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Pecunia non olet: da (im)possibilidade da tributação sobre o proveito auferido com a prática de fato criminoso

Pecunia non olet: da (im)possibilidade da tributação sobre o proveito auferido com a prática de fato criminoso

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A partir da análise do princípio que se consagrou como “pecunia non olet”, o texto objetiva promover um estudo acerca das divergências quanto a (im)possibilidade de incidência de tributo sobre o proveito econômico auferido com a prática de fato criminoso.

Resumo:A partir da análise do princípio que se consagrou como “pecunia non olet”, o presente trabalho tem por objetivo promover um estudo acerca da (im)possibilidade de tributação sobre o proveito econômico auferido com a prática de fato criminoso.

O princípio do non olet foi consagrado no ordenamento jurídico pátrio, tendo previsão no artigo 118 do Código Tributário Nacional. Segundo este princípio, o produto da atividade ilícita deve ser tributado, desde que realizada, no mundo dos fatos, a hipótese de incidência da obrigação tributária.

A doutrina diverge em torno da possibilidade ou não de que haja incidência de tributação sobre determinado proveito decorrente da prática de um crime. Duas são as correntes sobre o assunto, cada qual com suas respectivas argumentações de fato e de direito que foram amplamente contempladas, consideradas e discutidas no presente trabalho. De um lado, a tese que advoga a possibilidade do Estado fazer incidir o tributo pertinente sobre determinado proveito fruto de um ilícito penal. De outro, a tese que pugna pela impossibilidade dessa tributação, afirmando que o perdimento de bens, enquanto efeito da condenação criminal, é que é o destino correto dos bens de origem criminosa.

Assim, a indagação que permeou o presente trabalho consistiu em saber se, afinal, no exercício do seu poder de tributar, seria realmente legítimo ao Estado fazer incidir tributos sobre o proveito auferido com a prática de crime.

Distinguiu-se, inicialmente, os dois institutos jurídicos que disputavam a atenção da doutrina, quais sejam, a tributação (art. 3º do Código Tributário Nacional) e o perdimento de bens enquanto efeito da condenação criminal (art. 91 do Código Penal), para então, juntamente com a análise do que se convencionou denominar de limitação infraconstitucional ao poder de tributar do Estado decorrente do princípio da consistência do ordenamento jurídico, restarem perfeitamente delineados e delimitados os campos de incidência de cada um dos institutos apenas aparentemente antinômicos.

Palavras-chave: proveito auferido pela prática de ilícito penal – tributação – princípio do “non olet” – perdimento de bens (efeito da condenação criminal) – antinomia aparente – princípio da consistência do ordenamento jurídico.

SUMÁRIO:1 – Introdução: Breves considerações sobre a origem histórica do princípio do “pecunia non olet” e sua positivação no ordenamento jurídico brasileiro; 2 – Os diferentes posicionamentos da doutrina pátria sobre o princípio do “non olet”.2.1 – Pela possibilidade de incidência de tributação sobre o proveito decorrente da prática de crime; 2.2 – Pela impossibilidade de incidência de tributação sobre o proveito decorrente da prática de crime. 3 – Tributação do ilícito penal X Tributação das conseqüências econômicas (ou do proveito) decorrentes do ilícito penal: a delimitação do problema. 4 – Da limitação infraconstitucional ao poder de tributar do Estado decorrente do princípio da consistência do ordenamento jurídico. 5 – Tributação (art. 3º do Código Tributário Nacional) X Perdimento de bens enquanto efeito da condenação (art. 91 do Código Penal). 6 – Conclusão. 7 – Referências.


1 – INTRODUÇÃO: Breves considerações sobre a origem histórica do princípio do “pecunia non olet” e sua positivação no ordenamento jurídico brasileiro.

Consagrado no ordenamento jurídico pátrio, o princípio do non olet encontra guarida no artigo 118 do Código Tributário Nacional. Segundo este princípio, o produto (ou proveito) decorrente da prática de uma atividade ilícita deve ser tributado, desde que realizado, no mundo dos fatos, a hipótese de incidência da obrigação tributária.

A origem histórica do princípio remonta à Roma antiga. Conta-se que o imperador Vespasiano construiu mictórios públicos para conter a sujeira nas ruas da cidade de Roma. Ato contínuo, para compensar o investimento realizado, o imperador instituiu um tributo – semelhante à atual taxa – sobre a utilização das tais latrinas públicas. Criticado e questionado por Tito, seu filho, sobre a exigência da novel, esdrúxula e “malcheirosa” exação fiscal, o imperador Vespasiano rebateu as críticas com a célebre frase: "pecunia non olet", expressão latina que quer dizer “o dinheiro não tem cheiro” ou “o tributo não tem cheiro”.

Para Amílcar de Araújo Falcão,

Quis o imperador romano desse modo significar que o dinheiro não tem cheiro, importando essencialmente ao Estado o emprego que faça dos seus tributos e não a circunstância de reputar-se ridícula ou repugnante a fonte de que provenham. (FALCÃO: 1994, p. 91)

No direito positivo brasileiro, como dito anteriormente, o art. 118 do Código Tributário Nacional consagrou a máxima “non olet”, a determinar que para o direito tributário não existe relevância se a situação que teve como conseqüência a ocorrência do fato gerador configure ilícito.

Assim, dispõe o art. 118 do CTN que:

Art. 118. A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se:

I – da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos;

II – dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos.

Ainda sobre a origem da expressão “non olet”, leciona Amílcar de Araújo Falcão:

Claro está que, na sua versão atual, as expressões perderam o conteúdo cínico da anedota, para se penetrarem de alto sentido ético, qual o de procurar atingir isonomicamente a capacidade econômica do contribuinte sem preconceitos falsos ou ingênuos pruridos de sentimentalismo piegas quanto à licitude da atividade que constitua fato gerador do tributo. (FALCÃO: 1994, p. 91)


2 – Os diferentes posicionamentos da doutrina pátria sobre o princípio do “non olet”.

