Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/27683
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O rigor da punição dos crimes de responsabilidade e atos de improbidade administrativa para com os agentes municipais

O rigor da punição dos crimes de responsabilidade e atos de improbidade administrativa para com os agentes municipais

Publicado em . Elaborado em .

Deriva do sistema de controle da administração pública uma gama de sanções com propósito assegurar a boa governança. Proliferam normas de caráter punitivo sem mostrar eficiência na formação de uma consciência cidadã de probidade administrativa.

Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é por idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente - dá susto se saber - e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e bons negócios... De sorte que carece de se escolher: ou a gente se tece de viver no safado comum, ou cuida só de religião só. (Guimarães Rosa).

RESUMO: Deriva do sistema de controle da administração pública uma gama de sanções, que tem como propósito assegurar o cumprimento dos normativos da boa governança. Proliferam, contudo, normas de caráter punitivo que se cumulam nas mais diversas modalidades de reprimendas, sem mostrar eficiência na formação de uma consciência cidadã de probidade administrativa.

Palavras-Chave: Improbidade Administrativa. Crimes de Responsabilidade. Infrações Político-Administrativas

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Da Positivação do Combate à Corrupção 3. Um Conceito Jurídico de Improbidade Administrativa 4. Dos Crimes de Responsabilidade 4.1. Dos Crimes de Responsabilidade dos Prefeitos Municipais 5. Dos Crimes Comuns dos Agentes Municipais  6. Dos atos de Improbidade Administrativa  7. Das Sanções Previstas na Lei de Improbidade Administrativa 8. Considerações Finais. Referências


1 – Introdução:

A Lei de Improbidade Administrativa – LIA – Lei 8.429/92 de 02 de junho de 1992, encontra-se prevista no art. 37, § 4º. da Constituição Federal. Historicamente foi a primeira norma editada após a democratização do País com objetivo de punir os atos atentatórios à boa governança e coibir o enriquecimento ilícito à custa do erário. Atende a um clamor popular e a um direito fundamental a uma gestão responsável da coisa pública.

Recentemente, como reforço ao arcabouço jurídico de proteção à boa governança, o Congresso Nacional aprovou a Lei 12.846 de 01.08.2013, com entrada em vigor no dia 1º de janeiro de 2014, e que não será objeto de estudo nesta incursão, cuja ementa assenta que “Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira”. É mais uma ferramenta na dura luta de enfrentamento a um dos mais graves problemas do país: a corrupção.

No entanto, desde a Constituição Imperial de 1824 o Brasil positivou a luta contra a corrupção. De maneira preventiva, por meio de órgãos de controle, ou repressiva, o ordenamento jurídico pátrio vem propondo punições e restrições funcionais, na tentativa de conter a atração que o dinheiro público exerce sobre alguns dos seus gestores; ao mesmo tempo em que tenta obstar a ganância dos seus servidores diante daquilo que é coletivo e à sociedade deve servir de modo generalizado e não socorrer a alguns em particular.

Já se popularizou que a corrupção é endêmica em nosso país e doutrinou-se que se dá em dois estágios distintos: a) entre os servidores do Estado, que se apropriam de seus bens e rendas ou malversam sobre o destino de suas riquezas; b) entre os particulares, fora da estrutura de governo, que intentam sobre o erário, privilegiando os interesses privados sobre os coletivos, frustrando a ação política (no sentido de organização e atendimento a demandas sociais), em favor do enriquecimento particular.

As formas em que a corrupção se dissemina e se operacionaliza, no entanto, são de uma gama assustadora. O tal “jeitinho brasileiro” que soa como idiossincrasia nacional se dá de pequenas atitudes infames que passam por vezes despercebidas, ou remitidas, a grandes golpes que nos envergonham no cenário internacional e empobrecem o nosso País.

O noticiário é tão vasto sobre o tema que arriscarmos a afirmar, em um dos mais notáveis paradoxos, que o senso comum de impunidade permeia o universo dos administradores públicos e convive com a indignação latente da sociedade que, às vezes se manifesta aos berros, como o caso da Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010), ou a lei de combate à corrupção eleitoral (Lei 9.840/99), mas, lado outro, insiste em eleger e reeleger representantes canhestros e por vezes, reconhecidamente, impudicos para com a coisa pública.

Não nos dispusemos a discutir aqui nenhum caso em particular de atentado à boa governança. A uma pela saturação do assunto que virou quase que um reality show quando do julgamento da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal, caso que ficou conhecido como o famoso “mensalão”. A duas pelas vastidão de ocorrências, o que não daria espaço para um estudo esmiuçado de uma ou outra conduta em particular. Limitaremos a discutir os mecanismos de combate a esta prática nefasta de dilapidação, por alguns, daquilo que é patrimônio de todos.

Leis as temos, e muitas, com o mesmo propósito. O objetivo deste estudo é, portanto, discutir o alcance de tantas normas e a sua efetividade no combate a sinistra endemia que alcança os órgãos e entidades públicas. Atos de corrupção não raro perpetuam a servilidade, encarecem os serviços públicos e limitam a eficácia e eficiência dos governos. Necessário, portanto, que os normativos de regência possam a um só tempo coibir a prática como contribuir para a formação de uma moral administrativa proba. É o que estamos a discutir.  

 Fábio Konder Comparato (2006, p. 54 e seguintes) argumenta que a proliferação das leis predispõe o enfraquecimento dos costumes. E, posto serem esses últimos insertos no caráter do indivíduo, enquanto aquelas, imposições alienígenas, nem sempre assimiladas, a aculturação para o dever pela moral é mais eficiente que a imposição pela lei escrita.

Aliás, a opinião geral na Grécia nos séculos V e IV a.C., era de que a multiplicidade de leis escritas denotava um enfraquecimento dos costumes e, portanto, uma degenerescência social. O que há de mais importante na organização social, sublinhou Platão, é a educação das crianças; pois é isso que forma a consciência cidadã. Sem ela, enfatizou, as leis são sempre ineficazes. No século seguinte, Isócrates (436-338 a.C.), o grande orador ateniense, queixando-se da proliferação legislativa, afirmava que “a multiplicidade e a minúcia de nossas leis são um sinal de que nossa cidade é mal organizada: procuramos fazer das leis barreiras contra os delitos e somos assim forçados a editá-las em grande número”. E concluía: “os bons políticos devem, não propriamente cobrir os pórticos com textos escritos, mas manter a justiça nas almas; pois não é pelas leis e sim pelos costumes que as cidades são bem ordenadas.” COMPARATO, 2006. p.54

Destarte, o descarrilar da administração pública em nosso país não está na ausência de leis a reprimir o comportamento ímprobo, mas, talvez, na ausência de uma formação cidadã comprometida com o respeito às coisas comuns, ao patrimônio de todos.


2 - Da Positivação do Combate à Corrupção

O exercício do controle sobre os atos dos administradores data do iluminismo Europeu, quando, definitivamente, Igreja e Estado se romperam. Provocando o cisma a consequente separação entre o bem público e o privado, foi o gestor despido do poder absoluto sobre o coletivo, suas riquezas e interesses se apartaram. O rei deixou de ser soberano, transferindo a soberania ao povo, e em decorrência, passou a ser administrador, aquele que cumpre o que o soberano determina e a ele presta contas.

