reafirmou, assim, o critério de cortesia e oportunidade, que é a base do asilo diplomático e segundo o qual o Estado dá o salvo-conduto se quiser e o outro recebe a pessoa também se quiser. No final, a Colômbia entregou Haya de La Torre ao México.

8 Temos, porém, alguns exemplos onde o asilo diplomático foi utilizado de forma prolongada. Além do caso Haya de La Torre, mencionado acima, onde o político peruano passou 05 anos na embaixada da Colômbia, também há o caso do Cardeal-Primaz da Hungria, József Mindzenty. O cardeal foi condenado à prisão perpétua em 1949 por não aceitar as imposições comunistas, obtendo a liberdade em 1956. Ele asilou-se, porém, na embaixada norte-americana quando as tropas russas derrubaram o governo húngaro de Imre Nagy. Os EUA concederam o asilo, mas não foi dado salvo-conduto pela Hungria. Desta forma, o cardeal permaneceu na embaixada por 15 anos, até ser anistiado em 1971.

9É possível perceber que o Brasil tem se inspirado na Convenção de Cartagena ao legislar sobre o tema de ‘refugiados’. O país não apenas incorporou os conceitos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967, mas, em 1997, criou uma lei definindo refugiado como qualquer um que “devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país”, conforme se verá a diante.

10 A Organização da Unidade Africana (OUA) foi criada no dia 25 de Maio de 1963 em Addis Ababa, Etiópia, através da assinatura da sua Constituição por representantes de 32 governos de diferentes países africanos. A OUA foi substituída pela União Africana (UA) em 9 de Julho de 2002.

11 A partir de 2000, os seguintes países latinos adotaram legislação interna sobre refugiados: Argentina (2006), Bolívia (2005), Colômbia (2009), Costa Rica (2010), Chile (2010), El Salvador (2002), Guatemala (2001), Honduras (2004), Nicarágua (2008), Paraguai (2002), Peru (2002), Venezuela (2001) e Uruguai (2006). Até 2010, o Congresso Mexicano ainda não havia discutido o tema.

12Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

§ 1º É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei.

13Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei.

14 DENG, Francis. Guiding Principles on Internal Displacement. UN Commission on Human Rights, 1998.

15“En los últimos años, los desastres naturales han producido, por primera vez en la historia, más movimientos de población que las guerras y los conflictos armados de diversa índole. Según la Federacion Internacional de la Cruz Roja y las Sociedades de la Media Luna Roja, un promedio de 211 millones de personas anuales han sido afectadas durante la última década por desastres naturales, triplicando el promedio de la década anterior y siendo cinco veces la cifra de personas afectadas por conflictos armados”.

16Original: Un estudio de la ONU de 1998 estimó que el 96% de las muertes causadas por desastres ocurren en el 66% de la población de los países más pobres del mundo. combatir la pobreza es el mejor medio para reducir el número de cadáveres que habrá que sacar de entre los escombros, el barro, las crecidas o la sequía.

17 Original: It is the poorest groups, those who are often forced to live in dangerous locations such as steep slopes or ‘informal’ settlements with little if any provision for storm drainage, limited access for emergency services such as ambulances and fire-fighters trucks, distant from health centres and with overcrowded and inadequate housing, who suffer the most. It is when extreme events affect people with high levels of vulnerability that they become disasters. With regards to mobility, in most cases people return as soon as possible to reconstruct their homes and livelihoods. Whether and how rapidly they are able to do so depends largely on the level of support they receive from governments and civil society.

18Original: Con el desarraigo, uno pierde, por ejemplo, la familiaridad de lo cotidiano, el idioma materno como forma espontánea de la expresión de las ideas y los sentimientos, y el trabajo que da a cada uno el sentido de la vida y de la utilidad a los demás, en la comunidad en que vive. Uno pierde sus medios genuinos de comunicación con el mundo exterior, así como la posibilidad de desarrollar un proyecto de vida. Es, pues, un problema que concierne a todo el género humano, que involucra la totalidad de los derechos humanos, y, sobre todo, que tiene una dimensión espiritual que no puede ser olvidada, aún más en el mundo deshumanizado de nuestros días.

El problema del desarraigo debe ser considerado en un marco de la acción orientada a la erradicación de la exclusión social y de la pobreza extrema, - si es que se desea llegar a sus causas y no solamente combatir sus síntomas. Se impone el desarrollo de respuestas a nuevas demandas de protección, aunque no estén literalmente contempladas en los instrumentos internacionales de protección del ser humano vigentes. El problema sólo puede ser enfrentado adecuadamente teniendo presente la indivisibilidad de todos los derechos humanos (civiles, políticos, económicos, sociales y culturales).

19 Original: “Those people who have been forced to leave their traditional habitat, temporarily or permanently, because of a marked environmental disruption, natural ou triggered by people, that jeopardized their existence and/or seriously affected the quality of their life. By “environmental disruption” in this definition is meant any physical, chemical, and/or biological changes in the ecosystem (or resource base) that render it, temporarily or permanently, unsuitable to suport human life”.

20UN. General Assembly: Legal - Sixth Committee. Sixty fourth session: Delegation of the Federative Republic of Brazil on the subject of “Humanitarian Intervention and State Sovereignty” and “The Legal Status of Environmental Refugees”.

