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A justiça política de Otfried Höffe

A justiça política de Otfried Höffe

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Destacam-se as três idéias centrais do autor: a) a crítica do positivismo do Direito e do Estado; b) a crítica do anarquismo e c) a justiça política como princípio de uma sociedade de liberdade.

Resumo: Trata-se de uma revisão crítica da “Justiça política” de Otfried Höffe, sob uma abordagem livre e exploratória da obra em consonância à literatura especializada para a temática. Destacam-se as três idéias centrais do autor: a) a crítica do positivismo do Direito e do Estado; b) a crítica do anarquismo e c) a justiça política como princípio de uma sociedade de liberdade, a partir do que o autor vai chamar de redimensionamento do discurso da justiça e sua projeção política contemporânea. Conclui-se que atravessadas as etapas de uma justiça natural que define as liberdades fundamentais e as garante normativamente pelo direito positivo, além de uma justiça institucional que legitima e resguarda tais liberdades com certa permanência às gerações, chega-se à justiça política, cujo interesse é o da realização histórica das instituições reconhecidas e de competência da coletividade, por meio da racionalidade crítica aliada aos princípios da justiça, do consenso da moral e das relações entre ciência e política.

Palavras-chave: 1. Filosofia jurídica 2. Direito e Política 3. Legitimidade institucional 4. Ética

 


1 Introdução

Que vai entender Höffe por redimensionamento do discurso da justiça? Essa é a proposta que se afigura na introdução de seu livro: Justiça Política. A saber, Otfried Höffe é professor catedrático da Universidade de Tübingen e reconhecido autor dentre outras obras por Aristóteles, Immanuel Kant e A democracia no mundo de hoje1.

Para tanto, o filósofo de Tübingen vai dizer com a idéia de justiça política que as leis e as instituições políticas são submetidas a uma crítica ética. Implicaria, pois, a proposta de Höffe em uma reflexão tão-somente iluminista? E nesse caso bastaria, por exemplo, uma atualidade do criticismo kantiano à vida contemporânea2, não fosse a pertinência do discurso sob a realidade histórico-política e um pragmatismo do direito e do Estado, a que se devem acomodar as instituições e as leis à critica ética.

Höffe (2000, p.XVI) vai firmar seu pensamento na superação da teoria crítica tradicional3, assinalando que a Justiça Política: “[...] existe em meio à intersubjetividade uma camada que tanto é de natureza transcendental como possui um caráter de troca.”, vale dizer, isso implica em uma relação social pragmática aliada à intersubjetividade metafísica, cujo certame para o Estado Democrático de Direito é bem expresso por Salgado (2007, p.4) “[..] é, assim, entendido como ponto de chegada de todo um processo histórico do ethos ocidental, que se desenvolve segundo uma dialética entre o poder e a liberdade”.

Esse é o projeto político que o filósofo alemão vai buscar na mediação entre o positivismo e o anarquismo, ao que vai chamar de plenitude da modernidade na esfera do político e que se ocupa a teoria crítica do direito e do Estado (HÖFFE, 2000, p.10).

Mas essa dualidade é a preocupação contemporânea de uma plêiade de pensadores, a exemplo de Gramsci que segundo Coutinho (1996, p.122), define a política como “catarse”: “[...] o momento em que passa do nível egoístico-passional, do interesse meramente corporativo, ao nível ético-político”, ao que sinaliza ainda a sua construção consensual de hegemonia4 – “[...] àquele nível onde efetivamente têm lugar relações de hegemonia e onde prepondera o interesse universal (ou universalizador) sobre o interesse meramente privado”.

Não é outra a preocupação de Höffe, enfatizando é claro a problemática ético-política, à qual não se poderia fugir das teorias do discurso institucionais. Ocorre que a essas teorias se agregam a crítica ética, sobretudo em virtude da chamada virada pragmático-lingüística. Afirma Höffe (2000, p.15): “[...] ao contrário do tendencial naturalismo da modernidade, não se sustenta uma refletida teoria das instituições sem uma discussão de suas premissas normativas, sem uma ética”.