Na esteira do pensamento iluminista, a Constituição Imperial de 1824, como dito, positivou, em dois momentos, o interesse por uma administração reta, tanto na repressão, quanto no controle, nos dispositivos que abaixo transcrevemos, respeitando a grafia original:

 Art. 133. Os Ministros de Estado serão responsáveis

 I. Por traição.

 II. Por peita, suborno, ou concussão.

 III. Por abuso do Poder.

 IV. Pela falta de observância da Lei.

 V. Pelo que obrarem contra a Liberdade, segurança, ou propriedade dos Cidadãos.

(...)

Art. 170. A Receita, e despeza da Fazenda Nacional será encarregada a um Tribunal, debaixo de nome de 'Thesouro Nacional" aonde em diversas Estações, devidamente estabelecidas por Lei, se regulará a sua administração, arrecadação e contabilidade, em recíproca correspondência com as Thesourarias, e Autoridades das Províncias do Império.

Na mesma seara, a Carta Republicana de 1891, que instituiu os Tribunais de Contas (art. 89) como instrumentos de controle da qualidade e lisura do ato administrativo, definiu os Crimes de Responsabilidade (art. 54), destacando no elenco a probidade da administração e o zelo para com as riquezas públicas:

Art. 54 - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente que atentarem contra:

1º) a existência política da União;

2º) a Constituição e a forma do Governo federal;

3º) o livre exercício dos Poderes políticos;

4º) o gozo, e exercício legal dos direitos políticos ou individuais;

5º) a segurança interna do Pais;

6º) a probidade da administração;

7º) a guarda e emprego constitucional dos dinheiros públicos;

8º) as leis orçamentárias votadas pelo Congresso.

§ 1º - Esses delitos serão definidos em lei especial.

§ 2º - Outra lei regulará a acusação, o processo e o julgamento.

§ 3º - Ambas essas leis serão feitas na primeira sessão do Primeiro Congresso.

Na esteira desse exemplo as constituições seguintes ratificaram os mesmos conceitos, com normas e sanções dispostas a punir também os desvios de conduta dos agentes políticos inferiores, a quem confiamos a gestão dos negócios públicos nos municípios e entidades da Administração Indireta, até os dias atuais, quando, sob o Estado Democrático de Direito, a Carta de 1988 adotou, no § 4º. do artigo 37, a terminologia Improbidade Administrativa a definir tais condutas.

§ 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

Não é nosso interesse fazer aqui um histórico dos normativos legais editados no País com o propósito de prevenir, inibir ou coibir a corrupção em todas as suas modalidades. Nosso propósito em citar a legislação primeva é situar o pensamento legislativo no tempo histórico, a preocupação com o tema perpassando os diversos regimes administrativos que o país viveu, e ver que se os regimes e os governos passam a corrupção, enquanto tema recorrente, no entanto, permanece.


3 - Um Conceito Jurídico de Improbidade Administrativa:

A Constituição de 1988, escrita sobre as cinzas ainda mornas da Ditadura Militar, embora gozando da pacífica transição para o Regime Democrático, trouxe consigo uma carga deontológica quanto a um modelo gerencial de administração que se pretendia implantar no País, ao sopro do Estado eficiente e do cidadão cliente, conceitos estes caros ao neoliberalismo.

O momento de ruptura com o regime antigo fez o Constituinte priorizar o modelo de gestão moral, ética e, por desnecessária redundância, honesta, como se o pressuposto da gestão pública pudesse ensejar qualquer outra definição.

Não por acaso a Carta Cidadã propôs uma modernização das relações do governo para com o administrado, curvando-se a accountability política e popularizando os atos de governo para além da simples formalidade da publicação oficial. Desta forma, comprometendo-se a firmar uma Democracia Participativa e gestão compartilhada dos interesses coletivos, obviamente com melhor aproveitamento e controle das verbas públicas, escancarou o controle da administração e permitiu, por estes meios, maior conhecimento sobre os atos espúrios praticados pelos gestores.

Neste cenário se fez necessária uma definição clara da devoção ao interesse público e sua supremacia ante o particular, entabulando com clareza os propósitos gerenciais da administração do Estado, seus princípios e fundamentos. Em contrapartida propõe punição rigorosa à transgressão e à improbidade que, devido a uma maior transparência do governo, ganhariam merecido destaque.

Definindo o termo Improbidade Administrativa Pazzaglini Filho e Outros (1999, p. 39), assim prelecionam:

Numa primeira aproximação, improbidade administrativa é o designativo técnico para a chamada corrupção administrativa, que, sob diversas formas, promove o desvirtuamento da Administração Pública e afronta os princípios nucleares da ordem jurídica (Estado de Direito, Democrático e Republicano), revelando-se pela obtenção de vantagens patrimoniais indevidas às expensas do erário, pelo exercício nocivo das funções e empregos públicos, pelo tráfico de influência nas esferas da Administração Pública e pelo favorecimento de poucos em detrimento dos interesses da sociedade, mediante a concessão de obséquios e privilégios ilícitos.

Valendo desta definição, que generaliza as condutas aéticas e perniciosas ao regime democrático e republicano, vamos discutir o pensamento do legislador pátrio, que em momentos distintos da história, conseguiu extrair conceitos diversos para as espécies de crime de responsabilidade (Lei 1.079/50 e art. 1º. do Decreto-Lei 201/67); infrações de natureza político-administrativa (art. 4º. e 7º. do Decreto-Lei 201/67); crimes contra a administração pública (art. 312 e seguintes do Código Penal – Decreto-Lei 2.848/40); atos de improbidade administrativa (Lei 8.429/92); crimes contra a lei de licitações (art. 89 e seguintes da lei 8.666/93); e crimes contra a administração financeira (Lei 10.028/2000).

Num giro rápido pelo ordenamento jurídico vigente, encontramos pelo menos seis diplomas legislativos tendentes a proteger a administração pública frente aos atos dos seus agentes ou dos seus administrados, elenco ao qual se acrescenta a novel Lei Anticorrupção, lei 12.846/2013. Neste vasto celeiro de normas encontramos ainda um elenco de punições variadas e responsabilização em diversos níveis, o que, sem risco, podemos afirmar que o tema, de fato, preocupa o legislador nacional.


4 – Dos Crimes de Responsabilidade

Citando Rudolf Von Ihering, e baseado neste, Machado (1987, p. 58) ensina que crime é  "o ato que ofende ou ameaça um bem jurídico tutelado pela lei penal". Assim, entende o autor que neste particular é imprópria a terminologia adotada pela Lei 1.079/50 ao definir os crimes de responsabilidade, haja vista o elenco de condutas ali tipificadas não encontra similitude na Lei Penal, restando à norma apenas o arrolamento de infrações de natureza política (art. 4º.):

Art. 4º São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra:

        I - A existência da União:

        II - O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados;

        III - O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:

        IV - A segurança interna do país:

        V - A probidade na administração;

        VI - A lei orçamentária;

        VII - A guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos;

        VIII - O cumprimento das decisões judiciárias (Constituição, artigo 89).

