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Como mover uma ação judicial contra a "Norma Técnica" do aborto expedida pelo Ministério da Saúde.

Um desafio jurídico

Como mover uma ação judicial contra a "Norma Técnica" do aborto expedida pelo Ministério da Saúde. Um desafio jurídico

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1. O fato:

No dia 09 de novembro de 1998, o Ministro de Estado da Saúde José Serra assinou a Norma Técnica "Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes" [1]. Apesar de a palavra "aborto" estar ausente do título, a morte provocada do nascituro constitui o núcleo dos 6 capítulos que compõem o documento.

A Norma instrui os hospitais do SUS — Sistema Único de Saúde — a praticarem aborto de crianças com até cinco meses de vida, que tenham sido geradas em um estupro. Os procedimentos são descritos detalhadamente, de acordo com a idade da criança:

a) Para crianças com alguns dias de vida (até 72 horas depois de ocorrida a violência sexual) recomenda-se o microaborto, pelo método de Yuzpe, chamado pelo eufemismo "anticoncepção de emergência". O Método de Yuzpe "consiste na tomada de anticoncepcional oral, combinado na dose total de 200 mcg de etinil-estradiol mais 100 mcg de levonorgestrel, em duas doses, com intervalo de 12 horas, sendo a primeira ingestão até 72 horas depois do estupro" [2]

b) Para crianças com até 12 semanas (3 meses), "podem ser utilizados, para o esvaziamento da cavidade uterina [grifei: eufemismo para aborto] os dois métodos identificados a seguir.

1. Dilatação do colo e curetagem

(...)

2. Aspiração Manual Intra-Uterina (AMIU)

(...)" [3]

c) Para crianças entre 13 e 20 semanas (até cinco meses)

"A interrupção da gravidez dar-se-á mediante a indução prévia com misoprostol na dose de 100 a 200 mcg no fundo de saco vaginal, após limpeza local com soro fisiológico, a cada 6 horas. (...) Após a eliminação do concepto [grifei: mais um eufemismo], proceder-se-á a complementação do esvaziamento uterino [grifei: mais um eufemismo] com curetagem, se necessário".

Advirta-se que a Norma evita sistematicamente o uso de termos como "criança", "bebê" ou "nascituro". O verbo "matar" e o substantivo "morte" também são proibidos. No entanto, vale lembrar que o método chamado "curetagem" nada mais é que o esquartejamento da criança com duas lâminas afiadas chamadas curetas e que a "aspiração manual" é o desmembramento do bebê feito através de seringas de vácuo. Quanto ao misoprostol (conhecido comercialmente por Cytotec), trata-se de uma substância que provoca violentas contrações no útero, expulsando o bebê prematuramente.

Em se tratando de crianças de cinco meses, geralmente elas nascem vivas, respiram e choram, embora por pouco tempo. Depois da morte, serão lançadas na lata de lixo mais próxima. Não convém falar de tais assuntos durante uma refeição.

Acima de cinco meses, a Norma recomenda, paradoxalmente, que se poupe a vida do inocente. Neste caso (mas não para crianças mais novas) "deve-se oferecer acompanhamento pré-natal e psicológico, procurando-se facilitar os mecanismos de adoção, se a mulher assim o desejar" [4].

Difícil é entender a lógica de quem elaborou e assinou a Norma Técnica. Será que a vida de um ser humano inocente vale pela sua idade ou pelo seu tamanho? Por que não abortar também os nascituros com idade superior a cinco meses? Ou então, por que não poupar a vida de todos os nascituros, oferecendo-se sempre a assistência psicológica e pré-natal à mãe e facilitando os mecanismos de adoção, se ela o desejar?


2. O fundamento jurídico da "Norma Técnica"

Os elaboradores da "Norma Técnica" [5] nem sequer se deram o trabalho de fundamentar juridicamente o suposto direito de matar um nascituro na legislação brasileira. Há, no entanto, um trecho do capítulo VI que parece fazer referência ao artigo 128 do Código Penal. Este trecho fala dos documentos e procedimentos obrigatórios para a realização do aborto e daqueles que são apenas recomendados (mas sem obrigatoriedade):

Documentos e procedimentos obrigatórios

- Autorização da grávida – ou, em caso de incapacidade, de seu representante legal –, para a realização do abortamento, firmada em documento de seu próprio punho, na presença de duas testemunhas – exceto pessoas integrantes da equipe do hospital –, que será anexada ao prontuário médico.

- Informação à mulher – ou a seu representante legal –, de que ela poderá ser responsabilizada criminalmente caso as declarações constantes no Boletim de Ocorrência Policial (BOP) forem falsas.

- Registro em prontuário médico, e de forma separada, das consultas, da equipe multidisciplinar e da decisão por ela adotada, assim como dos resultados de exames clínicos ou laboratoriais.

- Cópia do Boletim de Ocorrência Policial.

Recomendados

- Cópia do Registro de Atendimento Médico à época da violência sofrida.

- Cópia do Laudo do Instituto de Medicina Legal, quando se dispuser. [6]

É interessante notar que a mulher não precisa provar que sofreu violência sexual para requerer o aborto. Os documentos comprobatórios (Registro de Atendimento Médico, Laudo do IML — Instituto Médico Legal...) são apenas recomendados. O único documento a ser apresentada pela suposta vítima é a cópia do Boletim de Ocorrência Policial assinado por ela mesma. Como todos sabem, a lavratura do Boletim de Ocorrência pode ser feita apenas com o comparecimento exclusivo de alguém na repartição policial. Estão assim escancaradas as portas para a falsificação de estupros e o aborto em série.

Convém lembrar que a decisão judicial que declarou legal o aborto em todos os EUA ocorreu graças à queixa de uma jovem "estuprada", Jane Roe, cujo Estado (o Texas) proibia o aborto após uma certa etapa da gestação. Impossibilitada de abortar, Jane Roe recorreu a Washington. A Corte Suprema decidiu, por 7 votos contra 2, no trágico dia 22 de janeiro de 1973 [7], que a criança por nascer não é pessoa, e que, portanto, não tem nenhum direito, a começar pelo direito à vida. Declarou inconstitucional qualquer lei estadual que pusesse proibições ao aborto, inclusive a lei do Texas. Assim o aborto entrou nos EUA. Os americanos certamente sensibilizaram-se com a situação da mulher "estuprada".

Vinte e dois anos depois, em 1995, Jane Roe contava toda a verdade à revista Newsweek: "Ela não tinha, de fato, sido estuprada. Inventou a estória para ganhar simpatia e aumentar as chances de obter um aborto." [8] A fraude, muito bem orquestrada, causou (e ainda está causando) a morte de milhões de inocentes. Hoje, terrivelmente arrependida, Jane Roe (cujo verdadeiro nome é Norma Mc Corvey) milita no movimento pró-vida dos EUA.

Será que apenas a mulher norte-americana é capaz de mentir? Será que uma mulher, já decidida a matar o próprio filho, teria algum escrúpulo para não dizer mentira? [9]

Façamos abstração, porém, desse comentário. Suponhamos que, de acordo com a Norma Técnica, só seja realizado aborto em caso de verdadeiro estupro. Em que lei brasileira está escrito que existe o "direito" ao aborto em tal caso? Pela maneira como foi redigida a Norma, parece que ela faz menção ao art. 128 do Código Penal, que assim se exprime:

"Não se pune o aborto praticado por médico:

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal."

De fato, a exigência da "autorização da grávida" ou, em caso de incapacidade, "de seu representante legal" são uma citação quase textual do inciso II do art. 128 CP. Além disso, a advertência à mulher de que ela pode ser responsabilizada criminalmente caso as informações por ela fornecidas sejam falsas, supõe que os autores da Norma crêem que, fora dos casos citados no art. 128, o aborto é crime.

Trata-se de uma doutrina muito difundida pela imprensa, segundo a qual, no direito positivo brasileiro, a vida humana é inviolável, "mas não muito". Haveria "permissão" para a prática do aborto em dois casos.

O objetivo do presente trabalho é demonstrar a não existência de qualquer aborto "legal" no ordenamento jurídico brasileiro e, por conseguinte, demonstrar a ilegalidade e a inconstitucionalidade da Norma Técnica.

O passo seguinte — mover uma ação judicial para sustar a aplicação da Norma Técnica — ficará como desafio para os especialistas em Direito Processual.


3. A clássica doutrina do "aborto legal"

Clássico é aquilo que é "usado nas aulas ou classes" [10]. Quase todo estudante de Direito Penal ouve o professor dizer que no Brasil há dois casos de aborto "legal", correspondentes aos incisos I e II do art. 128 do Código Penal. Cito textualmente o penalista RICARDO DIP, ferrenho opositor da tese do aborto "legal":

A doutrina penal brasileira tende a afirmar que essas referidas hipóteses constituem ambas causas de justificação, vale dizer, excludentes da antijuridicidade ( por exemplo: Magalhães Noronha, II - N. 286; Paulo José da Costa júnior, II - p. 37; Damásio de Jesus, II - p. 136-137; Fabbrini Mirabete, II - P. 82; Mayrink da Costa, Parte Especial, II - I, p. 191; Fragoso, Parte e Especial, I, p. 85). [11]

É forçoso, portanto, reconhecer que a maioria dos doutrinadores interpreta os casos referidos no art. 128 do Código Penal como "excludentes da antijuridicidade" ou "excludentes da ilicitude", vale dizer, como a concessão de um direito ao aborto.


4. A doutrina dissidente, que nega o "aborto legal"

No entanto, tal opinião, embora majoritária na doutrina penalista divulgada, não é consensual. Figuras de destaque no mundo jurídico brasileiro negam terminantemente a existência de qualquer direito de matar um inocente nas hipóteses do referido dispositivo penal. Entre elas, podemos citar alguns nomes, apenas a título de exemplo:

IVES GANDRA MARTINS, professor emérito das Universidades Mackenzie, Paulista e Escola de Comando e Estado Maior do Exército, presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária (CEU). Autor, juntamente com CELSO RIBEIRO BASTOS, de Comentários à Constituição do Brasil (2ª edição, 2000, Editora Saraiva).

WALTER MORAES, a maior autoridade brasileira em direitos da personalidade, ex-Desembargador do Tribunal do Justiça do Estado de São Paulo, falecido em 18 de novembro de 1997.

RICARDO HENRY MARQUES DIP, Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, membro da Academia Paulista de Direito; professor convidado em pós-graduação na Universidade Católica de Buenos Aires e na Faculdade de Direito de Alphaville – SP; Autor de diversos artigos e livros dentre os quais se destacam: "Uma questão Biojurídica Atual: A Autorização Judicial de Aborto Eugenésico – Alvará para Matar (1996, Revista dos Tribunais, vol. 734) e o mais recente livro: Direito Penal: Linguagem e Crise (2000, ed. Millennium).

JAQUES DE CAMARGO PENTEADO: Procurador de Justiça aposentado, exercendo atualmente a advocacia no Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo, tem vários livros e artigos publicados, destacando: A Família e a Justiça Penal (1988, ed. Revista dos Tribunais); Acusação, Defesa e Julgamento (2001, ed. Millennium); Co-organizou e foi também co-autor do livro A vida dos Direitos Humanos – Bioética Médica e Jurídica (1999, ed. Sérgio Fabris).

Geralmente o estudante de Direito aceita como verdade o que vem do professor. E este aceita como verdade o ensinado pela maioria dos doutrinadores. No entanto, a grandeza de um jurista não está em repetir mecanicamente o que ouviu dos mestres. Ao defender uma tese, muito mais do que dizer "foi-assim-que-me-ensinaram" ou "aprendi-assim-na-faculdade", o jurista tem o direito — e até o dever — de examinar a solidez da doutrina habitualmente ensinada e aprendida. A este respeito, vejamos o que diz MIGUEL REALE:

O verdadeiro advogado é aquele que, convencido do valor jurídico de uma tese, leva-a a debate perante o pretório e a sustenta contra a torrente das sentenças e dos acórdãos, procurando fazer prevalecer o seu ponto de vista, pela clareza do raciocínio e a dedicação à causa que aceitou. É nesse momento que se revela advogado por excelência, que se transforma em jurisconsulto. [12]

Não se quer, com isto, desprezar o valor que tem o argumento da concórdia majoritária em torno de uma tese. Assume-se que é mais fácil alguém enganar-se sozinho do que em dupla. Assim — raciocina-se — quanto maior o número de pessoas concordes com o mesmo juízo, maior a possibilidade de ele ser verdadeiro.

