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A aplicação de medidas cautelares no processo administrativo sancionador

A aplicação de medidas cautelares no processo administrativo sancionador

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A utilização de medidas cautelares no bojo de processos administrativos sancionadores encontra-se entrelaçada à própria noção de processo como mero instrumento de realização de direitos.

1. Introdução.

O presente artigo tem por escopo analisar o regime jurídico das medidas acautelatórias no âmbito do Processo Administrativo Sancionador. Nesse sentido, busca-se analisar a aplicabilidade e abrangência do instituto processual de acordo com o arcabouço normativo de regência, a práxis administrativa e o entendimento jurisprudencial dos tribunais.

Sem pretensão de esgotar o assunto, a análise em espeque abordará aspectos conceituais da tutela cautelar no direito processual, suas modalidades e espécies; seus princípios reitores; as peculiaridades existentes no rito processual administrativo e, em especial, os requisitos necessários ao seu deferimento à luz da legislação vigente. Ante a necessária contextualização do tema proposto, far-se-á perfunctórias considerações sobre a ritualística do Processo Administrativo Sancionador.


2. Processo Administrativo Sancionador.

Nas precisas linhas de Carvalho Filho[2], pode-se definir processo como a “relação jurídica integrada por algumas pessoas, que nela exercem várias atividades direcionadas para determinado fim”. Portanto, a ideia de processo reflete função dinâmica, em que os atos processuais se apresentam em sequência ordenada tendentes à materialização de um resultado teleológico.

O processo é normalmente qualificado como instituto inerente à jurisdição, identificado como legítimo instrumento da função jurisdicional. Entretanto, deve haver uma necessária subclassificação do processo de acordo com a função estatal básica em que o processo é desenvolvido. Se a função é a administrativa, o desenvolvimento ordenado de atos tem por escopo a prática de um ato administrativo final.

Assim, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari[3] conceituam processo administrativo como sendo uma “série de atos, lógica e juridicamente concatenados, dispostos com o propósito de ensejar a manifestação de vontade da Administração”. Se essa manifestação de vontade estiver relacionada ao exercício do poder punitivo, estar-se-á diante de processo administrativo de natureza sancionatória, preordenando-se a fornecer a precondição legal para formalização do ato punitivo interno, conforme as nuances do regime processual aplicável.

Consoante acurada lição de José Armando da Costa[4], pode-se definir esta espécie de processo administrativo como a série ordenada de atos procedimentais, formalizados em respeito à ritualística traçada pelas regras e princípios de regência, inaugurados no sentido de apurar a verdade real dos fatos, fornecendo, então, base legítima à decisão final, a qual poderá ter natureza condenatória ou absolutória. Percebe-se, portanto, que apesar da adjetivação desse ramo processual, sancionador, o processo se desenvolve não com a específica finalidade de aplicação do ato administrativo punitivo, mas no sentido de apurar os fatos e recompor a normalidade administrativa.

Não se pode descurar para o fato de que o processo administrativo sancionador é uma forma de manifestação do processo em seu sentido mais lato, reconhecido como mero instrumento de realização de bens jurídicos, seja de ordem material, como a tutela de determinado direito subjetivo, seja de ordem imaterial, como a tutela dos valores inerentes ao regular funcionamento do Estado Democrático de Direito, tais como a eficiência e moralidade administrativa.

Nesse sentido, vale mencionar perspicaz estudo da lavra de Cândido Dinamarco[5] sobre as fases metodológicas do direito processual, informando que o direito processual se encontra sob a égide da fase instrumentalista, reconhecendo o processo não como um fim em si mesmo, mas como instrumento hábil à realização da “vontade concreta do direito”.

É justamente nesse contexto de instrumentalidade processual que se evidencia a importância da aplicabilidade de medidas cautelares no curso das diversas espécies de processo, medidas que se orientam a assegurar o resultado útil do processo na sua relevante função de efetiva concretização do direito.


3. Medida Cautelar no Processo Administrativo Sancionador.

A aplicabilidade de medidas cautelares encontra-se intrinsecamente relacionada ao desenvolvimento do processo, seja ele de que natureza for, judicial ou administrativo. É de se notar que a tutela cautelar é um instrumento de garantia processual, tendo por finalidade assegurar a efetividade de um determinado provimento a ser produzido como resultado final de um processo.