É do Supremo Tribunal Federal a conceituação de que as sanções da Lei de Crimes de Responsabilidade não são de natureza penal, nas sim político-administrativas, como se colhe da ementa abaixo:

HC 70055 AgR / DF - DISTRITO FEDERAL

Data 04/03/1993 DJ 16/04/1993

EMENTA: HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO CONTRA DECISÃO PROFERIDA PELO SENADO FEDERAL EM PROCESSO DE IMPEACHMENT. PENA DE INABILITAÇÃO, POR OITO ANOS, PARA O EXERCÍCIO DE FUNÇÃO PÚBLICA. E inidonea a via do habeas corpus para defesa de direitos desvinculados da liberdade de locomoção, como e o caso do processo de impeachment pela pratica de crime de responsabilidade, que configura sanção de índole político-administrativa, não pondo em risco a liberdade de ir, vir e permanecer do Presidente da República. Agravo regimental improvido. 

Não restando dúvida, portanto, quanto a natureza política do processo de responsabilização do agente, não somente pelo foro onde se processa a ação – no caso o órgão legislativo – como também aos efeitos da condenação, que não afeta a nenhum outro bem jurídico posto sob a tutela do direito penal, mas alcança o cumprimento do mandato eletivo – art. 2º.  da Lei 1.079/50 – outorgado em processo puramente eleitoral e a suspensão temporária de direito políticos:

Art. 2º Os crimes definidos nesta lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo, com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, imposta pelo Senado Federal nos processos contra o Presidente da República ou Ministros de Estado, contra os Ministros do Supremo Tribunal Federal ou contra o Procurador Geral da República.

Restrita a um grupo superior de agentes (Presidente da República; Vice-Presidente; Ministros de Estado; Ministros do Supremo Tribunal Federal; Procurador Geral da República; Governadores; Secretários de Estado; Comandantes da Marinha, Exército e da Aeronáutica), a Lei dos Crimes de Responsabilidade estendeu seu alcance, como vimos, à tutela da probidade adminisrativa e da guarda dos dinheiros públicos. Todavia, ao tipificar as condutas inerentes, limitou-se a reproduzir os atos de rotina administrativa, sem perseguir o conceito de honestidade ou moral administrativa, deixando a ilação para o item 7 do artigo 9º da Lei 1.079/50, transcrito abaixo, respeitada a grafia da redação original:

Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:

        1 - omitir ou retardar dolosamente a publicação das leis e resoluções do Poder Legislativo ou dos atos do Poder Executivo;

        2 - não prestar ao Congresso Nacional dentro de sessenta dias após a abertura da sessão legislativa, as contas relativas ao exercício anterior;

        3 - não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição;

        4 - expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição;

        5 - infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais;

        6 - Usar de violência ou ameaça contra funcionário público para coagí-lo a proceder ilegalmente, bem como utilizar-se de suborno ou de qualquer outra forma de corrupção para o mesmo fim;

        7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.

Igualmente, na tutela dos dinheiros públicos a Lei dos Crimes de Responsabilidade limitou-se aos atos de administração rotineira e burocrática típica do exercício do múnus público.

 Art. 11. São crimes contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos:

        1 - ordenar despesas não autorizadas por lei ou sem observância das prescrições legais relativas às mesmas;

        2 - Abrir crédito sem fundamento em lei ou sem as formalidades legais;

        3 - Contrair empréstimo, emitir moeda corrente ou apólices, ou efetuar operação de crédito sem autorização legal;

        4 - alienar imóveis nacionais ou empenhar rendas públicas sem autorização legal;

        5 - negligenciar a arrecadação das rendas impostos e taxas, bem como a conservação do patrimônio nacional.

Evidentemente a definição adota pela Lei 1.079/50 atendeu ao conceito de infração de natureza político-administrativa, terminologia esta adotada pelo Decreto Lei 201/67, limitando a conduta e o foro de julgamento às instâncias administrativas, cujas conseqüências não ultrapassam tal esfera.

Lado outro, o Decreto Lei 201/67 com primorosa redação definiu com clareza os crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipais, de julgamento pelo Poder Legislativo, deixando ao Judiciário o julgamento das condutas delituosas de natureza criminal propriamente dita, cujas sanções possam ir além da perda do cargo e da suspensão dos direitos políticos.

4.1. Dos Crimes de Responsabilidade dos Prefeitos Municipais

Não tendo a lei federal 1.079/50 alcançado os gestores municipais, a definição dos crimes de responsabilidade dos prefeitos se deu pelo Decreto-Lei 201/67 de 27 de fevereiro de 1967.  Apropriadamente, o instrumento adotado pelo Regime de Exceção, indo além dos seus propósitos políticos da época, distribuiu as condutas tipificadas em dois artigos. De maneira diferenciada foram tratados os Crimes de Responsabilidade (de conteúdo criminal inclusive no foro de apreciação e na sanção imposta) e as Infrações de Natureza Político-Administrativas, cuja tipificação é notadamente funcional, com foro legislativo e punição de natureza política.

Nos vinte e três incisos do artigo 1º. do Decreto-Lei 201/67, quinze apresentados na redação original e outros oito acrescentados pela Lei 10.028/2000, limitou o legislador a tipificar condutas que têm sujeito ativo pré-determinado (prefeitos municipais), apenados com reclusão (§ 1º. do art. 1º.,) e  a sanção político-administrativa como conseqüência (§ 2º. do art. 1º), definindo a  tramitação processual que tem por base o rito do Código de Processo Penal (art. 2º.). Portanto, decididamente, o que dispõe do Decreto Lei 201/67 são crimes em espécie, apenados com reclusão, como vemos no excerto abaixo, transcrito com a grafia original:

Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:

(...)

§1º Os crimes definidos nêste artigo são de ação pública, punidos os dos itens I e II, com a pena de reclusão, de dois a doze anos, e os demais, com a pena de detenção, de três meses a três anos.

§ 2º A condenação definitiva em qualquer dos crimes definidos neste artigo, acarreta a perda de cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, sem prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular.

Art. 2º O processo dos crimes definidos no artigo anterior é o comum do juízo singular, estabelecido pelo Código de Processo Penal, com as seguintes modificações:

Há que se ponderar que, ao adotar a definição de “crime” apenado com reclusão e rito semelhante ao Processo Penal, dispôs o legislador que a competência originária de instrução e julgamento se mantivesse nas comarcas, ao juízo singular. Não obstante,  a recepção do normativo pela Constituição de 1988, por força do inciso X do artigo 29 daquela Carta, que determina o julgamento do prefeito perante o Tribunal de Justiça,,  modificou a competência originária para tal procedimento.

Embora lacônico o dispositivo do artigo 29, X da CF/88, o art. 106, I, b da Constituição Mineira, transcrito abaixo com nossos grifos, não deixa dúvida quanto ao foro de julgamento dos crimes comuns e de responsabilidade impróprios (que se aproximam do conceito de crimes comuns, com sujeito ativo pré-definido), elencados no artigo 1º. do Decreto-Lei 201/67, perante o Órgão Judiciário Colegiado.

