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Abolicionismo e minimalismo penal

A contração do avanço expansionista do direito penal contemporâneo

Abolicionismo e minimalismo penal. A contração do avanço expansionista do direito penal contemporâneo

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Um diagnóstico do atual estágio do Direito Penal, com especial destaque ao seu avanço expansionista, efeitos nefastos e ineficácia como instrumento de controle social.

RESUMO: A pesquisa buscou a contextualização dos Movimentos de Política Criminal conhecidos como Abolicionismo e Minimalismo Penal no horizonte expansionista do Direito Penal contemporâneo, de cunho demagógico e midiático, marcado pela adoção do discurso neopunitivista, baseado na máxima intervenção, prima ratio, criminalização de condutas, recrudescimento das penas e desrespeito aos Direitos Humanos, mormente no sistema de justiça criminal adotado nos países latino-americanos, deslegitimados e estruturalmente incapacitados de cumprir as funções úteis que fundamentam a sua existência. O Estado Democrático de Direito se notabiliza pela ordem constitucional que consagra direitos individuais e sociais, que se volta para o mister de efetivar restrições aos poderes estatais em favor dos cidadãos. A constitucionalização do Direito Penal dá relevo e envergadura ao princípio da dignidade da pessoa humana e alavanca debates acerca da intensidade, proporção e efetividade da intervenção estatal por meio das normas penais e de suas drásticas consequências na vida dos indivíduos. A proposta abolicionista se desenvolve em torno da criação de alternativas para o processo de justiça criminal, de natureza legal ou não-legal, propondo a criação de microorganismos sociais baseados na solidariedade e fraternidade, com vistas à reapropriação social dos conflitos entre agressores e ofendidos e a criação espontânea de métodos ou formas de composição. Os postulados do Minimalismo Penal, ao contrário dos abolicionistas, não defendem o fim do Direito Penal, mas sua mínima intervenção, e encontram sustentação remota no Iluminismo, que teve Beccaria como representante exponencial. Este modelo engloba inúmeras propostas, todas vinculadas, entretanto, à defesa da contração, em maior ou menor nível, do Direito Penal repressivo. O minimalismo aceita o Direito Penal, mas busca alternativas humanistas de redução da sua incidência. A pesquisa procurou destacar as propostas elaboradas por Foulcault, Mathiesen, Hulsman, Baratta, Ferrajoli e Zaffaroni, este último, grande propulsor do movimento minimalista.

Palavras-chave: Abolicionismo penal; Minimalismo penal; Direito Penal contemporâneo; Expansionismo penal; Justiça criminal; Efetividade da intervenção estatal; Contração do Direito Penal repressivo.


1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por escopo proceder a um diagnóstico do atual estágio do Direito Penal, com especial destaque ao seu avanço expansionista, efeitos nefastos e ineficácia como instrumento de controle social.

Pretende-se demonstrar como ao longo do tempo tem se processado uma verdadeira inflação legislativa na área criminal, tornando o Direito Penal a panaceia para todo e qualquer problema social ou individual. Em meio a esse processo o Direito Penal tem sentido a interferência de questões que estariam melhor tratadas em outros ramos do Direito, onde poderiam contar com soluções mais eficazes e vantajosas para as partes envolvidas. Além disso, o Direito Penal vai aos poucos sendo invadido por procedimentos e sanções alheios a sua natureza, um processo de desnaturação, deformação e expansão que vai muito além dos seus estreitos limites racionais.

O estudo ora levado a efeito justifica-se pela necessidade de conscientização quanto aos níveis de perversão e inflação desmedidas empreendidos sobre o Direito Penal, de modo que esse processo contraproducente e irracional possa cessar e interromper o ciclo de consequências funestas sob os pontos de vista social e de preservação dos valores humanos, especialmente da liberdade e da dignidade.

Mediante o desenvolvimento de uma reflexão aprofundada do fenômeno expansionista penal e de suas causas, será possível apresentar um panorama sobre o tema para, a seguir, propor caminhos, alternativas, soluções, mudanças radicais ou não (Abolicionismo ou Minimalismo Penal), mas absolutamente necessárias à reversão do processo em curso. Tal caminho tem como referencial teórico a concepção de um Direito Penal baseado nos princípios da intervenção mínima, fragmentariedade, subsidiariedade e ultima ratio, depurado de usurpações e fusões, bem como reservado rigorosamente a um restritíssimo campo de atuação no qual seja considerado indispensável ou irrenunciável.