No entanto, a História conhece casos em que a maioria errou, e errou grosseiramente. Foi a maioria dos presentes à Corte de Pilatos que optou pela crucifixão de Jesus. Mais recentemente, em 1857 a Suprema Corte dos Estados Unidos emitiu a sentença "Dred Scott", na qual, por sete votos favoráveis e dois contrários, declarava-se que o negro não tinha personalidade jurídica e que não gozava de direito algum, sendo propriedade de seu dono.

Superando o postulado falho de que "a maioria tem sempre razão", pretendo demonstrar que, no controvertido tema do chamado "aborto legal", a verdade está com a aparente minoria dos penalistas, que nega a existência da legalidade de qualquer assassinato intra-uterino.

Embora defendida expressamente por poucos, a tese que exponho é fácil de ser entendida e impõem-se ao intelecto de qualquer pessoa isenta de parcialidade.


5. A simples exegese

Um dos princípios fundamentais da hermenêutica é "deixar o texto falar", a fim de extrair o que nele está contido. Uma das tentações a serem vencidas é a de inserir no texto a opinião do leitor. Neste último caso, não se estaria fazendo uma "exegese", mas uma "in-egese".

Uma simples leitura atenta do art. 128 do Código Penal bastaria para que se concluísse que nele não está contido um direito de abortar, mas tão-somente uma não aplicação da pena após o fato já consumado. A expressão "não se pune", que inicia o "caput" do artigo, não nos permite ir além. A esse respeito, cito textualmente RICARDO DIP:

A leitura do caput do mencionado art. 128 ("Não se pune etc.") está, para logo, a sugerir que aí se acham causas isentas de apenamento ou, quando muito, excludentes da punibilidade, como resulta de avultado critério hermenêutico, assim referido pelo grande penalista que foi Basileu Garcia: "... o nosso estatuto penal usou do seguinte sistema, segundo esclarecimentos prestados por um dos autores do projeto - Nelson Hungria: a expressão "não há crime" indica a presença de causas justificativas; e as expressões "não é punível", "não é passível de pena", "está isento de pena" e outras semelhantes compreendem as dirimentes" (I -n.95).

Está a cuidar-se das chamadas escusas absolutórias, causas que, excluindo a pena, deixam subsistir, contudo, o caráter delitivo do ato a que ela se relaciona. Sua essência, é lição de Jiménez de Asúa, "reside em que não suprimem a ação, nem a tipicidade, nem a antijuridicidade, tampouco a imputabilidade e culpabilidade, mas, utilitatis causa e por motivos atinentes à relação pessoal ou à peculiaridade da conduta concreta de um sujeito, a lei perdoa a pena" (VII -n.1963). Trata-se de causas que impedem a imposição da pena (assim se expressa Creus, 378). Consagrando uma impunidade, nada obstante a existência de uma conduta típica, antijurídica e culpável (como se define o crime); pode dizer-se, com Maurach, que aí se encontra um delito impune (§ 32 - II - 2). Assim, no CP brasileiro, acham-se, por exemplo, escusas absolutórias previstas no art. 181 (crimes contra o patrimônio praticados pelo cônjuge, na constância da sociedade conjugal, ou por ascendente da vítima) e no art. 348, § 2º (no crime de favorecimento pessoal, ser o prestador do auxílio ascendente, descendente, cônjuge ou irmão do criminoso). Numa frase expressiva - muito embora seu autor a considere um tanto exagerada -, Jiménez de Asúa diz graficamente: "... nas causas de justificação não há delito; nas de imputabilidade ( e, pode acrescentar-se, também nas de inculpabilidade) não há delinqüente; nas escusas absolutórias não há pena" (VII -n.1959). [13]

O comentário do penalista acima é claro. Nenhum jurista de bom senso, ao examinar o art. 181 CP, que não aplica pena a crimes contra o patrimônio praticado entre familiares, diria que os filhos têm o direito de furtar de seus pais. Nenhum magistrado, em são juízo, se arvoraria nesse dispositivo para conceder a um cidadão um alvará para furtar do próprio pai. Nenhum Ministro de Estado da Educação (assim espero) baixaria uma "Norma Técnica" instruindo os professores da rede escolar a ministrar a disciplina "furto legal", na qual os alunos aprendessem as maneiras mais eficientes de surrupiar coisas do papai e da mamãe. Todos esses disparates poderiam ocorrer se se confundisse a não punição do furto com o direito prévio de furtar.

No entanto, o furto é um delito leve, se comparado ao aborto. Trata-se de um crime contra o patrimônio (Título II da Parte Especial do CP) ao passo que o aborto é um crime contra o mais fundamental de todos os direitos: a vida (Capítulo I, Título I, Parte Especial do CP).

A expressão "não se pune" contida no art. 128 CP tem sido usada:

— para que doutrinadores digam que em nossa pátria há um direito ao aborto em dois casos;

— para que juízes emitam verdadeiros alvarás para matar;

— para que parlamentares apresentem projetos de lei para "regulamentar" o exercício de tal "direito" [14], obrigando o SUS a praticar aborto em tais casos.

— para que o Ministério da Saúde expedisse em 09/11/1998 uma "Norma Técnica" instruindo os profissionais de saúde da rede hospitalar pública a matar inocentes gerados em um estupro [15].

Tudo isso ocorre pela confusão entre a não punição de um crime (no caso, o aborto) em determinadas circunstâncias e a permissão prévia para cometê-lo (inclusive com o dinheiro público!).


6. A fragilidade da posição abortista

Quase a totalidade dos autores de livros sobre Direito Penal usados em nossas faculdades defende a existência de um aborto "legal". Por exemplo: NÉLSON HUNGRIA (Comentários ao Código Penal, 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. v. 5. p. 306-313) CELSO DELMANTO (Código Penal Comentado, 3. ed. Renovar, 1991. p. 216), HELENO CLÁUDIO FRAGOSO (Lições de Direito Penal, 10. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1988. v. 1. Parte Especial. p.145).

No entanto, a melhor apologia da não existência do aborto "legal" é obtida examinando-se as palavras dos autores abortistas. Eles manifestam um mal-estar diante da redação do art. 128 CP, que não lhes favorece a tese.

Assim, por exemplo, a respeito das duas hipóteses previstas no art. 128 CP, escreve JÚLIO FABBRINI MIRABETE:

São causas excludentes de criminalidade, embora a redação pareça indicar causas de ausência de culpabilidade ou punibilidade (grifei). [16]

O mesmo lamento encontramos em MAGALHÃES NORONHA:

Segundo cremos, não é das mais felizes a redação do art. 128. Se o fundamento do inc. I é o estado de necessidade, e o do II ainda o mesmo estado, conforme alguns, ou a prática de um fato lícito, não nos parece que na técnica do Código se devia dizer "não se pune..." Dita frase pode levar à conclusão de que se trata de dirimente ou de escusa absolutória (grifei), o que seria insustentável. Em tal hipótese, a enfermeira que auxiliasse o médico, no aborto, seria punida. Nos incisos do art. 128, o que desaparece é a ilicitude ou antijuridicidade do fato, e, conseqüentemente, devia dizer-se: "Não há crime". [17]

Diante de uma lei que não diz o que quereríamos ouvir, podemos lamentar. Porém, não mais do que isso. Assim, pode-se entender psicologicamente que MAGALHÃES NORONHA sinta compaixão pela enfermeira que auxiliou o médico a matar o nascituro. Pois, segundo esse autor, para o médico haverá uma imunidade penal, mas não para a enfermeira. Analogamente, os doutrinadores poderiam lamentar que a lei, embora isente de pena o filho que furtou do pai (art.181 - II CP), não perdoe o colega que foi cúmplice do mesmo furto. Poderiam ainda lamentar que a lei, embora não aplique pena à mãe que escondeu seu filho delinqüente da polícia (art. 348 §2º CP), não perdoe a vizinha que a auxiliou a favorecer o criminoso. Tudo isso tem explicação psicológica. Mas só psicológica.

O que ocorreu é que penalistas, psicologicamente inconformados, procuraram uma fórmula "lógica" que os favorecesse.


7. A "fórmula" dos abortistas

Para resolver a questão da enfermeira, transformando o não punível em lícito, JOSÉ FREDERICO MARQUES parece ter "achado a fórmula". Diz ele, criticando MAGALHÃES NORONHA:

Parece-nos que não atentou bem o ilustre mestre para os precisos dizeres da lei. Se nela se dissesse que não se pune o médico que pratica o aborto necessário ou o aborto advindo de estupro, então sim, poderia falar-se em dirimente. O texto, no entanto, alude à não punição do fato típico: não se pune o aborto, é o que reza a norma legal. Ora, fato impunível é, por definição, fato que não constitui crime. [18]

DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS repete, quase com as mesmas palavras, o argumento acima:

A disposição não contém causas de exclusão da culpabilidade, nem escusas absolutórias ou causas extintivas da punibilidade. Os dois incisos do artigo 128 contém causas de exclusão de antijuridicidade. Note-se que o CP diz que "não se pune o aborto". Fato impunível, em matéria penal, é fato lícito. Assim, na hipótese de incidência de um dos casos do artigo 128, não há crime por exclusão de ilicitude. Haveria causa pessoal de exclusão de pena somente se o CP dissesse "não se pune o médico". [19]

Eureka! Está encontrada a fórmula! O artigo 128 diz que não se pune o aborto praticado por médico, em vez de dizer que não se pune o médico que pratica o aborto. Logo, nada mais lógico (?) que concluir que em tais casos o aborto é "legal".

Mas afinal, que diferença semântica há entre punir o aborto praticado pelo médico e punir o médico que pratica o aborto? Nenhuma. Absolutamente nenhuma. Podemos imaginar um médico cumprindo pena na cadeia por ter cometido aborto. Mas ninguém consegue imaginar o aborto "atrás das grades", sofrendo punição. Punir o crime e punir o agente do crime são coisas exatamente iguais. A diferença é puramente verbal.


8. "Fato impunível, em matéria penal, é fato lícito"?

Enquanto JOSÉ FREDERICO MARQUES diz que "fato impunível é, por definição, fato que não constitui crime", DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS vai além: "Fato impunível, em matéria penal, é fato lícito". Ambos os penalistas, porém, defendem a mesma tese: há no ordenamento jurídico brasileiro o direito subjetivo de abortar nas hipóteses do art. 128 CP.

Ocorre que nenhum dos doutrinadores apresenta a justificação de sua fórmula, como se ela fosse evidente por si mesma. Uma veemente crítica a isso é apresentada por WALTER MORAES:

Qual a base objetiva dessa linha de argumentação?

Que sustento técnico-penal ou que fundamento hermenêutico nos autorizaria reconhecer que a lei, quando dispõe que não se pune o agente está a reprimir a pena e quando dispõe que não se pune o fato está a excluir a ilicitude?

A verdade é que a imperfeita uniformidade e as imprecisões da nomenclatura legal são fatores desfavoráveis à interpretação. Pelo contrário, muitas vezes alimentam entendimentos contraditórios, perplexidades e discussões sem fim.

Considerando apenas os elementos punibilidade e pena, observe-se como o Código se exprime: "não se pune" a tentativa impossível (art.17); "ninguém pode ser punido" (agente) por crime culposo a não ser nos casos expressos (art. 18, parágrafo único); é "isento de pena" autor de crime putativo (art. 70, § 1º); "não é punível" quem age sob coação irresistível ou em obediência a ordem não manifestamente ilegal (art. 22), etc.

Não são, todas estas, hipóteses onde faltam componentes da ilicitude objetiva ou do elemento subjetivo do crime?

Franqueada ao intérprete essa versatilidade de soluções, os arrazoados penais perdem às vezes muito de sua seriedade, assemelhando-se mais a um engenhoso arranjo de palavras, tanto melhor sucedido quanto mais habilidade verbal tenha o escritor, do que a uma verdadeira argumentação jurídica [20].