Art. 106 – Compete ao Tribunal de Justiça, além das atribuições previstas nesta Constituição:

I – processar e julgar originariamente, ressalvada a competência das justiças especializadas:

a) o Vice-Governador do Estado, o Deputado Estadual, o Advogado-Geral do Estado e o Procurador-Geral de Justiça, nos crimes comuns;

b) o Secretário de Estado, ressalvado o disposto no § 2º do art. 93, os Juízes do Tribunal de Justiça Militar, os Juízes de Direito, os membros do Ministério Público, o Comandante-Geral da Polícia Militar e o do Corpo de Bombeiros Militar, o Chefe da Polícia Civil e os Prefeitos Municipais, nos crimes comuns e nos de responsabilidade;

Assim dispondo, é possível a ocorrência de um feito que possa discutir a criminalização da conduta com arresto no artigo 1º. Decreto-Lei 201/67, a tramitar perante o Tribunal de Justiça em rito de Processo Criminal de Competência Originária, enquanto se discute a mesma prática delituosa como ato de improbidade administrativa, com escora na Lei 8.429/92, via Ação Civil Pública, perante o juiz de primeiro grau, sem que isso possa configurar bis in idem, e em ambos, apenar o infrator, por força textual do § 4º. do artigo 37 da Constituição Federal (transcrito com grifo nosso) que admite a espécie.

§ 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

O impedimento político, em decorrência e como corolário da condenação criminal comum (art. 15, III da Constituição Federal), ou advindo da Lei de Improbidade Administrativa como dispositivo da decisão, agrava-se nas disposições da Lei Complementar 64/90 – art. 1º. alínea “e”, que a determinou pelo prazo de 3 anos (redação original), alterado para oito anos pela Lei Complementar 135/2010 (Lei da Ficha Limpa),

Merece igual destaque no § 2º do art. 1º. do Decreto Lei 201/67 que dispunha que a condenação definitiva em qualquer dos crimes definidos naquele dispositivo, acarretaria a perda de cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, sem prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou particular.. Neste particular ( o impedimento político) a disposição foi derrogada por força da lei nova (LC 135/2010)  que agravou o resultado indireto da condenação, elevando o prazo de hibernação política para oito anos!

É de se notar, como já realçado, que o Decreto-Lei 201/67 discerniu de maneira pedagógica as infrações de natureza político-administrativa (julgamento pela Câmara de Vereadores) daquelas condutas dolosas de dilapidar ou malbaratar o erário, crimes propriamente ditos, a serem julgados pelo Tribunal de Justiça.

A referência aos atos tipificados como de responsabilidade funcional, adotou o Decreto Lei 201/67 a terminologia adequada, dispondo nos dez incisos do artigo 4º. e nos três incisos do artigo 7º., atos omissivos e comissivos identificadas como infrações de natureza político-administrativa, reservando-lhes o foro legislativo e a punição de natureza política (art. 4º. caput).

Art. 4º São infrações político-administrativas dos Prefeitos Municipais sujeitas ao julgamento pela Câmara dos Vereadores e sancionadas com a cassação do mandato.

Há que se ter em mente, todavia, que as infrações descritas no Decreto Lei 201/67, quer como crime de responsabilidade, quer no rol das infrações político administrativas, comportam enquadramento como ato de improbidade administrativa. E pela pluralidade de foro, admitir-se-ia, em tese, múltiplas punições, de naturezas diversas, sem configurar  bis in idem.


5 – Dos Crimes Comuns dos Agentes Municipais

A terminologia jurídica adotada para diferenciar os ditos “crimes comuns” previstos na lei penal, daqueles outros crimes prescritos em leis especiais, não torna esses últimos menos danosos à sociedade do que aqueles outros.  Os chamados crimes de responsabilidade, aos quais já nos reportamos, popularmente conhecidos como crimes de colarinho branco, açambarcam no entendimento popular, quaisquer condutas inadequadas dos mandatários, seja qual for o conceito jurídico que a legislação adote.           

Nosso propósito neste estudo não se estende ao amplo elenco dos crimes ordinários previstos no Código Penal, atos antijurídicos que possam ter implicação pública, na eventualidade de virem a ser praticados no exercício do mandato. Interessa-nos, neste recorte, deter a estudar tão somente uma parte das disposições do título XI do Código Penal, que se reporta aos crimes contra a administração pública, praticados por seus agentes.

O Código Penal distribuiu as condutas típicas em cinco espécies:

  1. Crimes cometidos por Funcionários Públicos contra a Administração Pública em geral: Capítulo I –   Artigos 312 a 327 do CPB
  2. Crimes cometidos por particulares contra a Administração Pública: Capítulo II – Artigos  328 a 337 do CPB
  3. Crimes cometidos por particulares contra a Administração Pública estrangeira: Capítulo II – A: 337,  B, C  e D  – Lei 10.467, de 11/06/02.
  4. Crimes cometidos contra a Administração da Justiça: Capítulo III – 338 a 359 do CPB
  5. Crimes cometidos contra as Finanças Públicas: Capítulo IV – 359, A,B,C,D,E,F,G,H – Lei 10.028/2000

Obviamente que no primeiro caso, as condutas previstas nos artigos 312 a 327 têm, obrigatoriamente, como sujeito ativo o agente público, sob pena de desclassificação para outro tipo de delito, rationae persona. São, pois, crimes essencialmente funcionais, cujo resultado ou modus operandi assemelham-se às condutas elencadas no artigo 1º. do Decreto-Lei 2001/67 já discutido.

Ocorre que o DL 201/67 cuida somente das condutas impingidas a prefeitos no exercício do cargo, enquanto o elenco do Código Penal notadamente alcança a todos, indistintamente, que estejam ocupando cargo ou função pública – art. 327 do Código Penal.

À guisa de exemplo, a conduta descrita no artigo 1º. inciso I,  do Decreto-Lei 201/67 (apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio) corresponde à definição de peculato – art. 312 do Código Penal (apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio). E a isso, restou atento o legislador, a ponto de estabelecer a mesma pena: reclusão, de dois a doze anos.

Na mesma senda o inciso XI  do DL 201/67 (adquirir bens, ou realizar serviços e obras, sem concorrência ou coleta de preços, nos casos exigidos em lei) corresponde ao tipo penal do artigo 89 da Lei 8.666/93 (dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou a inexigibilidade), nesse caso,  apenados de maneira diversa.

Pelo princípio do non bis in idem é certo afirmar que não se tramitará ações penais diversas com o propósito de punir a mesma conduta, embora possa estar o ato rechaçado inserto em mais de um ordenamento, como o caso do artigo 89 da Lei de Licitações e o Inciso XI do Decreto-Lei 201/67, em princípio pelo caráter genérico da Lei 8.666/93 e por reportar-se a agente previamente nominado no Decreto-Lei 201/67. Contudo, admite-se a sanção em foro cível pela Lei de Improbidade Administrativa.  

Com relação aos crimes contra as finanças públicas, insertos no Código Penal por força da Lei 10.028/2000, esta, por sua vez, é derivação direta do artigo 73 da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000), que igualmente determinou a inclusão na Lei de Crimes de Responsabilidade (Lei 1.079/50), no Decreto Lei 201/67 e na Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), dos atos  e infrações que pretendia coibir.