O que se vai fazer em seguida é a tripartição que sintetiza Höffe ao projeto político endereçado à modernidade, que vai chamar de uma filosofia fundamental política, cujo processo teórico histórico-social o autor classifica na crítica ao positivismo e ao anarquismo, restando a justiça política como princípio de uma sociedade de liberdade.


2 Sobre a crítica do Positivismo do Direito e do Estado

A idéia de justiça para Höffe vai ser repassada pela crítica do positivismo, muito embora o autor não compreenda um positivismo uníssono, apresentando a este cinco formas distintas, a saber: a) como relativismo do caráter ético-político; b) como crítica do direito natural; c) como teoria de uma ciência jurídica autônoma; d) como teórico-jurídico; e) como uma teoria social histórica da modernidade (HÖFFE, 2000, p.25).

De qualquer modo, encerra o autor, todas essas formas apresentam um ceticismo da ética do direito e do Estado a partir de um problema semântico, isto é, a vagueza que permanece sobre o conceito de justiça (HÖFFE, 2000, p.25). O jusfilósofo vai refletir que a semântica de justiça política, ainda que se inicie com os elementos de uma semântica descritiva passa para a semântica com intenção legislativa, ao que encerra Höffe (2000, p.35): “[...] não mais se continua analisando o efetivo emprego do conceito de justiça, mas a legitimidade deste emprego”.

Neste sentido Otfried Höffe direciona a questão ao princípio da imparcialidade, e como tal, uma justiça subsidiária de uma justiça originária, porquanto mesmo o princípio da imparcialidade pode ser subterfúgio de uma legitimação de um grupo ilegítimo, como observa Höffe (2000, p.31): “[...] a aplicação imparcial da regra também pode estar a serviço de um bando organizado de Estado obviamente injusto, e ainda conter privilégios e discriminações evidentes e brutais”.5

Com efeito, o autor prima pelos elementos de uma semântica descritiva6 da justiça política, como forma subsidiária de uma justiça original; o primeiro desses elementos é o de uma obrigação ética, ao que traça Höffe (2000, p.39): “Pode-se denominar boa ou ruim uma entidade de direito e de Estado num sentido técnico, respectivamente estratégico, em seguida, pragmático e finalmente ético; e na justiça, trata-se de um terceiro sentido, o sentido ético de valoração crítica”.

O segundo elemento o de um ponto de vista moral em face do direito e do Estado7, assim, segundo Höffe (2000, p.40): “A justiça é, portanto, uma obrigação social cuja realização os homens não apenas sugerem e recomendam, mas muito antes exigem uns dos outros, respectivamente, atribuem reciprocamente e talvez até se devem uns aos outros”.

O terceiro elemento justiça pessoal e política, cuja destinação de Otfried Höffe se dá na convivência humana podendo se distinguir um lado pessoal de um lado institucional. Para tanto, na práxis pessoal fazem parte as considerações e decisões de uma pessoa natural, seus interesses, motivos e intenções, finalmente os princípios e posições, o caráter, já na práxis institucional fazem parte, ao contrário, as formas de relações que, como matrimônio e família, instituições econômicas e educacionais, ou entidades de direito e de Estado, precedem amplamente o agir pessoal. E assim que para ambos os lados do convívio, emprega-se os predicados “justo/injusto” e entende-se com isso a perspectiva ética, na medida em que os homens podem atribuir-se seu reconhecimento reciprocamente. Para distinguir ambas as esferas de aplicação, pode-se falar, num caso, de justiça de uma pessoa ou de justiça pessoal; no outro caso, da justiça de uma instituição ou de justiça institucional (HÖFFE, 2000, p.42).