Conforme definição proposta por Humberto Theodoro Júnior[6], a medida cautelar pode ser definida como:

A providência concreta tomada pelo órgão judicial para eliminar uma situação de perigo para direito ou interesse de um litigante, mediante conservação de estado de fato ou de direito que envolve as partes, durante todo o tempo necessário para o desenvolvimento do processo principal.

Com fundamento na doutrina de Galeno Lacerda, Alexandre Freitas Câmara[7] informa que as medidas cautelares podem ser classificadas quanto à sua finalidade em medidas de segurança quanto à prova, como a produção antecipada de provas; e medidas de segurança quanto aos bens, como o arresto e o sequestro.

No regime jurídico administrativo a atuação cautelar do agente público competente, nas diversas fases em que o processo sancionador se desenvolve (instauração; instrução e julgamento), tem escopo semelhante, no sentido de outorgar situação provisória de segurança, porém, não aos interesses particulares dos litigantes, mas ao próprio interesse público, finalidade maior a orientar e conformar todo exercício da função administrativa. Assim sendo, para a proteção provisória do interesse público tem cabimento a atuação da tutela cautelar, prevenindo-o contra o risco do dano imediato ou da ineficácia do processo.


4. Classificação das Medidas Cautelares Administrativas.

 Consoante o magistério de José Armando da Costa[8], o poder cautelar na seara do processo administrativo sancionador tem tríplice finalidade: garantir o sucesso dos trabalhos instrutórios da administração processante; o ressarcimento do patrimônio público da pessoa jurídica lesionada pela conduta ilícita do infrator; e velar pela credibilidade e prestígio do serviço público perante a coletividade.

O mesmo autor, em decorrência da tripla finalidade acima aventada, apresenta interessante classificação das medidas acautelatórias produzidas no processo administrativo: processuais, patrimoniais e morais.

 As processuais objetivam prevenir a normalidade das apurações dentro do processo, de que é exemplo a produção antecipada de prova testemunhal; as de índole patrimonial intentam garantir a recomposição do erário público, tais como a busca e apreensão e indisponibilidade de bens; já as acautelatórias de ordem moral colimam preservar o prestígio da administração perante a coletividade destinatária dos seus serviços, como, por exemplo, o afastamento preventivo de servidor acusado até a decisão final do processo disciplinar.

De nossa parte, no sentido de colaborar com o desenvolvimento do estudo sobre a matéria, propomos a classificação da tutela cautelar administrativa de acordo com a possiblidade de sua concessão de forma independente ou não da intervenção do poder judiciário. Fala-se, então, em cautelares administrativas próprias e impróprias.

As cautelares administrativas próprias são aquelas que podem ser deferidas no âmbito da própria administração pública sem necessidade de intervenção do poder judiciário, tais como o afastamento preventivo do acusado, a produção antecipada de provas e a busca e apreensão no âmbito da repartição de bens que compõem o patrimônio público.

No caso do afastamento preventivo, medida cautelar prevista no art. 147 da Lei n.º 8.112/90, a sua concessão é decorrência de juízo externado exclusivamente pela autoridade administrativa competente sem a mínima necessidade de intervenção de autoridade judiciária para tanto.

Também na produção antecipada de prova não há obrigatoriedade de chancela jurisdicional para sua realização. Considerando que a instrução processual é fase inerente ao curso do procedimento, sempre que presentes os requisitos autorizadores da tutela cautelar, a própria autoridade administrativa poderá determinar sua realização, ainda que antecipadamente.

Tal entendimento é extraído da literal redação do art. 29 da Lei nº. 9.784/99, ao dispor que “as atividades de instrução destinadas a averiguar e comprovar os dados necessários à tomada de decisão realizam-se de ofício ou mediante impulsão do órgão responsável pelo processo”.

Tome-se como exemplo a hipótese em que mesmo antes da instauração de um processo administrativo disciplinar, que tenha por objeto apurar corrupção passiva de servidor público alfandegário, tendo este solicitado vantagem indevida a cidadão estrangeiro em breve passagem pelo território nacional.

Não há dúvidas de que, na situação ilustrada, a produção antecipada da prova testemunhal poderá ser determinada pela autoridade administrativa competente, sem necessidade de qualquer intervenção prévia do poder judiciário, observado, entrementes, o contraditório e ampla defesa.

Indagações podem surgir sobre a necessidade de determinação judicial para a realização de busca e apreensão, no âmbito de repartição pública, de bens que compõem o patrimônio público, a exemplo de computadores.