Art. 73. As infrações dos dispositivos desta Lei Complementar serão punidas segundo o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); a Lei no 1.079, de 10 de abril de 1950; o Decreto-Lei no 201, de 27 de fevereiro de 1967; a Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992; e demais normas da legislação pertinente.

Tais condutas, apenadas de maneira diferenciada e em esfera diversas de direito, têm como sujeito ativo, pela especificidade  do ato delituoso, o detentor de mandato ou ocupante de cargo público com poder de decisão, o que vai além do conceito de funcionário público esboçado no art. 327 do Código Penal, sendo impossível a sua prática por servidor público de staff inferior. O zelo pela definição em normas diversas reafirma a possibilidade de  múltiplas sanções.


6 – Dos Atos de Improbidade Administrativa

A probidade administrativa comporta conceito abstrato, além do rigor burocrático do controle formal dos atos administrativos, volvendo-se ao princípio da moralidade, à ética. Preceitos mais filosóficos que positivos.

A esse entendimento, Di Pietro (2005, p. 709) assevera que:

...quando se exige probidade ou moralidade administrativa, isso significa que não basta a legalidade formal, restrita, da atuação administrativa, com observância da lei; é preciso também a observância de princípios éticos, de lealdade, de boa fé, de regras que assegurem a boa administração e a disciplina interna na Administração Pública.

A comumente denominada Lei de Improbidade Administrativa (LIA), popularizada nos meios jurídicos administrativos, traz como ementa:

Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências.

Em nosso ponto de vista entendemos que não foi feliz o legislador pátrio na redação da ementa do texto legal, posto que a norma, anteriormente prevista no artigo 37, § 4º da Constituição, previa a edição de um instrumento a disciplinar as sanções por atos de improbidade administrativa, já constitucionalmente dispostas:

§ 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

A desprivilegiada ementa da Lei de Improbidade Administrativa, embora remeta a apenas um dos seus dispositivos (art. 9º.), não lhe tira o valor e aplicabilidade, todavia. Não obstante, o advento desse imperativo legal acresceu o elenco das normas ordenadoras da proteção aos interesses coletivos e de defesa da administração reta, a se juntar a outros já existentes, em parte de maneira aditiva, justapositiva e, até mesmo, conflitiva.

Trouxe a norma no seu bojo principal, para o universo deontológico da gestão proba e responsável, três condutas típicas e um elenco de punições,  como dito, a aditar a outras já existentes. Tal somatório de sanções se dá por força do disposto no  § 4º do art. 37 da Constituição retro transcrito que, em seu final, declara que as punições por atos de improbidade não ilidem aquelas cabíveis em ação penal autônoma. Entenda-se, que tenha por motivação o mesmo ato, desde que possa ser entendido também como crime, na acepção popular do termo, rechaçando, textualmente eventual entendimento de non bis in idem a beneficiar o réu.

Disso se define a natureza jurídica da ação por ato de improbidade administrativa, circunscrita que está à esfera cível, embora tenha nitidamente caráter punitivo, com nuances de sanção de natureza penal, como por exemplo, a perda da função pública, inicialmente prevista no art. 92, I do Código Penal.

Inicialmente, sua natureza cível afasta a competência originária dos órgãos colegiados para julgamento, na forma do art. 29, X da Constituição Federal, muito embora tal dispositivo constitucional não tenha textualmente restringido o foro privilegiado apenas à ação penal.  

O Ministro Gilmar Mendes, em seu voto na Reclamação 2138/DF que tramitou perante o Supremo Tribunal Federal (disponível no ícone se jurisprudência da página oficial do STF na rede mundial de computadores – www.stf.jus.br)   assim discorreu:

...”a simples possibilidade de suspensão de direitos políticos ou a perda de função pública, isoladamente consideradas, seria suficiente para demonstrar (...) o forte conteúdo penal, com incontestáveis aspectos políticos” da ação de improbidade. Nesse ponto, seguindo a doutrina, observou-se que “a sentença condenatória proferida nessa peculiar “ação civil” é dotada de efeitos que, em alguns aspectos, superam aqueles atribuídos à sentença penal condenatória,” sobretudo na perspectiva do equilíbrio jurídico-institucional. Tal observação, registrou-se, daria razão àqueles que entendem que, sob a roupagem da ação civil de improbidade, o legislador acabou por elencar, na Lei 8.429/92, uma série de delitos que, teoricamente, seriam crimes de responsabilidade e não crimes comuns.

Lembrou-se, também “que muitos dos ilícitos descritos na Lei de Improbidade Administrativa configuram, igualmente, ilícitos penais, que podem dar ensejo à perda do cargo ou da função pública, como efeito da condenação, como fica evidenciado pelo simples confronto entre o elenco de “atos de improbidade”, constante do art. 9º. da Lei 8.249/92, com os delitos contra a administração”. “Tal coincidência”, afirmou-se, “(...) evidenciaria a possibilidade de  incongruências entre decisões na esfera criminal e na “ação civil” com sérias conseqüências para todo o sistema jurídico.”

Vê-se que a similitude dos conceitos entre crime de responsabilidade e ato de improbidade administrativa colocou na berlinda o novel instituto, sobrepondo ao conceito de improbidade aquele de crime de responsabilidade adotado pela Lei 1.079/50 e pelo Decreto Lei 201/67, dependendo da forma de interpretação.

Evidentemente a Reclamação 2.138/DF, consolidou a posição do Supremo Tribunal Federal quanto à prerrogativa de foro das autoridades mencionadas no artigo 102 da Carta Constitucional e serve de norte às decisões posteriores, vinculando os juízes de primeiro grau e tribunais inferiores, aos seguintes pontos da decisão:

II.1. Improbidade Administrativa. Crimes de responsabilidade. Os atos de improbidade administrativa são tipificados como crime de responsabilidade na Lei 1.079/1950, delito de caráter político-administrativo.

II.2. Distinção entre os regimes de responsabilização político-administrativa. O sistema constitucional brasileiro distingue o regime de responsabilidade dos agentes políticos dos demais agentes públicos. A Constituição não admite a concorrência entre dois regimes de responsabilidade político-administrativa para os agentes políticos: o previsto no artigo 37, § 4º. (regulado pela lei 8.429/1992) e o regime fixado no art. 102, I, “c”, (disciplinado pela Lei 1.079/1950). Se a competência para processar e julgar a ação de improbidade (CF, art. 37, § 4º) pudesse abranger também a regime de responsabilidade especial, ter-se-ia uma interpretação ab-rogante do disposto no art. 102, I, “c”, da Constituição.

II.3. Regime Especial. Ministros de Estado. Os Ministros de Estado, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade (CF, art. 102, I, “c”’; Lei 1.079/1950), não se submetem ao modelo de competência previsto no regime comum da Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/1992).

II.4. Crimes de responsabilidade. Competência do Supremo Tribunal Federal. Compete exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar os delitos político-administrativos, na hipótese do art. 102, I, “c”, da Constituição. Somente o STF pode processar e julgar Ministro de Estado no caso de crime de responsabilidade e, assim, eventualmente, determinar a perda do cargo ou a suspensão de direitos políticos.

