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A intervenção mínima para um direito penal eficaz

A intervenção mínima para um direito penal eficaz

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SUMÁRIO: Introdução; 1. O Objeto do Direito Penal e sua Delimitação - Uma perspectiva histórica; 1.1. A Distinção de Direito e Moral; 1.2. A Teoria do Bem Jurídico; 2. O Objeto do Crime Delimitado pela Constituição; 3. O Objeto do Crime Interpretado pela Criminologia e pela Correta Aplicação da Política Criminal; 4. Princípios Basilares para a Criminalização e Descriminalização; 4.1. A Dignidade Penal e a Carência da Tutela Penal; 5. A Experiência Brasileira Através da Lei dos Juizados Especiais - A Identidade com o Princípio da Intervenção Mínima; Conclusão; Bibliografia..


Introdução

Quando se estuda a evolução da normatização penal na história da humanidade, soa com perfeito cabimento a afirmação de von Ihering de que "a história da pena é a da sua constante abolição" [1].Não como verdade máxima, mas como um princípio norteador do que se observa na construção das ciências criminais. Operou-se no decorrer dos tempos, um abrandamento sensível dos meios punitivos e da intervenção estadual, apesar dos movimentos cíclicos de retorno à legiferância demasiada. Tal pode ser constatado a partir da gestação do Dirieto Penal como ciência, marcada pela obra do Marquês de Beccaria (1738-1794), Dos Delitos e das Penas.

O trabalho de Beccaria, imbuído no movimento filosófico-humanitário que tem o traço marcante de Voltaire, Rousseau e Montesquieu, foi a resposta contra a crueldade das penas e da vingança institucional [2] em nome do Estado (mas que tinha o condão de preservar a autoridade do soberano), que vigia desde o Direito Canônico, a partir do século XII. Naquela quadra da história puniam-se as pessoas acusadas de heresia ou que questionassem os dogmas religiosos então vigentes, havendo, pois, uma imagem turvada do papel punitivo do Estado. Com Beccaria esboçou-se a demarcação dos limites entre a Justiça Divina e a Justiça Humana, entre os pecados e os delitos e proclamou-se a utilidade social da pena, retirando-lhe o caráter de vingança.

Com a escola positiva, inaugurada por Lombroso, deu-se início à investigação científica do crime, tentando explicá-lo segundo a fenomenologia social e segundo os estudos da biologia. Surge a criminologia como ciência e suas diversas tendências, buscando, através de métodos empíricos, a explicação do crime, com o precípuo de fim de auxiliar o direito penal.

Verificou-se que diante da marcha contínua da evolução social, torna-se impossível o estabelecimento de marcos peremptórios, entre os quais colocar-se-iam, segundo graus diferenciados, as inúmeras condutas classificadas como ilícitas. A danosidade de certos interesses ou de bens é relativa segundo os critérios de tempo e de lugar, impondo ao estudioso e ao exegeta das leis penais constantes interrogações sobre a validade das normas incriminatórias. Em alguns desses casos, a intervenção penal mostra-se inócua e desvestida de qualquer papel protetivo em razão do desvalor do bem. É o que se conclui facilmente no caso adultério, cuja norma agendi, presente, v.g., no Código Penal brasileiro, foi como que revogada pelos usos e costumes ou por instrumentos de outras esferas do direito, notadamente do Direito Civil. Outras questões surgem mais complexas e envoltas em tons polêmicos, sendo difícil o seu deslinde, como é o caso do uso de substâncias entorpecentes, onde podem estar em jogo outros bens que não o da própria saúde do consumidor.

Em respota a essas e a inúmeras outras questões de relevo, os juristas têm erigido intrincados sistemas penais, que não caberiam no âmbito do trabalho. Por isso, levando em consideração a generalidade das construções sociais, em Estados modernos e democráticos do mundo ocidental, optamos por estabelecer uma breve incursão sobre o objeto do direito penal, segundo os conceitos correntemente aceitos, para, em seguida, delimitá-lo. Não se olvidará de uma análise da criminologia e da política criminal, que desempenham importante papel na determinação da esfera de atuação do direito penal. A partir daí, será possível discorrer sobre os princípios norteadores da criminalização e da descriminalização. Por fim, citamos o exemplo brasileiro que, através das inovações trazidas pela Lei do Juizado Especial, aparelha o Estado com instrumentos penais e processuais, para o controle da intervenção.


1.O Objeto do Direito Penal e sua Delimitação - Uma Perspectiva Histórica

Para além da verdade de que durante o direito canônico não havia uma delimitação da esfera de atuação punitiva, que recaía sobre as condutas classificadas como imorais ou como pecados, dentro de um grande campo de imprecisão e de subjetivismo e que as penas eram incertas, aquela fase marcou um fato positivo na transição para o direito moderno: o de estabelecer a prerrogativa do Estado na detenção do ius puniendi. O direito canônico reagiu ao caráter individualista do direito penal germânico, que permitia ao particular a vindita e entregou ao Estado a função de punir. Isso, de certa forma, por coerência aos dogmas, contrários à pena de morte.

No entanto, o Estado atuava em demasia, confundindo o ius puniendi com o exercício de poder e de preservação política do soberano. As punições, antes de representarem fins de profilaxia criminal, significavam a vingança institucional e fixavam as regras do jogo do poder. Tal situação, que perdurou até a Revolução Francesa, sofreu grande oposição do iluminismo.

É o ideário de Rousseau, que propugna o Estado democrático, voltado para o bem comum, a crítica de Voltaire contra a igreja e a proposta de Montesquieu de separação dos poderes, que inspiram Beccaria e o surgimento da Escola Clássica e de um direito penal visto, agora, como ciência. Além da reação contra as penas infamantes, torturas, suplícios e pena de morte, buscou-se estabelecer os limites entre a Justiça Divina e a Justiça Humana. Já se não podiam conceber atentados contra a liberdade dos cidadãos, por puro autoritarismo [3], num Estado em que se delineavam suas estruturas e funções, segundo uma ordem normativa. Mas naquela altura, ainda não se tinha preciso o conceito de crime.

1.1.A Distinção de Direito e Moral.

Partindo Feuerbach "do dogma de que ao Estado cabe a tarefa de assegurar o livre exercício da liberdade de cada um, no respeito pela liberdade dos outros" [4], propugnou que, ao Estado não se destinava o papel de ingerência sobre a moral e sobre a cultura [5], mas sim a proteção de determinados valores. Por isso, o Código Penal da Baviera (1813), de sua autoria, deixa de criminalizar a heresia, a blasfêmia, a bigamia e o incesto [6]. Contudo, Feuerbach não rompe de vez com o sistema dominante, remetendo condutas atentatórias contra a religião e os desvios da moral reinante, para o direito penal de polícia, que zelava, por assim dizer, pelo bem estar do cidadão.

Por outro lado, Feuerbach notabilizou-se por entender necessária a previsão legal do delito em relação ao fato perseguido, sintetizando seu pensamento na fórmula nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege. Arrisca-se a afirmar que se começava a delimitar o âmbito de atuação do Estado, sem que, no entanto, estivesse certo o objeto do direito criminal e o conceito de crime.

Havia, pois, uma desconformidade entre a atuação do Estado, tal como se exigia, que respeitasse as liberdades, mas que garantisse segurança e proteção aos cidadãos e o seu objeto de tutela. Ainda faltava um bom caminho a trilhar para se descobrir o campo de atuação do direito criminal. E ainda na primeira metade deste século havia resquícios dessa indefinição É com assombro que Hassemer aponta como exemplo disso duas decisões do BGH, de 1954, uma sobre o lenocínio, outra sobre participação na tentativa de suicídio de outrem [7].

1.2.A Teoria do Bem Jurídico

Dos princípios universais de liberdade, igualdade e fraternidade proclamados com o Iluminismo, em reação a uma ordem despótica, autoritária e cruel de poder, em que nela estava fundida a idéia de uma justiça perseguidora e sem limites, fez-se nascer o conceito da atividade protetora do Estado. Sob sua proteção deviam estar bens de relevo para a prossecução daqueles ideais. A partir desse período é que surgem "as tentativas de um conceito material de delito, transistemático, pelo menos com alguma capacidade orientadora e legitimadora" [8]. É o elemento incipiente para os trabalhos de Birnbaum, von Liszt e Binding, dentre outros da escola alemã do século XIX, que passam a desenvolver um conceito de bem, com capacidade e idoneidade para ser protegido pela ordem normatizadora.