Mas se a semântica descritiva só conceitua a justiça política, mas não a legitima (HÖFFE, 2000, p.47), qual a perspectiva da justiça sobre a legitimação? Essa legitimidade vai dizer Höffe está via de regra em um senso comum ético, cujo debate pela legitimação de um mandato para o exercício da coerção social e política está em parte antes da formulação do princípio moral, enquanto justificação da perspectiva da justiça, e em parte após a formulação desse mesmo princípio, no que se deve considerar sobre a vantagem de uma justiça distributiva que deve ser determinada em conceito de felicidade e de liberdade (HÖFFE, 2000, p.69-70).

A questão que vai colocar Höffe é a reconhecida posição do direito natural em face do direito positivo, e neste sentido recorre ao princípio da razão crítica, como se espelhasse a boa expressão de Kant (2001, p.639): “E assim não tereis nunca necessidade de vos ocupar do desenvolvimento e refutação de qualquer falsa aparência, mas podereis, pelo contrário, remeter em bloco e de uma vez, toda a dialética, inesgotável em artifícios, ao tribunal de uma razão crítica, que exige leis”. Assim, avalia Höffe que o direito natural não representa alternativa em face do pensamento da justiça entre a exigência de um elemento genuíno que em Kant é a justiça política ou então a necessidade para este elemento sob a perspectiva da justiça como base de legitimação mais fundamental, porquanto o discurso da justiça é ou o pensamento normativo ou então a herança legítima da tradição jusnaturalista (HÖFFE, 2000, p.90).

Em face da crítica sobre a ausência de uma definição objetiva do conceito de justiça moída pelo positivismo, Höffe (2000, p.71) vai afirmar pela simplicidade em considerar o positivismo do direito e do Estado como uma direta negação da justiça, em franco amoralismo de Estados injustos8.

Por outro lado não se seduz por um pós-positivismo que encerraria em todos os sistemas jurídicos princípios de justiça a romper o princípio positivista do direito, em manifesta alusão as doutrinas de Dworkin e Alexy, de vez que Gustav Radbruch já apelava aos princípios da justiça na medida em que estes já se sedimentavam nas convicções jurídicas dos companheiros e das comunidades de direto; ele se referia a princípios positivos da justiça9, não suprapositivos, a princípios em vigor e não apenas válidos (HÖFFE, 2000, p.105).

Com efeito, a separação absoluta ou relativa do direito e da moral, nada mais é que um mito do positivismo jurídico, enquanto amoralismo político, em razão de uma teoria que, por exemplo, não considera necessária a relação de justiça, sob uma pretensa dogmática jurídica, mas, em todo caso, considera admissível a existência de princípios positivos de justiça e não suprapositivos (HÖFFE, 2000, p.108).


3 Sobre a crítica do anarquismo

Nesta parte segunda de sua Justiça Política a idéia gira em torno da liberdade, ao que pergunta o filósofo: liberdade da dominação ou dominação justa? De vez que para a doutrina do anarquismo acerca-se um ceticismo, não sob uma vertente ético-jurídica, mas um ceticismo como princípio social, que basicamente, questiona a legitimidade dos mandatos políticos para o exercício da coerção (HÖFFE, 2000, p.163), e a objeção, por parte do pensamento anarquista, dá-se pela afirmativa de que a dominação é ilegítima e que esta afirmação não é de natureza empírica, mas normativa (HÖFFE, 2000, p.168). Assim, para Höffe (2000, p.176), a dominação, “[...] compreendida empiricamente e então respondida com teorias sociológicas. Na ética do direito e do Estado, à questão, porém, é concebida normativamente e no que respeita à teoria da legitimação”.

Destarte, Otfried Höffe, remontando a problemática jurídico-política desde o mundo antigo à modernidade, vai desembocar na teoria da instituição enquanto liberdade das instituições sociais, assinalando sob uma argumentação em função da justiça que a legitimação se torna clara à medida que envolve as relações sociais não na vantagem coletiva, mas distributiva (HÖFFE, 2000, p.331).