2.1 – Pela possibilidade de incidência de tributação sobre o proveito decorrente da prática de crime.

De fato, tendo por base o art. 118 do CTN, a doutrina nacional, majoritariamente, entende que a ilicitude do ato praticado nada tem a ver com a relação tributária. Isto é, a validade, invalidade, nulidade, anulabilidade ou mesmo a anulação já decretada do ato jurídico, bem como a eventual carga de ilicitude penal que possua, são irrelevantes para o Direito Tributário. “Pecunia non olet” ou “o dinheiro não tem cheiro”. Uma vez praticado o ato jurídico ou celebrado o negócio que a lei tributária erigiu em fato gerador, está nascida a obrigação para com o fisco. E essa obrigação subsiste independentemente da validade ou invalidade do ato. O fato gerador ocorreu e não desaparece, do ponto de vista fiscal, pela nulidade ou anulação (BALEEIRO: 2006).

Por essa ótica, o tributo corresponderia a um instituto amoral, objetivo e abstrato, veiculado por norma tributária igualmente objetiva, a incidir sobre cada signo presuntivo de riqueza, sem questionar quanto à validade do fato, ato ou negócio jurídico que lhe ofereceu suporte.

Entre os autores que defendem esta corrente está Aliomar Baleeiro, o qual afirma pouco importar, para a sobrevivência da tributação sobre determinado ato jurídico, a circunstância de ser ilegal, imoral, ou contrário aos bons costumes, ou mesmo criminoso o seu objeto, como o jogo proibido, a prostituição, o lenocínio, a corrupção, a usura, o curandeirismo, o câmbio negro etc, para então concluir:

Deve admitir-se, pensamos, a tributação de tais atividades eticamente condenáveis e condenadas. O que importa não é o aspecto moral, mas a capacidade econômica dos que com elas se locupletam. Do ponto de vista moral, parece-nos que é pior deixá-los imunes dos tributos, exigidos das atividades lícitas, úteis e eticamente acolhidas. (BALEEIRO: 2006, p. 715)

Nesse mesmo sentido, assevera Ives Gandra da Silva Martins[1]:

Creio que é melhor tributar atividades que se encontram na linha limítrofe entre o regular e o irregular do que permitir que criminosos as explorem, impunemente, utilizando sua receita - não controlada - para atividades ilícitas, inclusive para a corrupção;

Os que pugnam pela possibilidade de tributação sobre o proveito auferido pela prática de crime têm invocado, ainda, os princípios da isonomia e da capacidade contributiva em direito tributário. Segundo Dino Jarach: "igualdade tributária quer dizer igualdade de condições segundo a capacidade contributiva” (JARACH: 1957, p. 116). O princípio da capacidade contributiva apresentar-se-ia, portanto, como corolário do princípio da igualdade, a pugnar pela impossibilidade de se conferir tratamento fiscal diverso a indivíduos que se acham nas mesmas condições econômico-contributivas, sob pena de haver enriquecimento ilícito. Assim, restando devidamente constatados índices claros, atuais e relevantes de riqueza que demonstrem aptidão da pessoa para pagar tributos, a norma tributária incidirá, objetiva e independentemente de eventuais particularidades relacionadas aos sujeitos ou às fontes.

Afirmam que a cobrança do tributo daquele que tem capacidade contributiva se trata de princípio calcado no valor justiça, ainda que tal signo presuntivo de riqueza seja oriundo de jogo, lenocínio ou de alguma outra atividade proibida. Caso assim não fosse, estar-se-ia ferindo o princípio da isonomia fiscal, porquanto seriam tratados preferencialmente os autores de ilícitos em detrimento dos trabalhadores e outros contribuintes com fontes lícitas de rendimentos.

Em síntese, tendo em vista o princípio da isonomia fiscal, a exoneração tributária das atividades proibidas ou não recomendadas, em contraposição à taxação das atividades lícitas ou socialmente úteis, antes de configurar consectário da moralidade, ensejaria, isto sim, séria violação ao principio em questão, vez que trataria desigualmente fatos de idêntica conotação contributiva, diversos apenas em sua emanação originária.

Nesse sentido, ensina Ricardo Lobo Torres:

Se o cidadão pratica atividades ilícitas com consistência econômica deve pagar o tributo sobre o lucro obtido, para não ser agraciado com tratamento desigual frente às pessoas que sofrem a incidência tributária sobre os ganhos provenientes do trabalho honesto ou da propriedade legítima. No imposto há sempre uma nota desagradável que não pode pesar apenas sobre os ganhos das atividades lícitas. (TORRES: 2006, p. 372)

Corroborando com esta corrente, assevera Amílcar de Araújo Falcão:

Não pode ser de outro modo, se se tomar em consideração que a natureza do fato gerador da obrigação tributária, como um fato jurídico de acentuada consistência econômica, ou um fato econômico de relevância jurídica, cuja eleição pelo legislador se destina a servir de índice de capacidade contributiva. A validade da ação, da atividade ou do ato em Direito Privado, a sua juridicidade ou antijuridicidade em Direito Penal, disciplinar ou em geral punitivo, enfim, a sua compatibilidade ou não com os princípios da ética ou com os bons costumes não importam para o problema da incidência tributária, por isso que a ela é indiferente a validade ou nulidade do ato privado através do qual se manifestou o fato gerador: desde que a capacidade econômica legalmente prevista esteja configurada, a incidência há de inevitavelmente ocorrer. (FALCÃO: 1994, p. 45)

Ademais, segundo Steuerrecht[2], somente interessa analisar o fato tributário em toda a sua nudez econômica, despido de conotações de outra ordem, notadamente no que tange a sua licitude ou ilicitude. Não seria, portanto, necessário debruçar-se sobre estes aspectos. A licitude ou ilicitude não exclui a aptidão para pagar impostos, e, caso a ilicitude autorizasse a não tributação dos proventos, existiria injustificada isenção.