O conceito de bem jurídico revela suma importância na delimitação de atuação estatal, pois através de uma espécie de catalogação de interesses e valores representativos para a o homem, enquanto ser integrado a uma sociedade, vitais para a sua dignidade, segurança e promoção nesse meio, oferece-se matéria idônea para o trabalho legislativo. Nesse aspecto, o conceito do bem jurídico, "corresponde a uma viragem no sentido da positivação, normativização e subjectivização sistémico-social do objecto da infracção" [9].

Birnbaum começou a abrir a senda para a construção do conceito. Rompendo com a teoria de direito subjetivo de Feuerbach, enveredou-se ele pelo pensamento da escola histórica, objetivando atribuir valor a certos bens essenciais ao homem, dignos de proteção pelo Estado, para a manutenção do equilíbrio da sociedade. Dessa forma, "Birnabaum deu já expressão ao pensamento teleológico-social (…) aparece, deste modo, já como precursor do utilitarismo social de que a seu tempo Ihering viria a ser o principal representante" [10].

A teoria do bem jurídico, objetivando estabelecer um limite na tarefa do legislador, de modo que ele se debruçasse apenas sobre os bens representativos do homem, prioritariamente aqueles suscetíveis de valoração através de observações empíricas, tende, como já afirmado, para o positivismo. E este entono ganha cotornos mais salientes na teoria de Binding.

Efetivamente foi com Binding que surgiu o conceito acabado de bem jurídico (Rechtsgut), na sua obra Die Normen. Para o autor, o bem digno de proteção legal, depende do juízo de valor estabelecido pelo legislador. É este quem elegerá a atuação protetiva do direito penal sobre determinado bem ou interesse. Esse caráter positivista está patente na sua definição de Rechtsgut, como "tudo o que, aos olhos do legislador, tem valor como condição para uma vida saudável dos cidadãos" [11].

Ante a posição tomada por Binding na sua teoria, fica excluída a possibilidade de identificação de bens suscetíveis a danos antes do seu enquadramento pelo legislador. É a este que caberá sentir a necessidade de intervenção penal ante a possibilidade de danosidade social. O perigo que pode surgir dessa posição marcadamente positivista, em meio a qual seriam de se esperar arbitrariedades de um legislador sem escrúpulos, aprioristicamente dotado da mais ampla liberdade, é temperado, como salienta Costa Andrade [12], pelo significado de danosidade social. O bem jurídico é protegido sempre em nome da totalidade, por mais individual que seja, isto é, ele deve ter representação e valor para a sociedade.

Diferente é o ideário de von Liszt sobre bem jurídico. Ao invés de partir de uma conceituação positivista, em que a atuação protetiva do direito penal dependesse da vontade do legislador, von Liszt entende existir uma situação pré-jurídica, onde identifica-se a dignidade penal do bem ou do interesse. Nesse passo, os bens e interesses antes de serem categorizados como tais pelo ato frio e pragmático do legislador, são eleitos pelo homem integrado em sociedade. Tratam-se, pois, de requisitos essenciais ao homem ou à comunidade Os bens jurídicos são, assim, "criações da própria vida, que o direito encontra e a que assegura protecção jurídica" [13].

Além de contrapor-se à concepção bindinguiana de bem jurídico, von Liszt procura delimitar a área de atuação do legislador. Pela sua teoria o direito penal deixa de ser o pronto remédio contra a generalidade dos males sociais, na medida em que existem meios outros, do Estado ou do sistema social, mais eficazes a esse fim. Ao direito criminal ficaria reservada a proteção dos bens vitais para a sociedade, desde que outra forma se não se mostrasse mais eficaz e que o meio punitivo fosse o mais adequado. Assim, a função e justificação do direito penal do Estado advém "da necessidade da pena para garantir a manutenção da ordem jurídica e, consequentemente, para a segurança da sociedade" [14].

Como bem salienta Roxin [15], os critérios de necessidade de intervenção penal e de sua idoneidade como método protetivo de bens jurídicos, determinam o princípio de subsidiariedade do direito penal, na medida em que ele só é chamado a intervir em situações de extremo interesse e quando falham outros meios. Por esta via, faz-se um depuramento da normativização, dela excluindo-se, por exemplo, questões de ordem moral. Segundo se depreende do citado autor, o ideário de Liszt em muito influiu no Projeto Alternativo do Código Penal alemão (1969), sobretudo no que diz respeito à redução dos tipos penais, na parte especial [16].

O sistema criado por von Liszt, dentro do qual se extrai a definição de um direito penal voltado para a proteção de determinados valores, em caráter especialíssimo, como um remédio extremo, isto é, invocado apenas quando outros meios se mostrem insuficientes, determina o caráter subsidiário da pena. O direito penal atuará como ultima ratio da política criminal [17]. Assim, a partir desse estágio, a ciência do direito penal, ou como preferia denominar o ilustre e sempre lembrado professor Eduardo Correia, o direito criminal (cujo conceito é muito mais amplo por tratar do crime e suas repercussões no mundo jurídico) [18], passa a conhecer seus limites de atuação descritiva de obrigações e proibições e protetiva de valores. Mas aqui surge uma séria questão ainda ligada a esse moderno conceito: quem limitará esse campo de atuação? Ou de outra forma, quais as balizas que servirão de limites para a ciência normativa, que dependerá antes da atividade legislativa? Em quais elementos se apoiará o legislador ao eleger os valores dignos de proteção penal?


2. O Objeto do Crime Delimitado pela Constituição

A passagem do Estado absolutista para o Estado moderno de direito, representou significativo marco não só para a sua organização e administração, mas também para o direito penal. O Estado como um todo, nas suas mais variadas extensões funcionais, enfim, o organismo estatal, passou a submeter-se à égide da lei. Não só os cidadãos a ela estão submetidos, mas também o próprio Estado, estabelencendo um jogo de confiança e de segurança de relação mútua. E o direito penal também faz as partes envolvidas interagirem nesse jogo, assumindo o Estado o papel protetivo através da persecutio criminis (fazendo valer as normas), enquanto que aos cidadãos cabe o respeito aos bens nele protegidos, submetendo-se às proibições.

A estruturação do Estado de direito tem sua gênese na Constituição, que será pois, o elemento orientador de todas aquelas relações conformes à legalidade. À norma Fundamental também vem aderir o direito penal, estabelecendo com ela uma ligação estreita, quase que indissociável. Afinal, as leis penais, como, aliás, todo ordenamento legal, não pode a ela se contrapor [19] Por via de conseqüência, o conteúdo do direito penal, as regras punitivas, as proibições, o objeto do crime, enfim, os bens jurídicos sujeitos à proteção mantêm-se atrelados às linhas gerais traçadas pela Constituição. Mas significará isto que os bens protegidos pela Constituição coincidem com os do direito penal? Ou melhor, estariam os bens jurídicos compreendidos na lei Fundamental? Dela decorreria, em conformidade com a linha política adotada, a obrigatoriedade de criminalização ou de descriminalização?

Numa primeira aproximação para o entendimento e conseqüente solução do problema (aqui composto de várias indagações), Faria Costa frisa que "(…) o ordenamento penal e o ordenamento constitucional são matricialmente duas ordens jurídicas fragmentárias", ou seja, que não têm por escopo proteger todos os bens [20]. De uma constelação de valores e interesses humanos, a Constituição ocupa-se daqueles essenciais, de modo a garantir uma existência digna do cidadão. E a partir desse pressuposto, Faria Costa completa seu raciocínio afirmando que "O direito constitucional (a ordem jurídico-constitucional material), constitui no nosso processo de desenvolvimento jurídico-cultural, um referente normativo inarredável para a compreensão e delimitação de um qualquer outro direito" [21]. Quer com isso dizer que, sendo a constituição uma norma primária, que estabelece uma ordem de valores essenciais para o cidadão, dela formam-se de maneira derivada e nela apegam-se as leis, que regulam sobre esses valores. A Constituição é, assim, um vetor diretivo para a normativização geral. Ela protege de maneira prioritária a dginidade do cidadão, estabelecendo as linhas mestras, ou os princípios em que se apoiarm os legisladores [22].

Dessas considerações quanto ao caráter fragmentário e originário da Constituição, colhe-se a primeira resposta àquelas indagações. Estabelecendo a Constituição as bases do ordenamento social, onde estão previstos certos bens, passa oferecer princípios relevantes à proteção de outros bens decorrentes dos primários. Neste sentido, apesar do inegável balizamento da intervenção penal, inexiste coincidência quantitativa dos bens jurídicos garantidos pelas ordenações Constitucional e penal. Esta, apesar de jungida à norma Fundamental, alarga o leque de bens jurídicos, gozando o seu legislador de uma certa liberdade, mas desde que sempre atenta aos princípios constitucionais.