Defende-se a tese de que tal medida cautelar pode ser operada no estrito âmbito administrativo. A uma, pelo fato de que não se cuida aqui de apreensão de bens particulares sem autorização judicial para extração de informações pertinentes à esfera da intimidade. A duas, pelo fato de que a atuação da autoridade administrativa competente ampara-se na premissa do controle interno da Administração Pública, destinado à proteção da moralidade administrativa.

No mesmo sentido a jurisprudência do preclaro Superior Tribunal de Justiça, que em caso análogo ao exemplo supramencionado, assim se manifestou:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL. OPERAÇÃO CARONTE. DEMISSÃO DE FUNCIONÁRIO ENVOLVIDO. MANDADO DE SEGURANÇA QUE APONTA ILICITUDES NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. AFASTAMENTO DA ALEGAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA, PRESCRIÇÃO, VÍCIO NO TERMO DE INDICIAMENTO, CERCEAMENTO DE DEFESA E ILICITUDE DE PROVAS. PROVA EMPRESTADA. POSSIBILIDADE DE APROVEITAMENTO OU COMPARTILHAMENTO DE PROVAS COLHIDAS EM OUTROS PROCESSOS. SEGURANÇA DENEGADA.

(...)

4. Análise em computador que compõe patrimônio público, determinada por servidor público responsável, não configura apreensão ilícita. Proteção, in casu, do interesse público e do zelo pela moralidade administrativa.

(MS n° 15.825-DF, Min. Rel. Hermam Benjamin)

Ao seu turno, tem-se as cautelares administrativas impróprias, que para serem deferidas no âmbito do processo administrativo sancionador dependem da necessária autorização judicial. Atente-se que, embora solicitadas por meio de processo judicial autônomo, as medidas cautelares requeridas produzirão efeitos práticos relevantes no bojo do processo administrativo. Ilustrativamente, faz-se menção a indisponibilidade e bloqueio de bens do infrator (art. 136 da Lei n° 8.112/90 e art. 16 da Lei n° 8.429/92), e a busca e apreensão de bens particulares ou bens públicos que se encontrem na residência do acusado.

Aplicam-se aqui as observações elaboradas na seara do direito constitucional sobre a denominada cláusula de reserva de jurisdição, que importa em submeter à esfera única de decisão dos magistrados a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita determinação constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem se haja eventualmente atribuído o exercício de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais.

A fim de ilustrar a linha que separa a atuação oficiosa da Administração Pública e aquela de necessária intervenção judicial, cabe comparar alguns dos exemplos acima elencados.

Na hipótese de busca e apreensão de bem público que se encontre no âmbito da repartição, pelos motivos já expostos, não haverá necessidade de autorização específica do poder judiciário. Entretanto, tratando-se do mesmo bem público, que, ao contrário da hipótese anterior, se encontra na residência do infrator, uma vez que presente restrição ao direito fundamental à intimidade e inviolabilidade domiciliar, o próprio texto constitucional (art.5º. inc. X e XI) impôs a imprescindibilidade de determinação judicial.

Portanto, será a análise de cada caso concreto, sob a influência da ponderação de interesses fundamentais da Administração Pública e dos administrados à luz dos princípios constitucionais cabíveis, que delimitará de forma precisa a viabilidade jurídica da manifestação judicial ou não na concessão da medida cautelar administrativa.


5. Previsão Normativa das Medidas Cautelares Administrativas.

A cautela é conceito que se apresenta de forma inerente ao processo, como instrumento idealizado para promoção da efetividade processual. Por isso, onde existir processo inegavelmente se revelará a possibilidade de manuseio de providência de natureza cautelar. Consoante a imanência do instituto ao sistema processual, o legislador em diversas oportunidades atentou para necessidade de procedimentalizar o cabimento das medidas acautelatórias na seara do processo administrativo.

Enumera-se alguns preceitos normativos que disciplinam a matéria:

- Lei n° 8.112/90 (Regime Jurídico Único dos Servidores da União)

Art. 147.  Como medida cautelar e a fim de que o servidor não venha a influir na apuração da irregularidade, a autoridade instauradora do processo disciplinar poderá determinar o seu afastamento do exercício do cargo, pelo prazo de até 60 (sessenta) dias, sem prejuízo da remuneração.

Parágrafo único. O afastamento poderá ser prorrogado por igual prazo, findo o qual cessarão os seus efeitos, ainda que não concluído o processo.

- Lei n° 8.429/92 (Improbidade Administrativa)

Art. 16. Havendo fundados indícios de responsabilidade, a comissão representará ao Ministério Público ou à procuradoria do órgão para que requeira ao juízo competente a decretação do sequestro dos bens do agente ou terceiro que tenha enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio público.