A matriz da teoria institucional é diversa da que fala Höffe; instituição enquanto teoria é definida por Hauriou segundo Solbeiman (s.d., p. 333) como: “uma organização social criada por um poder que dura porque ela contém uma idéia fundamental aceita pela maioria dos membros do grupo”; veja-se Norberto Bobbio afirmando que no tempo em que a norma jurídica era a única perspectiva de objeto à ciência do Direito, e que o ordenamento jurídico era no máximo um conjunto de normas, mas não um estudo autônomo com seus problemas particulares e diversos, assinala Bobbio (1994, p.20): “Para nos exprimirmos com uma metáfora, considerava-se a árvore, mas não a floresta”. Assim, os teóricos da instituição foram, segundo o jurista, os primeiros a chamar atenção sobre a realidade do ordenamento jurídico10.

A idéia de uma institucionalização à serviço da justiça fortalece a figura da legitimação e confirma a conjectura, segundo Höffe (2000, p.33): “[...]  de que na luta entre teorias do discurso espera-se uma solução argumentativa pela tomada de partido, por um ou então outro lado, sendo considerado muito antes uma mediação”. De tal sorte que essa mediação precisa fruir de legitimidade, do contrário a mediação há de ser vista como falaciosa, quando as instituições pluralistas são substituídas por idéias que aparentam uma pseudocompleição cidadã, mas nada mais seriam que os oportunismos em detrimento dos interesses fundamentais da sociedade, fomentando um processo de segregação de direito e do Estado, às vistas de interesses particularizados ou de concepções políticas predominantes, consoante ainda ao pensamento de Ianni (2004, pp.179-180): “Há forças sociais mais poderosas empolgando boa parte dos meios disponíveis e fazendo com que a imagem de uma vasta desarticulação predomine sobre a integração”.

O problema das instituições é a necessidade de diferentes formas de estabilização, que se traduziria também por um argumento que dificulta a legitimação, isto é a equivalência funcional de instituições (HÖFFE, 2000, p.333), isso porque no pluralismo normativo em que se vive uma norma de direito e do Estado pode ser, por exemplo, distinta de uma norma religiosa ou mesmo social, ao que no fim os argumentos de legitimação institucional, mostrar-se-iam ligados reciprocamente aos argumentos de cooperação e conflito (HÖFFE, 2000, p.335).

Mas esta é a crise pluralista em que se vive atualmente, é preciso, pois considerar a afirmação dos novos paradigmas que se têm em sociedade e aí não faltam correntes que introduzem algumas reflexões entre a conservação do pensamento tradicional e a reconstrução a partir de teorias e interpretações paradigmáticas. Assim é que muitos teóricos políticos dizem que estamos marchando para uma poliarquia, isto é, para uma pluralidade de centros de poder, e a problemática procura soluções que estabeleçam certo equilíbrio entre distintas sedes de decisão e mando. A verdade é que a existência do duplo do Estado, ou da multiplicidade dos organismos autônomos e periféricos, veio a alterar o conceito de poder (REALE, 1985, p.18). Por isso vai afirmar Höffe (2000, p.335): “Sempre pressupondo uma vantagem distributiva, os argumentos de cooperação falariam por uma sociedade relativamente muito diferenciada, enquanto os argumentos de conflito falariam pela institucionalização, nesta sociedade”.


4 Justiça Política como princípio de uma sociedade de liberdade

Em síntese, a tarefa de legitimação política consiste no ponto de vista ético da justiça como princípio normativo e como vantagem distributiva e nas condições descritivas da aplicação da justiça política: cooperação ou conflito, felicidade ou liberdade e sua mediação final. Para tanto a silogística da justiça política, de modo distinto ao silogismo comum, a premissa normativa se relacional com a premissa descritiva, não como um conjunto superior sob um conjunto inferior, nem como uma relação entre meios e fins, mas como assinala o jusfilósofo de Tübingen o enunciado descritivo na condição de premissa inferior é a condição de aplicação, vale dizer, o material que deve ser julgado moralmente, segundo as indicações de enunciado de uma premissa normativamente superior (HÖFFE, 2000, p.340).