No que toca precipuamente a essa maior amplidão do ordenamento penal e a essa liberdade do legislador ordinário, Maria da Conceição Ferreira da Cunha adverte que "seria inconstitucional criar uma ordem de bens jurídico-penais de forma a inverter a ordem de valores constitucional" [23]. A desobediência a esse princípio, acrescenta a autora, acarretaria uma desconformidade, uma incompatibilidade entre uma ordem de valores estabelecidos pela Constituição e os bens protegidos pelo direito penal. E citando Sax, traz à colação um exemplo de incompatibilidade: "o caso do homicídio não ser punido, ou ser sancionado como um ilícito de mera ordenação social, sendo os crimes contra o patrimônio considerados muito graves" [24]. Disso resulta a compreensão do controle exercido pela Constituição. Mas ainda persiste, e mais apropriadamente no ponto em que nos encontramos, a indagação sobre um possível mandamento imperativo sobre criminalização ou descriminalização exercido pela Constitução.

Como foi visto até aqui, a Constituição desenvolve uma função de orientação [25], na medida em que, possuindo o caráter fragmentário, não prevendo ou protegendo a totalidade de bens e de valores, mas apenas aqueles mais representativos e essenciais aos cidadãos, permite ao legislador ordinário apenas guiar-se dentro de certos limites. Por exemplo, ao elevar à categoria de bem jurídigo a dignidade da pessoa humana, permite que o legislador eleja outros bens dela decorrentes, como o da honra. Mas o legislador estaria obrigado a isso?

Faria Costa responde negativamente à indagação, dizendo que mesmo a Constituição "elegendo os valores mais fortes ou mais densos (o chamado núcleo duro da normatividade constitucional), não determina essa eleição, inapelavelmente, uma imposição de criminalização para o legislador ordinário, enquanto medida protectora daqueles mesmos valores" [26].

De fato, esse campo de atuação do legislador, que o permite selecionar bens jurídicos dignos de tutela penal a partir de uma diretriz firmada pela Constituição, estabelece-se com o amparo em outros critérios. Uma correta política criminal, baseada nas investigações realizadas pela criminologia, por exemplo, pode ser decisiva nesta seara [27].

Não é de todo despiciente o alerta de que estamos a tratar de um modelo de Constituição democrática, que procura alicerçar seus mandamentos nos princípios de igualdade e de respeito irrestrito ao cidadão, protegendo-o, pois, de qualquer atentado à sua individualidade. Fica o cidadão, assim, a salvo de agressões por motivos de crença, sexo, raça ou de qualquer outro característico que o designe como pertencente aos chamados grupos minoritários. E também por essa razão, as Constituições modernas deixam de imiscuir-se em questões várias, que não dizem respeito às condições de livre desenvolvimento do cidadão. Dessa forma, o Estado não se responsabiliza em estabelecer, v.g., uma doutrina moral [28], tendo em vista a premissa de respeito à individualidade.

Destarte quando uma Constituição, como a brasileira, lança as bases de proteção à família, não está, na realidade, determinando ao legislador ordinário que criminalize o adultério ou que o mantenha no Código Penal [29]. O legislador deverá averiguar a necessidade de intervenção penal, segundo os reclamos da sociedade ante a possibilidade de dano, medido pela criminologia. No caso sub examen, em que se constata não uma declarada permissividade do adultério, mas um consenso de que ele não gera danos que não possam ser reparados por outros meios, é de se questionar sua criminalização.

Em arremate, frisa-se que a Constituição ao proteger a entidade familiar não prevê uma necessária intervenção penal, tampouco determina a criminalização do aultério. A necessidade de proteção será aferida criteriosamente, com base nos estudos realizados pela criminologia e pela orientação da política criminal.


3.O Objeto do Crime Interpretado pela Criminologia e pela Correta Aplicação da Política Criminal.

Não se pode conceber um direito penal ao modo de Binding, num plano extremo do positivismo, erigido unicamente em função dos valores escolhidos pelo legislador, como que se ele fosse dotado de uma razão clarividente e justa, capaz de determinar, por seu único arbítrio, a satisfação das necessidades e interesses de uma comunidade. Um direito penal cunhado dessa forma, correria o risco de ceder sua função instrumental a uma função puramente simbólica [30]. Ademais, o ajuste do direito penal ao tempo e a uma determinada sociedade pode pressupor uma atividade dinâmica e em constante mutação, não só criminalizando [31], mas também descriminalizando [32], para alcancar-se maior eficácia. Justamente no ponto da descriminalização é que se encontra a maior barreira, face aos prejuízos políticos que a atitude pode desencadear [33]. Não obstante isso, deixando-se de lado o modelo de Binding e situando o legislador ordinário mais próximo do ideal, que esteja sempre atento aos verdadeiros anseios da comunidade, surgem algumas dificuldades para o ajuste do direito penal, uma vez que, como dito acima, mesmo orientando-se pelos ditames constitucionais, o legislador não encontrará resposta para tudo na Constituição. Tratando-se de norma de caráter orientador e possuindo a qualidade de fragmentária, a Constituição não pode servir como tábua de salvação ao legislador, ou seja, ela não determina que bens jurídicos devam ser abrangidos pela tutela penal. O que fazer?

O fenômeno do crime passou a preocupar os estudiosos sobretudo a partir do século XIX, quando ao mesmo tempo em que se colocava em causa a eficácia dos meios punitivos [34], procurava-se encontrar as causas dos desajustes para encontrar-se os meios do seu combate. Daí que o estudo sobre o fenômeno do crime passou a atribuir diversas razões para o seu surgimento. Lombroso, por exemplo, expunha no seu L’Uomo delinquente, a concepção do determinismo endógeno, cujo ponto axial residia na formação do criminoso a partir de características biotipológicas, enquanto que outros tentavam explicar o fenômeno a partir de concepções exógenas, explicando o crime em razão de fatores sociais, como fez, por exemplo, Ferri. Surgia, assim, a criminologia. O novo estudo postulava a categoria de ciência, desenvolvendo investigações criteriosas sobre o fenômeno do crime, dentro de uma metodologia rigorosa.

Como ciência humanística, que estudava um fenômeno tipicamente social, logo a partir da segunda metade do século XIX a criminologia aliava-se à sociologia, para, através dos seus princípios e postulados básicos encontrar as causas do crime. Surgiam as escolas sociológicas, que viam nas desigualdades sociais e nos problemas econômicos alguns dos fatores criminógenos. Para essa consecução, além do trabalho de observação bem próprio à sociologia, passou-se a utilizar das estatísticas para a medição da criminalidade frente a diversos fatores.

A criminologia mudou de figura [35] e sofreu uma sensível evolução. Hoje seu obejto precípuo não mais é a tentativa de conceitução de crime, mas é sim entendê-lo em face às diversas realidades sociais existentes [36]. Nesse contexto, a criminologia passa a trabalhar diretamente com as condutas anti-sociais e tudo que as cerca, percebendo, por exemplo, onde e como elas repercutem. Dessa forma, na medida em que apura a danosidade social, a criminologia também distingue os atos mais bem assimilados pela sociedade. Enfim, a criminologia abrange um vasto campo de investigações para o entendimento do processo do crime, assumindo um papel de relevo, como auxiliar do direito penal.

Como ensina Eduardo Correia, "não é só no plano normativo-sociológico referido que o crime pode ser visto, mas ainda num outro plano: o naturalístico" [37]. E é sob essa perspectiva que se dedica a criminologia.

Os dados colhidos pela criminologia oferecem um panorama geral sobre o crime, proporcionando seu melhor conhecimento. E o conhecimento do fenômeno, por sua vez, oferece condições para a escolha dos remédios necessários ao seu combate. A essa escolha e à determinação das diretrizes a serem tomadas no âmbito do direito penal é que se chama de política criminal.

A política criminal, pois, quando "recolhe e valora os resultados da criminologia" [39], arma-se de condições para reagir contra o crime. Pode, por exemplo, enfatizar a repressão ou os meios preventivos. Serve como valioso instrumento ao legislador ordinário, para a eleição dos bens carentes de proteção penal, ou para descriminalizar as condutas que já não exijam a proteção penal.

Portanto, num estado de direito moderno, de feição democrática, paradigmático do mundo ocidental, que traçou na Constituição os princípios de liberdade, de igualdade e de respeito a uma sociedade multifacetada; e que por isso mesmo pretende o direito às diferenças; onde não mais se reinvidica uma moral básica ou um padrão de educação; onde a intolerância cede lugar a uma maior permissividade, o legislador deve mover-se com cautela. Além de ater-se nos princípios e direitos básicos da Constituição, deve escolher a política criminal mais adequada [40]. Segundo esse modelo de Estado, não seria adequada, por exemplo, a criminalização de condutas que atingissem unicamente a moral. Assim é que atualmente se tornou inconcebível a intervenção penal para perseguir hábitos atípicos de comportamento sexual, desde que a conduta não venha a comprometer a autodeterminação sexual e o desenvolvimento do jovem.