- Lei n° 9.784/99 (Processo Administrativo Federal)

Art. 45. Em caso de risco iminente, a Administração Pública poderá motivadamente adotar providências acauteladoras sem a prévia manifestação do interessado.

- Resolução-TCU n° 246/11 (Regimento Interno do TCU)

Art. 276. O Plenário, o relator, ou, na hipótese do art. 28, inciso XVI, o Presidente, em caso de urgência, de fundado receio de grave lesão ao erário, ao interesse público, ou de risco de ineficácia da decisão de mérito, poderá, de ofício ou mediante provocação, adotar medida cautelar, com ou sem a prévia oitiva da parte, determinando, entre outras providências, a suspensão do ato ou do procedimento impugnado, até que o Tribunal decida sobre o mérito da questão suscitada, nos termos do art. 45 da Lei nº 8.443, de 1992.

Neste ponto, vale abrir um pequeno parêntese.

Sabe-se que ao Tribunal de Contas da União foi atribuído pelo legislador constituinte, entre outras competências, a relevante missão de fiscalizar a aplicação de recursos públicos repassados pela União e, eventualmente, aplicar sanção administrativa aos responsáveis por ilegalidades no uso dessas verbas.

Nesse sentido, no corpo da Lei n° 8.443/92, foi estabelecido o respectivo processo administrativo para o exercício das mencionadas competências. Entretanto, quedou-se silente o legislador sobre o cabimento de medidas cautelares no curso do processo em epígrafe. Tal omissão foi sanada, conforme visto, por meio de regimento interno da Corte de Contas, rendendo ensejo à celeuma jurídica sobre a legalidade da medida.

O imbróglio foi submetido ao exame do Supremo Tribunal Federal (MS n° 24.510 - Min. Rel. Ellen Gracie), que, adotando a teoria dos poderes implícitos, se manifestou pela viabilidade jurídica das medidas cautelares, que estariam vocacionadas a conferir real efetividade à atribuição constitucional do órgão em destaque. Consignou-se que se o constituinte conferiu relevantes competências a serem exercidas pelo Tribunal Administrativo, por certo que, implicitamente, lhe conferiu os meios necessários para tanto. O entendimento externado coaduna-se com o princípio da máxima efetividade do processo e ao seu caráter instrumentalista, ou seja, o processo como meio de “concretização da vontade do direito”.

Na lavra do primoroso voto do Ministro Celso de Mello restou assentado:

Reveste-se de integral legitimidade constitucional a atribuição de índole cautelar, que, reconhecida com apoio na teoria dos poderes implícitos, permite, ao tribunal de Contas, adotar as medidas necessárias ao fiel cumprimento de suas funções institucionais e ao pleno exercício das competências que lhe foram outorgadas, diretamente, pela própria Constituição.

Percebe-se na jurisprudência da mais alta corte o entendimento aqui defendido de que o provimento cautelar liga-se de maneira intrínseca à instrumentalidade do processo, que não pode ser reduzido a um fim em si mesmo, mas compreendido como relevante mecanismo de concretização de direitos e interesses.

- Lei n° 12.529/11 (Sistema de Defesa da Concorrência)

Art. 84.  Em qualquer fase do inquérito administrativo para apuração de infrações ou do processo administrativo para imposição de sanções por infrações à ordem econômica, poderá o Conselheiro-Relator ou o Superintendente-Geral, por iniciativa própria ou mediante provocação do Procurador-Chefe do Cade, adotar medida preventiva, quando houver indício ou fundado receio de que o representado, direta ou indiretamente, cause ou possa causar ao mercado lesão irreparável ou de difícil reparação, ou torne ineficaz o resultado final do processo.

A atualidade do tema se apresenta de maneira tão latente que no bojo da atual Lei n° 12.846, de 1° de agosto de 2013, que versa sobre a responsabilização administrativa de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, o legislador cuidou de prever expressamente a possibilidade de utilização de medida cautelar, inobstante, à sua generalizada previsão legal, conforme os diplomas acima elencados. Dispõe, então, a lei:

Art. 10.  O processo administrativo para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica será conduzido por comissão designada pela autoridade instauradora e composta por 2 (dois) ou mais servidores estáveis.

(...)

§ 2o  A comissão poderá, cautelarmente, propor à autoridade instauradora que suspenda os efeitos do ato ou processo objeto da investigação.