O ilustre WALTER MORAES tem razão. Tal arrazoado não passa de um jogo de palavras, o que ficará ainda mais claro se observarmos outros dispositivos penais comentados por seus autores. Vejamos:

JOSÉ FREDERICO MARQUES diz, acertadamente, que o suicídio é um ato ilícito. Não obstante, diz que tal ato, que é ilícito, é impunível:

Quer parecer-nos, porém, que a ordem jurídica considera o suicídio como ato ilícito, embora não punível. A outra conclusão não leva o que dispõe o art. 146, §3º, nº II, do Código Penal, que considera lícita a coação exercida para impedir suicídio, justamente por ser ato destinado a evitar a prática de uma conduta ilícita.

(...)

Por considerar o suicídio como um ato ilícito, incrimina o legislador os atos de cooperação, ajuda e incitamento desse atentado contra a vida. Não tutela o Código Penal à vida humana, de maneira direta, no tocante aos atentados de seu respectivo titular, e dessa forma, considera o suicídio como ilícito não punível, mas se o tem por antijurídico, admissível é que procure reprimir, com sanções que lhe são peculiares, àquele que incita outrem a eliminar a própria existência, ou lhe fornece auxílio e colaboração para cometer tal violação à ordem jurídica. [21]

Ora, segundo a fórmula "fato impunível, em matéria penal, é fato lícito" o suicídio deveria ser lícito. No entanto, FREDERICO MARQUES considera-o um "ilícito não punível", sem vislumbrar qualquer contradição interna. Note-se que o penalista não teve sequer a preocupação de dizer que o suicida (o agente) fica isento de pena; disse que o suicídio (o fato) é impunível. Nem por isso, considera-o legítimo, como o faz com o aborto.

DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS comenta o art. 142 CP, cujo inciso I assim se exprime:

"Não constituem injúria ou difamação punível:

I - a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador"

No caso, o que não é punível é o fato (a ofensa). Logo, tal ofensa deveria ser lícita. E realmente é assim que o doutrinador a considera:

Não é ilícita (grifei) a injúria ou difamação praticada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador. Pode ser oral (alegações em audiência, debates no julgamento do Júri etc.) ou escrita (petição, alegações, razões de recurso etc.) É necessário que a ofensa seja praticada em juízo, na discussão da causa contenciosa, voluntária ou administrativa. [22]

Ora, na expressão "não é ilícita" o advérbio negativo "não" cancela-se com o prefixo negativo "i". Ou seja, "não é ilícita" = "é lícita". DAMÁSIO defende então um tipo particular de ofensa à honra que seria lícita ou legal. Teria então o advogado o direito de, no exercício de sua profissão, ofender a honra alheia.

Mas para que uma conduta seja lícita, não basta que seja impunível. É preciso que não viole qualquer lei vigente. É verdade que o art. 142, que trata de injúria e difamação impuníveis, traz como rubrica "Exclusão do crime". Mas será que basta que algo não seja crime para que seja lícito? Vejamos o que diz WALTER MORAES:

No caso da injúria irrogada em juízo, a lei que proíbe às partes e advogados de "empregar expressões injuriosas" (Código de Processo Civil, art.15), não pode estar ao mesmo tempo autorizando lançá-las as mesmas partes e advogados. Desaparece a punibilidade (o crime), permanece o ilícito. [23]


9. E a constitucionalidade?

Embora haja a tendência e a necessidade de especialização crescente do Direito, convém sempre lembrar que qualquer ramo do Direito Positivo subordina-se ao Direito Constitucional, e este ao Direito Natural.

Um engenheiro não poderia especializar-se de tal modo em coberturas, que se esquecesse das vigas e dos pilares que lhes servem de apoio. Nem poderia projetar estes últimos sem levar em conta a fundação que os sustenta.

Assim, um especialista em Direito Penal deve sempre ter em mente que o Código Penal não pode contrariar a Carta Magna. No exemplo anterior, o art. 142 CP pode declarar que determinados tipos de injúria ou difamação sejam impuníveis. Pode mesmo declarar que não constituem crime. Mas não pode dar a um cidadão, como o advogado, o "direito" de cometê-las, sob pena de violar o direito constitucional à honra, expresso no art. 5º inciso X da Constituição Federal:

"São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

Também o inciso V do art. 5º refere-se à "indenização por dano material, moral ou a imagem". Em outras palavras, embora o advogado que ofenda em juízo a honra de uma das partes, não possa ser processado criminalmente, está todavia sujeito a uma ação indenizatória por danos morais. Não há — nem poderia haver — no direito positivo brasileiro, a faculdade de ofender a honra de outrem ou de causar danos morais a outrem.

O que vale para o direito constitucional à honra, vale com maior razão (a fortiori) para o direito constitucional à vida. Eis o que diz RICARDO DIP contra os defensores da tese de que há aborto "legal" no Brasil:

Nada obstante a patente autoridade desses referidos mestres do Direito penal pátrio, as hipóteses previstas em ambos os itens do art. 128, Código Penal, ou configuram isenções de pena - no limite, dirimentes (causas de exclusão da culpabilidade ou da punibilidade) -, ou se fulminam de manifesta inconstitucionalidade. [24]

Não custa recordar aqui os dispositivos constitucionais que seriam violados caso se quisesse ver no art. 128 CP a concessão de algum "direito" ao aborto:

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade...

Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida...

Há quem discorde da rigidez dos direitos e garantias individuais listados no Título II de nossa Constituição Federal. Segundo tais autores, a Carta Magna apenas ditaria o espírito da ordem jurídica, mas admitiria exceções abertas pela legislação infraconstitucional. Assim — argumentam — se o direito à liberdade fosse rígido, ninguém poderia ser preso; se o direito à propriedade fosse rígido, ninguém poderia sofrer pena de multa; se o direito à vida fosse rígido, ninguém poderia matar em legítima defesa...

Note-se, porém, que o Estado não tem o direito de privar alguém arbitrariamente de seu direito à liberdade de locomoção. Um criminoso pode ser preso com justiça, mas porque, no ato de seu crime, perdeu, ao menos de modo temporário, a amplitude do exercício de seu direito à liberdade.

Também não pode o Estado, a seu talante, extorquir os bens do cidadão. Um motorista pode, com justiça, ser obrigado a pagar um multa em decorrência de uma infração ao Código de Trânsito. Mas porque, no e pelo ato da infração, se submete a uma restrição efetiva ao direito de propriedade daquela quantia.

Um cidadão pode matar um agressor injusto em legítima defesa. Mas isso porque o agressor, titular do direito à vida, tem limites ao exercício desse direito, limites que desbordou no ato de sua agressão. Mesmo assim, o valor da vida é tamanho que, ao defender-se, o agredido deve usar "moderadamente dos meios necessários"(art. 25 CP). Ou seja, deve, sempre que possível, poupar a vida do agressor.

Vale a pena aqui citar mais uma vez WALTER MORAES:

Mas — indagariam — o direito natural não reconhece nunca uma possibilidade de matar legitimamente?

Sim. Reconhece.

Para o direito natural, p. ex., não é ilícito uma pessoa matar em legítima defesa da própria vida; desde que a repulsa letal seja rigorosamente necessária, moderada e proporcional à agressão: moderamen inculpatae tutelae vitae.

Por fundamento algo assemelhado, o direito natural não reprova também, em princípio, a pena de morte, se bem que com muitos resguardos quanto às condições concretas de tal pena e quanto ao meio e momento social.

Mas o direito natural não reconhece, nunca, direito de matar.

A morte em defesa legítima (para ilustrar) é um princípio de direito à vida, e não à morte. Permitir defesa legítima com morte é confirmar o direito à vida do defensor.

Seria bom perceber a distinção.

Uma coisa que a lei natural jamais tolera — jamais — é matar o inocente; como é o caso do aborto: que tem a ver o filho com o fato de ter sido concebido através de estupro? [25]

Ao assegurar a inviolabilidade do direito à vida, a Constituição está dizendo que ninguém pode ser morto arbitrariamente. Para se dizer que tal garantia constitucional não se aplica ao nascituro concebido em um estupro seria preciso provar:

— ou que o nascituro não é titular de direitos, nem sequer do direito à vida;

— ou que ele, antes titular do direito à vida, perdeu esse direito em virtude de um ato culpável.

Nenhuma dessas hipóteses se verifica. O Código Civil diz explicitamente que "a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro"(art. 4º). Logo, o nascituro é titular de direitos (a começar pelo direito à vida, sem o qual nenhum dos demais teria consistência).

Além disso, o nascituro não é capaz de praticar atos culpáveis (por exemplo, uma agressão injusta) que lhe tire o direito à vida. Das três pessoas envolvidas no crime do estupro — o estuprador, a mulher estuprada, a criança concebida — certamente não se poderá negar a absoluta inocência da última. A provocação de sua morte é uma injustiça monstruosa, cuja arbitrariedade fere frontalmente os dispositivos constitucionais que protegem a vida.

Há ainda um outro dispositivo que é violado. Trata-se de um princípio consagrado em nossa Constituição de que "nenhuma pena passará da pessoa do condenado" (art. 5º - inciso XLV). O pai da criança não sofrerá mais do que dez anos de reclusão, que é a pena máxima para o estupro (art. 213 CP). Mas isso, só depois de um julgamento, e com amplo direito de defesa. Ao condenar sumariamente o bebê à morte, a pena não apenas passa do pai para o filho, mas é aumentada: de pena de reclusão para pena de morte!

Em suma, o Código Penal enquanto legislação infraconstitucional, pode, em determinadas circunstâncias, deixar de aplicar a pena a um delito contra a vida. Poderia até declarar que tal delito não constitui crime. Mas não está em seu poder dizer que é lícito o atentado direto contra a vida de um inocente. O dia em que uma lei ordinária puder fazer exceção aos direitos fundamentais assegurados na Constituição, terá chegado a hora de jogar esta última no cesto de lixo.


10. Código Penal é código de direitos ou de crimes?

Em toda essa controvérsia sobre o chamado aborto "legal", é impressionante que seus defensores usem como argumento um Código cuja função não é elencar direitos subjetivos dos cidadãos, mas violações a esses direitos, tipificadas como crimes.

Suponhamos — apenas para argumentar — que houvesse no Brasil o "direito" de alguém matar o próprio filho. Se existisse, o lugar próprio para se encontrar tal direito seria o Código Civil, e não o Código Penal. Seria algo como a Tábua Quarta da Lei das Doze Tábuas, que no Direito Romano tratava "do pátrio poder e do casamento":

1. É permitido ao pai matar o filho que nasceu disforme, mediante o julgamento de cinco vizinhos.

2. O pai terá sobre os filhos nascidos de casamento legítimo o direito de vida e de morte e o poder de vendê-los. [26]

O Código Penal, que é essencialmente um código de crimes e de penas a ele associadas, seria o último lugar onde alguém poderia procurar um direito civil.

Peço licença ao ilustre JOSÉ GERALDO BARRETO FONSECA, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para citar o genial argumento que dele ouvi. Diz o jurista que o simples fato de o Código Penal mencionar o aborto como meio para salvar a vida da gestante ou quando a gravidez resulta de estupro, já indica que tal aborto é crime. Jocosamente ele explica que o Código não diz, por exemplo: "não se pune a mãe que amamenta o filho". Pois, como amamentar o filho não é crime, não há razão para se dizer que "não se pune". Qualquer conduta descrita no Código Penal é, portanto, crime, a menos que se diga explicitamente o contrário.


11. Existe o "penalmente lícito"?

O conteúdo do Direito Penal abarca o estudo do crime, da pena e do delinqüente, que são os seus elementos fundamentais, precedidos de uma parte introdutória. [27]

Pela lição acima, de DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS, cabe ao Direito Penal, cuidar, não do que é lícito, mas do que é ilícito. Mais precisamente: de uma parte dos atos ilícitos tipificados como crimes, aos quais normalmente estão associadas penas. Assim, os crimes são conhecidos como "ilícitos penais" (uma vez que há outros ilícitos, não elencados no Código Penal, mas que violam o Direito Civil, Constitucional etc.).