Com base nessa perspectiva, a política criminal da Alemanha de 1969 não admitia um Estado super-intervencionista, que perseguisse um enorme leque de crimes. Ao invés do caráter retributivo, advogava-se a instituição de um sistema penal voltado para a prevenção especial, dando-se ênfase à ressocialização do delinqüente. Por isso, os autores do Projeto Alternativo de Código Penal orientaram-se no sentido de uma ampla descriminalização, eliminando do direito penal a segurança do Estado, o aborto e os comportamentos sexuais (sendo que neste item, o direito penal limitou-se a garantir a autodeterminação sexual e o desenvolvimento do jovem); posteriormente, o corte estenderia-se ao direito penal de bagatela [41].

Tendo-se em vista que a criminologia e a política criminal não são instrumentos estáticos, haja vista representarem uma realidade da conformação social e do modelo político de Estado, delimitada pelo tempo e espaço, orientarão o direito penal no mesmo rumo que a sociedade e o Estado tomarem. Para ilustrar essa característica, vem bem a calhar um exemplo referido por Maria da Conceição Ferreira da Cunha ao citar Roxin. Segundo este jurista, "enquanto que no actual estádio civilizacional comportamentos exibicionistas (o referido art. 183º, do StGB) (ainda) perturbam a paz jurídica, sendo assim legítima a sua criminalização, no futuro, quando (e se - acrescentamos nós) se impuser a convicção de que tal conduta apenas traduz uma perturbação psíquica não perigosa, deverá deixar de ser criminalizada(…)" [42]. Isto na medida em que a criminologia colha dados referentes a um consenso social sobre a desnecessidade da intervenção penal e que a política criminal veja mais vantajosa, por exemplo, a intervenção de outros aparelhos para a correção do delinqüente.

Ainda aqui podem surgir mais indagações sobre a legítima intervenção penal. Que outras balizas podem delimitar a atividade penal? Será sempre necessária sua intervenção diante do clamor social medido pela criminologia? Que outros critérios podem ditar a criminalização ou a descriminalização?


4. Os Princípios Basilares para Criminalização e Descriminalização

Toda a história da ciência do direito penal, com especial relevo para as escolas clássica e positiva, que se ocuparam da delimitação da atividade penal, criando sistemas de identificação do objeto do crime e da esfera de atuação do Estado, revela uma dinâmica extraordinária, principalmente se se levar em consirderação o curto transcurso de tempo que medeia entre o início dos estudos sistemáticos e o atual momento histórico. Trata-se, pois, de uma ciência relativamente nova, mas que apanhou o andar ligeiro da evolução social e soube seguir seu ritmo. O notório destaque para a teoria do bem jurídico em muito contribuiu para esse dinamismo, uma vez que o seu conceito não é estanque e imutável, mas sim variável de acordo com os rumos e prioridades perseguidos pelo Estado e por uma determinada sociedade. O que ontem sustentava a categoria de bem jurídico tutelado pelo direito penal, pode hoje prescindir dessa intervenção, na medida em que outros meios surjam mais eficientes para debelar os desvios sociais e para garantir aquele valor. De outro vértice, a evolução tecnológica pode colocar em risco determinados bens essenciais, como o da reserva da vida privada, que pode ser devassada através de interceptação ou de escuta telefônica ou por meio da informática, exigindo a intervenção penal [43].

Disso extrai-se a constatação da invariável necessidade de atualização penal, segundo a leitura de uma realidade social. O direito penal está sempre a confrontar-se com a determinação ou a exigência de nova criminalização ou de descriminalização [44].

Apesar de estar-se a falar do contexto propiciador da menor intervenção penal, através do sistema do bem jurídico e do estabelecimento de uma linha indissociável entre direito penal e Constituição e do relevante auxílio promovido pela criminologia e pela política criminal, não é descabido se falar além da orientação de descriminalização, na determinação de uma política de criminalização. A menor intervenção penal, antes de significar um corte radical do direito penal, ou sua completa negação, à maneira que propugna Hulsman [45], é a idéia representativa de uma atuação sensata do Estado, voltado a proteger penalmente os bens relevantes da comunidade. Por isso, o princípio da menor intervenção não descarta a criminalização, desde que ela se estabeleça dentro da filosofia de uma real necessidade e quando outros meios da política criminal mostrarem-se ineficazes.

Estando-se diante de um Estado democrático, constituído por uma sociedade pluralista, os valores de relevo são medidos pela sua representação social. Ou seja, determinados valores de interesse social podem ser erigidos à categoria de bens jurídicos penais, para que se os proteja de danos [46]. Assim, os bens jurídicos devem representar uma proeminente importância social, mesmo que, num primeiro lance de olhos não soe como tal. Quando o sistema penal garante proteção ao patrimônio, criminalizando o furto, pode, à primeira vista pensar-se na proteção individual daquele que efetivamente sofrer dano no seu patrimônio. Mas o alcance da norma tem, em realidade, o fim de promover o equilíbrio, paz e segurança numa sociedade.

Ao contrário, quando determinado interesse ou valor não tiver alcance social, não se poderá instituir um bem jurídico sujeito à proteção penal. É justamente nessa zona obscura de definição do socialmente importante ou indiferente que se encontram as maiores controvérsias sobre criminalização e descriminalização. Algumas questões solucionam-se pela acurada observação da criminologia. É o caso, mais de um vez citado, das relações homossexuais, praticadas por adultos, que não afetam valores ou interesses sociais, desde que não interfiram na autodeterminação sexual e na formação dos jovens. Já se não apresentam simples as tentativas de respostas às indagações sobre a descriminalização do aborto e do homicídio consentido (a eutanásia), por envolverem fortes sentimentos sociais e princípios arraigados desde há muito nas sociedades. Que espécies de repercussões geraria a diminuição da proteção do bem jurídico da vida? Surgiriam tendências a novas manipulações desse bem jurídico? A permitir-se a abreviação da vida, também seria admissível o contrário, ou seja, a reprodução humana por clonagem? Surgiriam inseguranças, quando, por exemplo, não se colhesse um consentimento de eutanásia estreme de dúvidas por parte de um enfermo terminal? Todas são questões merecedoras de ponderação para que, ao adotar-se uma política de descriminalização ou de criminalização não se venham a causar outras espécies de danos. Em questões como as apresentadas, há de medir-se a relação entre os custos e as vantagens. A atividade penal estabelece-se a partir de uma ligação fundamental entre o necessário sacrifício de um bem jurídico (o da liberdade, v.g., quando se impõe a pena de prisão) e as vantagens sociais decorrentes da realização de proteção a um bem jurídico. As vantagens, obviamente, deverão ser significativas em relação ao custo.

Mas como apurar-se a correta política criminal no sentido de legitimar-se a intervenção do Estado?

4.1. A Dignidade Penal e a Carência de Tutela Penal.

Já foi visto que o ponto de partida para uma correta definição da atividade penal do Estado, de modo que sua intervenção seja eficaz e não comprometa a vocação democrática e o direito à individualidade, considerando-se um meio social pluralista, é a completa omissão de intervenção no âmbito da moral. O Estado não pode se utilizar de um meio gravoso e forte, como é o direito penal, para forjar uma moral padrão. E isso nem é o seu papel. Essa diminuição da atividade estatal deu-se com a cristalização do conceito de bem jurídico, que está muito mais ligado aos valores essenciais da sociedade do que à noção frágil e de grande subjetividade da moral.

O segundo passo ocorreu com a queda dos Estados absolutistas. Os Estados modernos não só impõem obrigações e deveres, mas, antes, consolidam as garantias e os direitos individuais. Estão também sujeitos à obediência da normativização, do que se conclui não poderem extrapolar os seus limites em detrimento dessas garantias e desses direitos. Por isso, toda a normativização penal deve pressupor esses elementos mínimos que alicerçam o Estado de direito, ligando-se umbilicalmente à Constituição. É da lei Fundamental que se geram as normas de direito penal. Mas ela não impõe uma obrigação de criminalização ou de descriminalização. E, por tratar-se de norma de caráter fragmentário, a Constituição não esgota o rol de valores dignos de proteção penal.