2.2 – Pela impossibilidade de incidência de tributação sobre o proveito decorrente da prática de crime.

Por outro lado, autores há que entendem ser absolutamente descabida a tributação do proveito de atividades ilícitas, ainda que a prática da atividade criminosa gere efeitos econômicos tributáveis em tese. Segundo afirmam, seria ilegítimo que, existindo uma norma jurídica que reprovasse um determinado fato, considerando-o crime, que o Estado se valesse desse mesmo fato para dele obter receita.

A atividade financeira do Estado, como atividade política e nobre que é, não deve ser custeada por receita cuja origem seja imoral ou ilegal. Afinal, em última análise, estes proveitos sequer chegam a ser verdadeiros rendimentos em sentido econômico. Por todos, cumpre colacionar a lição da Professora Misabel Abreu Machado Derzi:

Parece-nos ter havido evolução no sentido de não mais se admitir a irrelevância da ilicitude. Ao contrário, deve-se sustentar a intributabilidade dos bens, valores e direitos oriundos de atividades ilícitas. De longa data, entre nós, as leis prevêem o destino dos bens de origem criminosa. O código Penal disciplina a matéria, (...) o Código de Processo Penal determina o seqüestro de bens imóveis ou móveis (sendo o caso, busca e apreensão) adquiridos pelo indiciado com os proventos do crime. O perdimento daqueles bens, produto da infração, é assim a regra. Em verdade, antes e depois da Lei nº 9.613/98, o correto é concluir que estando comprovado o crime do qual se originaram os recursos ou o acréscimo patrimonial, seguir-se-á a apreensão ou o seqüestro de bens, fruto da infração. E é absolutamente incabível a exigência de tributos sobre bens, valores ou direitos que se confiscaram, retornando às vítimas ou à administração pública lesada. Pois o tributo, que não é sanção de ato ilícito, repousa exatamente na presunção de riqueza, em fato signo presuntivo de renda, capital ou patrimônio. Coerentemente, a lei 9.613/98, que disciplinou os crimes de “lavagem de dinheiro”, por exemplo, renovou, em alguns aspectos, as normas processuais pertinentes e determinou, como efeitos da condenação, a perda dos bens, direitos e valores, objeto do crime, assim como a interdição do exercício de cargo ou função pública de qualquer natureza (art. 7º, I e II). Imposto poderá incidir sobre a ostentação de riqueza ou o crescimento patrimonial incompatíveis com a renda declarada, no pressuposto de ter havido anterior omissão de receita. Receita, em tese, de origem lícita, porém nunca comprovadamente criminosa. Não seria ético, conhecendo o Estado a origem criminosa dos bens e direitos, que legitimasse a ilicitude, associando-se ao delinqüente e dele cobrando uma quota, a título de tributo. Portanto, põem-se alternativas excludentes, ou a origem dos recursos é lícita, cobrando-se em conseqüência o tributo devido e sonegado, por meio da execução fiscal, ou é ilícita, sendo cabível o perdimento dos bens e recursos, fruto da infração (BALEEIRO, DERZI, nota da atualizadora; 2006, p. 715/716).

Pela não tributação do proveito decorrente da prática de crime, tem-se adotado, ainda, um discurso fundamentado no princípio da legalidade e na defesa da eticidade e da moralidade estatal. Neste sentido, assevera César José Galarza[3], da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales (UCES) de Buenos Aires:

No pocas veces se há sostenido em doctrina que admitir la tributación de los actos ilícitos equivale a decir que el Estado ‘permite’ o ‘ampara’ su realización, y más aún, que habría que analizar incluso si este no incurre com ello em uma situación de ‘complicidad’, o al menos de ‘inmoralidad’ com el autor del ilícito, beneficiando-se económicamente con las ganâncias obtenidas com la ejecución del mismo. Prima facie, exigir el pago de um tributo por la comisión de um acto ilícito constituiria uma contradicción ilógica em el actuar estatal, puesto que de pronto el Estado estaria efectuando em su provecho, conductas que reprime y censura si son ejecutadas por los ciudadanos sometidos a la ley penal. Pues bien, este razonamiento se há convertido em el primer estandarte enarbolado por quienes rechazan la tributación de los actos ilícitos, convirtiendo así a las consideraciones moralistas em uno de los principales y más recurridos argumentos contra dicha tributación.

Nesse mesmo sentido, entende Luciano Amaro que, no caso de proveito decorrente de crime, há que se falar em sanção, não em tributo. In verbis:

A questão, segundo nos parece, não é, propriamente, a de se tributarem ou não os atos ilícitos. Ato ilícito, como tal, não é fato gerador de tributo, mas suporte fático de sanção, que (mesmo quando se cuida de infração tributária) com aquele não se confunde (CTN, art. 3º). Dessa forma, se “A” furtou de “B” certa quantia, não se pode, à vista do furto, tributar “A”, a pretexto de que tenha adquirido renda; cabem no caso, as sanções civil e penal, mas não tributo. (AMARO: 2003, p. 276)

  Ricardo Lobo Torres, não obstante corroborar com a corrente que pugna pela possibilidade da incidência de tributação sobre o proveito de crime, não passou ao largo do aparente conflito que se verifica entre a tese por ele defendida e os princípios do direito penal. Segundo o autor, “o princípio do non olet é previsto na legislação brasileira e defendido pela maior parte da doutrina, embora em alguns países exista certo questionamento sobre a sua legitimidade em razão de o mesmo confrontar-se com os princípios de direito penal”. (TORRES: 2006, p. 102).