Isso posto, falar em um "lícito penal" é, no mínimo, estranho. O "penalmente lícito" assemelha-se ao erradamente certo ou ao proibidamente permitido. Pois é exatamente isto que encontramos na Exposição de Motivos do Código Penal, publicada no Diário Oficial da União de 31 de dezembro de 1940, de autoria do então Ministro da Justiça Francisco Campos. Diz a passagem que comenta o art. 128 CP:

Mantém o projeto a incriminação do aborto, mas declara penalmente lícito (sic!), quando praticado por médico habilitado, o aborto necessário, ou em caso de prenhez resultante de estupro. Militam em favor da exceção razões de ordem social e individual, a que o legislador penal não pode deixar de atender (n. 41). [28]

Será autêntica esse estranha interpretação sobre a "licitude" do aborto? A Exposição de Motivos não tem garantia de interpretar autenticamente o Código Penal, como observa DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS:

A Exposição de Motivos constitui interpretação autêntica?

A Exposição de Motivos não é interpretação autêntica, uma vez que:

1) não é uma lei;

2) não tem força obrigatória;

3) é possível notar-se antinomia entre ela e o texto legal (cf. Basileu Garcia. Instituições de direito penal. 1980. v. 1, t. 1, p. 170).

Vale como forma de interpretação doutrinária. [29]


12. Tentativas de mudar "não se pune" para "não constitui crime"

Em fins de 1995 estava em tramitação na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional n.º 25-A/95 (PEC 25-A/95) de autoria do deputado Severino Cavalcanti, que pretendia alterar a redação do "caput" do art. 5º, acrescentando a expressão "desde a concepção" após as palavras "inviolabilidade do direito à vida". O objetivo não era criar um novo direito, nem ampliar um já existente, mas tão somente explicitar o alcance da proteção constitucional à vida, que começa com a concepção.

Nessa época o Correio Braziliense publicou em seu caderno "Direito e Justiça" um artigo de MARCO ANTÔNIO DA SILVA LEMOS, Juiz de Direito no Distrito Federal, intitulado O alcance da PEC 25A/95. Argumentava o magistrado que a pretendida emenda era totalmente dispensável para se assegurar a proteção do nascituro. No final, escreveu um parágrafo esclarecendo a não existência do aborto legal no Brasil:

Demais disso, convém lembrar, logo de imediato, que o art. 128, CP, e seus incisos, não compõem hipóteses de descriminalização do aborto. Naquele artigo, não está afirmado que "não constitui crime" o aborto praticado por médico nas situações dos incisos I e II. O que lá está dito é que "não se pune" o aborto nas circunstâncias daqueles incisos. Portanto, em nossa legislação penal, o aborto é e continua crime, mesmo se praticado por médico para salvar a vida da gestante e em caso de estupro, a pedido da gestante ou de seu responsável legal. Apenas - o que a legislação infraconstitucional pode e deve fazer, porque a Constituição, como irradiação de grandes normas gerais, não é código e nem pode explicitar tudo - não será punido penalmente, por razões de política criminal. [30]

Impressionado por ver alguém defendendo uma tese em geral não aceita pelos penalistas, procurei o autor do artigo e pedi-lhe detalhes sobre sua argumentação. Ele então escreveu-me uma carta, da qual transcrevo o seguinte trecho:

"Não existem palavras inúteis na lei. Se a expressão "não se pune" constante do art. 128, CP, equivalesse à expressão "não há crime", seria desnecessário alterá-la. Tanto ela não corresponde que, no Anteprojeto Nelson Hungria para a reforma do CP, previa-se essa alteração (a expressão "não se pune" seria substituída pela "não há crime"), e o próprio e famoso Código Penal de 1969, promulgado e revogado sem que chegasse a entrar em vigor, também não teria feito essa mudança – como de fato fez" [31].

No entanto, essa não foi a única vez em que se tentou mudar a redação do art. 128 CP. A segunda tentativa ocorreu em 1971. No dia 27 de outubro o senador Vasconcelos Torres apresentava o Projeto de Lei do Senado 96/71. O cabeçalho dizia: "Dá nova redação ao art. 128 do Código Penal, incluindo entre os casos de aborto não criminosos (sic) os praticados por médico quando a gravidez resultar de incesto, constituir grave ameaça à saúde da gestante ou envolver risco do filho nascer, física e mentalmente lesado". Embora o autor, na sua justificação, defendesse a necessidade de serem "ampliados" os casos de "aborto legal", na verdade o que o projeto pretendia era criar a figura do aborto legal. Sim, pois o artigo 128 começaria com as palavras: "Não constitui crime" [32]. Felizmente o projeto foi rejeitado pela Comissão de Constituição e Justiça (relator José Sarney) [33] e pela Comissão de Saúde (relator Adalberto Sena) [34].

A terceira tentativa ocorreu em 1984, quando o Ministério da Justiça publicou um Anteprojeto de Código Penal [35]. O artigo 128 passaria a vigorar com a redação "não constitui crime" e o direito de matar o nascituro incluiria também o aborto eugênico (em homenagem póstuma ao nazismo), chamado com o eufemismo de "aborto piedoso" [36]. Graças a Deus, mais uma vez o desejo dos abortistas não se realizou. A Parte Geral do Código foi reformada pela lei 7209 de 11/7/1984, mas a Parte Especial permaneceu como estava.

A quarta tentativa aconteceu em 25 de março de 1998, quando o Ministério da Justiça publicou o Anteprojeto do Código Penal [37], com o objetivo específico de reformar a Parte Especial. Desta vez a proposta foi pior do que a de 1984. Além de alterar o início do artigo para "não constitui crime" e além de propor a legalidade do aborto eugênico, o Anteprojeto pretendia declarar lícito o aborto como meio de "preservar a saúde da gestante" [38](sic) e não apenas como meio de salvar a sua vida. Cólicas, enjôos e vômitos poderiam ser alegados como causas "justas" para o extermínio da criança. Não há exagero nessa suposição. Por exemplo, no entendimento jurídico norte-americano, "saúde" significa o "bem-estar" geral, físico ou psíquico da mulher. Nos Estados Unidos se a mulher se sente mal, por exemplo, por estar grávida e não ser casada, pode requerer aborto por motivo de "saúde". A Comissão Revisora do Anteprojeto, sob a presidência do Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, deveria receber sugestões da sociedade até 31 de agosto de 1998, com vistas a elaborar a redação do texto final a ser encaminhado ao Presidente da República. No dia 31 de agosto de 1998 o novo Ministro da Justiça Renan Calheiros resolveu prorrogar o prazo por 60 dias [39].

A quinta tentativa aconteceu em 8 de abril de 1999, quando finalmente a Comissão Revisora entregou ao Ministro Renan Calheiros uma nova versão do Anteprojeto, depois de recebidas (e ignoradas) as críticas e sugestões da sociedade contra o aborto. Curiosamente, embora publicado na Internet (em www.mj.gov.br), o texto, que eu saiba, não foi publicado por nenhuma portaria no Diário Oficial da União. O artigo 128 teve seu número mudado para 127. Como de costume, novamente apareceu a expressão "não constitui crime" no "caput". Foi conservada substancialmente a mesma redação da versão anterior. Uma pequenina mudança foi, no inciso I, a exigência de o aborto ser o único meio de "preservar de grave e irreversível dano a saúde da gestante" [40].

Que eu saiba, o Ministério da Justiça desistiu, por ora, de prosseguir com a reforma da Parte Especial do Código Penal. Em vez disso, instalou uma Comissão presidida pelo Prof. Miguel Reale Júnior para reformar, mais uma vez, a Parte Geral. No dia 18 de agosto de 2000 foi encaminhado ao Congresso Nacional um Projeto de Lei para a reforma da Parte Geral.

De todo esse esboço histórico, conclui-se que há, ao longo dos anos, um desejo persistente de se mudar, no art. 128 CP, a expressão "não se pune" por "não constitui crime". O que vem a confirmar a tese de que não há, atualmente, no direito positivo brasileiro, qualquer hipótese em que o aborto não seja crime.


13. O nascituro é pessoa ou expectativa de pessoa?

Um dos argumentos em favor da tese abortista é o de que o nascituro não é pessoa, mas apenas expectativa de pessoa ("spes personae"). Tal argumento fundamenta-se na primeira parte do art. 4º do Código Civil: "A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida".

Logo, se o ser humano foi concebido, mas ainda não nasceu, não é pessoa.

Porém, prossegue o artigo: "mas lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos [no plural] do nascituro".

Este artigo foi causa de incontáveis discórdias entre os civilistas. Se o nascituro não é pessoa, ele não poderia ter direitos. Quando muito, teria expectativa de direitos. No entanto, a lei põe a salvo os direitos (atuais, e não em potência) do nascituro.

Na histórica decisão judicial Roe versus Wade, de 23/01/1973, que declarou o aborto legal em todo o território dos EUA, a Suprema Corte de Washington fez questão de dizer que o nascituro (unborn) não poderia ser considerado "pessoa" e, que, portanto, carecia de qualquer direito constitucional [41]. A conclusão, ainda que imoral, é lógica. Quem não tem personalidade, não tem direitos. E, ao contrário, quem tem direitos, tem que ter personalidade.

O Código Civil brasileiro fez, porém, um estranho amálgama, ao declarar que a personalidade só começa com o nascimento com vida (logo, o nascituro não é pessoa) e, a seguir, ao dizer que a lei protege "desde a concepção" os direitos (e não meras expectativas de direitos) do nascituro.

O ilustre WALTER MORAES resolve a questão fazendo distinção entre personalidade formal (não reconhecida pelo Código Civil) e personalidade material (reconhecida pelo mesmo Código, ao declarar o nascituro sujeito de direitos). Vejamos sua argumentação:

Mas — e esta é a objeção mais divulgada contra a proteção legal da vida do feto — a vida do indivíduo que ainda não nasceu não pode estar protegida pela norma constitucional ou por lei alguma, já que, de acordo com a mesma lei, ele não é pessoa (Código Civil, art.4º): o feto não tem personalidade.

O argumento não deixa de agasalhar um sofisma pouco discreto. Não precisamos mesmo de recorrer a demonstrações extrajurídicas para removê-lo.

O nascituro não tem uma personalidade civil formal; é verdade.

Mas não deve haver dúvida alguma de que a lei contempla sua personalidade material ou real. Tanto assim que sobre ela funda toda disciplina dos direitos do nascituro: a personalidade começa do nascimento com vida; diz o referido art. 4º, mas, continua, "a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituros"

O nascituro tem direitos, declara a lei.

Se tem direitos é porque a lei reconhece que ele é sujeito de direitos; e ser sujeito de direitos é, justamente, ser pessoa.

Por outras palavras, a lei está a afirmar que o nascituro não tem personalidade civil (conceito formal), mas logo acrescenta que ele é sujeito de direitos (conceito material).

A suspensão da personalidade formal, ou seja, a concessão de personalidade civil sob a condição suspensiva do nascimento com vida, é um procedimento que obedece à conveniência da técnica jurídica, supostas as complicações, v.g., da sucessão do natimorto. A lei poderia também inverter a situação, e atribuir ao nascituro uma personalidade sob condição resolutiva. Mas não se vê como essa inversão poderia aproveitar à redução dos problemas práticos.

Mas não se pode negar que a lei reconhece no nascituro uma subjetividade jurídica verdadeira, pois toda a disciplina legal que atende ao nascituro é fundada nessa personalidade material.

E é o que se dá também na órbita penal; pois, a lei penal não capitula o aborto nos crimes contra a vida e entre os crimes contra a pessoa?

Não é a vida da pessoa do nascituro o objeto da tutela penal?

Outra questão (esta já implicitamente respondida): o nascituro tem direito à vida assegurado na Constituição?

Que direitos tem o nascituro?

Todos.

Todos os que um sujeito possa ter: patrimoniais e pessoais; sem nenhuma exceção.

O art. 4º do Código Penal tutela os direitos do nascituros.

Não põe discriminações nem limitações específicas.

Está claro que certos direitos se adquirem, e que outros dependem de legitimação especial para serem adquiridos; mas isto, para qualquer pessoa.

Se o nascituro pode ser proprietário, credor, devedor, herdeiro e tudo mais, a maiori pode ser titular dos direitos de personalidade, guardada a compatibilidade com o seu estado atual.

Mas o nascituro tem direito à sua vida, antes de todos os outros direitos, e tem um direito à sua integridade física e psíquica, e assim adiante.