Por isso, além de utilizar-se daqueles primeiros indicativos, o legislador ordinário vai apoiar-se nas matérias auxiliares do direito penal. Busca subsídios das observações e investigações da criminologia. É esta ciência que tem medido os índices de tolerância social, condutas desviantes, interesses mais sensíveis da sociedade, enfim, ela tenta retratar com fidelidade tudo o que circunscreve o a fenomenologia ou o que leve ao entendimento do crime.

Mas chegado a esse ponto, o direito criminal (e agora preferimos o uso deste termo, para referirmo-nos sobre o campo mais largo do crime, como salientava Eduardo Correia) defronta-se com novos limites. O direito criminal voltado, modernamente como ultima ratio para a solução de graves problemas sociais, que reclamam pelo remédio extremo; por isso mesmo mais diminuído, desde de que assente seu caráter fragmentário e subsidiário; inclinado para proteger os valores mais representativos da comunidade, necessita de conceitos legitimadores.

É assim que surgem na dogmática penal alemã os conceitos de dignidade penal (Strafwürdigkeit) e de necessidade ou carência de tutela penal (Strafbedürftigkeit), que se inserem naquela sistemática penal dos Estados modernos.

A dignidade penal ou o merecimento de pena, como preferem alguns autores [47], é um conceito que está intimamente ligado à teoria do bem jurídico, uma vez que, em termos amplos, tem por princípio a atribuição de pena a uma conduta socialmente danosa. Os primeiros casos de aplicação do conceito são atribuídos a Gallas e a Sauer, apesar de que sua origem possa remontar ao século XIX [48].

Mesmo não sendo o objeto do trabalho uma exposição aprofundada acerca dos conceitos de dignidade penal e de carência da tutela penal, não podemos ficar apenas com a rápida noção acima exposta..

Segundo Luzón Peña, a dignidade penal (ou como ele prefere, merecimento de pena), "expresa un juicio global de desvalor sobre el hecho, en la forma de desaprobación especialmente intensa por concurrir un injusto culpable especialmente grave (injusto penal) que debe acarrear un castigo(…) [49], frisando, ainda, a sua complementação pela idéia de necessidade de pena, que pressupõe a inexistência de outro meio menos grave para proteger o bem jurídico.

Inserindo-se a dignidade penal no contexto dos postulados já referidos e lembrando-se que sua aplicabilidade é oriunda de um conceito de bem jurídico, constata-se, desde logo, que ela exclui da esfera de proteção penal os valores morais. A dignidade penal não se presta a legitimar normas perseguidoras de um modelo moral. É antes um sistema de identificação dos valores mais representativos da sociedade, que emanam das áreas de consenso [50]. É, na definição de Costa Andrade, "a expressão de um juízo qualificado de intolerabilidade social, assente na valoração ético-social de uma conduta, na perspectiva da sua criminalização e punibilidade" [51]. Portanto, só a gama dos valores sociais ligados à promoção da dignidade humana (vida, honra, integridade física e patrimônio), cuja ofensa repercute em grave dano social, é digna de proteção penal.

Nesses termos, o critério de dignidade penal delimita o campo de atuação do Estado na esfera do crime, não viabilizando a neocriminalização. Mas sua inteira aplicabilidade num direito penal eficaz só será possível se a ela acrescermos o conceito de carência de tutela penal.

A filtragem da atividade estadual não depende apenas da catalogação dos bens relevantes da sociedade, mas também de um racional equacionamento dos meios idôneos para a solução dos problemas. Assim, quando os meios menos aflitivos forem convenientes para o combate das condutas significativas de danos, deve descartar-se a punição. O Estado, como agente da punição, só seria chamado a intervir quando os diversos mecanismos sociais e jurídicos falhassem na prossecução do combate de uma determinada conduta (quando não fossem eficazes na prevenção da danosidade social), significando que ela necessita de tutela penal [52]. Portanto a carência de tutela penal está ligada ao caráter de subsidiariedade do direito penal, que determina sua intervenção como o remédio extremo.

A carência da tutela penal pressupõe um juízo de necessidade (Erforderlichkeit) de intervenção, por inexistir outro meio idôneo e eficaz de proteção do bem jurídico e um juízo de idoneidade (Geeignetheit) do direito penal, na medida em que outros meios se mostrem não apropriados [53]. Ninguém há de contestar, por exemplo, a necessidade de intervenção do direito penal para a proteção do bem jurídico vida, proibindo-se o homicídio e impondo-se a ameça de pena restritiva de liberdade, como remédio mais forte do ordenamento jurídico. De outro lado, quando constatada a violação desse bem jurídico, é também o direito penal o meio idôneo para aplacar suas repercussões, através da punição na medida da culpa. Já se põe em dúvida a validade do direito penal para reagir contra o adultério, na medida em que inexiste um consenso social a reclamar por sua intervenção.

Da exposição em linhas gerais desses dois conceitos, podem-se extrair algumas características fulcrais para a definição do direito penal. Observa-se, primeiramente o caráter de complementariedade existente entre esses dois conceitos para a consecução da legitimação penal. Enquanto a dignidade penal emite um juízo de valoração (dos bens significativos da comunidade), a carência de tutela penal traduz a idéia de utilidade e de eficácia da intervenção do direito penal [54]. Os dois critérios interagem-se, de forma que somente a determinação de dignidade penal é insuficiente para desencadear a legítima intervenção do direito penal. Faz-se necessária a indagação sobre a carência de tutela penal do bem jurídico. Depois observa-se a sensível influência dos dois conceitos não só sobre a política criminal, mas também no plano dogmático. Partindo-se da investigação empírica realizada pela criminologia, obtem-se o quadro da realidade do consenso social sobre a exigência de proteção a determinados valores, que determinará uma política criminal. Em vista disso, os juristas deterão inúmeros elementos para a construção de uma dogmática penal. Por fim, observa-se a identificação da dignidade penal com a moderna teoria do bem jurídico, balizada pela orientação estabelecida pelo modelo de Constituição do Estado democrático. Rejeita-se a intervenção do Estado no âmbito da moral e legitima-se a proteção dos valores essenciais da comunidade, fazendo surgir a reação contra condutas danosas de repercussão social. A carência da tutela penal, por sua vez, identifica-se com o caráter subsdiário do direito penal, uma vez que esse só se presta a garantir e a proteger os valores representativos da comunidade, quando outros meios menos gravosos mostrarem-se inadequados ou insuficientes.


5. A Experiência Brasileira Através da Lei dos Juizados Especiais - A Identidade com o Princípio da Intervenção Mínima.

Já há um bom tempo que os tribunais brasileiros vêm temperando os rigores das leis penais com soluções mais consentâneas com a moderna política criminal. A fraude de pagamento com cheque sem provisão de fundos, por exemplo, conduta onde é difícil a constatação do dolo preenchedor do tipo ilícito do estelionato, pode deixar de ser perseguido em caso do pagamento ou ressarcimento dos prejuízos advindos para a vítima se efetivado antes do oferecimento da ação penal pública. Outra orientação muito ocorrente nos tribunais, era a de não punição do agressor quando evidenciado, pelo juiz, que a sanção penal pudesse a abalar relação daquele com sua esposa, quando vítima e o restante da família. Claro que neste caso se exigia uma especial prudência do magistrado, que deveria perceber as intenções da vítima em relação ao desfecho do processo.

Mas o fato é que os juízos criminais continuavam assoberbados. Inúmeros processos aguardando o longo curso de instrução, muitos deles em vias de prescrição, preenchiam a pauta dos juízes e dos promotores de justiça. Crimes de bagatela e contravenções tramitavam a fase inquisitorial na polícia e, após, uma instrução demorada e, muitas vezes falha. Uma dupla instrução criminal, que mesmo despida do excesso de formalismo, fazia os processos arrastarem-se por longos tempos. Essa situação caótica da justiça brasileira encontrou, recentemente, uma promessa de remédio na Lei dos Juizados Especiais Criminais, a Lei nº 9.099/95.

A Lei dos Juizados Especiais Criminais é a tentativa incipiente de inserir o Estado na moderna concepção menos intervencionista. Através de normas de caráter processual e penal, a referida lei instrumentaliza a justiça para atingir esse fim. Ao mesmo tempo, oferece um sistema de controle da contumácia não punida. Por outro lado, a lei concebe uma atividade judicial mais célere e eficaz, na medida em que dispensa, nos casos de menor complexidade, a fase de inquérito policial, remetendo o delinqüente e vítima à apresentação imediata ao juiz e ao representante do Ministério Público. Já nesse momento, pode ocorrer a transação civil entre ofendido e delinqüente, significando em reparação de danos materiais ou morais. Nos casos em que a persecução do crime dependa de representação do ofendido, a transação civil importa na extinção de punibilidade. Também na apresentação inicial, pode o representante do Ministério Público propor a pena, não consistente em segregação que, aceita pelo delinqüente, é de imediato executada.