21<https://www.guardian.co.uk/global-development/datablog/2012/jan/12/haiti-earthquake-aid-money-data> Acesso em 10 de maio de 2012.

22 Idem.

23COSTA, Pe. Gelmino. Informação pessoal.

24LOPES, Anselmo Henrique Cordeiro. Ação Civil Pública perante a Justiça Federal do Acre que pede reconhecimento do refúgio aos cidadãos haitianos no Brasil. Disponível em<https://www.prac.mpf.gov.br/atos-do-mpf/acp/acphaitianos/at_download/file>. Acesso em 05 de maio de 2012.

25Brasil, haitianos e os desafios da Lei de Migrações. Outras Mídias. 20. de janeiro de 2012. Disponível em:<https://ponto.outraspalavras.net/2012/01/20/brasil-os-desafios-da-lei-de-migracoes/>. Acesso em 08 de maio de 2012.

26Os primeiros casos de cólera foram registrados no começo de outubro na região de Artibonite, estando o surto isolado até então. Em novembro de 2010, porém, o Haiti foi atingido pelo furacão Tomás que, com chuvas e ventos de 140 km por hora, trouxe enchentes e deslocou grupos de desabrigados. Isso fez com que a doença se espalhasse rapidamente pelo restante do país. Atualmente, mais de 7 mil pessoas já morreram no Haiti infectadas pela cólera e cerca de 520 mil haitianos já foram infectados pela doença. O país notifica 200 novos casos da doença todos os dias. Em Porto Príncipe quase 1,5 milhão de pessoas vivem em acampamentos onde a higiene, saneamento básico e água potável são escassos.

27CNIg. Resolução Normativa n. 27. de 25 de novembro de 1998. Disciplina a avaliação de situações especiais e casos omissos pelo Conselho Nacional de Imigração. In: Diário Oficial da União, nº 243-E, de 18/12/98, Seção 1, pag. 6.

28 V Reunião Ordinária de 2011 do Conselho Nacional de Imigração. Brasília: Ministério do Trabalho e Emprego, 22 de junho de 2011.

29Brasil, haitianos e os desafios da Lei de Migrações. Mundo Sustentável. Disponível em:<https://www.mundosustentavel.com.br/2012/01/brasil-haitianos-e-os-desafios-da-lei-de-migracoes/>. Acesso em 03 de maio de 2012.

30V Reunião Ordinária de 2011 do Conselho Nacional de Imigração. Brasília: Ministério do Trabalho e Emprego, 22 de junho de 2011.

31V Reunião Ordinária de 2011 do Conselho Nacional de Imigração. Brasília: Ministério do Trabalho e Emprego, 22 de junho de 2011.

32 Idem.

33 FERNANDES, Duval Magalhães; DINIZ, Alexandre Magno; DE FARIA, Andressa Virginia. Migración em la Frontera Norte de Brasil: flujos e nuevas redes. Caracas, Universidad Central de Venezuela, 29-30 de noviembre de 2011. Disponível em: <https://www.somosavepo.org.ve/download/cdt_570.pdf>

34CNIg. Resolução Normativa n. 97. de 12 de janeiro de 2012. Dispõe sobre a concessão do visto permanente previsto no art. 16. da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, a nacionais do Haiti.

35LOPES, Anselmo Henrique Cordeiro. Ação Civil Pública perante a Justiça Federal do Acre que pede reconhecimento do refúgio aos cidadãos haitianos no Brasil. Disponível em<https://www.prac.mpf.gov.br/atos-do-mpf/acp/acphaitianos/at_download/file>. Acesso em 05 de maio de 2012.

36 KUSHNER, Jacob. U.S. Deportees to Haiti, Jailed Without Cause, Face Severe Health Risks. Florida Center for Investigative Reporting, 2011. Disponível em: <https://fcir.org/2011/11/13/u-s-deportees-to-haiti-jailed-without-cause-face-severe-health-risks/>. Acesso em: 28/04/2012.

37CONARE. Ofício nº 042/CONARE/2012. Assunto: Resposta Requerimento de informações sobre os haitianos. 03. de fevereiro de 2012.

38 CONARE. Ofício nº 042/CONARE/2012. Assunto: Resposta Requerimento de informações sobre os haitianos. 03. de fevereiro de 2012.

39 Original: “Los refugiados llegan a menudo a lugares de baja oferta y frágiles, ejerciendo demandas que suman a los problemas existentes. Así, la presencia permanente de grandes masas de refugiados en zonas urbanas y rurales de países em desarrollo somete a la economia y al médio ambiente de los países a considerables presiones y a posibles conflictos sociales com las poblaciones locales receptoras de los refugiados.”

40THOMAZ, Omar Ribeiro e NASCIMENTO, Sebastião. Europeus Bem-Vindos, Haitianos Barrados. Folha de São Paulo, Tendências/Debates, A-3, 21 de janeiro de 2012. In: LOPES, Anselmo Henrique Cordeiro. Ação Civil Pública perante a Justiça Federal do Acre que pede reconhecimento do refúgio aos cidadãos haitianos no Brasil. Disponível em<https://www.prac.mpf.gov.br/atos-do-mpf/acp/acphaitianos/at_download/file>. Acesso em 05 de maio de 2012.


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ALENCAR, Anne Paiva de. Análise da condição jurídica dos caracterizados refugiados ambientais do Haiti no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3694, 12 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24288. Acesso em: 23 abr. 2024.