Outrossim, os doutrinadores que defendem a não tributação, afirmam que o princípio da capacidade contributiva, fundamento precípuo daqueles que admitem a tributação relativa a fatos ilícitos, não poderia ser considerado isoladamente em relação aos demais princípios constitucionais, posto que restaria violado o princípio da unidade da Constituição.


3 – Tributação do ilícito penal X Tributação das conseqüências econômicas (ou do proveito) decorrentes do ilícito penal: a delimitação do problema.

Ante o exposto até aqui, é de se indagar: afinal, no exercício do seu poder de tributar, será realmente legítimo ao Estado fazer incidir tributos sobre o proveito auferido com a prática de crime?

Trata-se, o tema acima proposto, de questão atinente ao estudo dos limites infraconstitucionais do Estado ao poder de tributar. E a questão, como bem lembrou Ricardo Lobo Torres, ganha especial relevo na medida em que toca aspectos do direito penal. Afinal, como compatibilizar o preceito legal que consagra o princípio “pecunia non olet” (art. 118 do CTN), com, por exemplo, o art. 91 do Código Penal, o qual afirma que um dos efeitos da condenação é justamente a perda, em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé, do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática de ilícito penal? Como tributar algo que já foi objeto de seqüestro em favor da União ou de terceiros, isto é, bens que não se encontram no âmbito de disponibilidade do particular?

Inicialmente, cumpre distinguir entre tributação do ilícito penal e tributação das conseqüências econômicas (ou do proveito) decorrentes deste ilícito. Quanto ao primeiro, a doutrina, procedendo à devida distinção entre os conceitos de hipótese de incidência tributária e fato gerador, é praticamente unânime ao afirmar que o legislador não pode definir uma hipótese de incidência colocando a ilicitude como seu elemento essencial.

Por todos, afirma Hugo de Brito Machado:

Não se pode, entretanto, admitir um tributo em cuja hipótese de incidência se inclua a ilicitude. A compreensão do que se está afirmando é facilitada pela distinção, inegável, entre hipótese de incidência e fato gerador do tributo. Cuida-se, com efeito, de dois momentos. O primeiro é aquele em que o legislador descreve a situação considerada necessária e suficiente ao surgimento da obrigação tributária. Nessa descrição a ilicitude não entra. O outro momento é o da concretização daquela situação legalmente descrita. Nessa concretização pode a ilicitude eventualmente fazer-se presente. Aí estará, assim, circunstancialmente. Sua presença não é necessária para a concretização da hipótese de incidência do tributo. (MACHADO: 2003, p. 129-130)

Ressalte-se que o legislador não pode definir uma hipótese de incidência tributária colocando a ilicitude como elemento essencial. A ilicitude só é elemento essencial na hipótese de incidência da norma punitiva. Assim, se na hipótese de incidência da norma está a ilicitude colocada como elemento essencial, a prestação correspondente será uma sanção e não um tributo. (MACHADO: 2004, p. 384).

Em sua clássica obra “Hipótese de incidência tributária”, Geraldo Ataliba, com a clareza e a maestria que lhe é peculiar, também distingue os dois conceitos em comento:

A doutrina tradicional, no Brasil, costuma designar por fato gerador tanto aquela figura conceptual e hipotética – consistente no enunciado descritivo do fato, contido na lei – como o próprio fato concreto que, na sua conformidade, se realiza, hic et nunc, no mundo fenomênico. Ora, não se pode aceitar essa confusão terminológica, consistente em designar duas realidades tão distintas pelo mesmo nome. (...) Tal é a razão pela qual sempre distinguimos estas duas coisas, denominando “hipótese de incidência” ao conceito legal (descrição legal, hipotética, de um fato, estado de fato ou conjunto de circunstâncias de fato) e fato imponível ao fato efetivamente acontecido, num determinado tempo e lugar, configurando rigorosamente a hipótese de incidência. (...) Duas realidades distintas – quais sejam, a descrição hipotética e a concreta verificação – não devem ser designadas pelo mesmo termo. (...) Para bem discernir as duas hipóteses, tão distintas, julgamos conveniente designar a descrição legal, portanto hipotética, dos fatos idôneos para gerar a obrigação tributária, por hipótese de incidência. Há, portanto, dois momentos lógicos (e cronológicos): primeiramente, a lei descreve um fato e di-lo capaz (potencialmente) de gerar (dar nascimento a) uma obrigação. Depois, ocorre o fato; vale dizer: acontece, realiza-se. (...) Preferimos designar o fato gerador in abstracto por “hipótese de incidência” e in concretu por “fato imponível”, pelas razões já expostas. (ATALIBA: 2006; p. 54-55).

 Não se admite, portanto, que o ato ou negócio ilícito figure como elemento essencial da norma de tributação. Assim, e. g., a prática do rufianismo (art. 230 do Código Penal), atividade ilícita que é, não pode ser definida como hipótese de incidência tributária de qualquer tipo de exação fiscal, sob pena de tornar sanção (e não tributo) a prestação correspondente à obrigação tributária dela decorrente, em manifesta afronta ao art. 3º do CTN. Ora, seria vedada uma hipótese de incidência tributária que previsse “tributação sobre o rufianismo”.

 O mesmo, contudo, segundo alguns autores, não se pode afirmar quanto ao proveito decorrente da prática do rufianismo. E este é justamente o ponto sobre o qual se pretende aqui discorrer. Desta feita, voltemos à indagação anteriormente proposta: tomando por base o exemplo do rufianismo e considerando que o fato gerador do imposto de renda (IR) é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos de qualquer natureza (art. 43 do CTN), estaria o Estado permitido a fazer incidir referida exação fiscal sobre o proveito auferido através da prática daquele fato criminoso?