A lei remeteu aos juizados especiais todos os crimes de menor potencial lesivo, tidos como tais aqueles em que a pena máxima não fosse superior a um ano de prisão. Nesse longo rol incluíram-se as contravenções. Como medida acertadíssima de política criminal, condicionou a persecução das lesões leves, culposas ou dolosas, à representação do ofendido. A este cabe a prerrogativa de compor acordo civil, excludente de punibilidade, ou de dar autorização ao Ministério Público para a transação penal ou ajuizamento da ação.

A imediata execução da pena é boa medida profilática. Ao invés dos morosos e muitas vezes infrutíferos processos criminais, que desgatavam imensamente a imagem da justiça, a transação penal aceita pelo delinqüente ou o procedimento sumaríssimo que culmine em sua condenação, levam à imediata execução da pena. Ao invés da pena de prisão, degradante da pessoa humana e formadora de delinqüentes profissionais, deu-se ênfase às penas restritivas de direitos, de prestação de serviços à comunidade e de multa. A intenção é, notoriamente, a de evitar o meio pernicioso das prisões para os delinqüentes não habituais e menos perigosos. A prisão ficou restrita para os casos graves, em que a retirada do delinqüente do meio social é medida necessária.

O legislador, por outro lado, foi cauteloso ao criar meios inibitórios para a delinqüência. A extinção de punibilidade através da transação civil, de modo algum estimula ou premia o infrator. Este gozará do benefício legal apenas uma vez, de modo que se voltar a delinqüir sofrerá a persecução criminal.

Deu-se, assim, um grande passo no direito penal brasileiro. Menos intervencionista, posto que exclui da atividade penal a perseguição de crimes de menor potencial lesivo solvíveis na esfera da transação civil, tornou-se rápido e eficaz. As instruções processuais mais demoradas, ficaram destinadas aos casos em que se exige maior apreciação de provas. Reabilita-se, também, a imagem da justiça. Outrora vista como extremamente morosa e pouco eficaz, mostra, agora, um dinamismo salutar, sem que se esqueçam das garantias constitucionais e processuais dos cidadãos. Mais resta ainda muito a caminhar. Figuras anacrônicas, desconformes com a realidade que se apresenta, como a do adultério e da sedução, merecem a atenção do legislador penal. Há ainda muita timidez no terreno da descriminalização. Timidez que desaparece quando se entra na seara da criminalização. Há, por certo, um longo caminho a trilhar, mas a certeza de que o legislador resolveu iniciá-lo já é bastante acalentadora.


Conclusão

A concretização de um direito penal ajustado segundo seu tempo e sociedade, passa, antes de tudo, pela definição da atividade estatal. Ao longo de uma trajetória histórica, dá-se a constante evolução do jogo político. O Estado vai assumindo novos papéis impostos pelas exigências sociais. As modernas sociedades, assimilam as diferenças sem prejuízos. Tornam-se cada vez mais complacentes em relação a condutas antes vistas como prejudiciais. Isso dá o contorno e as dimensões do crime.

O direito penal deve estar intimamente conexionado com outras ciências humanas. A criminologia, em especial, traduz as dimensões da fenomenologia do crime, revelando as áreas de consenso e de maior conflituidade. Nesse passo, é ela importante auxiliar do direito penal. Informa as novas exigências sociais, detecta seus valores mais pungentes, mais significativos, bem como aqueles que já não figuram no rol de prioridades.

Com o acesso constante a esses dados, pode-se determinar a política criminal mais adequada a um determinado tempo. Política criminal inclinada para os valores mais representativos da comunidade, que dita, antes de tudo, a retirada da intervenção penal das áreas relativas a moral. A política criminal deve encontrar outros meios mais eficazes e menos gravosos para corrigir os desvios prejudiciais à comunidade. Assim, quando a sanção não se apresentar, na ordem de subsidiariedade, como medida idônea e adequada, a descriminalização deverá impor-se.

A importância do direito penal revela-se pelo seu papel de último remédio da comunidade politicamente organizada. Está ele destinado a combater não as condutas comezinhas e de pouca gravidade, mas sim aquelas consideradas intoleráveis pela sociedade. Os atos mais danosos, que realmente causem prejuízos a valores representativos.


Notas

1. O presente artigo foi realizado durante nosso curso de mestrado na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. O material recolhido durante as investigações, foi mais tarde acrescido a outros, que deram sustentação para o nosso Dogmática Penal e Poder Punitivo: Novos Rumos e Redefinições, publicado pela Juruá, em 2000.

2. Apud Aníbal Bruno. Direito Penal, Parte Geral, tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 74.

3. Segundo Foucault, "o castigo é também uma maneira de buscar uma vingança pessoal e pública, pos na lei a força físico-política do soberano está de certo modo presente: vemos pela própria definição da lei que ela tende não só a defender mas também a vingar o desprezo de sua autoridade com a punição daqueles que vierem a violar suas defesas". E ainda, " O suplício tem então uma função jurídico-política. É um cerimonial para reconstruir a soberania lesada por um instante. Ele a restaura manifestando-a em todo o seu brilho. A execução pública, por rápida e cotidiana que seja, se insere em toda a série dos grandes rituais do poder eclipsado e restaurado" (Michel Foucault,. Vigiar e Punir, Petrópolis: Vozes, 1996, p. 46).

4. Baptista Machado salienta que "O princípio do Estado de Direito (ou Estado subordinado ao Direito surge historicamente por contraposição ao Estado Absoluto, no qual prevalecia a chamada "Razão do Estado" sobre os direitos e liberdades dos cidadãos" (in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador,Coimbra: Livraria Almedina, 1983 p. 59).

5. Costa Andrade, in Consentimento e Acordo em Direito Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1991 pp. 44/45.

6. Costa Andrade, ibidem.

7. Cfr. Maria da Conceição Ferreira da Cunha, in Constituição e Crime, Porto: Universidade Católica Portuguesa Editora, 1995, p. 39.

8. Referindo-se às decisões contidas no 6º vol. Do repertório de decisões do BGH (Supremo Tribunal Federal alemão), diz Hassemer que"en especial la elocuentemente representativa ley sobre la moral, que moldeó normativamente el texto legal y su interpretación, ( a cuyo contenido el Senado accedió facilmente), pudo fundamentar en un abrir y cerrar de ojos las dos sentencias privativas de libertad: ‘el ordenamiento moral quiere que el tráfico entre los seres humanos se haga efectivo fundamentalmente en la pareja monogámica, porque el sentido y la consecuencia del tráfico es el niño (53).Ya que la ley sobre la moral desaprueba estrictamente todo suicidio, prescidiendo quizá de excepciones aparentes, ya que nadie puede disponer soberanamente sobre su propia vida y darse muerte, el derecho no puede reconocer que el deber de asistencia del tercero tenga que ceder ante la voluntad moralmente desaprobada del suicida concretada en su propia muerte’(153)" in "La ciencia jurídico penal en la República Federal Alemana", nota 14, publicado no Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, tomo XLVI, fasc. I, enero-abril MCMXCIII.

9. Maria da Conceição Ferreira Cunha, in Constituição e Crime, p. 41.

10. Costa Andrade, in Consetimento e Acordo em Direito Penal, p. 37.

11. Moos, Der Verbrechensbegriff, p. 214/5, apud Costa Andrade, in op cit, p. 52.

Para Frederico Stella, a obra de Birnbaum reflete a posição utilitarista, possuindo um "declarado intento de estabelecer um limite à tarefa do legislador penal, circunscrevendo o elenco de factos merecedores de pena somente aos (factos) socialmente danosos, ofensivos de entidades «reais» («empírico-naturais») do mundo externo", in La Teoria del Bene Giuridico e I.C.D. Fatti Inoffensivi Coformi al Tipo, apud Maria Conceição Ferreira da Cunha, cit., pp. 42/43.

12. Apud Maria Conceição Ferreira da Cunha, op. cit, p. 50.

Para a citada autora, Binding "opta claramente pelo positivismo normativista, na medida em que o bem jurídico se identifica com tudo o que como tal for considerado pelo legislador". In op cit., p. 51.

13. Ibidem, p. 68, nota 86.

14. Costa Andrade, op. cit., p. 39.

15. Von Liszt in Lehrbuch des Deutschen Strafrechts, apud Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, Lisboa: Veja, 1986, p. 53.