Assim, mesmo que o aborto sem pena, do Código criminal, não fosse crime, não podemos ter menor a dúvida de que é contra o direito; de que é um ilícito. [42]

O reconhecimento da personalidade do nascituro não é, porém, exclusividade de WALTER MORAES. Há livros didáticos usados na disciplina "Introdução ao Estudo do Direito" que o afirmam explicitamente. Vejamos a seguinte argumentação de FRANCO MONTORO, que distingue entre a personalidade e a capacidade do nascituro:

Ora, se o Código fala em "direitos" do nascituro, é porque lhe reconhece a personalidade, pois, como vimos, todo titular de direitos é pessoa.

"Se os nascituros não são pessoas", pergunta Teixeira de Freitas, (Esboço do Código Civil, Rio, 1860, art. 121) "qual o motivo das leis penais e de polícia, que protegem sua vida preparatória? Qual o motivo de punir-se o aborto?" E, acrescenta: "Não concebo que haja ente com suscetibilidade de adquirir direitos, sem que seja pessoa. Se se atribuem direitos às pessoas, por nascer; se os nascituros são representados, dando-se-lhes o Curador, que se tem chamado Curador ao ventre; é forçoso concluir que já existem, e que são pessoas; pois o nada não se representa. Se os nascituros deixam de ser pessoas pela impossibilidade de obrar, também não seriam pessoas os menores impúberes, ao menos até certa idade".

Como tivemos oportunidade de concluir, em estudo sobre a matéria (Franco Montoro e Anacleto Faria, Condição jurídica do nascituro no direito brasileiro, Ed. Saraiva, 1953), existe, com freqüência, em torno do problema do nascituro, lamentável confusão entre os conceitos de "personalidade" e de "capacidade".

Personalidade, na terminologia jurídica, é a aptidão para ser sujeito ou titular de direito. Juridicamente, todo sujeito de direito é pessoa e toda pessoa é sujeito de direito.

Capacidade é, como vimos, a maior ou menor extensão dos direitos da pessoa. Todos os homens são igualmente pessoas, mas não têm todos igual capacidade.

A capacidade distingue-se, ainda, em: a) capacidade de direito, que é a aptidão maior ou menor da pessoa para ter direitos; b) capacidade de fato ou de exercício, que é a aptidão maior ou menor para a pessoa exercer e defender, de modo pessoal e direto, tais direitos.

Aplicando essas noções à condição jurídica do nascituro, podemos formular, em síntese, as seguintes proposições: a) o nascituro não tem qualquer capacidade-de-exercício; b) tem certa capacidade-de-direito; c) é juridicamente pessoa desde a concepção.

O nascituro não tem capacidade de fato ou de exercício. Não é capaz de exercer por si mesmo os atos da vida jurídica. Por esse motivo, a lei lhe concede um representante (pai, mãe, curador ao ventre) que exercerá em seu nome os direitos que lhe são reconhecidos. Essa a razão por que Teixeira de Freitas dispôs no Esboço: "São absolutamente incapazes: 1.° as pessoas por nascer" (art. 22). E acrescentou em nota: "As pessoas por nascer são absolutamente incapazes por impossibilidade física de obrar". Essa, aliás, é também, a situação dos menores impúberes, ao menos até certa idade.

É inegável, entretanto, que o nascituro tem capacidade de direito, que se estende a múltiplos setores da vida jurídica. O ser concebido tem capacidade de suceder, seja a sucessão legítima ou testamentária. Tem capacidade de receber doações. Tem o direito de ver reconhecida sua filiação e, até mesmo, o de pleiteá-la, judicialmente por seu representante legal. Tem o direito de ser representado em atos da vida jurídica. Tem direitos que lhe são reconhecidos na esfera constitucional. Sua capacidade processual é consagrada pelo direito. A legislação do trabalho lhe confere o direito à pensão por acidente profissional sofrido pêlos progenitores e lhe protege a vida através de diversas disposições de lei. O direito penal lhe defende a vida e garante seu direito de nascer.

A afirmação de que estamos em presença de simples "expectativas de direitos" não resiste a um exame sério. O direito à vida ou o direito de representação, por exemplo, existem na sua plenitude desde o início da gestação. E bastaria ao nascituro ser titular de um único direito para que não lhe pudesse ser negada a qualidade de pessoa.

Como conseqüência lógica dessas premissas impõe-se a conclusão que Clóvis formulou nos termos seguintes: "A verdade está com aqueles que harmonizam o direito civil consigo mesmo, com o penal, com a fisiologia e com a lógica. Realmente, se o nascituro é considerado sujeito de direito, se a lei civil lhe confere um curador, se a lei criminal o protege, cominando penas contra a provocação do aborto, a lógica exige que se lhe reconheça o caráter de pessoa" (Clóvis Beviláqua. Em defesa do Projeto de Código Civil Brasileiro, Rio, Ed. Francisco Alves, 1906, p. 58) [43]

Também reconhece a personalidade do nascituro OTÁVIO FERREIRA CARDOSO, autor de Introdução ao Estudo do Direito, livro este muito usado pelos iniciantes na ciência jurídica:

Dirimindo controvérsias antigas e atuais, frisa o Código Civil, em seu art. 4º: "A personalidade civil do homem começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro."

Logo, antes de nascer já tem o nascituro personalidade civil.

E embora não tenha capacidade de fato (exercer pessoalmente seus direitos), tem capacidade de direito (exercida por seus representantes: pai, mãe, ou mesmo um "Curador ao Ventre", que é pessoa nomeada por juiz para atender a seus interesses, na falta de outro responsável).

Essa personalidade civil e a capacidade de fato nascem com a concepção e por isto, legalmente, o aborto é crime em qualquer tempo da gravidez.

— Quais seriam, na verdade, esses Direitos do nascituro? Vários:

— ser adotado, com consentimento do seu representante legal (CC, art. 372);

— receber doação, se aceita pelos pais (CC, art. 1.169);

— adquirir por testamento, se concebido até a morte do testador (CC, art. 1.169);

— ter um Curador ao Ventre se o pai falecer e a mãe, estando grávida, não tiver pátrio poder, notando-se que, se a mulher estiver interdita, o seu Curador será o do nascituro (CC, arts. 458 e 462 e seu parágrafo único);

— ver reconhecida sua filiação e até mesmo pleiteá-la judicialmente por seu representante;

— suceder, seja legitimamente ou por testamento;

— ser representado nos atos da vida jurídica;

— ter garantia de direitos previdenciários e trabalhistas, como, por exemplo, direito à pensão por acidente profissional sofrido por seus pais;

— proteção penal garantindo-lhe a vida e o direito de nascer, etc.

É, assim, indubitável que o nascituro não tem apenas "expectativa de direitos", como querem alguns. Tem "personalidade jurídica": é pessoa natural, mesmo sem ter nascido, personalidade esta que só termina com a morte. [44]

Quem, porém, na área jurídica mais se dedicou a fundo aos direitos do nascituro foi SILMARA J. A. CHINELATO E ALMEIDA. Citamos aqui seu artigo "Direitos de Personalidade do Nascituro" publicado na Revista do Advogado [45].

A autora critica a teoria natalista (segundo a qual somente após o nascimento com vida se iniciaria a personalidade) dizendo que o art. 4º do Código Civil "reconhece direitos e não expectativas de direitos ao nascituro" (p. 22). Além disso, segundo a autora, é atribuído ao nascituro, ao longo do Código, o "status" de filho (art. 458), de filho legítimo (337 e 338), de filho reconhecido (353 e art. 26 parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente), direito à curatela (458 e 462), à representação (462, "caput" combinado com os artigos 383,V e 385), direito de ser adotado (372).

Critica também a teoria condicional, segundo a qual a personalidade existe desde a concepção sob a condição do nascimento com vida.

Para a autora, que abraça a teoria concepcionista (que defendeu em sua tese de Doutorado), a personalidade começa com a concepção, "considerando que muitos dos direitos e ‘status’ do nascituro não dependem do nascimento com vida, como os Direitos da Personalidade, o de ser adotado, o de ser reconhecido, atuando o nascimento sem vida como a morte, para os já nascidos" (p.22-23). Em seguida, ela trata especificamente dos Direitos de Personalidade do nascituro: 1) Direito à Vida; 2) Direito à Integridade Física; 3) Outros Direitos, como Direito à Imagem e Direito à Honra.


14. O nascituro é pessoa: palavra final do Pacto de São José de Costa Rica

Apesar das ilustres argumentações dos civilistas acima citados em favor da personalidade do nascituro, sempre causou certa estranheza que a primeira parte do art. 4º do Código Civil diga que "a personalidade civil do homem começa do seu nascimento com vida". Tal dispositivo, porém, foi definitivamente revogado pelo Pacto de São José de Costa Rica, do qual o Brasil é signatário.

Trata-se de uma Convenção Americana sobre Direitos Humanos, subscrita em 22 de novembro de 1969. Foi aprovada pelo Congresso Nacional do Brasil em 26 de maio de 1992 (Decreto Legislativo n. 27), tendo o Governo brasileiro determinado sua integral observância em 6 de novembro seguinte (Decreto n. 678).

De fato, diz a nossa Carta Magna:

Art. 5º - LXXVII §2º — "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

Teria a referida Convenção força para revogar um dispositivo do Código Civil? Sim, e isso por duas razões: pela posterioridade e pela superioridade hierárquica.

Com efeito, quanto à posterioridade, diz o § 1º, art. 2º, do Decreto-lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942 - Lei de Introdução ao Código Civil: "A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule matéria de que tratava a lei anterior".

Quanto à superioridade hierárquica, há doutrinadores que colocam os tratados internacionais em pé de igualdade com a Constituição Federal. Há outros que os colocam abaixo dela, mas sempre acima de qualquer outra legislação ordinária. De um modo ou de outro, a Convenção tem superioridade hierárquica sobre o Código Civil e, portanto, força para revogar um dispositivo que não seja compatível com ela.

Diz a referida Convenção em seu art. 1º, n. 2:

"Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano".

Diz ainda o inciso I, art. 4ª da mesma Convenção:

"Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido por lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente".

Como se pode verificar, o Pacto de São José de Costa Rica (como é conhecida a Convenção) diz inequivocamente que "pessoa é todo ser humano", sem fazer qualquer distinção entre o ser humano em sua vida intra e extra-uterina. A expressão "desde o momento da concepção" força-nos a concluir que a palavra "pessoa" se aplica também ao nascituro.

Alguém poderia argumentar que a afirmação "pessoa é todo ser humano" só vale "para os efeitos desta Convenção" (art. 1º, n. 2). E é verdade. Um dos efeitos, porém, primordiais da Convenção é a obrigatoriedade de os Estados partes reconhecerem personalidade jurídica de toda pessoa ( = "de todo ser humano"). É o que diz o art. 3º:

"Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica."

A partir, portanto, de 6 de novembro de 1992, data em que a Convenção se fez direito interno brasileiro, toda "pessoa" (que, para os efeitos da Convenção, é todo ser humano), tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.

Se, portanto, a primeira parte do art. 4ª CC não reconhecia personalidade jurídica ao nascituro, está agora revogada por força de uma lei posterior e maior.

JAQUES DE CAMARGO PENTEADO em seu artigo O devido processo legal e abortamento [46] cita que a doutrina da personalidade do nascituro "culminou com sua consagração no âmbito internacional, tanto que o Pacto de São José de Costa Rica dispõe que ‘pessoa é todo ser humano’ (art. 1º, n.º 2). Além disso, vigora no âmbito interno, posto que adotado pelo Brasil, tanto que já se reflete na jurisprudência nacional". Ao pé da página, o autor cita uma jurisprudência:

Em boa hora se vem invocando nos Pretórios o Pacto de São José de Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), que se fez direito interno brasileiro, e que, pois, já não se configura, entre nós, simples meta ou ideal de lege ferenda. É mesmo reclamável seu cumprimento integral, porque essa Convenção foi acolhida sem reservas pelo Estado brasileiro. Parece que ainda não se compreendeu inteiramente o vultoso significado da adoção do Pacto entre nós: bastaria lembrar, a propósito, pela vistosidade de suas conseqüências, que seu art. 2º modificou até mesmo conceito de pessoa versado no art. 4º do Código Civil, já que, atualmente, pessoa, para o direito posto brasileiro, é todo ser humano, sem distinção de sua vida extra ou intra-uterina. Projetos, pois, destinados a viabilizar a prática de aborto direto ou a excluir antijuridicidade para a prática de certos abortamentos voluntários conflitam com a referida Convenção (Habeas Corpus n.º 323.998/6, Tacrim-SP, 11ª Câm., v. un., Rel. Ricardo Dip, j.29.6.1998).