A jurisprudência dos nossos tribunais (ver os seguintes julgados[4]), seguindo a mesma linha pugnada pela doutrina majoritária e ressaltando o fato de ser da essência do direito tributário a objetividade na identificação dos signos presuntivos de riqueza, tem dado ampla aplicação ao princípio em comento diante de proveito auferido por ocasião da prática de ilícito penal.

Como afirmado anteriormente, a nosso ver a questão esbarra em delicado aspecto que concerne ao direito penal e ao direito tributário. Tributo (art. 3º do CTN) ou perdimento de bens (art. 91 do CP): qual dos dois institutos de direito deve incidir sobre o proveito auferido pela prática de um ilícito penal?


4 – Da limitação infraconstitucional ao poder de tributar do Estado decorrente do princípio da consistência do ordenamento jurídico.

Como é cediço, o poder de tributar é um dos aspectos da soberania estatal. Na consecução de suas atividades e realização de seus fins o Estado necessita de recursos financeiros. Para tanto, vale-se, dentre outros meios, da tributação.

Não se pode olvidar, porém, que o Estado, no exercício do seu poder de tributar, encontra-se condicionado a várias limitações constitucionais, bem como à observância de um verdadeiro estatuto constitucional de defesa do contribuinte. Afinal, o Estado é parte ativa de uma relação tributária, a qual, longe de ser uma relação de poder, é uma relação jurídica. E, como tal, regida está por uma série de princípios e regras, de modo que já não é razoável admitir-se a relação tributária como relação puramente de poder. Como típicos exemplos de limitação constitucional ao poder de tributar vale fazer referência às imunidades

A essas idéias já consagradas entre os tributaristas, ousamos ressaltar outra espécie de limitação imposta ao Estado quando no exercício do seu poder de tributar. Consiste ela na limitação infraconstitucional ao poder de tributar decorrente do princípio da consistência do ordenamento jurídico. Explicamos. Do fato de o legislador constituinte ter resolvido traçar as principais diretrizes e limitações ao exercício do poder de tributar diretamente na Constituição Federal não podemos extrair a conclusão de que ali estão, taxativamente, todas as limitações. O rol constitucional não é exaustivo, como deixa claro o próprio art. 150 da Constituição, o qual assevera que as garantias que estatui existem “sem prejuízo de outras (...) asseguradas ao contribuinte”.

Assim, ao lado das limitações que decorrem diretamente da Constituição Federal, não podemos olvidar das “limitações infraconstitucionais”, de que são exemplos as isenções e, no que concerne mais propriamente ao que se pretende demonstrar neste trabalho, aquelas decorrentes do princípio da consistência do ordenamento jurídico.

Este princípio diz respeito à coerência, harmonia e à unidade interna do ordenamento jurídico, à condição de que este não deve apresentar, simultaneamente, normas jurídicas que se excluam mutuamente, isto é, que sejam antinômicas entre si. O Direito, na sua acepção objetiva, é representado pelo conjunto de textos legais reunidos em um ordenamento jurídico e este deve representar, por exigência social, um todo organizado, em que cada norma ocupe o lugar que lhe corresponde e desempenhe a função que lhe compete.

Como reconhece Norberto BOBBIO,

A situação de normas incompatíveis entre si é uma das dificuldades frente as quais se encontram os juristas de todos os tempos, tendo esta situação uma denominação própria: antinomia. Assim, em considerando o ordenamento jurídico uma unidade sistêmica, o Direito não tolera antinomias (Teoria do ordenamento jurídico – Capítulo 3)

Alude Juarez Freitas que:

as antinomias jurídicas são definidas como sendo incompatibilidades possíveis ou instauradas, entre normas, valores ou princípios jurídicos, pertencentes, validamente, ao mesmo sistema jurídico, tendo de ser vencidas para a preservação da unidade interna e coerência do sistema e para que se alcance a efetividade de sua teleologia constitucional. (FREITAS: 1995, p. 62)

Nesse mesmo sentido, assevera Fábio Ulhôa Coelho:

Ao estudar o material bruto derivado dos atos de vontade expressos em normas jurídicas, a ciência do Direito deve descrevê-lo como um sistema lógico. As antinomias perdem o sentido de contradição através da ciência jurídica, que identifica a ordem positiva como um sistema dinâmico de normas, abstraindo o seu conteúdo e relacionando-as pela trama de competências para a sua produção. O resultado será a própria constituição da ordem jurídica (COELHO: 2001, p. 9-10)

De fato, a complexidade dos problemas que atingem a sociedade exige a existência de normas harmônicas, coerentes entre si, que permitam aos operadores jurídicos uma solução pronta e certeira.

Quando se trabalha com a técnica de interpretação sistemática do Direito, estabelece-se como premissa que o Direito não pode ser interpretado com atenção a uma regra isolada. Esta deve ser compreendida como parte integrante de um grande sistema, possuindo com as demais regras jurídicas uma harmonia lógica. Carlos Maximiliano diz que é dever do aplicador comparar e procurar conciliar as disposições sobre o mesmo objeto e, após harmonizar o conjunto, deduzir o sentido e o alcance de cada uma (MAXIMILIANO: 1994, p. 356).

Por óbvio, as regras jurídicas não são ditadas pelo legislador com o propósito de unidade, mas ao aderirem ao ordenamento jurídico, embora desvinculados dos propósitos iniciais de sua origem, formam um todo único com o ordenamento. Assim, os operadores jurídicos podem defender a tese segundo a qual o ordenamento jurídico é consistente, de forma que as soluções para todos os impasses, especialmente entre normas, neles se encontram presentes, até porque o fenômeno das antinomias jurídicas ocorre com freqüência por circunstâncias inevitáveis e especialmente porque aqueles encarregados de confeccionarem as leis não possuem, nas mais das muitas vezes, o conhecimento técnico necessário para essa atividade.