Nesse contexto, será demonstrado que o sistema de justiça criminal adotado pelos países latinoamericanos, excessivamente inflados pela onda expansionista, encontram-se deslegitimados e estruturalmente incapacitados de cumprir as funções úteis que fundamentam o seu existir. Em contraponto a esse cenário, a corrente minimalista postula a longo prazo a abolição do sistema penal, mas admite que esta abolição deva passar necessariamente, a curto e a médio prazos, de um lado, por uma profunda transformação, através de processos de descriminalização e de redução da pena, e de outro lado, pela reformulação do Direito Penal, de modo que ele seja utilizado como instrumento contra a violência do próprio sistema de justiça criminal.

Para a corrente minimalista, com destaque para Zaffaroni, a deslegitimação do sistema penal deve-se principalmente ao fato dele não se revelar estruturalmente apto a cumprir as funções declaradas em seu discurso oficial, funções que buscam justificar a sua existência e perpetuação.

A Criminologia Crítica e seus apanhados e estudos têm revelado que o sistema penal não consegue nem diminuir os índices de criminalidade, nem promover a ressocialização do criminoso através da prisão (modelo adotado pelos sistemas penais capitalistas). Também apresenta alto grau de seletividade, o que se nota na seleção dos bens a serem tutelados pela lei penal, bem como no recrutamento da sua clientela. Outro fator concorrente e relevante para a sustentação do discurso de deslegitimação do sistema penal é a sua violência operacional, que na realidade tende a criar mais problemas do que aqueles que propriamente visa combater.

Além disso, espalham-se mundo afora no momento atual, mormente nos Estados Unidos e na Europa, com ramificação em toda a América Latina, os chamados Movimentos de Lei e Ordem. Tais movimentos difundem, por meio de um punitivismo ideológico, midiático e demagógico (neopunitivismo), uma situação de pânico e insegurança generalizados em toda população.

Argumentos como o aumento da criminalidade, principalmente do terrorismo, narcotráfico e crimes hediondos, são utilizados como justificativas para o endurecimento das políticas de segurança pública, e o neopunitivismo é apresentado como remédio milagroso para a resolução das altas taxas de criminalidade (tráfico de drogas, homicídios, roubos, latrocínios etc). Aumenta-se a repressão, por um lado, baseada no antigo regime punitivo-retributivo, e, por via transversa, é fortalecida a prevenção especial negativa, baseada na neutralização do criminoso através de prisões de segurança máxima, perpétuas e da pena de morte.

Os resultados do avanço do neopunitivismo são o surgimento de leis penais de cunho altamente repressivo, a violação de direitos fundamentais e garantias constitucionais penais e processuais penais, sem o mínimo de observação empírica, pesquisa criminológica e sociológica e o recrudescimento das penas, sobretudo de privação de liberdade, respaldados pelo clamor da população pela pena de morte, redução da maioridade penal, hediondez de determinadas condutas etc.

Esse quadro desalentador espelha a incapacidade do sistema de justiça criminal de gerar respostas para tais problemas e impõe aos penalistas e aos criminólogos críticos a necessidade de construção de um discurso político-criminal voltado para a desmitificação do sistema penal, para a contenção da sua violência e para a busca de formas extrapenais de resolução dos conflitos.

Dessa forma, o presente artigo possui como objetivo o estudo aprofundado dos movimentos de política criminal conhecidos como Abolicionismo e Minimalismo Penal, buscando responder o que vêm a ser e quais os seus fundamentos e demonstrar, com amparo em propostas elaboradas por Foulcault, Mathiesen, Hulsman, Baratta, Ferrajoli e Zaffaroni, que ambos apresentam-se como tendências político-criminais aptas a responder ao expansionismo penal, por meio de um amplo processo de descriminalização, despenalização e desjudicização, baseado no incondicional respeito aos Direitos Humanos e às garantias constitucionais do Estado Democrático de Direito, com o objetivo final de substituir o atual sistema penal por formas mais democráticas e efetivas de resolução dos conflitos.


2 EXPANSIONISMO PENAL E NEOPUNITIVISMO

2.1 Os discursos neopunitivistas (“Lei e Ordem” e “Tolerância Zero”)

A mídia, no final do século passado e início do atual, foi a grande propagadora e divulgadora do movimento de Lei e Ordem. Profissionais não habilitados (jornalistas, repórteres, apresentadores de programas de entretenimento, etc.) chamaram para si a responsabilidade de criticar as leis penais, fazendo a sociedade acreditar que, mediante o recrudescimento das penas, a criação de novos tipos penais incriminadores e o afastamento de determinadas garantias processuais, a sociedade ficaria livre daquela parcela de indivíduos não adaptados (GRECO, 2013).