II.5. Ação de improbidade administrativa. Ministro de Estado que teve decretada a suspensão de seus direitos políticos pelo prazo de 8 anos e a perda da função pública por sentença do Juízo da 14ª. Vara da Justiça Federal – Seção Judiciária do Distrito Federal. Incompetência dos juízos de primeira instância para processar e julgar ação civil de improbidade administrativa ajuizada contra agente político que possui prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal, por crime de responsabilidade, conforme o art. 102, I, “c” da Constituição. 

Dito isso, em nosso juízo particular, entendemos que o STF deu interpretação conforme a Constituição à Lei de Improbidade Administrativa, concluindo que as suas disposições não alcançam as autoridades abarcadas pela Lei 1.079/50 (embora, genericamente, o artigo 2º. da Lei 8.429/92 não faça exceção a qualquer agente político); o que suprime também a possibilidade de tramitação de ação judicial por ato de improbidade administrativa contra tais autoridades nos tribunais inferiores. Mas não o fez para as autoridades públicas municipais (descritas no Decreto-Lei 201/67) que continuam sujeitas as sanções políticas, pela infração que não possa ser considerada crime (julgamento pela Casa Legislativa) e à sanção civil-administrativa pela Justiça Comum (com base na Lei 8.429/92), além da ação penal cabível, se for o caso. Triplo foro punitivo, portanto.

Lembramos ainda que além do foro por prerrogativa do cargo, o processo penal contra as autoridades políticas dos Estados e da União carece de autorização legislativa para instauração, o que torna vulnerável a autoridade municipal que não goza desse privilégio.

Nossa discussão, no entanto, circunda outro vértice do mesmo prisma, a saber: a tipificação puramente criminal, de conduta elencada no Código Penal, que resulta, de per si, em ato de improbidade administrativa, ante a possibilidade de vir a ser punida pelas esferas penal e cível (pela diversidade de foro), resultando daí (de ambas as condenações), inaptidão para exercício de cargo público em decorrência da chamada Lei da Ficha Limpa.

Como dito, a Lei de Improbidade Administrativa elencou as condutas consideradas atos de improbidade em três artigos: enriquecimento ilícito – art. 9º.; lesão ou prejuízo ao erário – art. 10; atos que atentam contra os princípios gerais da administração – art. 11.

Tomamos, por exemplo, três das condutas descritas no artigo 9º., a descrever enriquecimento ilícito, com aquela prevista no Código Penal a tipificar o crime de Corrupção Passiva:

        I - receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público;   

      II - perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem móvel ou imóvel, ou a contratação de serviços pelas entidades referidas no art. 1° por preço superior ao valor de mercado;

        III - perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a alienação, permuta ou locação de bem público ou o fornecimento de serviço por ente estatal por preço inferior ao valor de mercado;

A exemplo do que prescreve a Lei Penal:

Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

Estamos diante de uma única ação, capaz de traduzir, no âmbito da tutela legal dos interesses da administração pública, duas condutas típicas, passíveis de punições distintas. Uma por improbidade (cível/administrativa – art. 9º da Lei 8.429/92), outra por crime comum (art. 317 do Código Penal).

Em juízo reverso, somos tendentes a acreditar também que a prática de crime comum, por de consolidar em uma prática antijurídica, qualquer que seja a conduta, fere os Princípios Gerais da Administração, especialmente o da moralidade. Desta feita, incorre o agente na conduta do artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa, avocando para si as iras da norma específica, além da ação penal.

Tal entendimento parece passivo, quando confrontamos a lei penal e a Lei de Improbidade Administrativa, por força do próprio texto legal –  art. 12 caput., aqui transcrito com grifo nosso:

Art. 12.  Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato:

A celeuma se instala quando se interpreta as disposições da Lei de Improbidade diante das prescrições do Decreto-Lei 201/67, depois do posicionamento adotado pelo STF quando do julgamento da Reclamação 2.138/DF, quanto aos referidos crimes de responsabilidade.

A Ministra Eliana Calmon ao relatar o Recurso Especial Nº 1.034.511 – CE (2008⁄0040285-0) –  DJe: 22/09/2009, ensina que:

No caso da Rcl. 2.138, o STF entendeu ser exclusivamente competente para processar e julgar Ministro de Estado, em razão do foro por prerrogativa de função.

Segundo esse precedente, apenas as autoridades com foro por prerrogativa de função para o processo e julgamento por crime de responsabilidade, previstos na Constituição Federal, é que não estão sujeitas a julgamento também pela justiça civil comum por prática de improbidade administrativa.

Contudo, não foi para todos os agentes políticos que a Constituição Federal previu foro especial, por prerrogativa de função, para julgamento de crime de responsabilidade.

(...)

Mas, qual o alcance da LIA? Quem se submete a esse Código de Conduta? A interpretação dos seus arts. 1º, 2º e 3º permite afirmar que o legislador adotou conceito de grande abrangência no tocante à qualificação de agentes públicos submetidos a referida legislação, a fim de incluir na sua esfera de responsabilidade todos os agentes públicos, servidores ou não, que incorram em ato de improbidade administrativa.

Nesse diapasão, os agentes políticos, conforme posição doutrinária dominante, estariam incluídos no regime da Lei 8.429⁄1992.

Assim, no campo dos crimes de responsabilidade dos agentes municipais, cuja competência de julgamento é do Poder Judiciário – art. 1º. do DL 201/67 – os incisos I e II, tomados aqui como exemplo, tipificam, em tese, as condutas do art. 10 da LIA:

Decreto-Lei 201/67 – art. 1º.:

I - apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio;

Il - utilizar-se, indevidamente, em proveito próprio ou alheio, de bens, rendas ou serviços públicos;

Lei de Improbidade Administrativa:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:

Ou ainda, quando tomamos os ilícitos quanto à lisura dos processos licitatórios, notadamente os artigos 89  e 90 da Lei de Licitações:

Art. 89.  Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único.  Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.

Art. 90.  Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação:

Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Traz conteúdo semelhante ao dispositivo do art. 10 da LIA:

  VIII - frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente;

Nestes casos, que tomamos apenas como exemplos, já que o elenco de infrações previsto na Lei de Improbidade Administrativa não se esgota numerus clausus,  o entendimento de que há possibilidade de múltiplas penalidades a serem impostas em esferas de responsabilidade distintas, quando a conduta puder ser tipificada em outros instrumentos, tem merecido não só a atenção da doutrina como enfrentamento pelo Judiciário.

Em um raciocínio raso podemos dizer que todo o elenco de crimes comuns, ainda que fora do título relativo a tutela penal da administração pública no Código Penal, são, em primeira vista, atos de improbidade administrativa. O mesmo podemos dizer das condutas elencadas tanto na Lei 1.079/50 quanto no Decreto-Lei 201/67.  A recíproca nem sempre é verdadeira.

Em decisão que nos serve de estudo - Recurso Especial Nº 1.034.511 - CE (2008/0040285-0) – a Ministra Eliana Calmon entende pertinente e possível a cumulação de sanções – do Decreto-Lei 201/67, compatíveis com a Lei Penal com as da Lei de Improbidade Administrativa. Mutatis mutandis, torna-se possível cumular as iras do art. 12 da Lei 8429/92 com as sanções impostas pelo Legislativo ao julgar as infrações do art. 4º. do Decreto-Lei 201/67, ou pelo Judiciário quando, na esfera penal, pune os crimes específicos da Lei de Licitações, por exemplo.