Constata-se, uma vez mais, que o regime jurídico das medidas acautelatórias encontra-se consagrado na seara do processo administrativo, como instrumento inerente à efetivação de suas finalidades materiais.


6. Poder Geral de Cautela e seu exercício Inaudita Altera Partes.

O poder geral de cautela, que representa o generalizado poder estatal de assegurar o resultado útil do processo, especialmente em tempos em que se reconhece a estatura constitucional do princípio da máxima efetividade do processo (art. 5º, XXXV, CF), tamanha a sua importância para o sistema processual, encontra-se expressamente assegurado nos principais ramos do direito processual brasileiro: Processo Civil (art. 797 do CPC); Processo Penal (art. 282 do CPC); e Processo Administrativo (art. 45 da Lei n° 9.784/99).

Assim, dispõe a lei geral de processo administrativo federal que:

Art. 45. Em caso de risco iminente, a Administração Pública poderá motivadamente adotar providências acauteladoras sem a prévia manifestação do interessado.

Mencionado dispositivo alberga a possiblidade de a administração determinar medidas acautelatórias sempre que presente risco iminente da ineficácia do resultado útil do processo administrativo. Trata-se de cláusula de abertura a permitir a atuação administrativa preventiva sempre que se fizer necessário, se apresentado como dispositivo correspondente àquele previsto no art. 798 do CPC, matriz legal do poder geral de cautela no processo civil.

O dispositivo legal acima transcrito descortina autorização dada ao Estado-Administração para que, além das medidas cautelares típicas, eventualmente estabelecidas nas diversas leis de regência, possa também determinar medidas cautelares atípicas, ou seja, medidas não descritas abstratamente por qualquer norma jurídica, quando as medidas típicas não se revelarem adequadas à garantia da efetividade do processo administrativo.

Segundo escólio de Alexandre Freitas Câmara[9], o poder geral de cautela “é instituto considerado necessário em todos quadrantes do planeta, e decorre da óbvia impossibilidade de previsão abstrata de todas as situações de perigo para o processo que podem vir a ocorrer em concreto”.

A fim de ilustrar a tese, apresenta-se a seguinte situação hipotética: suponha-se que à determinada empresa fornecedora tenha sido aplicada, em razão de fraudes operadas no curso de um contrato administrativo, a sanção de declaração de inidoneidade que, como se sabe, torna-a impedida de licitar e contratar com a Administração Pública, enquanto perdurarem os motivos da punição. A fim de se esquivar dos efeitos da penalidade aplicada, constitui-se nova empresa com mesmo quadro societário, endereço e objeto social e, em manifesto abuso de personalidade jurídica, logra-se vencedora em procedimento licitatório levado a efeito por outro órgão público.

Por certo que a extensão dos efeitos da sanção administrativa à novel empresa, constituída por ato emulativo, demandará, consoante os princípios que regem a atividade punitiva do Estado, instauração de processo administrativo em que se observe contraditório e ampla defesa.

Nessa hipotética situação, ante o risco iminente de que a empresa inidônea venha a firmar contrato administrativo, com sérias possibilidades de prejuízos ao erário público e a particulares, poderá a autoridade administrativa competente determinar a suspensão cautelar do direito daquela empresa em contratar com a Administração Pública.

Perceba-se que a medida dada como exemplo não consta como hipótese de cautelar administrativa prevista na Lei n° 8.666/93. Entretanto, por força do art. 45 da Lei n° 9.784/99 (aplicável subsidiariamente à hipótese consoante o art. 69 do mesmo diploma legal), poderá ela ser deferida na esfera administrativa, sem que se possa alegar a ilegalidade da conduta, uma vez que, além de encontrar sustentação em parâmetro legal, foi efetivada de maneira razoável e proporcional aos fins almejados.

Questão de correlata importância refere-se, de acordo com o mesmo preceito legal, à possibilidade de que as medidas acautelatórias venham ocorrer sem prévia manifestação do interessado, sempre que a ciência prévia possa tornar sem efeito o provimento cabível.

Sabe-se que o processo administrativo sancionador, conforme, inclusive, expresso mandamento constitucional (art. 5º, inc. LV), inclina-se à integral observância dos princípios do contraditório e ampla defesa. Como regra, atendendo o caráter dialético do processo, dá-se prévia ciência ao interessado de todos os atos processuais que lhe digam respeito, especialmente, àqueles que possam repercutir em sua órbita de interesses.