Não é necessária estatística para afirmar que a maioria das sociedades modernas, a do Brasil dramaticamente, vive sob o signo da insegurança. O roubo com traço cada vez mais brutal, “sequestros-relâmpagos”, chacinas, delinquência juvenil, homicídios, a violência propagada em “cadeia nacional”, somados ao aumento da pobreza e à concentração cada vez maior da riqueza e à verticalização social, resultam numa equação bombástica sobre os ânimos populares (GRECO, 2013).

O convencimento é feito por intermédio do sensacionalismo, da transmissão de imagens chocantes, que causam revolta e repulsa no meio social. Homicídios cruéis, estupros de crianças, presos que, durante rebeliões, torturam suas vítimas, corrupções, enfim, a sociedade, acuada, acredita sinceramente que o Direito Penal será a solução de todos os seus problemas (GRECO, 2013).

O Estado Social foi deixado de lado para dar lugar a um Estado Penal. Investimentos em ensino fundamental, médio e superior, lazer, cultura, saúde, habitação são relegados a segundo plano, priorizando-se o setor repressivo. A toda hora o Congresso Nacional anuncia novas medidas de combate ao crime (GRECO, 2013).

O mito do Estado Mínimo é sublinhado, debilitando o Estado Social e glorificando o “Estado Penal”. É a constituição de um novo sentido comum penal que aponta para a criminalização da miséria como um mecanismo perverso de controle social para, através deste caminho, conseguir regular o trabalho assalariado precário em sociedades capitalistas neoliberais (DORNELLES).

Sempre vem a lume o exemplo norte-americano, principalmente do movimento denominado Tolerância Zero, criado no começo da década de 90, na cidade de Nova York (GRECO, 2013).

Essa teoria, jamais comprovada empiricamente, serve de álibi criminológico para a reorganização do trabalho policial empreendida por William Bratton, responsável pela segurança do metrô de Nova York, promovido a chefe de polícia municipal. O objetivo dessa reorganização: refrear o medo das classes médias e superiores – as que votam – por meio da perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos (ruas, parques, estações ferroviárias, ônibus e metrô etc.). Usam para isso três meios: aumento em 10 vezes dos efetivos e dos equipamentos das brigadas, restituição das responsabilidades operacionais aos comissários de bairro com obrigação quantitativa de resultados, e um sistema de radar informatizado (com arquivo central sinalético e cartográfico consultável em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) que permite a redistribuição contínua e a intervenção quase instantânea das forças da ordem, desembocando em uma aplicação inflexível da lei sobre delitos menores tais como embriaguez, a jogatina, a mendicância, os atentados aos costumes, simples ameaças e outros comportamentos anti-sociais associados aos “sem-teto” (WACQUANT).

A política de tolerância zero é uma das vertentes do chamado movimento de Lei e Ordem. Por intermédio desse movimento político-criminal, pretende-se que o Direito Penal seja o protetor de, basicamente, todos os bens existentes na sociedade, não se devendo perquirir a respeito de sua importância. Se um bem jurídico é atingido por um comportamento anti-social, tal conduta poderá transformar-se em infração penal, bastando, para tanto, a vontade do legislador. Nesse raciocínio, procura-se educar a sociedade sob a ótica do Direito Penal, fazendo com que comportamentos de pouca monta, irrelevantes, sofram as consequências graves desse ramo do ordenamento jurídico (GRECO, 2013).

Para a lei penal não se reconhece outra eficácia senão a de tranquilizar a opinião pública, ou seja, um efeito simbólico, com o qual se desemboca em um Direito Penal de risco simbólico, ou seja, os riscos não se neutralizariam, mas ao induzir as pessoas a acreditarem que eles não existem, abranda-se a ansiedade ou, mais claramente, mente-se, dando lugar a um Direito Penal promocional, que acaba se convertendo em um mero difusor de ideologia (BATISTA).

Não se educa a sociedade por intermédio do Direito Penal. O raciocínio do Direito Penal Máximo nos conduz, obrigatoriamente, à sua falta de credibilidade. Quanto mais infrações penais, menores são as possibilidades de serem efetivamente punidas as condutas infratoras, tornando-se ainda mais seletivo e maior a cifra negra (GRECO, 2013).

Assim, resumindo o pensamento de Lei e Ordem, o Direito Penal deve preocupar-se com todo e qualquer bem, não importando o seu valor. Deve ser utilizado como prima ratio, e não como ultima ratio da intervenção do Estado perante os cidadãos, cumprindo um papel de cunho eminentemente educador e repressivo, não permitindo que as condutas socialmente intoleráveis, por menor que sejam, deixem de ser reprimidas (GRECO, 2013).

Todavia o fenômeno do crescimento desmedido do Direito Penal também ocorre no mundo anglo-saxão. Herbert Packer, em um livro intitulado The limits of criminal sanction, registra que a partir do século passado houve um enorme alargamento das leis penais pelo fato de ter sido entendido que a criminalização de toda e qualquer conduta indesejável representaria a melhor e mais fácil solução para enfrentar os problemas de uma sociedade complexa e interdependente em contínua expansão (GRECO, 2013).