Assim preleciona a Ministra Eliana Calmon no mencionado julgado:

O caput do art. 12 dispõe que as penas da LIA são aplicadas independentemente das sanções penais, civis e administrativas, dando a impressão de que a natureza  das sanções da LIA não seria penal, civil ou administrativa. Todavia, a Lei 8.429⁄92 está assim redigida não porque seja de natureza diversa das áreas retrocitadas, mas porque realça a possibilidade de cumulação das suas sanções com as constantes na área civil, penal ou administrativa, evitando a alegação de que as penas da LIA ou dessas áreas se excluem mutuamente.

A responsabilidade pela improbidade administrativa não se confunde com a responsabilidade pela prática do ilícito penal. Diversamente, ela é um amálgama de natureza cível e administrativa. Podemos ainda dizer – com mais propriedade – que a natureza predominante da LIA é civil, pois seu caráter constitucional mais relevante (ou preponderante) é o ressarcitório, motivo pelo qual o ressarcimento do dano contra o Erário é imprescritível (art. 37, § 5º, da CF⁄88).

Especificamente nas questões afetas ao Decreto-Lei 201/67, no que se aplica ao julgamento de natureza cível (leia-se Lei 8.429/92) das infrações  cometidas pelos gestores municipais, tanto no que se aplica à punição de natureza penal (art. 1º.) quanto a sanção de natureza política (art. 4º.), dedicou a Julgadora a tecer comentários específicos,  esclarecendo:

1.4. Decreto-Lei 201⁄1967 e compatibilidade com a Lei 8.429⁄1992

No caso dos prefeitos e vereadores, essa legislação federal refere-se ao Decreto-Lei 201⁄1967, que, em seus arts. 4º e 7º, preceitua a competência da Câmara de Vereadores para processá-los e julgá-los pela prática de crimes de responsabilidade, sem ressalvar quanto ao julgamento desses mesmos fatos pela justiça comum.

Dessa forma, entendo que não há qualquer antinomia entre o Decreto-Lei 201⁄1967 e a Lei 8.429⁄1992, pois a primeira impõe ao prefeito e vereadores um julgamento político, enquanto a segunda submete-os ao julgamento pela via judicial, pela prática do mesmo fato.

É essa a conclusão advinda da regra hermenêutica prevista no art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei 4.657⁄1942 (Lei de Introdução ao Código Civil):

Art. 2o  (...)

§ 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. (grifei).

A Lei 8.429⁄1992 que, diga-se de passagem, é da mesma hierarquia do Decreto-Lei 201⁄1967, dispondo sobre a mesma matéria, estabeleceu outras normas a par das já existentes, sem contrariá-las, apenas ressalvando que, além do processo político pelo Parlamento (Câmara Municipal), os detentores de mandato eletivo, in casu, prefeito e vereadores, também serão julgados pela justiça comum cível pelo mesmo fato.

Esclareço que o Supremo Tribunal tem jurisprudência pacífica de que os crimes de responsabilidade (infrações político-administrativas) dos Prefeitos são os tipificados no art. 4º do Decreto-Lei 201⁄1967, sujeitos ao julgamento pela Câmara Municipal. Já as demais infrações (art. 1º) serão julgadas pela justiça comum, na esfera penal.

(...)

Assim, fica evidente que esse diploma legal previu o processamento do prefeito tanto na esfera política (Câmara dos Vereadores) como na esfera penal (Justiça comum), mas não fez qualquer ressalva quanto ao julgamento desses mesmos fatos pela justiça cível.

Donde se vê que o cenário propõe um rigor maior às autoridades inferiores, que por ausência de prerrogativa constitucional de foro nos crimes de responsabilidade evocam uma espécie de bis in idem nas punições por atos contrários a retidão e probidade da administração. Há possibilidade de se acumular as penalidades por atos tipificados no Código Penal ou no Decreto Lei 201/67 com aquelas previstas na Lei de Improbidade, que tramitam em esferas distintas de responsabilização.


7 – Das Sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa

Afastando da dupla esfera punitiva (penal e administrativa) que discutimos anteriormente, consideramos ainda que as punições previstas na Lei 8.429/92 para o ato de improbidade, independentemente das sanções penais, civis e administrativas admitidas na legislação específica (art. 12) se situam em um elenco de seis modalidades:

I - perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio;

II - ressarcimento integral do dano, quando houver,

III - perda da função pública

IV -  suspensão dos direitos políticos de 3 a 10 anos

V -  pagamento de multa civil

VI - proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios e 3 a 10 anos

Não obstante, a própria lei prevê a possibilidade de não cumulatividade das sanções que podem ser aplicadas, a critério do juiz, isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato, isso é, discricionariedade do magistrado dentro dos autos. Assim, cabe ao sentenciante, ao fixar as sanções, sopesar a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente. Há que se levar em conta que, em feitos diversos, se admite condenações diversas.

A Lei de improbidade administrativa não estabelece a aplicação cumulativa das sanções, cabendo ao magistrado, na análise de cada caso, aplicar a mais adequada, em conformidade com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. (AgRg no Ag 1.261.659⁄TO, Rel. Ministro  HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em  25⁄05⁄2010, DJe 07⁄06⁄2010)

Somando a gravidade das sanções, especificamente a suspensão dos direitos políticos, que corresponde à pena de morte civil a nosso sentir, ao julgamento perante instância colegiada ou transito em julgado da decisão, somar-se-á `as restrições impostas o acréscimo previsto na chamada Lei da Ficha Limpa, já que ao decidir pela constitucionalidade da Lei Complementar 135/2010, o rigor do seu art. 2º., alínea “l”, aplicado quando for o caso, torna ainda mais severa a sanção por ato de improbidade:  

l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena;

Tal é a severidade da exprobação que o Superior Tribunal de Justiça, órgão máximo de interpretação infraconstitucional, argumentando sobre o peso das decisões nos processo de improbidade administrativa, pondera sobre o rigor das punições previstas na LIA:  

A sanção de suspensão dos direitos políticos é a mais drástica das penalidades estabelecidas no art. 12, da Lei n. 8.429⁄92, devendo ser aplicada tão somente em casos graves. Precedentes: REsp 1055644⁄GO, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 21.5.2009, DJe 1.6.2009;REsp 1097757⁄RS, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 1.9.2009, DJe 18.9.2009; REsp 875425⁄RJ, Rel. Min. Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 9.12.2008, DJe 11.2.2009.

Entretanto, nem todo ato de improbidade administrativa pode ser tipificado como crime, ou deva ser apenado com suspensão de direitos políticos, a despeito do inciso V do art. 15 da Constituição Federal. Mas é conduta passível de punição cível, política e administrativa de outras espécies.

 Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2005 p. 726/728)  argumenta que,

A rigor, qualquer violação aos princípios da legalidade, da razoabilidade, da moralidade, do interesse público, da eficiência, da motivação, da publicidade, da impessoalidade e de qualquer outro imposto à Administração Pública pode constituir ato de improbidade administrativa. No entanto, há que se perquirir a intenção do agente, para verificar se houve dolo ou culpa, pois, de outro modo, não ocorrerá o ilícito previsto na lei, como se verá no item subseqüente.