Há, porém, infelizmente, um grande desconhecimento do alcance do Pacto de São José de Costa Rica em face da legislação brasileira. Depois de sua vigência, nenhum doutrinador pode dizer que o nascituro é mera "expectativa de pessoa" (spes personae), gozando apenas de "expectativas de direitos". Assim, o aborto é verdadeira e propriamente um crime contra a pessoa. Contra uma pessoa por nascer, mas nem por isso "menos pessoa" que a já nascida.

Vejamos algumas argumentações sobre o aborto que se tornaram absolutamente impensáveis depois da vigência do Pacto de São José de Costa Rica. Os dois parágrafos a seguir são de ANTÔNIO JOSÉ MIGUEL FEU ROSA:

A lei considera muito mais importante a vida humana independente, do que a mera esperança ou expectativa de vida (sic), consubstanciada no feto. [47]

(...)

Certas correntes doutrinárias comentam acerca da desnecessidade dessa previsão legal, dada a eximente do estado de necessidade, que autoriza, no choque entre a vida da mãe e a do feto, o sacrifício do feto, por se tratar de uma vida futura e eventual (sic). [48]

A seguir, o magistério obsoleto de DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS:

No CP brasileiro, o crime de aborto é classificado no Título "Dos Crimes Contra a Pessoa" e no capítulo "Dos Crimes Contra a Vida". Assim, o objeto da tutela penal é a vida do feto. Não se cuida de vida independente, mas o produto da concepção vive, o que é suficiente para ser protegido.

Diante do direito civil, o feto não é pessoa, mas spes personae (sic), de acordo com a doutrina natalista. É considerado expectativa de ente humano (sic), possuindo expectativa de direito (sic). Entretanto, para efeitos penais é considerado pessoa. Tutela- se, então, a vida da pessoa humana. [49]

Lamentavelmente a redação do novo Código Civil, sancionado em 10 de janeiro de 2002 [50] e previsto para entrar em vigor em 11 de janeiro de 2003, ignorou o Pacto de S. José de Costa Rica. O art. 2º do novo Código (correspondente ao art. 4º do Código atual) diz textualmente:

"A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro."

A menos que tal erro seja corrigido até a entrada em vigor do novo Código Civil, será forçoso reconhecer a ineficácia jurídica do dispositivo.

Poderia algum Estado opor alguma exceção aos direitos consagrados na Convenção, suprimi-los ou limitá-los? Em outras palavras: teria o legislador ordinário poder para negar a personalidade ao nascituro, embora esta tenha sido reconhecida pelo Pacto Internacional?

Vale citar aqui a resposta magistral de RICARDO DIP:

Não se justifica, para mais, diante da ratificação do Pacto de São José pelo Estado brasileiro, nenhuma prática estatal de auxílio ao abortamento direto, nem a omissão do Governo na ajuda material e psicológica às mulheres que engravidam vítimas de estupro, a fim de que evitem a prática do delito de aborto, embora, in casu, não–punível.

Não parece nunca demasiado, a propósito, considerar o preceito do artigo 29 do Pacto de São José:

"Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de:

a. Permitir a alguns dos Estados–partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá–los em maior medida que a prevista nela". [51]

"Quem tem ouvidos para ouvir, ouça" (Mc 4,9).


15. A posição de Ives Gandra Martins

O eminente constitucionalista IVES GANDRA MARTINS tem, acerca do chamado aborto "legal" uma posição conhecida. Tal posição, que ele teve oportunidade de expor diante dos deputados federais em audiência pública sobre a PEC 25A/95 [52], acha-se escrita em seus "Comentários à Constituição do Brasil" [53], redigida em co-autoria com CELSO RIBEIRO BASTOS. Ao comentar o art. 226§7º, que trata do "planejamento familiar", ele transcreve ao pé da página um artigo seu publicado em O Estado de S. Paulo:

Escrevi: "Todos os seres humanos são seres humanos desde a concepção. Neste momento, todos os seus componentes biológicos e psicológicos estão formados, tendo os defensores do aborto, desde a concepção seu perfil atual delineado. A tese conveniente de que o ser humano só o seria após 3 meses não se sustenta, visto que ninguém foi animal irracional entre a concepção e os primeiros três meses, para depois se tornar um ser humano. É ser humano desde a concepção.

Desta forma, o denominado aborto legal — que desde 1988 não é mais legal — nada mais é do que uma pena de morte imposta ao ser humano ainda no ventre materno.

(...)

O que pretendo deixar claro é que não há mais aborto legal no país. A lei penal, que permitia (sic) o aborto em duas hipóteses (estupro e perigo de vida para a mãe), não foi recepcionada pela Constituição de 1988.

(...)

Está o art. 5º, ‘caput’ da Constituição Federal, assim redigido: ‘Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:...’, não havendo nenhuma dúvida de que o próprio direito à vida é garantido, mas, mais que isso, é considerado princípio fundamental do direito constitucional pátrio." [54]

Que dizer dessa posição? Sem dúvida o ser humano é humano desde a concepção. Sem dúvida é partir da concepção que começa a proteção constitucional do direito à vida. Sem dúvida, obviamente, qualquer legislação anterior que permitisse o aborto não seria recepcionada pela Constituição de 1988.

No entanto, como vimos, o art. 128 do Código Penal em momento nenhum "permite" o aborto. Nem sequer lá está escrito que o aborto "não é crime". O que se diz é tão-somente que o aborto em duas hipóteses "não se pune". Se esta não aplicação da pena equivaler (como pretendem os abortistas) a uma permissão, então será forçoso concluir com IVES GANDRA que o art. 128 CP não está mais em vigor.

A única maneira de salvar a constitucionalidade do art. 128 CP é não interpretá-lo além daquilo que ele próprio diz: "não se pune". Qualquer interpretação de que tal artigo estabelece um aborto "legal", faz com que esse dispositivo seja fulminado de inconstitucionalidade (além de desprezar a personalidade do nascituro, expressamente assegurada pelo Pacto de São José de Costa Rica).

A meu ver, o art. 128 CP é constitucional, uma vez que apenas estabelece uma não punição para o crime do aborto após o fato já consumado, mas nunca uma permissão prévia para abortar, à semelhança das demais escusas absolutórias já comentadas. Por não permitir o aborto, o art. 128 CP não serve de fundamentação jurídica para a deplorável "Norma Técnica" expedida pelo Ministério da Saúde.


16. O salto triplo da "Norma Técnica": do crime ao lícito desejável pelo Estado

No dia 9 de novembro de 1998, ao assinar a Norma Técnica "Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes" o Ministro José Serra deu um salto triplo sem precedentes na história brasileira.

a) PRIMEIRO SALTO: Dizer que o aborto em caso de estupro não é crime.

Como vimos, o crime subsiste mesmo se, por razões especiais, não se aplica pena ao seu autor. Além do que já dissemos, poderíamos citar mais uma vez o grande WALTER MORAES:

Quanto ao aborto, a lei diz "não se pune". Suprime a pena. Fica o crime. [55]

b) SEGUNDO SALTO: Dizer que o aborto em caso de estupro não é um ilícito.

Mesmo que, por hipótese, o aborto em caso de estupro não fosse crime, o Ministro ainda estaria bem longe de poder baixar uma "Norma Técnica" autorizando sua prática nos hospitais públicos, pois estaria autorizando a prática de um ilícito. Pois há vários atos que violam alguma lei (e são, portanto, ilícitos) sem que, porém, tenham sido definidos como crimes.

Isso foi muito bem ilustrado por WALTER MORAES, em sua palestra proferida na Câmara dos Deputados em Brasília, no seminário "A farsa do aborto legal" (24/09/1997):

Um bom exemplo de ilícito que não é crime pode ser encontrado no próprio artigo da Constituição que proíbe a violação da vida.

Alguns incisos adiante (X), o artigo 5º proclama, com a mesma solenidade do direito à vida, que é inviolável a imagem das pessoas.

É uma proibição grave; senão, não estaria na Constituição.

Mas violar a imagem não é crime.

Vou dizer que imagem é a aparência física, seja no original, seja representada em retrato, busto etc.; e que violar a imagem é utilizá-la sem o consentimento da pessoa representada. [56]

Mais adiante, continua o jurista:

O que faz uma proibição legal tornar-se crime?

Simplificando, de novo: é a lei.

A lei descreve um comportamento humano e diz: isto é crime.

Então, aquele ilícito é crime. [57]

Ele então cita o art. 5º inciso XXXIX da Constituição Federal, que diz:

"Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal".

Portanto, ainda que um ato viole diretamente um direito garantido por lei, este ato só será crime se for definido como tal pela lei. Um exemplo, que não foi dado por WALTER MORAES, mas que agora está muito candente, é o do descarte de embriões concebidos in vitro. É claro que isso viola o direito constitucional à vida, garantido no artigo 5º da Constituição. No entanto, tal prática não é crime. Por quê? Simplesmente porque não houve (até hoje) lei que a definisse como tal. Em 1940, quando o Código Penal foi promulgado, não havia fertilização in vitro. O legislador penal, portanto, incriminou o aborto, mas não tipificou como crime a morte deliberada de embriões originados em laboratório, nem fixou uma pena para tal ilícito.

Continua WALTER MORAES:

Se o aborto que o Código Penal chama de necessário, ou o por causa de um estupro (art. 128), não fosse crime, ainda assim seria um ilícito jurídico, pois é justamente uma forma de homicídio proibido na fórmula constitucional "inviolabilidade do direito à vida".

Eu digo "se não fosse crime".

Se.

Mas é crime.

A Lei retira a "cominação legal" de pena, como diz a Constituição; mas não a definição legal de crime. [58]

Vários anos antes, o mesmo autor já havia escrito:

Certamente, a grande maioria dos ilícitos jurídicos que se cometem no embate da vida social, não são crimes.

Então, dizer que o aborto terapêutico (ou o de honra) é legal ou lícito só porque não configura crime, seria incidir em formidável simplismo. [59]

Para que o aborto em caso de estupro não fosse um ilícito, seria preciso revogar todas as leis que protegem a vida humana, sobretudo as do nascituro:

Seria preciso retirar do "caput" do art. 5º da Constituição Federal a "inviolabilidade do direito à vida" (mas seria estranho que permanecessem invioláveis os direitos à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, garantidos no mesmo artigo; pois como um morto poderia gozar de tais direitos?).

Seria preciso retirar o inciso XLV do art. 5º da Constituição Federal, que diz: "nenhuma pena passará da pessoa do condenado", uma vez que o que a Norma Técnica pretende é punir com a morte a criança por causa do crime de estupro cometido pelo seu pai.

Seria preciso retirar o art. 227 da Constituição Federal que diz: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade, o direito à vida".

Seria preciso revogar o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), sobretudo o seu art. 7º, que diz: "A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas públicas que permitam o seu nascimento..."

Seria preciso revogar o Código Civil, com todos os direitos assegurados ao nascituro desde a sua concepção, conforme diz seu art. 4º: "a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro".

Seria também preciso revogar o Pacto de São José de Costa Rica, que reconheceu explicitamente a personalidade do nascituro.

Em resumo, para que o aborto em caso de estupro deixasse de ser ilícito, seria preciso fazer uma verdadeira revolução na legislação brasileira. Nem sequer uma emenda constitucional que abolisse o direito à vida seria possível, pois diz o art. 60 § 4º da Constituição Federal:

"Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

IV - os direitos e as garantias individuais".

Pode-se ver então a grandiosidade deste segundo salto do Ministro José Serra.

c) TERCEIRO SALTO: Dizer que o aborto em caso de estupro deve ser oferecido pelo Estado.

Ainda que, por absurdo, o aborto em caso de estupro não fosse crime e nem fosse um ilícito, mesmo assim o Ministro deveria pensar duas vezes antes de assinar uma Norma que favorecesse sua prática. Pois nem tudo aquilo que é lícito fazer, é desejável pelo Estado que se faça.

Por exemplo, diz o art. 5º, inciso XV da Constituição Federal:

"É livre a locomoção em território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens."

Assim, é lícito que os moradores do campo abandonem sua terra e venham procurar abrigo na cidade. No entanto, este fenômeno, conhecido como êxodo rural, está longe de ser desejável, por causar desemprego, inchaço urbano e proliferação de favelas. Por isso, o Estado não procura favorecê-lo. Ao contrário, estimula a fixação da população rural em suas terras.

