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A propriedade intelectual nas comunidades tradicionais e indígenas

A propriedade intelectual nas comunidades tradicionais e indígenas

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Será exposto neste texto uma situação efetivamente preocupante diante do contexto neoliberal de política e conseqüentemente de ideologia, o qual se insere a questão das comunidades tradicionais e indígenas, proprietários de um acervo valioso proveniente de sua cultura e de sua biodiversidade, cuja dominação pelos "civilizados" não encontra nenhum limite ético. Visto assim, é tarefa da teoria do direito, na perspectiva da antropologia jurídica, que foi base dessa pesquisa, intervir necessariamente, a fim de dirimir os interesses majoritários do sistema estatal, frente a aceitação da diferença indelével entre estas comunidades e os civilizados, por mais que façam parte de um mesmo mundo.


Propriedade Intelectual e Conhecimento Tradicionais[1]

Uma das reivindicações dos povos indígenas é o reconhecimento de seus direitos intelectuais coletivos. Esta situação confronta-se com a supremacia que a sociedade oficial outorga ao conhecimento lógico e científico frente a vigência e efetividade que outras formas de aproximação ao conhecimento apresentam. Um exemplo disso é o conjunto de saberes e conhecimentos que por séculos tem mantido e desenvolvido estes povos, dentro do contexto de suas vidas comunitárias.

Evidencia-se dessa forma, que não é inocente o desmerecimento que se dá a outras formas de aproximação da criação do conhecimento que sejam distintos dos lógico-racionais [ou, dos métodos cartesianos], muito pelo contrário, deles se têm beneficiado os poderes que se constituíram desde a colonização até nossos dias.

Atualmente, somos testemunhas de um acelerado processo de apropriação tanto da biodiversidade, que é parte da base material da riqueza intangível dos povos originários, como de seus conhecimentos, cujos beneficiários são as grandes empresas transnacionais que auferem descomunais lucros econômicos.

De forma exemplar a Constituição do Equador reconhece e protege o conhecimento ancestral coletivo, assim como o direito de povos indígenas à propriedade intelectual coletiva de seus conhecimentos tradicionais, seus valores e seu desenvolvimento. O estatuto constitucional, por sua vez, reconhece o pluralismo do conhecimento, possibilita o exercício de direitos sobre o conhecimento.

Este reconhecimento constitucional não se encontra contemplado no sistema nacional e internacional de propriedade industrial que ampara a produção individual e os lucros econômicos desta produção [posteriormente veremos especificamente esta situação no caso do Brasil]. No contexto nacional do Chile fala-se de direitos culturais ou folclóricos sem alcançar a identidade do conjunto de saberes indígenas como conhecimentos verdadeiros. Tampouco se tem desenvolvido a lei correspondente que normatize o exercício do direito da propriedade intelectual coletiva, no âmbito internacional, nem sequer esta possibilidade é considerada..

A legitimidade da propriedade industrial, seus resultados, assim como seus efeitos jurídicos, desde esta perspectiva: estão interditos. Como observa Gina Chávez: "Esta confrontación debe ser abordada com urgencia y es tarea de la teoría jurídica y la acción social dar algunas repuestas y buscar nuevos caminos."

Aborda-se aqui uma visão inicial do conflito que existe entre propriedade intelectual e conhecimentos coletivos, a partir da revisão de alguns temas como o conhecimento tradicional e a biotecnologia, a propriedade industrial como invasão ao direito de propriedade, o direito individual e o direito coletivo, o conhecimento científico x o conhecimento tradicional, e as bases jurídico-sociais da propriedade coletiva do conhecimento.

Há várias posturas relacionadas aos efeitos da tecnociencia e algumas críticas ao sistema de propriedade intelectual. Pretende-se, assim confrontar as posições oficiais e a evidência da realidade paralela.

As organizações indígenas, em mais de uma ocasião, têm se manifestado, que não se opõem ao desenvolvimento tecnológico nem a investigação para descobrimento de novas alternativas de sobrevivência para a humanidade, e sim, que esta respeite suas próprias formas de vida, sua diversidade cultural, o valor intrínseco dos conhecimentos e a cosmovisão indígena.