Entretanto, excepcionalmente, quando o atendimento imediato ao contraditório possa causar prejuízos incontornáveis a alguma finalidade igualmente relevante no bojo do processo, o relevante princípio mantém-se observado, muito embora, de maneira diferida. 

Doutrina e jurisprudência pátrias têm se manifestado positivamente acerca da possibilidade de diferimento do contraditório nestes casos, argumentando que tais hipóteses se justificam pela urgência da tutela demandada, entendendo que o simples atendimento da dialética processual, com a antecipação do contraditório, pode importar em grave prejuízo ao processo, podendo resultar na total ineficácia da tutela pretendida.

Colaciona-se, então, pertinente julgado da lavra do Superior tribunal de Justiça sobre o tema:

AMBIENTAL. ATIVIDADES MADEIREIRAS. CADASTRO EM SISTEMA PRÓPRIO DE CONTROLE E PROTEÇÃO. REQUISITOS PARA O CADASTRAMENTO. DESCUMPRIMENTO. EVENTUAL OCORRÊNCIA DE FRAUDE NA OPERAÇÃO DO SISTEMA. SUSPENSÃO DO CADASTRO E DA LICENÇA AMBIENTAL SEM MANIFESTAÇÃO DA EMPRESA AFETADA. CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA DIFERIDOS. POSSIBILIDADE. BUSCA PELA PRESERVAÇÃO AMBIENTAL.

(...)

3. A empresa impetrante (ora recorrente) teve seu cadastro junto ao CC-Sema -Cadastro de Consumidores de Produtos Florestais - suspenso em razão de suposta divergência entre os estoques de madeira declarados pela recorrente e os efetivamente comercializados.

(...)

11. Não há ofensa ao princípio do devido processo legal porque, embora a suspensão da licença tenha se dado em caráter inicial, sem a possibilidade de manifestação da recorrente, o contraditório e a ampla defesa serão (ou deverão ser) respeitados durante a sindicância aberta para averiguar as fraudes (Portarias n. 72/2006 e 105/2006). Trata-se, portanto, de contraditório e ampla defesa diferidos, e não inexistentes.

(RMS n° 25.488 – Min. Rel. Mauro Campbel Marques)

O professor Nelson Nery Júnior[10] postula que, quando da concessão de medidas liminares, o princípio do contraditório sofre uma limitação, todavia, tal fato não significa a violação do princípio constitucional, porquanto a parte terá oportunidade de ser ouvida, intervindo posteriormente no processo, inclusive com direito a recurso contra a medida liminar concedida sem sua participação.

Ilustra-se, uma vez mais, a situação com exemplo hipotético.

Suponha-se que no curso de um processo administrativo disciplinar, foi encaminhado à comissão processante peças de informação a apontar fortes indícios do cometimento de fraudes por servidor, cujas provas cabais estariam inseridas nos arquivos de computador utilizado pelo infrator no exercício de suas atividades funcionais.

Em normais situações, em havendo necessidade de realização de prova pericial, seria o acusado previamente notificado para ciência do ato, abrindo-se, inclusive, a faculdade de formular seus quesitos e nomear assistente. Entretanto, no exemplo citado, indubitável que a prévia ciência da diligência processual pelo acusado ensejaria factível possibilidade de prejuízos à efetiva produção dos elementos probatórios pretendidos. Portanto, de maneira cautelar seria determinada a imediata perícia sobre o objeto elencado, para, somente após elaboração do laudo pericial, ser oportunizado o exercício do contraditório, permitindo ao acusado a mais ampla possibilidade de reação sobre o material probatório coligido.


7. Pressupostos para o Deferimento da Cautelar Administrativa.

Por se tratar de medidas marcadas pelo caráter da estrita excepcionalidade, a sua concessão está vinculada ao atendimento integral dos requisitos previstos no ordenamento jurídico. São eles: risco iminente (periculum in mora); elementos de convicção suficientes (fumus boni iuris); autorização judicial (cautelares administrativas impróprias); proporcionalidade; contraditório (ainda que diferido); e motivação.

No que toca ao periculum in mora, há de se vislumbrar um dano potencial, um risco que corre o processo administrativo de não ser útil à finalidade proposta. Cumpre ressaltar que o receio não se funda em simples estado de espírito do requerente, mas se liga a uma situação objetiva, necessariamente demonstrável através de algum fato concreto.