A partir de então, Höffe vai considerar a justiça sob três etapas: a justiça natural, que é na sua visão pré-institucional, a justiça institucional e, por último, de uma justiça política.

O grande enlace sobre a justiça natural é que Höffe vai relacioná-la como direito humano asseverando que se pude me fundamentar no discurso de legitimação político-fundamental os direitos humanos, o projeto político da modernidade porá mais à prova sua importância filosófico-fundamental (HÖFFE, 2000, p.354), ao que afirma Höffe (2000, p.355): “Depois que se puderam justificar, na antropologia política, as orientações características modernas – liberdade em vez de felicidade, conflito em vez de cooperações se legitimaria aqui o lado da história constitucional da modernidade”.

Com efeito, a justiça natural, na discussão com o direito positivo, vai distinguir uma justiça definidora do direito de uma justiça normadora, por exemplo, a proteção à vida é uma justiça definidora do direito às vistas de liberdades fundamentais ou direitos humanos, porém garantir um mínimo desses direitos para os subordinados à coerção é critério normativo do direito positivo (HÖFFE, 2000, p.363). Assim é que Arthur Schopenhauer apaud Vasconcelos (2006, p.68) vai tratar: “A doutrina pura do direito, o direito natural, ou melhor, o direito moral, encontra-se ao contrário, mas sempre ele mesmo, na base de toda legislação jurídica, exatamente como a matemática pura está na base das matemáticas aplicadas”.

Quanto à justiça institucional Höffe assinala que para resolver o dilema diacrônico da justiça e superar o risco de a reciprocidade da troca de liberdades que se desloca segundo fases para transformar-se em uma unilateralidade, entende Höffe que deve a ordem jurídica junto com seu poder de efetivação ter uma certa permanência que ultrapasse as gerações. Neste caso, o último princípio de realidade da justiça chama-se institucionalização e, com isso, sua consolidação (HÖFFE, 2000, p.388). Assim Norberto Bobbio vai dizer que a sanção institucionalizada entende-se por três coisas: a) que para toda violação de uma regra primária é estabelecida a relativa sanção; b) é estabelecida, dentro de certos limites a medida da sanção e c) são estabelecidas pessoas encarregadas de efetuar a execução (BOBBIO, 2003, p.161).

Para Rudolf von Jhering o espírito sistemático aplicado ao direito, configura-se de modo ímpar; além de não servir, como nas outras ciências, para firmar cada uma das partes em seu respectivo lugar, este procedimento da forma exerce uma reação material sobre o próprio objeto a que se aplica, provocando uma transformação interna nas regras jurídicas. Com efeito, consignadas a uma relação mais delicada as regras jurídicas se desprendem das proibições e mandatos para se modelarem em elementos e qualidades das instituições jurídicas. Assim é como nascem, por exemplo, as definições dos princípios gerais, os fatos constitutivos dos atos jurídicos, as qualidades das pessoas, das coisas, dos direitos e as divisões de todas as espécies entre outras tantas (JHERING, 1943, p.36).

Por último, a sua justiça política, que segundo Höffe dá-se pela articulação dos princípios positivados da justiça com a racionalidade científica, com o consenso moral e as relações de cooperação entre ciência e política, de tal sorte que a coletividade recebe uma chance de encontrar e reconhecer, sob as condições atuais das sociedades complexas, as formas concretas de justiça política, em resumo, de realizá-la historicamente (HÖFFE, 2000, p.437).


5 Conclusão

A tese de Otfried Höffe é mais uma das teorias de resistência contrária à idéia de que não há uma discussão ético-política no Direito ou no Estado, ao menos contra a prática implícita das convenções falaciosas que sob um discurso estratégico, em detrimento da justiça política, promovem um direito parcializado e um Estado injusto.