É lícito, ainda, que qualquer brasileiro deixe o país com seus bens. No entanto, nem por isso, o Estado favorece a emigração, oferecendo, por exemplo, passagens aéreas gratuitas para os que quiserem definitivamente abandonar o Brasil e fixar residência no estrangeiro.

Logo, mesmo que matar um nascituro concebido em um estupro fosse um ato lícito, o Ministro deveria perguntar a si mesmo: tal ato deve ser estimulado? O Ministério da Saúde (que existe para cuidar da saúde) deve instruir os hospitais a matar bebês?


17. O que fazer?

Chegamos ao fim do trabalho, no qual remeto aos especialistas em Direito Processual a tarefa de escolher e elaborar uma ação judicial apropriada.

"A todo direito corresponde uma ação que o assegura" (art. 75, Código Civil), isto é, se "houver ameaça ou violação, por ato omissivo ou comissivo, a um direito subjetivo, este será protegido por ação judicial (CF 88, ART. 5º, XXXV), por meio da qual o seu titular poderá pleitear do Estado uma prestação jurisdicional para assegurá-lo. Não haverá, então, direito, sem que haja uma ação que o proteja" (Maria Helena Diniz, Código Civil Anotado, 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 97.) [60]

Ao expedir a Norma Técnica em questão, o Ministério da Saúde violou o direito constitucional do nascituro à vida e o direito que têm os contribuintes de verem bem empregado o dinheiro oriundo de seus impostos. Que ação poderíamos mover para assegurar o gozo de tais direitos violados?

a) Uma ação penal por crime de aborto?

Uma vez que a Norma Técnica instrui os hospitais públicos a formarem uma equipe multiprofissional para a prática de abortos (cap. III, 2) e descreve pormenorizadamente as instalações (cap. III, 1), os equipamentos e instrumental (cap. III, 3), os procedimentos para o microaborto (cap. V, B), para o aborto até 12 semanas, e entre 13 e 20 semanas (cap. VI), há um concurso do Ministério da Saúde com o crime praticado pelos médicos que, por todo o país, estão cumprindo a Norma Técnica.

Diz o art. 29 do Código Penal que "quem, de qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade". Observe-se que, se a escusa absolutória ("não se pune") aplica-se ao médico, mas não à enfermeira que o auxilia (eis o lamento de MAGALHÃES NORONHA!) muito menos aplicar-se-á ao Ministro da Saúde e à equipe que elaborou a Norma Técnica. Portanto, em cada aborto praticado pelo SUS, ficam o Ministro e sua equipe sujeitos à sanção penal por concurso com o crime de aborto. Qual a "medida de sua culpabilidade"? Eu diria que é enorme, imensa, uma vez que os mentores e autores de tal Norma oficializaram — ao arrepio da lei — em nível nacional a morte de inocentes nos hospitais públicos.

Uma primeira hipótese, portanto, seria processar penalmente o Ministro da Saúde José Serra (que assinou e expediu a Norma Técnica) e todos aqueles que a elaboraram (a lista está na p. 2 da Norma): Ana Paula Portella, Pesquisadora; Dr. Aluízio Bedoni, Ginecologista e Obstetra; Eugênio Marcelo Pitta Tavares, Ginecologista e Obstetra; Dra. Elcylene Maria de Araújo Leocádio, Médica Sanitarista; Dra. Janine Schirmer, Enfermeira Obstetra; Dr. Jorge Andalaft Neto, representante da Federação Brasileira de Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia.

Caberia ao Ministério Público uma ação penal pública incondicionada por concurso com o crime de aborto.

b) Uma ação penal por incitação pública ao crime?

O Ministro da Saúde, ao expedir a Norma Técnica, e ao imprimir, apenas em sua primeira edição, 40.000 exemplares, sem dúvida alguma está incitando publicamente à prática de um crime. O mesmo pode-se dizer da equipe (acima mencionada) que elaborou a dita Norma. Ambos incorrem então no art. 286 do Código Penal:

Incitar, publicamente, a prática de crime:

Pena — detenção, de 3 (três) a 6 (seis) meses ou multa.

Note-se que o dispositivo não faz menção à pena do crime cuja prática é estimulada. Pode-se tratar de um latrocínio (com pena de 20 a 30 anos - art. 157§3º), de um pequeno furto (que pode ser apenas punido com multa, se o criminoso é primário - art. 155§2º) ou até de um furto contra o cônjuge (no qual a pena não se aplica - art. 181 - I). Em qualquer caso, quem incita publicamente a prática de ato criminoso, fica sujeito à detenção de três a seis meses, ou multa.

Não vale aqui a escusa de que a Norma Técnica apenas instrui os hospitais, mas não os obriga a adotarem seus procedimentos. Se a Norma tivesse intenção de obrigar, o Ministro da Saúde e seus colaboradores incorreriam em um outro tipo penal: o constrangimento ilegal (art. 146 CP). Para haver incitação pública ao crime, não se requer que se obrigue alguém a praticá-lo. No caso em questão, a ampla divulgação da Norma Técnica e a oferta pública dos (des)serviços de aborto constituem, obviamente, incitação à sua prática. De fato, o número de abortos tem crescido assustadoramente desde a expedição da referida Norma, conforme atesta o seguinte artigo da jornalista Cinthia Garda, publicado no Jornal do Brasil em 02 de dezembro de 2001:

BRASÍLIA - Enquanto 13 projetos sobre aborto tramitam no Congresso Nacional, 48 hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) já interrompem a gestação de mulheres grávidas em conseqüência de estupros. Em 1999, apenas oito estabelecimentos realizavam esse procedimento no país. O aumento coincide com a publicação de uma norma técnica, com diretrizes para o atendimento a mulheres e adolescentes vítimas de violência sexual, assinada há três anos pelo ministro da Saúde, José Serra (grifo meu).

(...)

Entre 1989 e 2001, houve cerca de 800 abortos legais no SUS, segundo o Jorge Andalaft, presidente da comissão para o assunto na Federação das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (Frebasgo). Quase a metade teria ocorrido nos últimos três anos (grifo meu). Os hospitais, embora desobrigados a realizar o aborto legal, multiplicam os serviços. [61]

c) Uma ação direta de inconstitucionalidade?

Passemos a uma outra hipótese: seria possível mover uma ação direta de inconstitucionalidade em desfavor da Norma Técnica do aborto? Convém lembrar que a Norma Técnica, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, não é uma portaria, não é uma resolução, enfim, não é qualquer ato normativo federal. Não tem número, não tem data de expedição, nem foi publicada no Diário Oficial da União. É apenas uma espécie de guia para a prática do aborto. Portanto, parece que não se aplica a ela o disposto no art. 102 inciso I, alínea "a" da Constituição Federal:

Art. 102 — Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I - processar e julgar, originariamente:

a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal.

A propósito, o ilustre deputado Severino Cavalcanti elaborou um Projeto de Decreto Legislativo (PDL 737/98) contra a Norma Técnica. A redação, a meu ver, muito feliz, não diz que o decreto legislativo "revoga" a Norma Técnica, como se ela fosse algo que estivesse "em vigor", mas diz que "susta a aplicação da Norma Técnica expedida pelo Ministério da Saúde". O projeto está em tramitação e ainda não foi votado pelo plenário da Câmara.

O caráter "camaleônico" da Norma Técnica — que não é lei, não é portaria, não é resolução, não tem força de obrigar, mas está causando inúmeros abortos — torna difícil qualquer ação judicial dirigida contra ela.

d) Uma ação civil pública?

Diz a Constituição Federal:

Art. 129 — São funções institucionais do Ministério Público:

III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos

O Ministério da Saúde vem, em nível nacional, promovendo a malversação do dinheiro público, tanto para a remuneração dos profissionais de saúde (convertidos em profissionais do aborto) como para a aquisição do equipamento e instrumental destinados à execução dos nascituros. Logo, sem dúvida está sendo lesado o patrimônio público e social. É portanto, perfeitamente cabível uma ação civil pública, uma vez acionado o Ministério Público.

e) Uma ação popular?

Diz a Constituição Federal:

Art. 5º - LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.

Esta medida parece ser a mais fácil, embora não necessariamente a mais eficiente. Qualquer cidadão pode propô-la, sem ter que desembolsar um centavo, nem sequer se vier a perder a causa.

Curiosamente, o Ministro sabe que os procedimentos do Sistema Único de Saúde (SUS) são pagos com recursos vindos dos impostos dos cidadãos "e que devem ser utilizados com toda atenção e respeito" (sic). Sendo assim, para cada internação hospitalar, o Ministro Serra tem enviado uma carta contendo pormenorizadamente a data da internação, a data da alta, o motivo da internação e o valor pago. Como exemplo, reproduzo uma carta enviada a uma das gestantes assistidas pelo Pró-Vida de Anápolis, internada de 5 a 8 de julho de 2000 na Maternidade Dr. Adalberto Pereira da Silva, município de Anápolis, GO.

Carta Nº. 5098369655

Prezada POLLYANA e familiares,

Envio esta carta consciente de que uma internação hospitalar é uma situação indesejável para qualquer pessoa.

Considero oportuno confirmar que esta internação foi paga integralmente pelo Ministério da Saúde com recursos que vêm dos impostos pagos pêlos cidadãos e que devem ser utilizados com toda atenção e respeito; é um direito seu e é nosso dever.

Sendo assim, com o objetivo de verificar a qualidade do atendimento prestado aos usuários dos serviços de internação hospitalar da Rede do SUS, apresento abaixo os dados da sua internação para que sejam conferidos e, havendo erros, dúvidas ou necessidade de fazer qualquer comentário, por favor ligue para DISQUE SAÚDE - 0800-61 1997 (Ligação Gratuita).

Respeitosamente,

José Serra

Ministro de Estado da Saúde

IMPORTANTE: Esta carta é apenas para sua informação. Não se trata de qualquer tipo de cobrança.

Lamentavelmente o Ministro não tem tido a mesma delicadeza para informar quanto dinheiro público foi desembolsado para custear a morte de inocentes desde a assinatura da Norma Técnica. Será ele obrigado a prestar a nós, cidadãos, tal informação? Parece que sim, segundo preceitua a Constituição Federal:

Art. 5º - XXXIV - são a todos assegurados, independente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder.


18. Conclusão:

As ações judiciais acima enumeradas não esgotam, necessariamente, as possíveis medidas processuais contra a triste Norma Técnica. Talvez seja possível empreender várias delas simultaneamente. As vantagens e conveniências de um ou outro tipo de ação podem ser apontadas pelos especialistas em Direito Processual.

Como disse no título deste trabalho, trata-se de um desafio jurídico. Diante do massacre de inocentes na rede hospitalar pública, que não tem precedentes na História do Brasil sequer no tempo da escravidão, nem sempre sabemos o que fazer. Mas seguramente sabemos o que não temos o direito de fazer: cruzar os braços.

Como diz um provérbio: "quem tenta, pode errar; quem não tenta, já está errado". O Senhor da Vida não admitirá nossa omissão.


Notas

1..PREVENÇÃO E TRATAMENTO DOS AGRAVOS RESULTANTES DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA MULHERES E ADOLESCENTES - Normas Técnicas. Elaboração: Ana Paula Portela e outros. Brasília: Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Gestão de Políticas Estratégicas, 1999. 32p. ISBN 85-334-0201-5. A data não está impressa na Norma Técnica. Tive conhecimento dela pela assessoria do então 2º vice-presidente da Câmara Deputado Severino Cavalcanti (PPB/PE). No entanto, de acordo com as notícias divulgadas pelos jornais, a Norma teria sido divulgada pela Internet (mas não no Diário Oficial da União) em 05 de novembro de 1998:

"O Ministério da Saúde divulga, hoje, pela Internet as normas para a realização de aborto previsto no Código Penal e de assistência a mulheres e adolescentes vítimas de violência sexual. O documento, obtido com exclusividade pelo Estado, fornece orientações aos hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) interessados em criar serviços, que devem incluir desde o apoio psicológico a medidas de prevenção contra a contaminação por doenças sexualmente transmissíveis e gravidez indesejada." (SILVA, Sônia Cristina. Norma para realização de aborto legal é divulgada. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 05 nov. 1998.)