O reconhecimento dos direitos intelectuais coletivos e, de maneira particular, dos direitos da "propriedade" intelectual coletivos, na Constituição do Equador, estabelece um desafio a legislação chilena e também brasileira. A legislatura deve desenvolver normas e procedimentos apropriados e efetivos que garantam o exercício pleno destes direitos intelectuais tanto individuais como coletivos. O desafio é maior quando se estabelece que os direitos podem ser distintos e contraditórios em seus fins e objetivos.

Eis aqui a problemática, cuja questão principal em que se assenta esta tese é tão evidente em todos as comunidades indígenas das quais aqui se remete — o problema da compensação [que será discutida com maior detalhe a parte]: o regime de propriedade intelectual contempla a proteção da capacidade inventiva e as invenções que de maneira direta ou por encargo realiza uma pessoa ou um grupo de pessoas, e cujos resultados interessam à indústria e ao comércio. Esta regime se estabelece como resultado das demandas dos povos indígenas que reivindicam o reconhecimento e a proteção dos conhecimentos, invenções e práticas produzidas no contexto comunitário, histórico e cultural que lhes é particular. Estes conhecimentos representam uma valiosa informação acumulada e que tem produzido práticas, modelos e tecnologias distintas das aceitas pela "ciência oficial".

É neste contexto da problemática compensatória, que as populações indígenas rechaçam a apropriação e a arbitrariedade do conhecimento tradicional, que desde a alguns anos, vêm realizando as empresas multinacionais vinculadas à indústria farmacêutica, química e de alimentos fundamentalmente. Por que eles rechaçam? Por não admitirem como passível de apropriação o conhecimento intelectual.

Os direitos intelectuais coletivos respondem a um processo integral que envolve os conhecimentos, as invenções e as práticas específicas. Estes direitos estão intimamente relacionados com o âmbito material e cultural, nos quais se geram os conhecimento e, dos quais dependem, por exemplo os territórios e os recursos; ou as dinâmicas sociais, políticas e espirituais de onde estes povos se desenvolvem.


Considerações sobre a Supremacia da Propriedade Individual ou a Invasão à Propriedade.

Fazendo um paralelo entre o que o Código Civil do Equador e o nosso, verifica-se que se sustentam sob a mesma orientação, pois a propriedade em ambos é considerado um dos pilares do direito e uma das bases fundamentais do Estado. O art. 618 do Código Civil do Equador dispõe:

"Art. 618 – (...) el derecho real en una cosa corporal, para gozar y disponer de ella, de accuerdo a las leys y respetando el derecho ajeno."

Maria Helena Diniz[2] assevera que, apesar de nosso Código Civil não conceituar propriedade, em razão "da impossível tarefa de enumerar a infinita gama dos poderes do proprietário", descreve o seu conteúdo no art. 524:

"Art. 524 – A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem injustamente o possua."(Grifo Nosso)

Porém, este direito que o beneficiário ou possuidor pode desfrutar, abusar e dispor a seu arbítrio, expressa-se Gina Chávez, tem limitações que a legislação estabelece por algumas causas. Ela cita o tratadista Enrique Coello, a respeito dessa posição:

"La propiedad privada absoluta, egoísta, plena garantizada en esos atributos como sagrada, casi con un contenido religioso, de acuerdo con las teorías romanas, com las del feudalismo de la Edad Media, que no fue bueno para tiempo alguno (...) si alguna justificación tuvo en su época, hoy ya no tiene actualidad".

Assim, como descreve o tratadista, esta idéia de propriedade, que parecia ter sido superada, dá impressão de que ressurge no sistema de proteção à propriedade intelectual, retomando os limites que a legislação estabelece para a propriedade e para as funções que esta deve cumprir na sociedade.

Pela regra geral, a propriedade intelectual não é mais que uma manifestação do direito geral da propriedade, ainda que esteja submetida a regulações especiais. Isto significa, que em termos gerais, que os princípios que regem a propriedade são plenamente aplicáveis à propriedade intelectual.