Se é incompleta uma conceituação sobre a justiça política, mesmo a partir de termos que a caracterizaram, a saber: a) de uma obrigação ética, b) de um ponto de vista moral em face do direito e c) do Estado e de uma justiça pessoal e política, além do princípio da imparcialidade que, por sua vez, seria ainda uma fonte subsidiária de uma justiça original, o mesmo não se pode dizer quanto à amplitude da legitimidade para a justiça política.

E o discurso da legitimidade é a crítica que Otfried Höffe vai realizar contra o positivismo, a princípio pela contradição a que se envereda esta teoria, ao negar princípios de justiça suprapositivados, mas que uma vez dogmatizados são, por outro lado, válidos. Resgata, também, a antiga dicotomia com o direito natural, demandando a este direito o princípio da razão crítica para uma justiça política antes e de depois de um fundamento de legitimação jurídica.

Já em sua crítica ao anarquismo, Höffe vai dedicar-se ao que, historicamente, decorre à idéia de liberdade e de sua dominação, crítica esta que, por último, recai na teoria institucional a serviço da justiça, e neste sentido destaca-se um conflito de posição, de fundo necessariamente ético e valorativo, em face da concretização social, ao que todo fato regulado por estruturas normativas de direito e do Estado implicará na perspectiva humana e no amadurecimento para uma autocrítica social e descentralizadora, resguardando na atuação do legitimo mandatário que detenha a aspiração de corresponder à realidade social em mediação permanente entre cooperação e conflitos institucionais para a construção ou transformação da sociedade em consonância ao paradigma pluralista.

Para uma justiça política como princípio de uma sociedade de liberdade, Otfried Höffe vai se esmerar em uma construção tripartite: uma justiça natural ou pré-institucional em que há uma justiça definidora da liberdade fundamental e uma normadora pelo direito positivo; uma justiça institucional em que se firmam as normas por mandatários legitimados para tal mister e uma justiça política que buscaria o consenso entre a moral e a cooperação entre ciência e política, os princípios de justiça aliados à razão crítica e o reconhecimento da coletividade por uma concretização histórica das instituições.


Notas

1 Em Goethe-Institut (2008, p.1) lê-se: “Prof. Dr. Otfried Höffe estudou Filosofia, História, Teologia e Sociologia em Münster, Tübingen, Saarbrücken e Munique. Doutorou-se em 1970 pela Universidade de München e é professor catedrático de Filosofia e Fundador e Diretor do Centro de Pesquisas em Filosofia Política da Universidade de Tübingen. Autor de vários livros, sobretudo sobre Filosofia da Ética, do Direito, do Estado e da Economia, assim como livros sobre Kant e Aristóteles. Segundo o site www.information-philosophie.de Höffe foi, depois de Habermas, o filósofo contemporâneo mais citado da língua alemã em 2004.”

2 Nesse sentido Höffe (2000, p.XIII-XIV) assinala que: “Os mais recentes desdobramentos na política mundial dão o que aqui é reabilitado, uma atualidade adicional. Na Europa Centro-Oriental e na Europa Oriental não se desintegram apenas certos estilos de governo e formas de Estado. Se fosse apenas isto o que está acontecendo, tais mudanças permaneceriam importantes e contudo teriam somente um significado regional. Efetivamente, porém, possuem uma força irradiadora e esta se relaciona com a ética do direito e do Estado. Na revolução política de que somos espectadores, estão em questão os verdadeiros fundamentos da dominação política”.

3 Em alguma parte vai até conflitar-se com a teoria crítica, afirmando Höffe (2000, p.XVI) sob a perspectiva de uma intersubjetividade de um patamar superior: “Aqui, mas também somente aqui, a Justiça Política contrasta com a teoria crítica. De um lado, o argumento que é desenvolvido em favor da intersubjetividade de um patamar superior é mais fundamentado”.