O fumus boni iuris (fumaça do bom direito) versa sobre a probabilidade ou a possibilidade da existência do direito invocado pelo requerente da medida cautelar e que justifica a sua garantia, ainda que em caráter hipotético. Deve-se demonstrar a existência de elementos mínimos de convicção sobre o direito almejado no processo, aferição que se faz com base em um juízo de probabilidade, não se examinando o conflito de interesses em sua profundidade, mas em cognição superficial e sumária, em razão mesmo da provisoriedade da medida, afinal, o fumus boni iuris não denota uma antecipação do julgamento, mas, simplesmente, um juízo de probabilidade, perspectiva esta que basta para justificar a salvaguarda do direito em jogo.

Conforme observações já apontadas, a que se faz remissão, a autorização judicial somente será necessária para concessão das cautelares administrativas impróprias, quando se torna imprescindível o acatamento à cláusula de reserva de jurisdição.

Revela-se, também, de suma importância que a outorga de tais medidas seja ordenada sob o crivo da mais estreme proporcionalidade. O princípio da vedação de excesso na seara processual deita suas raízes no art. 620 do CPC, segundo o qual “quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor”. Compreende-se, portanto, que esse mesmo comando sirva para outros procedimentos interventivos que interfiram imediatamente com os direitos ou o patrimônio do réu, como é o caso das tutelas cautelares.

A medida deve ser implementada dentro dos limites adequados a cada situação concreta, evitando-se a sua imposição, quando possa provocar na esfera jurídica do administrado uma interferência que se revele excessiva em face da necessidade concreta de tutela.

Descobrir o meio mais idôneo será, pois, um esforço hermenêutico sem­pre indissociável das circunstâncias concretas do caso. Não raro, a fim de sopesar os interesses em jogo e descobrir a solução mais equilibrada para a tensão entre a maior efetividade e a menor restrição (a busca pelo meio mais idôneo), e diante dos valores envolvidos, a autoridade administrativa competente deverá promover testes de proporcionalidade, consistentes no exame dos subprincípios que compõem a estrutura da matriz principiológica: (a) a adequação em sentido estrito (a restrição proposta é a mais idônea para a prevenção do dano e resguardo do resultado útil colimado?); (b) a necessidade (a medida proposta é realmente necessária para o fim proposto, ou haveria outra igualmente eficaz e menos restritiva?); e, por fim, (c) a proporcio­nalidade em sentido estrito (na relação custo-benefício da medida são revelados mais proveitos do que prejuízos?).

Por expresso mandamento constitucional, o processo administrativo sancionador deve se desenvolver à luz do devido processo legal, tendo por corolário maior o contraditório a cuja observância se deve em sua tríplice dimensão: Informação – Possibilidade de Reação – Poder de Influência. Conforme já alinhavado em momento pretérito, no processo administrativo de cunho punitivo o contraditório será sempre observado, embora, por vezes, de maneira diferida.

Por fim, no sentido de elencar o cumprimento dos pressupostos supramencionados, cumpre à autoridade competente expor os motivos que lastrearam a concessão da medida cautelar na seara administrativa. Fala-se, então, no dever de motivação do ato administrativo acautelatório.

O dever de motivação é corolário lógico e jurídico do Princípio Republicano, impondo-se ao Ente Estatal do dever de prestar contas de sua atuação para os seus súditos, expondo, dessa maneira, os fundamentos de fato e direito que permearam o ato decisório. Também o art. 5º, inciso XXXIII, da Constituição Federal, garante ao administrado o direito à informação, além do artigo 93, inciso X, que estabelece a necessidade de motivação para o Poder Judiciário e que deve ser aplicado por analogia aos demais poderes.

No plano infraconstitucional o art. 50 da Lei nº 9.784/99 dispõe que os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e fundamentos jurídicos, quando, entre outras hipóteses, limitem ou afetem direitos ou interesses, ou imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções. Nesse espeque, a concessão da medida cautelar no âmbito do processo administrativo sancionador deve estar justificada ante a demonstração da correlação lógica entre os eventos e situações que deu por existentes e a providência tomada.


9. Procedimento.

O mestre Marçal Justen Filho[11] informa que no desenvolvimento do estado pós-moderno o conceito de ato administrativo perdeu relevância como instrumento de compreensão e organização do direito administrativo, uma vez que o cerne do estudo recaíra sobre a atuação administrativa de modo global e não cada ato administrativo isoladamente. Descortina-se maior relevância da atividade sobre o ato, uma vez que o conteúdo e a validade dos atos administrativos dependem da observância ao procedimento devido.