Assim como a propriedade, lato sensu, tem limitações, tendo que cumprir com a função social, outrossim aponta-se então uma limitação à propriedade intelectual. Embora existam muitas dúvidas sobre esses limites, se são adequados e suficientes para cumprir a sua função, como propriedade, sem embargar outros direitos. Um deles é a sua temporalidade, diferentemente do direito de propriedade geral que é permanente e estável.

Enfrentando a questão posta, o argentino Pablo M Challú, faz várias críticas ao direito de propriedade intelectual. Ensina que, buscando alternativas para minimizar os custos associados à exclusividade das patentes de produtos, identifica vários questionamentos relacionados com o modelo de propriedade intelectual imposto e agrupa-os por tendências. Um primeiro grupo de críticas, diz:(...)sostienen que el (...) patentamiento de productos es un procedimiento por el cual se otorga a las empresas innovadoras que desarrollan nuevos productos, el derecho de exclusividad para su producción y comercialización y el de impedir que terceros produzcan o comercilicen productos similares a los que ellas patentaron. Cualquiera que seja la justificación de tal proceder, en la práctica esto significa otorgar al titular de la patente del producto un monopolio legal sobre él. Este monopolio legal, en los hechos, implica crear un monopolio económico en su favor. (Grifo Nosso)Um segundo grupo de críticas sustenta que: "no existe en realidad tal derecho de propiedad, ya que el derecho de patentes está limitado en el tiempo y no se puede concebir un derecho de propiedad temporario." (Grifo Nosso)

Cita então as razões desse dois grupos:

"la primera, porque sería realmente notable que se otorgara un monopolio legal en forma permanente, y la segunda (...) porque las empresas innovadoras no tienen un derecho pleno o total sobre la innovación o el producto que han logrado sino un derecho limitado, ya que lo que hacen es tomar un bien público, como es el conocimiento acumulado, para estabelecer mediante su uso un desarrolo aplicable a la industria o a la economia." (Grifo Nosso)

Estes questionamentos do direito de propriedade intelectual resultam fundamentais para entender seus efeitos frente à biodiversidade, aos conhecimentos tradicionais e dos direitos dos povos indígenas.


O Direito Individual e o Direito Coletivo

A produção intelectual é identificada pelos regimes de propriedade intelectual tanto no Brasil, quanto no Equador com um fato eminentemente individual ou individualizado, isto quando não se refere às pessoas jurídicas. E ainda, o âmbito de proteção da propriedade intelectual é o mesmo que regula os institutos da propriedade industrial, que tradicionalmente segue rito próprio de identificação e especificação do objeto da proteção, o que pode se tornar um entrave inclusive à necessária abrangência da proteção esperada para a biodiversidade, da qual as comunidades tradicionais reivindicam.

A Constituição equatoriana garante e protege o conhecimento ancestral coletivo. O desenvolvimento legislativo deste direito deverá considerar que o conhecimento ancestral coletivo vai mais além da produção coletiva concebida pela lei, e tem relação com um tipo de conhecimento gerado em um contexto histórico-social-comunitário-redistributivo-cultural-geográfico no qual se faz impossível identificar o responsável, o diretor, o organizador do processo da criação ou da inovação, assim como não é fácil a apropriação individual dos benefícios.

A respeito desta situação, transcreve-se parte de uma sentença da Corte Constitucional da Colômbia, que diz:"las relaciones de interacción de los grupos étnicos com sus recursos naturales, no admiten muchas veces una apropiación individual de las variedades vegetales obtenidas a través de la gestión cultural."

Desta forma, a Corte reconhece a necessidade de admitir e reconhecer a propriedade coletiva sobre as obtenções e os resultados intelectuais.


O Conhecimento Específico e o Conhecimento Tradicional

Tanto na nossa legislação, quanto na equatoriana para se conceder a patente, deve-se demonstrar novidade, capacidade inventiva e suscetibilidade de aplicação industrial(Lei 9.279/96, art. 8º ; e na Lei de Propriedade Intelectual do Equador, art. 121).

A pergunta capciosa que Gina Chávez dá, é: estes requisitos contemplados na Lei, para aceder à proteção dos resultados do conhecimento, são acessíveis à pluralidade do sistema de geração do conhecimento? Acredita-se que não. Quando os indígenas demandam o reconhecimento à validez de seus sistemas de geração de conhecimento, os métodos ocidentais se opõem por excludentes e reducionistas.