Pode-se dizer, portanto, que a construção do sistema jurídico exige a solução dos conflitos de normas, pois todo sistema deve ter coerência interna, possibilitando, desta forma, uma solução por meio da lógica jurídica.

Pelo exposto acima, quer-se chegar a duas conclusões preliminares: primeiramente, que o Estado está, sim, sujeito a limitações infraconstitucionais quando no exercício do seu poder de tributar; em segundo lugar, que estas limitações podem decorrer de regras concernentes a normatização de outras searas do direito, tendo por escopo a afirmação do princípio da consistência, unidade e harmonia do ordenamento jurídico pátrio.


5 – Tributação (art. 3º do Código Tributário Nacional) X Perdimento de bens enquanto efeito da condenação (art. 91 do Código Penal).

Pois bem. No ponto, chamamos a atenção para o aparente conflito entre dois institutos de direito: de um lado o efeito secundário da condenação consistente no perdimento de bens, e, de outro, a tributação. Aparente conflito este que consiste na potencial incidência de ambos sobre o proveito decorrente da prática de um ilícito penal.

 Já adentrando na solução proposta para a questão que se coloca, cumpre traçar as devidas distinções entre esses dois institutos.

Tem-se, como único elemento comum entre os institutos do tributo e do perdimento de bens, o fato de que ambos emanam da vontade coativa do Estado para atingir o patrimônio particular de forma compulsória. De fato, a semelhança entre os dois institutos se restringe a este pontual aspecto. Nada mais há de comum entre eles. Ao contrário, saltam aos olhos suas diferenças. Senão, vejamos a partir dos aspectos contrapostos de um e outro abaixo sugeridos:

1) segundo definição insculpida no Código Tributário Nacional, “tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cuja valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”; por sua vez, o perdimento de bens é doutrinariamente conceituado como um dos efeitos secundários, automáticos e extrapenais gerados pela sentença penal condenatória transitada em julgado;

2) o objetivo do tributo pode ser a arrecadação de recursos financeiros ao Estado (função fiscal), a interferência no domínio econômico (função extrafiscal) ou o custeio de atividades que não são próprias do Estado, mas que o mesmo desenvolve através de entidades específicas (função parafiscal); já o objetivo do perdimento de bens é coadjuvar a pena para que esta mais se aproxime do mal praticado pelo agente, e que, por conseguinte, cumpra a contento as suas metas de repressão e prevenção do crime. Nesse sentido, o perdimento de bens também impede que o produto do crime enriqueça o patrimônio do delinqüente, constituindo-se em medida salutar, saneadora e moralizadora.

3) o tributo se insere como objeto de estudo do direito tributário; o perdimento de bens é matéria exclusivamente de direito penal;

4) a hipótese de incidência de um tributo será sempre a descrição de um fato lícito; o fato remoto que gera a aplicação do perdimento de bens será sempre um ilícito penal;

5) o tributo é a expressão consagrada para designar a obrigação ex lege, um dever de caráter patrimonial e, por isso, um sacrifício pecuniário, posto a cargo de certas pessoas, de levar dinheiro aos cofres públicos; o perdimento de bens se apresenta como uma sanção secundária decorrente da prática de um ilícito penal (não é por outro motivo que o CTN, para distinguir o tributo das multas e penalidades - gênero do qual o perdimento de bens é espécie - , inseriu a cláusula “que não constitua sanção de ato ilícito”);

6) a Constituição da República proíbe a utilização do tributo com caráter confiscatório; o perdimento de bens é um exemplo de medida confiscatória, na medida em que busca evitar que o condenado obtenha qualquer vantagem com a prática de uma infração penal;

7) o poder de criar tributos é repartido entre os vários entes políticos, de modo que cada um tem competência para impor prestações tributárias dentro da esfera que lhes é assinalada pela Constituição; já sobre o perdimento de bens, enquanto efeito secundário da condenação criminal, compete tão somente à União legislar (art. 22, I, CF/88).

Extrai-se da exposição acima que os institutos em comento não se confundem. De um lado temos a afirmação do jus tributandi estatal, de outro um dos poderes decorrente do jus puniendi. Ambos pertencem ao monopólio estatal, porém cada qual se aplica em contextos fático-jurídicos específicos, quais sejam, a ocorrência do fato gerador no caso dos tributos e a sentença condenatória transitada em julgado no caso do perdimento de bens.

Em síntese, quer-se dizer que os institutos apresentam hipóteses legais de incidência distintas, a determinar que diante de uma situação de fato, portanto, ou haverá a incidência de um tributo ou a aplicação do perdimento de bens. Um ou outro; nunca ambos, sob pena de colisão entre os dois ramos do direito e afronta ao princípio da unidade do sistema jurídico pátrio.


6 – Conclusão

Já colacionamos acima que duas são as teses, com os respectivos argumentos de direito e de fato já esposados, que se contrapõem relativamente ao tema proposto neste trabalho. De um lado, a tese que advoga a possibilidade do Estado fazer incidir o tributo pertinente sobre determinado proveito fruto de um ilícito penal. De outro, a tese que pugna pela impossibilidade dessa tributação, afirmando que o perdimento de bens, enquanto efeito da condenação criminal, é que é o destino correto dos bens de origem criminosa.

Considerando que as duas teses expostas possuem argumentações igualmente fortes a seu favor, em nosso entendimento a solução para o deslinde da questão se encontra naquilo que Aristóteles afirmou ser um justo meio-termo.

Segundo o filósofo grego, nada deve ser em falta ou em excesso, tudo no meio termo, ou moderadamente. Pois na mediania estaria a concepção de virtude. “O excesso é uma forma de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo é louvado como um acerto”, afirmou Aristóteles no Livro II da obra “Ética a Nicômaco”.