Nas palavras do douto jurista:

É ponto comum submeter o exercício da função administrativa à observância de procedimentos, que se afirmam como meio constitucionalmente imposto para a limitação do poder estatal e garantia de respeito aos valores democráticos. Salvo situações excepcionais, todo e qualquer ato administrativo deve ser produzido no bojo de um procedimento.

Na grande maioria dos casos, a legislação de regência é omissa ou pouco esclarecedora quanto ao procedimento a ser adotado na realização da medida cautelar. Entretanto, perfilhando o entendimento doutrinário supracitado, ante a necessária compatibilização da utilização de cautelares administrativas e a observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados, ajustando-se, ainda, às irradiações do princípio processual da segurança jurídica, propõe-se, ainda que de forma singela, e com base em analogia aos esparsos dispositivos legais, a sua procedimentalização.

Consoante o perfil procedimental da grande generalidade dos processos administrativos sancionadores, constata-se que esses se desenvolvem a partir de três principais fases: instauração, instrução e julgamento. Cada uma dessas fases encontra-se sob a condução de uma determinada autoridade administrativa, respectivamente, autoridade instauradora, comissão processante e autoridade julgadora.

Considerando a estrutura básica apontada, bem como os delineamentos procedimentais que se pode extrair da legislação de regência, especialmente, art. 147 da Lei n° 8.112/90 e art. 10 da Lei n° 12.846, pode-se esboçar o seguinte procedimento:

a) Deliberação da comissão devidamente motivada indicando a necessidade da medida cautelar;

b) Solicitação à autoridade instauradora;

c) Notificação do acusado para manifestação (salvo quando a ciência prévia possa causar prejuízos à efetivação da medida intentada, quando o contraditório será exercido de maneira diferida);

d) Realização da diligência.

Por certo que o procedimento acima esboçado tem aplicação em processos, cujo desenvolvimento ocorre de maneira mais usual. Inobstante, não se pode descurar para o fato de que a necessidade da medida acautelatória possa ocorrer de forma extraordinária, não forçosamente durante a fase de instrução probatória, quando, por exemplo, se faça imperativa a adoção da medida em momento anterior à própria instauração do processo, ou mesmo na própria fase de julgamento. Nessas hipóteses devem ser operadas as devidas adaptações do procedimento, com especial atenção à delimitação da autoridade competente e aos aspectos relacionados ao exercício do contraditório e ampla defesa.


10. Conclusão.

Conclui-se, dessa maneira, que a utilização de medidas cautelares no bojo de processos administrativos sancionadores encontra-se entrelaçada à própria noção de processo como mero instrumento de realização de direitos. Não é por menos que a sua previsão encontra-se propalada ao longo de diversos diplomas legais que versam sobre o tema, detendo acolhida majoritária na seara da jurisprudência dos tribunais pátrios. Apesar de usuais na práxis administrativa, poucas são as obras doutrinárias que versam de maneira mais detida sobre o assunto, causando certa perplexidade aos operadores do direito, que por vezes carecem de avaliações referenciais para embasarem a tomada de decisão. Nesse sentido a importância do desenvolvimento de estudos e reflexões sobre o sistema de aplicação de medidas cautelares na seara administrativa.


11. Referências Bibliográficas.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil: vol. 3. 20. ed. São Paulo: Atlas;

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 19. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2008;

COSTA, José Armando da. Processo administrativo disciplinar: teoria e prática. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2011;

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 5. ed. São Paulo. Malheiros, 1996;

FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros. 2. ed. 2007;

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Editora Fórum. 6. ed. 2010.

NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2010;

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, vol. II. 34ª ed. Rio de janeiro. Forense;


Notas

[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 19. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2008. Pg. 862

[3] FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros. 2. ed. 2007. Pg. 25.

[4] COSTA, José Armando da. Processo administrativo disciplinar: teoria e prática. 6. ed. Rio de Janeiro. Forense. 2011. Pg. 160.

[5] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 5. ed. São Paulo. Malheiros, 1996.

[6] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, vol. II. 34ª ed. Rio de janeiro. Forense. Pg. 363.

[7] GALENO apud CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil: vol. 3. 20. ed. São Paulo: Atlas. Pg. 32.

[8] COSTA, ob. cit. Pg. 305

[9] CÂMARA, ob. cit. Pg. 52.

[10] NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2010. Pg. 241.

[11] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Editora Fórum. 6. ed. 2010. Pg. 300-345.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Márcio. A aplicação de medidas cautelares no processo administrativo sancionador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4009, 23 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28401. Acesso em: 18 abr. 2024.