A necessidade atual de estabelecer uma norma que reconheça o conhecimento gerado em culturas não ocidentais, deve-se à vulnerabilidade que se encontra este, diante do interesse da cultural ocidental no momento que consenti com este conhecimento buscando a assegurar lucros econômicos desmesurados, cuja produção é arbitrária e inconsulta.

A cultura ocidental desconhece a validez dos processos de geração do conhecimento que não sejam ocidentais, e a idéia de que o único sistema válido é aquele imposto pelo Ocidente. Estes sistemas ocidentais de propriedade intelectual premiam somente um determinado tipo de conhecimento, o "formal", o "de bata blanca", e são cegos ao conhecimento tradicional das comunidades indígenas e campesinas.

Vandana Shiva[3] critica fortemente o sistema de propriedade individual e faz questionamentos ao conhecimento científico reconhecido pelo ocidente. Estabelece que:

"la ciencia reduccionista moderna, en su intento de descripción de la realidad "tal cual es" com una supuesta objetividad libre de valores, está siendo cada vez más rechazada por motivos históricos e filosóficos. Ha quedado establecido que todo conocimiento, incluso el científico, se basa en el uso de una pluralidad de metodologías y que el proprio reduccionismo es solo una de las opciones científicas que existen", a lo que habría que añadir que sus fundamentos son axilógicos [ou melhor, morais]. "Las nuevas teorías de la complejidad, las estructuras disipativas y la autoorganización que están reemplezado el paradigma reduccionista en biología, tienen más en común desde el punto de vista filosófico com los sistemas tradicionales de conocimiento que con la ciencia cartesiana."[4]

Agora, ver-se-á como se encontra a situação da propriedade intelectual no Brasil.


Proteção aos Direitos Intelectuais "Coletivos" das Comunidades Indígenas Brasileiras.

O Brasil é um dos países da chamada megadiversidade, abrigando formações naturais como cerrado, pantanal, caatinga, campos e mais de 3,5 milhões de km² de florestas tropicais (30% do mundo), na Amazônia e na Mata Atlântica, onde estão concentradas mais de 50% das espécies.

Associada à sua rica biodiversiade, está o seu extenso patrimônio sociocultural: uma das populações mais diversificadas do mundo: povos indígenas (206 formados por microssociedades), descendentes de quilombos, colonos, caiçaras, ribeirinhos, extrativistas, populações rurais e urbanas de diferentes origens étnicas e culturais.

Tanto a bio quanto a sociodiversidade são amparadas constitucionalmente. O art. 225, § 1º, II, determina a preservação da diversidade e da integridade do patrimônio genético do país. Já o art. 215, § 1º protege as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. O patrimônio cultural brasileiro, composto de bens portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira também é protegido no art. 216.

O Brasil também é signatário da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), que entrou em vigência no país a partir de sua ratificação pelo Congresso, em maio de 1994, e considerado o principal instituto de direito internacional mantido em constante discussão.

A Soberania Estatal

De acordo com Juliana Santilli, assessora jurídica do Instituto Socioambiental, em seu artigo publicado na Revista CEJ – Centro de Estudos Judiciários[5], traça-se o paralelo entre Brasil e Equador sobre as conseqüências da soberania estatal os recursos genéticos em relação às comunidades indígenas.

No Equador foi aprovada uma mini-lei, com a seguinte redação:

"Art 1º - O Estado equatoriano é o titular dos direitos de propriedade sobre as espécies que integram a biodiversidade no país, que se consideram como bens nacionais e de uso público.

Sua exploração comercial se sujeitará à regulamentação especial que determinará o Presidente da República, garantido os direitos ancestrais das comunidades indígenas sobre os conhecimentos e os componentes intangíveis da biodiversidade e dos recursos genéticos e o controle deles."

Assim, segundo Elizabeth Bravo, da Accion Ecológica do Equador, a soberania do Estado é equivalente à propriedade do Estado – o que está claro na lei transcrita. o Estado é o proprietário da biodiversidade nacional. O subsolo equatoriano também está sob a soberania do Estado. Esse tratamento dado a biodiversidade faz com que as comunidades indígenas e locais percam o direito sobre o solo.