"O Ministério da Saúde divulgou normas técnicas para prevenção e tratamento de danos provocados por violência sexual contra mulheres. O material mostra quais devem ser os procedimentos adotados para a interrupção da gravidez em casos de estupro.

A norma não é de adoção obrigatória, mas uma orientação para serviços de saúde que queiram implementar esse tipo de atendimento. Ou seja, os hospitais não são obrigados a realizar o aborto em caso de estupro." (SAÚDE DIZ COMO TRATAR VIOLÊNCIA A MULHER. Folha de S. Paulo, São Paulo, 06 nov. 1998, Caderno Cotidiano, p. 3-7.)

2..PREVENÇÃO E TRATAMENTO DOS AGRAVOS RESULTANTES DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA MULHERES E ADOLESCENTES - Norma Técnica. 1ª edição, Brasília: Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Gestão de Políticas Estratégicas, 1999, cap. V - B, p. 14.

3..Idem, cap. VII, p. 15-16.

4..Idem, cap. VII, p. 16

5..Ana Paula Portella, Pesquisadora; Dr. Aluízio Bedoni, Ginecologista e Obstetra; Eugênio Marcelo Pitta Tavares, Ginecologista e Obstetra; Dra. Elcylene Maria de Araújo Leocádio, Médica Sanitarista; Dra. Janine Schirmer, Enfermeira Obstetra; Dr. Jorge Andalaft Neto, representante da Federação Brasileira de Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (dados colhidos da p. 2 da 1ª edição da Norma Técnica)

6..Norma Técnica. Op. cit. cap. VI, p. 15.

7..A decisão judicial que declarou o aborto legal em todo o território estadunidense ficou conhecida como Roe versus Wade.

8..WALDMAN, Steven, CARROL, Ginny. Roe v. Roe. Newsweek, Nova York, p. 24, 21 Aug. 1995.

9..No dia 20/8/1997, na Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Câmara dos Deputados, a deputada Zulaiê Cobra (PSDB/SP), relatora do Projeto de Lei 20/91, que pretendia obrigar o SUS a praticar abortos em caso de estupro, pronunciou uma frase cômica: "A mulher brasileira não mente". Tal frase era dirigida ao deputado Vicente Cascione (PTB/SP), que achava necessária a instauração de um inquérito policial para comprovar o estupro. Para Zulaiê Cobra, bastava o boletim de ocorrência policial, ou seja, a simples palavra da mulher.

10..FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2. ed. revista e aumentada. 14ª reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. Verbete "clássico", acepção n.º 8.

11..DIP, Ricardo Henry Marques. Uma questão biojurídica atual: a autorização judicial de aborto eugenésico: alvará para matar. Revista dos Tribunais, v. 734, p.531, dez. 1996.

12..REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 174.

13..DIP, Ricardo Henry Marques. Op. cit. p. 531-532.

14..Entre eles, destaca-se o Projeto de Lei 20/91, de autoria do deputado Eduardo Jorge (PT/SP) e da ex-deputada Sandra Starling (PT/MG) que "dispõe sobre a obrigatoriedade de atendimento dos casos de aborto previstos no Código Penal (sic) pelo Sistema Único de Saúde".

15..A "Norma Técnica" surgiu como um meio de driblar o Poder Legislativo, uma vez que o Projeto de Lei 20/91 encontrava obstáculos quase intransponíveis para ser aprovado na Câmara. Antes da posse de José Serra, os abortistas já haviam pressionado o então Ministro da Saúde Carlos Albuquerque a assinar uma simples portaria para "regulamentar" o aborto no SUS. Vejamos um artigo de jornal da época: "O ministro da saúde Carlos Albuquerque, tem um prazo de quinze dias para decidir se acata ou não a resolução aprovada ontem pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) recomendando que o Executivo regulamente a realização do aborto legal no Sistema Único de Saúde. A intenção do conselho é fazer com que o governo se antecipe à polêmica e demorada votação no Congresso Nacional do projeto de lei autorizando o SUS a prestar serviços de interrupção de gravidez nos casos previstos pelo Código Penal - estupro ou risco de vida para a mãe (grifei). Carlos Albuquerque, que já causou polêmica ao se declarar contrário ao aborto, fugiu do assunto ‘Não sei do que estão tratando lá dentro’, desconversou ao chegar à sala de reunião do CNS" (CONSELHO DEFENDE O ABORTO LEGAL. Correio Braziliense, Brasília, 6 nov. 1997, p.13).

16..MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1986. v. 2. p. 79.

17..NORONHA, Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1995. v. 2, p. 58.

18..MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Campinas: Millennium, 1999. v. 4. Parte Especial. p. 214.

19..JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal, 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. v. 2. Parte Especial. p. 124.

20..MORAES, Walter. O problema da autorização judicial para o aborto. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, vol. 99, ano 20, p. 22, mar./abr. 1986.

21..MARQUES, José Frederico. Op. cit. p. 153-154.

22..JESUS, Damásio Evangelista de. Op. cit. p. 229.

23..MORAES, Walter. Op. cit. p. 21.

24..DIP, Ricardo Henry Marques. Op. cit. p.531.

25..MORAES, Walter. Op. cit. p. 27

26..PINHEIRO, Ralph Lopes. História Resumida do Direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Thex Ed.: Biblioteca Universidade Estácio de Sá, 2000. p. 129.

27..JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. v. 1. Parte Geral. p. 7.

28..BRASIL. Código Penal. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 24.

29..JESUS, Damásio Evangelista de. Op. Cit. p. 35.

30..LEMOS, Marco Antônio Silva. O Alcance da PEC 25/A/95. Correio Braziliense, Brasília, 18 dez. 1995, Caderno Direito e Justiça, p. 6. Os grifos são do original.

31..LEMOS, Marco Antônio Silva. Carta. 12 maio 1997. Os grifos são do original. Na verdade, no Anteprojeto Nélson Hungria, o art. 128 teria seu número mudado para 127, com a redação: "não constitui crime". No Código Penal de 1969, o número do artigo foi mudado para 129, também com a redação "não constitui crime". Tal Código foi promulgado pelo Decreto-Lei n.º 1004, de 21 de outubro de 1969, publicado no D. O. (Suplemento C) de 21 de outubro de 1969. Previsto para entrar em vigor em 1º de julho de 1974, o Código de 1969 teve sua data de entrada em vigor prorrogada pela lei 6.063, de 27 de junho de 1974. Finalmente foi revogado pela lei 6.578, de 11 de outubro de 1978, sem que nunca tivesse entrado em vigor.

32..DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL, seção II, 28 out. 1971. p. 5924.

33..Idem, p. 6710. Parecer n.º 641 da Comissão de Constituição e Justiça.

34..Idem, 27 nov. 1971. p. 6710-6711. Parecer n.º 642 da Comissão de Saúde.

35..DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, seção I, 19 jul. 1984. p. 10522-10545. Portaria n.º 304 de 17/07/1984 do Ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel.

36..Idem, p. 10523.

37..Idem, 25 mar. 1998. p. 1-11. Portaria n.º 232, de 24/03/1998 do Ministro da Justiça Iris Rezende.

38..Idem, p. 1, art. 128 inciso I.

39..Idem, 31 ago. 1998. Portaria n.º 631, de 31/08/1998, do Ministro da Justiça Renan Calheiros.

40..Vale aqui lembrar as palavras da Academia de Medicina do Paraguai: "En casos extremos, el aborto es un agravante y no una solución al problema" (Declaração de 04/07/1996).

41.."The appellee and certain amici argue that the fetus is a "person" within the language and meaning of the Fourteenth Amendment. In support of this, they outline at length and in detail the well-known facts of fetal development. If this suggestion of personhood is established, the appellant´s case, of course, collapses, for the fetus´ right to life would then be guaranteed specifically by the Amendment. The appellant conceded as much on reargument. On the other hand, the appellee conceded on reargument that no case could be cited that holds that a fetus is a person within the meaning of the Fourteenth Amendment."

"The Constitution does not define "person" in so many words. Section 1 of the Fourteenth Amendment contains three references to "person." The first, in defining "citizens," speaks of "persons born or naturalized in the United States." The word also appears both in the Due Process Clause and in the Equal Protection Clause. "Person" is used in other places in the Constitution: in the listing of qualifications for Representatives and Senators, Art. I, § 2, cl. 2, and § 3, cl. 3; in the Apportionment Clause, Art. I, § 2, cl. 3; 53 in the Migration and Importation provision, Art. I, § 9, cl. 1; in the Emolument Clause, Art. I, § 9, cl. 8; in the Electors provisions, Art. II, § 1, cl. 2, and the superseded cl. 3; in the provision outlining qualifications for the office of President, Art. II, § 1, cl. 5; in the Extradition provisions, Art. IV, § 2, cl. 2, and the superseded Fugitive Slave Clause 3; and in the Fifth, Twelfth, and Twenty-second Amendments, as well as in §§ 2 and 3 of the Fourteenth Amendment. But in nearly all these instances, the use of the word is such that it has application only postnatally. None indicates, with any assurance, that it has any possible pre-natal application."

"All this, together with our observation, supra, that throughout the major portion of the 19th century prevailing legal abortion practices were far freer than they are today, persuades us that the word "person," as used in the Fourteenth Amendment, does not include the unborn"(BLACKMUN, Mr. Justice, IX, A).

42..MORAES, Walter. Op. cit. p. 24-25.

43..MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25. ed. 2ª tiragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 494-496.

44..CARDOSO, Otávio Ferreira. Introdução ao estudo do direito. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 215-216.

45..ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e. Direitos de personalidade do nascituro. Revista do Advogado, São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, n. 38, p. 21-30, dez. 1992.

46..PENTEADO, Jaques de Camargo. O devido processo legal e abortamento. In: PENTEADO, Jaques de Camargo (Org.), DIP, Ricardo Henry Marques (Org.) et alii. A vida dos direitos humanos: bioética médica e jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999. p. 152.

47..ROSA, Antônio José Miguel Feu. Direito Penal: parte especial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995. p. 144.

48..Idem, p. 145.

49..JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 21.ed. São Paulo: Saraiva, 1999. v. 2. Parte Especial. p. 116.

50..Lei 010406 de 10/01/2002, que institui o Código Civil, publicada no Diário Oficial da União em 11 jan. 2002, p.1, coluna 1.

51..DIP, Ricardo Henry Marques. Sobre o aborto legal: compreensão reacionária da normativa versus busca progressiva do direito. In: PENTEADO, Jaques de Camargo (Org.), DIP, Ricardo Henry Marques (Org.) et alii. A vida dos direitos humanos: bioética médica e jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999. p. 400.

52..Tal audiência ocorreu em 28 de novembro de 1995, 9ª reunião ordinária da Comissão Especial destinada a proferir parecer à PEC 25-A/95 (direito à vida "desde a concepção").

53..BASTOS, Celso Ribeiro, MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: (promulgada em 5 de outubro de 1988). 2. ed. atualizada. São Paulo: Saraiva, 2000.

54..MARTINS, Ives Gandra. Pena de morte para o nascituro. O Estado de S. Paulo, 19 set. 1997, p. A-2. apud BASTOS, Celso Ribeiro, MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: (promulgada em 5 de outubro de 1988). 2. ed. atualizada. São Paulo: Saraiva, 2000. v. 8. p. 1035. Nota de rodapé n.º 4.

55..MORAES, Walter. Op. cit. p.21.

56..CÂMARA DOS DEPUTADOS. Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação. Seminário "A farsa do aborto legal", 24/09/1997. p.6.

57..Idem.

58..Idem. p. 6-7.

59..Idem, p. 23.

60..PENTEADO, Jaques de Camargo. Op. cit. p. 156.

61..GARDA, Cinthia. Norma técnica da Saúde aumenta aborto legal. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 02 dez. 2001. http://www.jb.com.br/papel/brasil/2001/12/01/jorbra20011201005.html


Nota do autor: discuta o assunto em http://www.forumnow.com/basic/foruns.asp?forum=60176


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Texto redigido antes da saída de José Serra do Ministério da Saúde.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Luiz Carlos Lodi da. Como mover uma ação judicial contra a "Norma Técnica" do aborto expedida pelo Ministério da Saúde. Um desafio jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2838. Acesso em: 18 abr. 2024.