4 O conceito de hegemonia para Gramsci segundo Coutinho (1996, p.140) é abstraído do seguinte período: “A hegemonia se materializa na criação dessa vontade coletiva, motor de um ‘bloco histórico’ que articula diferentes grupos sociais, todos eles capazes de operar, em maior ou menor medida, o ‘movimento catártico’ de superação de seus interesses meramente ‘econômico-corporativos’ em função da criação ‘ético-política’ universalizadora. Essa passagem ‘catártica’ do particular para o universal, porém, não se dá em Gramsci, ao contrário de Rousseau, através da repressão da vontade singular, mas sim, tal como em Hegel, mediante uma superação dialética na qual o ‘ético-político’, a vontade coletiva, conserva e eleva a nível superior os múltiplos interesses singulares e particulares dos diversos e plurais componentes do ‘bloco histórico’. Mas é como se, em Gramsci, a eticidade – aquilo que empresta conteúdo concreto à vontade geral ou coletiva, superando a abstratividade moralizante que é própria da concepção rousseauniana – fosse também ela resultado de um contrato, de uma livre negociação intersubjetiva, e não, como pensava Hegel, do movimento necessário e impessoal de um ‘espírito objetivo’, nem tampouco, como imaginam muitos marxistas vulgares, de férreas e fetichizadas ‘leis históricas’ de base econômica. Desse modo, se Gramsci retém de Hegel a noção de eticidade (que nele ganha os nomes de hegemonia e de ‘ético-político’), retém ao mesmo tempo de Rousseau a concepção política como contrato, como formação intersubjetiva de uma vontade geral (que nele ganha o nome de ‘vontade coletiva nacional-popular’).”

5 Para Habermas na reflexão de Moreira (2004, p.77): “[...] como identificar a base racional dos processos jurídicos? Através da análise da idéia de imparcialidade, ou melhor, como a imparcialidade fornece elementos que propiciam uma relação entre o Direito vigente, a jurisdição e a legislação? Segundo Habermas, essa idéia de imparcialidade forma o núcleo da razão prática. Entrementes, é através do recurso a teorias da moral e da justiça que a idéia de imparcialidade assume a forma de um processo que permite averiguar se essas questões são morais. Com isso, ele assume o projeto de uma teoria procedimental da justiça para explicar como se dá a formação dessa vontade imparcial.”

6 Vide Frankenberg (2007, p.265): “A descentralização filosófico-lingüística do sujeito torna visível a práxis comunicativa que fundamenta a vida do sentido lingüístico. A representação do mundo moderno na montagem construtiva de conceitos identificadores é, assim, decomposta nas suas partículas elementares.”

7 Höffe (2000, p.41) assevera que: “Na tradição da filosofia moral, distingue-se entre deveres jurídicos e deveres de virtude, e com isto se entende, no primeiro caso, deveres cujo cumprimento pode ser exigido pela parte oponente, o que, no segundo caso, não acontece. De acordo com esta distinção, a justiça corresponde aos deveres jurídicos, mas a filantropia, a solidariedade e as outras exigências ético-sociais correspondem aos deveres de virtude. Porque o cumprimento dos deveres jurídicos pode ser exigido pela parte oposta; no caso, os deveres jurídicos correspondem aos mandamentos morais, às exigências morais, isto é, aos direitos subjetivos moralmente fundados. Se, por exemplo, existe um dever jurídico de cumprir um contrato, então aquele com quem se celebrou um contrato tem uma pretensão de que seja honrado. Pretensões jurídicas, assim denominadas direitos subjetivos, e deveres jurídicos são conceitos complementares”.

8 Para Pozzolo (2006, p.85): “Segundo a crítica neoconstitucionalista, o juspositivismo concede um espaço estreito à teoria, aprisionando-a a um universo jurídico oitocentista já ultrapassado, cujo núcleo era constituído da teoria da soberania e da exigência científico-descritiva. Esta última, em particular, que impunha o imperativo da neutralidade valorativa, é o que o neoconstitucionalismo nega fundamentalmente como possibilidade. O Direito do Estado Constitucional, de fato, pleno de princípios de justiça, ou melhor, de princípios morais positivados, requereria uma abordagem normativa, requereria uma tomada de posição moral para ser entendido. O Direito do Estado Constitucional pretendia a adoção do ponto de vista interno: somente da perspectiva do participante, ou seja, daquele que aceita moralmente o direito como guia para o próprio comportamento e como critério de crítica para o comportamento dos outros, seria possível compreender o que é direito e o que não é; somente por esta via seria possível justificar ações e decisões.