O mesmo acontece no Brasil, segundo o que dispõe o art. 231, § 3º, da CF. a exploração mineral em terras indígenas depende de autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas e ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra. Os direitos em relação ao solo se distinguem em relação aos direitos minerários, do subsolo. Subtrair os recursos genéticos do usufruto exclusivo das comunidades indígenas representaria mais uma perda.

Não obstante o avanço da lei do Equador, na tentativa de proteger o patrimônio genético do país contra a biopirataria internacional, a caracterização dos recursos genéticos como "bens públicos" seria, no regime constitucional brasileiro, uma afronta dos direitos indígenas de usufruto exclusivo sobre o os recursos naturais existentes.

Essa questão é de grande importância, na medida que parte considerável do território brasileiro, rico em biodiversidade, encontra-se justamente em terras indígenas ou passíveis de virem a ser consideradas indígenas, bem como em área de posse de comunidades tradicionais. Em geral, são extensões de terra conservada, onde a degradação proporcionada pela atuação desenvolvimentista ainda não surtiu seu nefasto efeito, daí o acentuado interesse nas mesmas do ponto de vista do patrimônio da biodiversidade.

A Base de Dados Tropicais (BDT) - Programa Estadual para a Conservação da Biodiversidade – PROBIO/SP, no artigo de Fernando Nabais da Furriela, critica o projeto de lei (acho que se refere ao projeto de lei da Senadora Marina Silva), pela tentativa de imprimir, visando a atender a recorrente questão de manutenção da soberania do Estado, o conceito de propriedade da União com duplo objetivo de manter o controle nas mãos do governo para dispor do mesmo mediante concessões, bem como com o claro objetivo de subtrair das comunidades tradicionais e das comunidades indígenas o direito de dispor sobre a biodiversidade.

Juliana Santilli em relação ao projeto supracitado, observa algumas ambigüidades com relação à participação das comunidades indígenas nas decisões relativas ao acesso de terceiros aos recursos genéticos existentes em suas terras. A última versão do projeto a que teve acesso previa a participação da comunidade no contrato de acesso apenas quando há o componente intangível. Porém, é fundamental que a comunidade faça parte do contrato de acesso a recursos genéticos situados em suas terras, independentemente de envolver ou não componente intangível.


A Propriedade Coletiva do Conhecimento

Da identificação dos direitos coletivos e a geração coletiva do conhecimento, retira-se os direitos da propriedade coletiva do conhecimento.

Este direito estabelecido na Constituição do Equador, determina que um dos amparos aos conhecimentos ancestrais coletivos é o direito de propriedade coletiva, ou seja, a capacidade de exercer direitos e contrair obrigações com relação à propriedade coletiva.

A propriedade coletiva, nos termos desta Constituição, "es un derecho inalienable, inembargable e indivisible", salvo a faculdade do Estado para declarar sua utilidade pública. Estas mesmas normas são as características que regem a propriedade intelectual nos seus fins, funções, efeitos e características distintas das da propriedade intelectual individual.

No Brasil, segundo o jurista Frederico Marés, em artigo intitulado "Propriedade Intelectual e Direitos Coletivos":

os direitos coletivos não são uma mera soma de direitos subjetivos individuais, mas somente aqueles pertencentes a um grupo de pessoas, cuja titularidade é difusa porque não pertence a ninguém em especial, mas cada um pode promover sua defesa que beneficia sempre a todos.

A propriedade intelectual coletiva está ligada à necessidade da reprodução social e cultural dos povos indígenas, a manterem sua cosmovisão e sua formas e meios de gerar os conhecimentos, e finalmente, a assegurar a base material de suas vidas como é o território e a biodiversidade, no qual vivem.


A Questão da Compensação na Apropriação dos Conhecimentos Tradicionais de Povos Indígenas e Outros.

Essa questão é a mais importante. A comunidades indígenas têm manifestado, por intermédio de suas lideranças, o interesse de que não seja reconhecida a biodiversidade como bem passível de apropriação nos moldes estatuídos na codificação da propriedade industrial, com já se pronunciou.