16. Op.cit, p. 58.

17. À guisa de exemplo, Roxin cita a descriminalização do adultério: "Disposições esvaziadas de conteúdo (como a sanção penal contra o adultério) são pura e simplesmente inadequadas para proteger bens jurídicos que (como o casamento) são, não obstante, dignos de proteção. Todavia, castigar semelhante conduta por uma «adesão» estatal ao casamento é algo que repugna ao PA que, consequentemente, segue o ponto de partida de Liszt". Op. cit., p. 59.

18. Conforme Costa Andrade, in O Novo Código Penal e a Moderna Criminologia, na coletânea Jornadas do Direito Criminal, Fase I, Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 1983, p. 189.

Ajunta Roxin afirmando taxativamente que "somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para uma vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se.(…)Consequentemente, e por ser a reacção mais forte da comunidade, apenas se pode recorrer a ela em último lugar". In Problemas Fundamentais do Direito Penal, p. 28.

Ao chegarmos neste ponto interessantíssimo da natureza do direito penal, questionamos a legitimidade das leis brasileiras que definem e sancionam penalmente a sonegação fiscal. A Lei nº 4.729, de 14 de junho de 1965, no seu art. 2º, previa a extinção da punibilidade com o pagamento do débito fiscal. No mesmo passo caminhou a Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, dos crimes contra a ordem tributária, que no art. 14 previa a extinção da punibilidade quando o devedor pagasse a dívida fiscal até antes do recebimento da denúncia, oque foi seguido pelo art. 34, da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995. Desse rápido panorama se depreende que o legislador brasileiro não vê a necessidade de punir a sonegação fiscal, mas criou elementos coercitivos, ante uma ameaça de processo penal e de provável imposição de pena, para ver satisfeita a pretensão de quitação das dívidas fiscais. Ante a óbvia falta de necessidade de punição (segundo a intenção finalística do legislador brasileiro), vemos como supérflua a utilização da investigação policial e possível atividade do Ministério Público e do Judiciário. Ademais, referidas leis penais atentam contra a dignidade do cidadão, que permanecerá, em muitos casos, com a mácula, o estigma dos maus antecedentes policiais. Não seria o caso de tornar mais célere e eficiente o procedimento de cobrança das dívidas públicas? Não resultaria mais eficiente?

19. Eduardo Correia in Direito Criminal, Coimbra: Livraria Almedina, 1996, pp. 1/2.

20. Figeueiredo Dias, a esse propósito afirma que "Se, num Estado-de-direito material - como se aponta, p. ex., de maneira lapidar na Constituição portuguesa -, toda a actividade do Estado, incluída a jurídico-penal, há-de estar submetida à Constituição e fundar-se na legalidade democrática, então também a ordem legal dos bens jurídicos há-de constituir, antes de mais, uma ordenação axiológica com aquela que preside a Constituição". (grifamos). In Direito Penal e Estado-de-direito material, Revista de Direito Penal, nº 31 1982, p. 44.

21. Faria Costa in O Perigo em Direito Penal,Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 188.

22. Ibidem, p. 189.

No mesmo sentido manifesta-se Figueiredo Dias ao menciona que se verifica uma relação entre o ordenamento constitucional e o ordenamento penal "a permitir afirmar que a ordem de valores jurídico-constitucional constitui o quadro de referência e, simultaneamente, o critério regulativo do âmbito de uma aceitável e necessária actividade punitiva do Estado", in Novos Rumos da Política Criminal, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 1983, p. 28.

23. Maria da Conceição Ferreira da Cunha afirma que "Aceitando ser a dignidade da pessoa humana o princípio fundante e rector das actuais Constituições democráticas de cultura ocidental, é evidente que que os valores mais intimamente ligados a esta dignidade são de primacial importância. Desde logo a vida, como base de todos os valores, terá de assumir papel cimeiro. Mas também a liberdade, nas suas várias expressões, e a integridade física e moral". Op. cit, pp. 317/318. Estes seriam, pois, valores prioritários que merecem respeito e proteção, e sobre os quais deve se manifestar o legislador.

24. Ibidem, p. 328.

25. Ibidem, p. 328.

26. Conforme Faria Costa, op. cit., p. 198.

27. Ibidem, p. 189.

Karl Prelhaz Natscheradetz explica que "a elaboração de um conceito material de crime a partir dos critérios jurídico- constitucionais não significa, de modo algum, que a actividade do legislador penal na determinação e concretização dos bens jurídicos que devem ser protegidos se limite a tarefas de subsunção e dedução a partir das normas e princípios constitucionais" E mais adiante arremata seu raciocínio afirmando que "A Constituição fornece os critérios de apreciação, mas não uma linha directiva fechada, o que, conferindo uma ampla liberdade ao legislador penal na concretização dos bens com dignidade penal («Strafwürdigkeit») e que necessitam ou carecem de tutela penal - não esquecendo, como já foi referido, que nem todos os valores constitucionais possuem as referidas qualidades, pelo entendimento do direito penal como protecção subsidiária de bens jurídicos (…)"In O Direito Penal Sexual, Coimbra: Livraria Almedina, 1985, p. 106/107.

28. Natscheradetz afirma que "(…)não se deve caracterizar de modo puramente normativo o conceito de bem jurídico: o «aspecto criminal-fenomenológico» a realidade concreta e empírica do crime, deverá ser objecto de um estudo objectivo pela Criminologia, para informar racionalmente a decisão legislativa (…)", in op cit., p. 107.

29. Hassemer, ao referir-se sobre a reforma do CP alemão, de 1969, contrapondo-se ao largo intervencionismo que se verificava no projeto de 1962, em que a criminalização era ampla e abrangente, ressalta a significativa modificação do títtulo dos crimes sexuais, até então conhecidos como delitos contra a moral. O legislador passou a perquirir sobre o legítimo bem jurídico a ser protegido pelo direito penal sexual, extraindo as concepções que transcendiam à autodeterminação sexual e a proteção à juventude. (in "La ciencia jurídico penal en la República Federal Alemana", cit. pp 56/57.

30. A reforma do CP alemão de 1959 levou a cabo a descriminalização de diversas figuras, notoriamente incompatíveis numa sociedade pluralista, estruturada sob uma forma liberal. Assim, os legisladores desconsideraram o homossexualismo entre adultos, a sodomia, além do adultério. Ibidem, p. 57.

31. Dita função simbólica, segundo a lição de Silva Sanchez, citado por Alberto Silva Franco no seu artigo "Do Princípio da Intervenção Mínima ao Princíipio da Máxima Intervenção", caracteriza-se "por dar lugar, mais do que a resolução directa do problema jurídico-penal (a proteção dos bens jurídicos), à produção na opinião pública da impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido". Mais adiante, Silva Franco arremata seu ponto de vista citando Antônio Garcia-Pablos, que afirma que se trata de utilizar o direito penal "para produzir um mero efeito simbólico na opinião pública, um impacto psicossocial, tranquilizador para o cidadão e não para proteger com eficácia os bens jurídicos fundamentais para a convivência" (publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, fasc. 2º, de 1996, pp. 182/183). Para Silva Franco, um exemplo marcante dessa função simbólica assumida pelo legislador penal brasileiro é a Lei dos Crimes Hediondos, cujo "insucesso foi um convite a novas incursões na mesma temática, sempre com um alargamento maior da intervenção punitiva e com uma proporcional limitação das garantias processuais penais". Ibidem, p. 185.

As severas críticas de Silva Franco.residem num ponto axial de defeito de técnica penal, encontrando outras vozes que partilham de seu ponto de vista. De fato o legislador brasileiro agiu preciptadamente ao pretender dar uma satisfação aos clamores públicos, dramatizados pelos meios de comunicação social. E acabou por macular o fim teleológico da lei a partir do conceito de hediondez. Ora, hediondo, segundo o léxico, tem o significado de depravado, imundo, vicioso, sórdido, repugnante. É, enfim, o ato que traz em si a característica de causar os mais diversos sentimentos de repulsa. Um furto famélico é reprovável, mas não causa clamor do cidadão comum. Ao passo que a extorsão mediante seqüestro, por si só é um crime repugnante. Há, no entanto, modus faciendi de determinados crimes que causa repulsa e o clamor público. E, justamente esses crimes, mais representativos, é que foram rotulados como hediondos pelo legislador, criando uma falsa impressão ao público. Na verdade, não podia o legislador criar um conceito hermético e estático de hediondez, na medida em que, como ensina Damásio de Jesus, uma relação sexual com uma menor de 13 anos, em que o agente desconhece sua idade e age mediante consentimento, não representa um ato hediondo (apesar de estar tipificado o estupro, arrolado na mencionada lei como crime hediondo), ao passo que se um sujeito desferir inúmeros golpes de faca por todo o corpo da vítima, causando-lhe apenas lesões corporais leves, está a cometer um ato repugnante, mas não enquadrado na lei (in Novas Questões Criminais, pp. 26/27). Dessa forma compreende-se ter o legislador falhado imensamente, dando falsas impressões ao público e não logrando atingir o fim perseguido, mas não repudiamos completamente a referida lei, que tem aspectos positivos, mormente no que se refere aos instrumentos processuais.