A abordagem requerida pelo direito constitucional não poderia, portanto, ser aquela de uma teoria que pretende ser científica, ou seja, de uma ciência que expulsou de próprio horizonte a análise dos valores morais. Eis, então, que o positivismo jurídico – particularmente aquele metodológico – se revela inadequado, enquanto requer ao teórico, que finge não tomar posição em relação aos conflitos éticos de vez em quando em jogo, a fim de viabilizar uma descrição não valorativa do direito positivo. A separação entre discurso jurídico e discurso moral, típica do positivismo jurídico metodológico, não seria compatível com o estudo do Direito Constitucional, que teria tamanha pretensão de justiça capaz de privar de juridicidade, seja uma norma individual, seja todo o sistema, uma vez que ultrapassem um determinado limiar de iniqüidade.”

9 Para Kolm (2000, p.212): A definição dos princípios da justiça deve ser precisa e justificada naquilo que diz respeito aos seguintes itens:

a. a lógica do maximin multidimensional do ‘princípio da diferença’;

b. as interdependências nos usos que os indivíduos fazem de seus ‘bens primários’;

c. a distinção entre capacidades humanas para a produção e para o consumo ou para a vida em geral, respectivamente;

d. a alocação das vantagens derivadas das capacidades de comprar e das capacidades de usar o poder;

e. a justificação da necessidade do “princípio da diferença” igualitário possível;

f. a estrutura das ‘liberdades básicas’.”

10 Norberto Bobbio vê a instituição, com notória analogia, base para a formação de um ordenamento jurídico complexo, porém uno, ao que de Bobbio (1994, p.37-38) pode-se retirar: “A imagem de um ordenamento, composto somente por dois personagens, o legislador que coloca as normas e os súditos que as recebem, é puramente escolástica. O legislador é um personagem imaginário que esconde uma realidade mais complicada. Também um ordenamento restrito, pouco institucionalizado; que recobre um grupo social de poucos membros, como a família, é geralmente um ordenamento complexo: nem sempre a única fonte das regras de condutas dos membros do grupo é a autoridade paterna; às vezes o pai recebe regras já formuladas pelos antepassados, pela tradição familiar ou pela recorrência a outros grupos familiares; às vezes delega uma parte (maior ou menor conforme as várias civilizações) do poder normativo à esposa, ou ao filho mais velho. Nem mesmo em uma concepção teológica do universo as leis que regem os cosmos são derivadas todas de Deus, ou seja, são leis divinas; em alguns casos Deus delegou aos homens produzir leis para regular a sua conduta, quer através dos ditames da razão (Direito natural), quer através da vontade dos superiores (Direito positivo).”


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Abstract: The present essay is a critical review of “Political Justice” wrote by Otfried Höffe, under a free and an exploratory approach, according to the specialized literature for the theme. It emphasizes three central ideas of the author: a) the criticism of the Law and the State positivism; b) the criticism of the anarchism; and c) the political justice as principle for a free society, from what the author starts to call the ampliation of the justice speech and its projection on the contemporary politics. It concludes that once we passed through the stage of natural justice which defines the fundamental liberties and guarantee them by the Positive Law, in addition to a institutional justice that legitimates and protects these liberties with certain stability to the generations, we reach the political justice which the interest is the historical fulfillment of the well-known institutions and the collective competence, through the critical rationality allied to the principles of justice, moral consensus and relations between science and politics.

Keywords: 1. Juridical Philosophy. 2. Law and Politics. 3. Institutional legitimacy. 4. Ethics.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Lara Fernandes; SOUZA, Rogério da Silva e. A justiça política de Otfried Höffe. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3761, 18 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25531. Acesso em: 20 abr. 2024.