As comunidades indígenas entendem que a compensação financeira não atende aos interesses relacionados à integridade de seus territórios e da própria biodiversidade neles existente, segundo Fernando Nabais da Furriela.

Assim, vedando-se a possibilidade de apropriação, que implica no direito de exclusividade de disposição e uso da coisa, vedar-se-ia também, a possibilidade de, mediante simples compensação financeira, resolver-se o uso indevido, não autorizado da biodiversidade. Ou seja, o raciocínio das comunidades indígenas na formulação de sua restrição ao direito de propriedade, além de atender outros outros objetivos, impediria que qualquer um que se utilizasse de seu conhecimento e/ou da biodiversidade pudesse, por meio de reparação financeira/econômica, ser absolvido da falta cometida.

A exigência legal impõe a ampla, integral e justa reparação. Contudo, as comunidades indígenas entendem, que em se tratando de uso indevido /violação do conhecimento tradicional por elas detido, bem como de sua biodiversidade, não haverá meios de se promover a ampla, integral e justa reparação. Até pelo sentimento axiológico destinado a seu habitat, a sua cultura, que expressa de forma diferente que a nossa. Assiste, assim, uma razão ao entedimento da comunidade indígena, em face de seu entedimento sobre a questão, de não autorizar a apropriação.

Portanto, continua a opinião de Furriela, as comunidades indígenas entendem que vedando-se a possibilidade de apropriação, por quem quer que seja, estar-se-ia limitando o interesse sobre seu conhecimento e sua biodiversidade, na medida em que limitar-se-ia a possibilidade de um eventual titular explorar, em caráter de exclusividade, esse patrimônio.

O problema principal que se discute e é preciso entender, é que a forma de apropriação-compensação do conhecimento dessas comunidades está completamente fora de seu contexto cultural (entenda-se como processo produtivo), o significado que se impõe ao seus conhecimentos.

Um fato que deve ser observado com mais cautela e, por isso, levanta-se uma restrição ao pretendido, são os fins humanitários que esse conhecimento tradicional e/ou a biodiversidade possa atender.

Juliana Santilli discorre sobre a mesma questão, no artigo já mencionado. Sempre deve ser ressaltada a natureza coletiva de qualquer mecanismo de compensação por conhecimentos tradicionais indígenas, e ser expressamente proibida qualquer apropriação individual dos benefícios oriundos de sua ultilização para fins comerciais.

Em relação ao acesso a conhecimentos tradicionais associados aos recursos genéticos, deve ser feita uma distinção entre os conhecimentos de que são detentoras exclusivas certas comunidades indígenas, e aqueles que são divididos por várias comunidades indígenas. No primeiro caso, parece não haver maiores dificuldades para a concretização da compensação a ser estabelecida por meio de contrato de acesso. Mais complexo, entretanto, parecem ser os mecanismos de compensação no segundo caso. Uma solução seria o estabelecimento da co-titularidade de direitos e obrigações entre várias comunidades, que deveriam ser, então, todas, partes no contrato de acesso.

Nesse caso, continua Santilli, parece necessária a criação de um fundo específico, a que seriam destinados os recursos levantados com o pagamento de taxas de prospecção/royalties sobre recursos genéticos/conhecimentos tradicionais coletivos associados à biodiversidade.

Outros países elaboram propostas visando à criação de mecanismos de compensação. O Equador entre outras propostas, prevê que nenhuma inovação indígena poderá ser objeto de patentes, e que o consentimento informado prévio das comunidades para o acesso inclui a possibilidade de que não levantem objeção cultural, quando não desejem que sua inovação seja utilizada com propósitos comerciais.