Portanto, no aspecto atinente ao presente trabalho, o justo meio-termo aristotélico estaria nem tanto pela possibilidade pura e simples de incidência de tributação nem tanto pela sua total impossibilidade quando se tratar de incidência sobre produto de crime. Faz-se necessário, sim, procedermos a uma atenta análise da situação-realidade que se apresenta concretamente para então concluirmos pelo instante, ou termo inicial, em que cada um dos institutos em comento terá incidência em detrimento do outro. Em outras palavras, e já adiantando a conclusão proposta, podemos afirmar que tanto a tributação quanto o perdimento de bens deverão ser aplicados diante do fato-base de que determinada pessoa auferiu proveito decorrente de uma atividade criminosa. Porém, cada um desses institutos terá um termo inicial diferente para sua incidência, pois não poderão ser aplicados simultaneamente. Cumpre, dessa forma, saber em que momento a tributação sobre o produto proveniente do crime se afastará e dará lugar à aplicação do perdimento de bens enquanto efeito da condenação criminal.

Expliquemos, portanto. Dispõe a lei sobre a perda em favor da União de todo bem ou valor que, direta ou indiretamente, o agente tenha auferido pela execução do crime. Podem ser confiscados, assim, não só as coisas subtraídas por furto ou roubo, como também as importâncias auferidas. Evidentemente, o produto do crime deverá ser restituído ao lesado ou ao terceiro de boa-fé, só se efetivando o confisco na hipótese de permanecer ignorada a identidade do dono ou não reclamado o bem ou valor.

Prossigamos. Impõe-se, pela sua singular relevância e pertinência, transcrever trechos da lição já acima colacionada da professora Misabel Abreu Machado Derzi, com grifos nossos:

(...) o correto é concluir que estando comprovado o crime do qual se originaram os recursos ou o acréscimo patrimonial, seguir-se-á a apreensão ou o seqüestro de bens, fruto da infração. (...) Não seria ético, conhecendo o Estado a origem criminosa dos bens e direitos, que legitimasse a ilicitude, associando-se ao delinqüente e dele cobrando uma quota, a título de tributo. (BALEEIRO, DERZI, nota da atualizadora; 2006, p. 715/716).

A partir da lição da professora Misabel, podemos extrair uma primeira importante conclusão: tem-se, como pressuposto inafastável para que haja a incidência do perdimento de bens enquanto efeito da condenação, que o crime do qual se originaram os recursos ou o acréscimo patrimonial esteja devidamente comprovado. Em outras palavras, que o Estado conheça efetivamente a origem criminosa dos bens e direitos.

Pois bem. Imaginemos uma situação em que determinada pessoa, através da prática reiterada do crime de estelionato, tenha, por exemplo, auferido renda, através da qual adquiriu uma bela mansão. O inquérito policial é instaurado, a denúncia é oferecida pelo Ministério Público e a sentença condenatória prolatada pelo Juiz transita em julgado. Nesta situação hipotética, podemos extrair dois momentos que devem ser devidamente distinguidos para que cheguemos à conclusão que será proposta: o primeiro momento se inicia a partir do instante em que o agente criminoso aufere os proveitos decorrentes de sua atividade criminosa e termina com o trânsito em julgado da sentença que o condenou por tal prática; o segundo momento, por sua vez, se inicia a partir do termo final do primeiro momento, qual seja, o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Na situação hipotética acima, o primeiro momento será o da incidência da respectiva tributação sobre todos os proveitos auferidos pela prática do crime de estelionato. E este primeiro momento, frise-se, terá por termo inicial o instante em que o agente criminoso aufere os proveitos decorrentes de sua atividade criminosa, e, por termo final, o trânsito em julgado da sentença que o condenou por tal prática. Cumpre salientar que o fato de o Estado cobrar imposto neste momento não tem o condão de legitimar tal atividade criminosa e nem indica qualquer concordância em relação a esta situação fática.

Por sua vez, o segundo momento, que é a situação fático-jurídica mesma que a lei determinou fosse o caso da aplicação do perdimento de bens, terá por termo inicial o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Pois é a partir daí que podemos afirmar, na esteira da lição da professora Misabel, que o Estado conhece a origem criminosa dos bens e direitos.

De fato, não poderia ser de outra forma. Ainda tomando por base o exemplo proposto, como não admitir que haja a incidência do imposto de renda (IR) e do imposto sobre a propriedade territorial urbana (IPTU) sobre os signos presuntivos de riqueza ostentados pelo agente criminoso ao longo do tempo que transcorreu entre a aquisição do proveito decorrente do crime e o respectivo trânsito em julgado da sentença condenatória? Ora, durante todo este período em que, frise-se, o Estado ignorava e desconhecia a origem ilícita daqueles bens e direitos, fatos geradores aconteceram, quais sejam, a “aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos de qualquer natureza” (art. 43 do CTN) e a “propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município” (art. 32 do CTN). E, como é cediço, uma vez verificada a ocorrência do fato gerador, verificado está o pressuposto fático a que a lei imputa a consequência de causar o nascimento do vínculo obrigacional tributário. Afinal, a relação jurídico-tributária, por corresponder à categoria das obrigações ex lege, surge com a realização in concretu, num determinado momento, de um fato, previsto em lei anterior e que dela (lei), recebeu a força jurídica para determinar o surgimento desta obrigação.

Entretanto, o mesmo não se pode afirmar a partir do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Deste instante em diante, considera-se comprovado o crime do qual se originaram os recursos ou o acréscimo patrimonial, e, do mesmo modo, presume-se ser o Estado conhecedor de tal fato. O pressuposto da aplicação do perdimento de bens está configurado, não havendo que se falar mais em fato gerador de qualquer exação fiscal. Desse instante em diante, o ordenamento jurídico, em toda sua coerência, unidade e harmonia, decidiu regrar os fatos com a incidência do perdimento de bens, a cujo domínio passa a se sujeitar aqueles mesmo bens auferidos através da prática de crime. Em outros termos, uma vez declarada procedente a ação penal de forma definitiva, surge a perda em favor da União dos producta sceleris, como efeito automático da condenação.