(...)

O enquadramento na lei de improbidade exige culpa ou dolo por parte do sujeito ativo. Mesmo quando algum ato ilegal seja praticado, é preciso verificar se houve culpa ou dolo, se houve um mínimo de má-fé que revele realmente a presença de um comportamento desonesto. A quantidade de leis, decretos, medidas provisórias, regulamentos, portarias torna praticamente impossível a aplicação do velho princípio de que todos conhecem a lei. Além do mais, algumas normas admitem diferentes interpretações e são aplicadas por servidores públicos estranhos à área jurídica. Por isso mesmo, a aplicação da lei de improbidade exige bom-senso, pesquisa da intenção do agente, sob pena de sobrecarregar inutilmente o Judiciário com questões irrelevantes, que podem ser adequadamente resolvidas na própria esfera administrativa. A própria severidade das sanções previstas na Constituição está a demonstrar que o objetivo foi o de punir infrações que tenham o mínimo de gravidade, por apresentarem conseqüências danosas para o patrimônio público (em sentido amplo), ou propiciarem benefícios indevidos para o agente ou para terceiros. A aplicação das medidas previstas na lei exige observância do princípio da razoabilidade, sob o seu aspecto de proporcionalidade entre meios e fins.

 A proliferação das ações populares e o protagonismo cada vez maior do Ministério Público em ações civis por ato de improbidade administrativa, propostas algumas vezes sem o prudencial descenso à conduta típica e ao dolo, ou sem avaliar as condições técnicas do órgão administrado, aliado ao rigor nas sanções que a lei produz, sacia o clamor popular, que demonstra certa intolerância aos atos administrativos perniciosos, mas, por outro lado, pode afastar do cenário político gestores competentes e comprometidos, que dado a um descuido qualquer podem se ver apenados por improbidade e alijados do processo político por longo período.


8. Considerações Finais:

Já há muito a administração pública profissionalizou-se, pelo grande emaranhado de regras que o sistema de controle lhe impõe. O ato de gestão pública está a exigir dos administradores, a cada dia, maior conhecimento, transparência, lisura e comprometimento. Contudo, o processo de escolha do administrador público, em homenagem ao conceito de Democracia, é o sufrágio popular, que nem sempre escolhe o mais preparado. Assim, vivemos na Administração Pública uma espécie de mito de Prometeu – o saber dos técnicos aliado ao fogo dos deuses que é o entusiasmo do carisma político.

As dificuldades estruturais e técnicas dos órgãos públicos, especialmente nos grotões e pequenos municípios deixam, por vezes, desamparados seus administradores. Muitos sem opção de governo sacrificam o princípio da legalidade pelo princípio da eficiência. E, embora não sirva de defesa ao mau administrador, a própria Lei de Responsabilidade Fiscal reconhece tal deficiência, ao apresentar no art. 64 da LC 101/2000,  a quimera de que a União prestará assistência técnica e cooperação financeira aos Municípios para a modernização das respectivas administrações tributária, financeira, patrimonial e previdenciária, com vistas ao cumprimento das normas da Lei de Responsabilidade Fiscal.

O inflacionado emaranhado de normas punitivas em nada contribui para simplificação do ato de governar, ao contrário, provoca antinomias, insegurança jurídica e multiplicidade de processos judiciais, ampliando cada vez mais o rol de políticos penalizados ou indiciados, nem sempre por condutas que possam ser classificadas dolosas, prejudiciais, insanáveis ou irreparáveis.

Enfim, summum jus, summa injuria!

Amiúde cresce o número de processos desta natureza, que  sufoca o Poder Judiciário, onde a morosidade alia-se ao senso de impunidade e acaba por favorecer o gestor inescrupuloso ou mau caráter. Não se tem, pois, nesse horizonte de pura persecução punitiva, a formação de uma consciência cidadã para uma gestão proba. A ampla publicidade das condutas irregulares generaliza o conceito de desonestidade que se estende a todos os políticos. Com isso  aviva-se certo desprezo da população para com seus mandatários e, em decorrência, para com o serviço e os bens públicos.

O mesmo desprezo pela classe política leva a aversão ao processo eletivo, que se dá sem a devida análise ou cautela, acabando por perpetuar um vicioso círculo de perversidades.

A meu sentir, a ação preventiva, que se dá por meio do fortalecimento do Controle Social e da efetiva participação da comunidade no governo, pode, a um só tempo, dar a dimensão cidadã que a administração da coisa pública requer, enquanto conscientiza o cidadão de que a gestão pública é e deve ser compartilhada. Somos, em parte, responsáveis pela deficiência dos governos que elegemos quando dele não participamos efetivamente.


Referências Bibliográficas:

BRASIL, Constituição Federal de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm   acesso em 11.04.2014

BRASIL, Constituição Federal de 1824. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm acesso em 11.04.2014

BRASIL, Constituição Federal de 1891. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm acesso em 11.04.2014

BRASIL, Lei 12.846/2013. Disponível em http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12846.htm  acesso em 11.04.2014

BRASIL, Lei Complementar 135/2010. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp135.htm   acesso em 11.04.2014

BRASIL, Lei 10.028/2000. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L10028.htm   acesso em 11.04.2014

BRASIL, Lei Complementar 101/2000. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp101.htm   acesso em 11.04.2014

BRASIL, Lei 9.840/1999. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9840.htm   acesso em 11.04.2014

BRASIL, Lei 8.6666/1993. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8666cons.htm   acesso em 11.04.2014

BRASIL, Lei 8.429/1992. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8429.htm   acesso em 11.04.2014

BRASIL, Decreto-Lei 201/1967. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del0201.htm   acesso em 11.04.2014

BRASIL, Lei 1.079/1950. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L1079.htm   acesso em 11.04.2014

BRASIL, Decreto-Lei 2.848/1940. Código Penal. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm    acesso em 11.04.2014

COMPARATO, Fábio Konder. Ética – São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18ª. ed. São Paulo: Atlas, 2005.

MACHADO, Luiz Alberto. Direito Criminal: Parte Geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28 ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 9ª. ed., São Paulo: Editora Atlas, 2001.

PAZZAGLINI FILHO, Marino Pazzaglini; ROSA, Márcio Fernando Elias; JÚNIOR, Waldo Fazzo. Improbidade Administrativa: Aspectos Jurídicos da defesa do patrimônio Público. São Paulo: Atlas, 1999.

QUIRINO, Israel. O controle da administração pública. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3932, [7] abr. [2014]. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/27258>. Acesso em: 8 abr. 2014.ROSA, João Guimarães, Grande Sertão: Veredas. 3a edição, Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

http://www.stj.jus.br/SCON/  consulta feita em 25/03/2014

http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp consulta feita em 25/03/2014


Autor

  • Israel Quirino

    Advogado, professor de Direito Constitucional; Mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local. Especialista em Administração Pública. Escritor membro efetivo da Academia de Letras Ciências e Artes Brasil.

    Textos publicados pelo autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUIRINO, Israel. O rigor da punição dos crimes de responsabilidade e atos de improbidade administrativa para com os agentes municipais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3943, 18 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27683. Acesso em: 19 abr. 2024.