Já a proposta colombiana estabelece dois regimes diferentes para a tramitação das solicitações de acesso a recursos genéticos: 1) regime especial de acesso, pelo qual tramitam as solicitações e se definem as condições de acesso a recursos associados ao conhecimento tradicional. Esse regime está associado ao sistema sui generis de propriedade intelectual, cuja característica é evitar a apropriação individual dos direitos sobre o conhecimento coletivo. 2) regime geral de acesso, pelo qual tramitam as solicitações de acesso a recursos que não envolvam conhecimento tradicional. Esse regime está associado a sistemas individuais de propriedade intelectual (patentes e direitos do obtentor vegetal). 3) prevê a regulamentação do regime especial de acesso no prazo de um ano, bem como, dentro do mesmo prazo, do sistema sui generis de direitos coletivos de propriedade intelectual, mediante um processo de consulta que deverá contar com a ampla participação das comunidades locais, devendo o governo nacional garantir os recursos financeiros e o apoio logístico requerido para esse propósito.

A lei da Malásia (Commuty Intellectual Rights Act) elaborada pela organização Third World Network, parte de alguns conceitos básicos, os quais transcrevemos alguns deles: 1) as comunidades locais e indígenas são os custodians legais e forma perpétua da inovação. 2) quaisquer direitos de monopólio exclusivo em relação à inovação serão nulos. 3) o intercâmbio entre as comunidades deve ser livre, desde que não tenha finalidade comercial. 4) qualquer pessoa, órgão, organização ou empresa que pretenda fazer uso comercial da inovação ou parte dela deve: obter o consentimento escrito da comunidade local e pagar à comunidade local, que é a custodian de tal inovação, uma quantia que represente uma percentagem mínima sobre as vendas brutas de qualquer produto ou processo que incorpore tal inovação. Qualquer comunidade indígena pode optar pelo pagamento de uma compensação não-monetária, de acordo com seus usos, costumes e tradições.

Finalmente, é importante reiterar a crítica geral ao projeto já formulada pelo Instituto Socioambiental. Refere-se ao fato de o mesmo atribuir apenas ao Poder Público a incumbência de "preservar a diversidade biológica" do país, e não a toda sociedade. Não prevê mecanismos concretos de participação da cidadania no controle do acesso aso recursos genéticos. Nesse ponto, bem fez o Grupo ad hoc de Biodiversidade da Colômbia, que entre seus princípios discorre:

1º Artigo: A Nação exerce direito soberanos e inalienáveis sobre a diversidade biológica e os recursos genéticos existentes no território nacional; em consonância com os princípios constitucionais, o exercício dessa soberania é compartilhado com a sociedade civil. Portanto, é dever e direito de todos os cidadãos e do Estado proteger conjuntamente a diversidade étnica e cultural, o patrimônio natural da nação e a integridade do ambiente.

Assim, embora os direitos intelectuais das comunidades indígenas sejam coletivos, e não possa ser reivindicada a sua titularidade em nível individual, todos os membros da comunidade, bem como suas organizações, devem tomar iniciativas visando a protegê-las. Afinal, essa e justamente a principal característica do direito coletivo: o fato de qualquer titular poder tomar iniciativa para defendê-lo, ainda que só beneficie o todo.


CONCLUSÃO

Como um dos pontos fundamentais deste trabalho foi demonstrar a antropologia jurídica como disciplina, e como essa interdisciplinariedade pode contribuir no papel científico das instituições de direito, onde se tratou especificamente sobre a propriedade intelectual de comunidades tradicionais, faz-se mister, para corroborar que aceitando as diferenças e acabando com o discurso da "igualdade", que mais parece uma noção para escamotear relações de força, apresento o que o teórico Frederik Barth, na década de 60, que entendeu sobre a organização social da diferença de cultura [e também sobre etnicidade], sendo deste nome sua obra, apresentada no livro Teorias da Etnicidade de Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart. (1995. São Paulo; Editora Unesp)

Barth substituiu uma concepção estática da identidade étnica por uma concepção dinâmica. Ele entendeu muito bem e faz entender que essa identidade, como qualquer outra identidade coletiva (e assim também a identidade pessoal de cada um), é construída e transformada na interação de grupos sociais através de processos exclusão e inclusão que estabelecem limites entre tais grupos, definindo os que os integram ou não. Então, o que importa é procurar saber em que consistem tais processos de organização social através dos quais mantêm-se de forma duradoura as distinções entre "nós" e "os outros", mesmo quando mudam as diferenças que, para "nós", assim como para "os outros", justificam e legitimam tais distinções. Pois escreve Barth, em tais processos "os traços que levamos em conta não são a soma das diferenças ‘objetivas’ mas unicamente aqueles que os próprios atores consideram como significativos". Desse modo, as mesma características podem suceder-se adquirindo a mesma significação.