Pedimos vênia para, conclusivamente, citarmos mais uma situação hipotética a título de exemplo e ilustração do que neste trabalho defendemos. Assim, e.g., se determinado veículo foi adquirido com dinheiro oriundo de resgate de seqüestro, ou seja, se se tratar de proveito de crime, seu proprietário não estará sujeito ao IPVA a partir do trânsito em julgado da sentença penal condenatória que o condenar pelo crime de seqüestro, decisão esta que, uma vez transitada em julgado, será o marco temporal entre a incidência do IPVA e a aplicação do efeito da condenação criminal consistente no perdimento de bens. Isto é, no caso proposto, o fato gerador do IPVA cessa a partir do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, a qual será o termo inicial de uma novel situação jurídica, qual seja, aquela pressuposto da aplicação do perdimento de bens (efeito da condenação).

Elucidativas são as palavras de João Pedro Ayrimoraes Soares Júnior[5]:

Se efetivada a persecução criminal, e punidos os infratores, plenamente restará assegurada a preservação da ordem jurídica e comunitária. Enquanto isso não acontece, porém, que, pelo menos, a capacidade econômica externada nesses proscritos atos contribua, como qualquer outra, para a manutenção do bem comum. Ou, caso tal contribuição não aconteça, que sinalize essa falta a própria prática do crime, como ocorreu ao Agente Eliot Ness, que somente conseguiu desmontar a máfia de Al Capone, a partir da comprovação da sonegação do imposto de renda.

Por fim, cumpre salientar que a exigência do trânsito em julgado da sentença penal condenatória para que o Estado deixe de exercer seu jus tributandi e passe a fazer valer o poder decorrente de seu jus puniendi se justifica pela indispensabilidade de que haja a demonstração inequívoca do vínculo entre a infração penal praticada e o proveito obtido (a coisa ou vantgem adquirida).  E esta demonstração inequívoca do vínculo entre um e outro, como é cediço, no nosso direito pátrio, só se considera atingida no momento em que a decisão penal transitar em julgado. Pois é através da coisa julgada que se chega à “imutabilidade do comando emergente de uma sentença” (LIEBMAN: 1984, p. 54), em que a decisão judicial transpõe os limites de mera situação jurídica para propiciar a eclosão dos seus efeitos principais e secundários com ares de certeza e definitividade. Enquanto isso não ocorre, ou seja, enquanto não restar demonstrado o inequívoco vínculo entre a infração penal e o proveito obtido, nada mais justo que sujeitar tais produtos provenientes do crime à correspondente regra de tributação.

Entendemos tratar-se, o aqui exposto, de solução que mais se coaduna com o princípio da consistência do ordenamento jurídico, enquanto limitação infraconstitucional ao poder de tributar do Estado. Ademais é solução que viabiliza a compatibilização entre dois institutos apenas aparentemente antinômicos.


7 – Referências

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BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, atualizado por Misabel de Abreu Machado Derzi. 7. edição. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

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CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

COELHO, Fábio Ulhôa. Para entender Kelsen. São Paulo: Saraiva, 2001.

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MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Código Penal interpretado. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2007.

MAXIMILIANO: Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994.

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TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 13 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.


Notas

[1] Loteria, bingo e lavagem de dinheiro. Artigo publicada no Jornal do Brasil. Disponível em: http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=108767

[2] STEUERRECHT: 1973, pág. 202, 3ª edição, Munique, 1973, apud ROCHA, Joaquim Manuel Freitas. As modernas exigências do princípio da capacidade contributiva. Sujeição a imposto dos rendimentos provenientes de actos ilícitos. Lisboa, 1998, pág. 86 – citado por Sérgio Baalbaki em artigo disponível em http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1556.

[3] http://www.pucrs.br/direito/graduacao/tc/tccII/trabalhos2006_1/mariana_t.pdf

[4] - HC 77530/RS – Supremo Tribunal Federal; Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE; Julgamento: 25/08/1998; Órgão Julgador: Primeira Turma.

    - HC 7.444/RS – Superior Tribunal de Justiça; Rel. Min. Edson Vidigal, DJ de 03.08.1998; Órgão julgador: Quinta Turma.

    - REsp 984607/PR – Superior Tribunal de Justiça; Relator Ministro CASTRO MEIRA; Julgamento: 07/10/2008; Órgão Julgador: Segunda Turma.

    - HC 83292/SP – Superior Tribunal de Justiça; Relator Ministro FELIX FISCHER; Julgamento: 28/11/2007; Órgão Julgador: Quinta Turma.

[5] Artigo jurídico disponível em http://www.appe.org.br/noticias/a-tributacao-dos-atos-nulos-anulaveis-ilicitos-criminosos-e-imorais-1567.asp


Autor

  • Daniel Lin Santos

    Natural de Belo Horizonte/MG. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais no ano de 2008. Especialista em Direito Tributário pelo Centro de Estudos da Área Jurídica Federal e em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Foi servidor do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Ingressou na carreira de Advogado da União pelo concurso de 2008, tomando posse em 10 de dezembro de 2010, com lotação e exercício na Procuradoria da União do Estado do Acre. Em 12 de janeiro de 2012, tornou-se Procurador-Chefe Substituto da Procuradoria da União do Estado do Acre. Desde março de 2014 está lotado na Consultoria Jurídica da União no Acre.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Daniel Lin. Pecunia non olet: da (im)possibilidade da tributação sobre o proveito auferido com a prática de fato criminoso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4004, 18 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28285. Acesso em: 24 abr. 2024.