32. A evolução tecnológica, vg., viabilizou a invasão de privacidade e até mesmo fraudes, através da informática, causando sérios danos a bens jurídicos carentes de tutela penal.

33. Na Alemanha do tempo da reforma do CP de 1969, chegou-se ao consenso de que condutas como o adultério e o homossexualismo entre adultos já não exigiam a intervenção penal. Primeiro porque a moderna teoria do bem jurídico expurgava a intromissão do Estado do domínio da moral. Já se não concebia um Estado doutrinador, voltado para orientar uma moral comum. Depois porque de certa forma colhia-se um consenso social sobre a falta de prejuízo em deconrrència daquelas condutas.

34. Figueiredo Dias e Costa Andrade salientam que "Para o poder, o crime constitui um dos tópicos mais gratificantes". E citando N. Morris/G. Hawkins, concluem que " ‘ Os Políticos confiam exageradamente na lei criminal e gostam de invocar as sanções criminais a propósito dos mais variados problemas sociais, que mais não seja para declinar o seu fervor moral e suas virtudes políticas’. Daí a frequência do recurso à guerra ao crime como expediente de capitalização política sobre o medo e a insegurança e, por isso, de legitimação das formas mais agressivas de poder". In Criminologia - O Homeme Delinquente e a Sociedade Criminógena, Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p.414.

35. O Marquês de Beccaria, fundador da escola clássica, foi um dos precurssores dessa discussão, opondo-se de maneira firme às penas cruéis e infamantes que, segundo sua teoria, eram dispensáveis em razão do sofrimento desnecessário que se impunha ao condenado. Beccaria proclamava a utilidade social da pena.

36. É de salientar-se que a criminologia originária, a tradicional, perfilhava-se a uma crença de neutralidade axiológica política. Ao invés de abordar o crime pelo prisma do criticismo, "aceitava positivisticamente a ordem social oficialmente imposta e, por isso, a definição do que é e não é criminalizado (do que deve e não deve ser criminalizado) na base do postulado acrítico de que o crime releva necessariamente das margens de consenso e dos valores fundamentais de colectividade" (Costa Andrade, in O Novo Código Penal e a Moderna Criminologia, publicado nas Jornadas de Direito Criminal, p. 188).

37. Eduardo Correia salienta que a criminologia tenta dar respostas às perguntas referentes ao crime: "O que é ele? Quais as causas que explicam o seu cometimento? Quais as circunstâncias que o favorecem e quais as que o impedem?" (in Direito Criminal, vol. I, p. 3).

38. Ibidem.

39. Ibidem, p. 8.

40. Sobre o caráter de adequação da política criminal, Figueiredo Dias refere que ela "se há-de condicionar estritamente pelo étimo jurídico-político de uma certa concepção do Estado". Mais adiante conclui dizendo que a política criminal é "(…)infra-sistemática relativamente à concepção do Estado, já é, por outras palavras, imanente ao sistema jurídico-constitucional. As proposições político-criminais hão-de ser, também elas, procuradas dentro do quadro de valores integrantes do consenso comunitário e mediados ou «positivados» pela Constituição democrática do Estado" (in "Os Novos Rumos da Política Criminal e o Direito Penal Português do Futuro", Revista da Ordem dos Advogads de 1983, p. 12). Assim, a política criminal a ser aplicada deverá ser coerente com o Estado e suas aspirações no plano político social, representando o mais próximo possível sua realidade. Refletirá também, não resta dúvida, o contexto cultural de um povo.

41. Cfr. Hassemer, in La Ciencia Jurídico Penal en la República Federal Alemana, cit. p. 51.

42. In op. cit., p. 155.

43. O Código Penal português prevê uma série de figuras delituosas que agridem a reserva da vida privada. O art. 192º, v.g., incrimina as mais variadas formas de invasão da intimidade, proibindo as escutas, interceptações ou transmissões de comunicação telefônica; a captação e a divulgação de imagens de pessoas ou de espaços íntimos através da fotografia. O art. 193º proíbe a manutenção ou utilização de "dados individualmente identificáveis e referentes a convicções políticas, religiosas, ou filosóficas, à filiação partidária ou sindical, à vida privada, ou a origem étnica" através da informática.

44. Faria Costa admite o caráter variável do bem jurídico, dizendo que "o aceitar-se que a descriminalização e a criminalização foram constantes cíclicas do evoluir do direito penal dentro da especificidade que o real histórico lhe ia criando, não supõe uma coincidência acrítica com o evoluir da noção do bem jurídico, nem sequer com os próprios bens jurídicos-penais". (in O perigo em Direito Penal, p. 182).

Figueiredo Dias e Costa Andrade constatam que "Sempre, com efeito, o processo de evolução do direito criminal, correspondente à dialéctica da superação duma definição oficial da realidade por outra, se traduziu em medidas de descriminalização, articuladas com soluções de neocriminalização" (in Criminologia, p. 398).

45. "Hulsman acredita que o sistema penal não é necessário nem bom: para além de produzir sofrimentos, reproduzir e ampliar desigualdades, «rouba os conflitos» às pessoas directamente implicadas.(…)Uma correcta política criminal de resposta às «situações-problemas» deve partir da ideia que estas emergem de conflitos naturais à convivência humana. Devem, por isso, privilegiar-se em absoluto as soluções espontâneas, face-a-face, protagonizadas pelas «directamente implicadas». A enventual intervenção de terceiros deve, na medida do possível, ser confiada a membros da mesma comunidade natural e obedecer à ideia de conciliação. A ser necessário recorrer a soluções jurídicas, estas devem circunscrever-se aos quadros do direito civil e perspectivar-se pelo princípio da «compensação»". Ibidem, pp. 400/401.

46. Costa Andrade afirma que "hoje aceita-se o princípio de que a danosidade social - ou, noutra perspectiva, a lesão (ou perigo) de bens jurídicos - constitui o postulado primeiro da legitimidade da criminalização no contexto do que alguns autores chamam Direito Penal duma sociedade aberta (v.g., ARNDT) e outros Direito Penal de uma sociedade plural (v.g., LISTL)". In O Novo Código Penal e a Moderna Criminologia, Jornadas de Direito Criminal, p 202.

47. Diego-Manuel Luzón Peña traduz Strafwürdigkeit como merecimento de pena, significando que "la conducta del autor merece una pena (por tanto, que la punición es merecida)". In "La relación del merecimiento de pena y de la necesidad de pena con la structura del delito", Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Tomo XLVI, fasc. I, ano de 1993, p. 22.

48. Ibidem., p. 22.

Também Costa Andrade refere que "Como Volk recorda, a dignidade penal aparece já com alguma frequência nos tradistas do século passado". In "A dignidade penal e a carência da tutela penal como referência de uma doutrina teleológico-racional do crime", Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, 2º, 1992, p. 175.

49. In op. cit., p. 22.

De forma mais simples e direta, pode-se dizer que "só assumem dignidade penal as condutas que lesem bens jurídicos ou, noutros termos, que sejam socialmente danosas". Figueiredo Dias e Costa Andrade, in Criminologia, p. 405.

50. "O conceito de dignidade penal implica, assim, um princípio de imanência social e um princípio de consenso. O primeiro significa que não deve assegurar-se através das sanções criminais a prossecução de finalidades socialmente transcendentes, designadamente moralistas ou ideológicas. O segundo, por seu turno, postula a redução do direito criminal ao núcleo irredutível - se bem que historicamente variável - dos valores e interesses que contam com o apoio generalizado da comunidade". Ibidem, p. 406.

51. In "A dignidade penal e a carência de tutela penal…", já cit., p. 184.

52. É cristalina a lição de Sax quando afirma que a necessidade de tutela penal exprime "o juízo de que, em relação a determinados comportamentos que directa ou indirectamente lesam bens jurídicos, sendo, portanto, dignos de sanção criminal, esta sanção é também de facto o único meio para, de forma eficaz, proteger a ordenação comunitária". Apud Figueiredo Dias e Costa Andrade, Criminologia, p. 407.

53. Cfr. Costa Andrade, in "Dignidade e carência de tutela penal…," p. 186.

54. Cfr. Maria da Conceição Ferreira da Cunha, in op. cit, p. 221.


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GUIMARÃES, Isaac Sabbá. A intervenção mínima para um direito penal eficaz. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 57, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2954. Acesso em: 25 abr. 2024.