Encarada nessa perspectiva, a etnicidade não é o conjunto intemporal, imutável de "traços culturais" (crenças, valores, símbolos, ritos, regras de conduta, língua, código de polidez, práticas de vestuário ou culinárias etc.), transmitidos da mesma forma de geração para geração na história do grupo; ela provoca ações e reações entre os grupos e os outros em uma organização social que não cessa de evoluir.


NOTAS

1.Em março de 2000, realizou-se no Chile o XII Congresso Internacional de Direito Consuetudinário e Pluralismo Legal: Desafio no Terceiro Mundo, do qual se expõe neste trabalho as perspectivas do artigo de Gina Chávez, cujo título encabeça este capítulo.

2.Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro – Direito das Coisas, 1997, p. 104 e 105.

3.Vandana Shiva, "El conocimiento en el Convenio sobre a Diversidad Bilógica", Uruguai, dezembro de 1996.

4.Sobre o cartesianismo, será demonstrado, em particular, o posicionamento de Shiva e J. M. Broekman. Primeiramente, Shiva sustenta que uma concepção pluralista do conhecimento implicaria em respeitar os diferentes sistemas em sua lógica e fundamentos epistemológicos próprios. Isso significa que um só método (a unidade do ocidental) não serve de medida da exatidão científica para todos os sistemas e que a diversidade não pode de ser reduzida à linguagem e às lógicas dos sistemas ocidentais de conhecimento. A integridade de nosso patrimônio biológico e intelectual só pode se proteger dentro dessa perspectiva pluralista. A concepção hierárquica afirmará que o paradigma ocidental é cientificamente superior, no entanto, pese seus atuais fracassos no que concerne a sustentabilidade da atenção médica e à nutrição. Supor que existe uma hierarquia é o fundamento com o qual se dá qualidade de invenção à biopirataria.

Já Broekman ensina que temos que esclarecer que o pensamento jurídico em nosso cultura, tanto em seus aspectos dogmáticos e teóricos como na filosofia, está marcado, inclusive em nossa época, pelo cartesianismo. Mais surpreendente é que este influxo se mantém apesar dos combates a ele, também no terreno do direito e do Estado. Cita t’Hart aludindo sobre o pensamento de Giambattista Vico. Demonstra que para Vico as instituições humanas funcionam com uma consciência aberta, condicionada pela realidade humana histórica, refere-se, dessa forma, às relações entre a consciência do homem e seu mundo vital – o único que ele conhece. Assim, Broekman assevera que nossa consciência atual atormentasse com a questão de se podemos pensar, atuar e falar de outra forma distinta da cartesiana. À primeira vista, esta questão nos levará a muito longe. Em definitivo, o conjunto de problemas vinculados à troca de cultura dentro de, e, pela historicidade das formas de pensamento. Assim, manifesta-se entre o modelo da manufatura e do pensamento mecanicista.

Mais importante como ratificação dessas perspectivas críticas do cartesianismo, o filósofo Nietzsche, precisamente em sue livro a Gaia Ciência, conta-nos sob que alicerce a ciência ocidental se construiu, ou melhor, se constrói. Para Nietzsche, o homem será sempre moral. Porém, o homem da moral dogmática não faz ciência. O homem é moral porque estabelece valores. Aquele que não despreza os valores do fundamento daquilo que acredita, não tem consciência intelectual. Não existe meio-saber, não existe ciência que comporte limitações (dogmas). Ciência é um campo de pesquisa, de disputa. A existência extrapola em muito, os dogmas da ciência tradicional. Os valores morais estão ligados às restrições de como a história nos foi contada.

5.Revista CEJ, nº 3, p. 46 a 53. Set/dez. 1997.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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REVISTA CEJ/Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários – Vol. 1, n. 1 (1997) – Brasília.

SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Camila Pessoa. A propriedade intelectual nas comunidades tradicionais e indígenas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2798. Acesso em: 25 abr. 2024.