Nos Estados Unidos, Kadish em trabalho a que deu o nome de The crisis of overcriminalization fala do emprego “supérfluo ou arbitrário” da sanção criminal, contendo uma massa de crimes, que em seu quantitativo superam as disposições incriminadoras previstas nos Códigos Penais. No Canadá – segundo informa Leclerq –, a comissão encarregada da reforma penal, fez, em 1974 um levantamento dos crimes previstos na legislação canadense, tendo chegado ao número assustador de 41.582 tipos de infrações criminais (LUISI).

Enfim, o falacioso discurso do movimento de Lei e Ordem, que prega a máxima intervenção do Direito Penal, somente nos faz fugir do alvo principal, que são, na verdade, as infrações penais de grande potencial ofensivo, que atingem os bens mais importantes e necessários ao convívio social, pois que nos fazem perder tempo, talvez propositadamente, com pequenos desvios, condutas de pouca ou nenhuma relevância, servindo, tão somente, para afirmar o caráter simbólico de um Direito Penal que procura ocupar o papel de educador da sociedade, a fim de encobrir o grave e desastroso defeito do Estado, que não consegue cumprir suas funções sociais, permitindo que, cada dia mais, ocorra um abismo econômico entre as classes sociais, aumentando, assim, o nível de descontentamento e revolta na população mais carente, agravando, consequentemente, o número de infrações penais aparentes, que, a seu turno, causam desconforto à comunidade que, por sua vez, começa a clamar por mais justiça. O círculo vicioso não tem fim (GRECO, 2013).


3 O ABOLICIONISMO

3.1 O abolicionismo e suas dimensões teórica e prática

Inicialmente, há que se referir a dupla via abolicionista, como perspectiva teórica e movimento social, eis que o abolicionismo suscitou, desde o início, a relação entre teoria e prática e, rompendo com os muros acadêmicos, aparece, simultaneamente, como teorização e militância social e, portanto, como práxis (ANDRADE, 2006).

Uma das características mais comuns de seus líderes é a de terem fundado grupos de ação ou de pressão contra o sistema penal e de haverem levado adiante movimentos ou organismos com participação de técnicos, presos, liberados, familiares e simpatizantes, isto é, pessoas com alguma experiência prática no campo da criminalização (ANDRADE, 2006).

Foucault fundou o Grupo de Informação sobre os cárceres (Groupe d’Information sur les Prisons); Hulsman iniciou a Liga Coorhhert, a qual, entre outras ações, apresentava todos os anos um pressuposto alternativo para o Ministério da Justiça; Mathiesen fundou o KROM (1969) norueguês, abreviatura de Norsk forening for Kriminal Reform (Associação Norueguesa para a Reforma Penal) e seus contrapontos escandinavos são o KRUM (Suécia, 1966) e o KRIM (Dinamarca e Finlândia, 1967) organizações que, sob amparo dos projetos abolicionistas, declaram como objetivo estratégico a abolição do sistema carcerário (ANDRADE, 2006).

Como perspectiva teórica, existe diferentes tipos de abolicionismos, com diferentes fundamentações metodológicas para a abolição, a saber, entre seus principais protagonistas: a) A variante estruturalista do filósofo e historiador francês Michael Foucault; b) A variante materialista de orientação marxista, do sociólogo norueguês Thomas Mathiesen; e c) A variante fenomenológica do criminólogo holandês Louk Hulsman e poderia ser acrescentada ainda a variante fenomenológico-historicista de Nils Christie (ANDRADE, 2006).

Enquanto alguns veem ao sistema de justiça penal como supérfluo e desnecessário, podendo abolir-se sem gerar uma crise do sistema (Hulsman), outros creem que é a pedra angular da repressão cuja abolição implicaria necessariamente a transformação da sociedade como um todo (SCHEERER, 1989).

3.2 Postulados do abolicionismo

A corrente abolicionista radical sustenta que a pena e o sistema de justiça criminal possuem efeitos mais nefastos que positivos; por isso mesmo, propõem os abolicionistas a eliminação total de qualquer espécie de controle “formal” decorrente do delito, que deve dar lugar a outros modelos informais de solução de conflitos (ZAFFARONI, 1990).

As posturas abolicionistas “não reconhecem justificação (legitimação) alguma ao direito penal e propugnam pela sua eliminação; impugnam desde a raiz seu fundamento ético-político ou consideram que as vantagens proporcionadas por ele são inferiores ao custo da tríplice constrição que produz: a limitação da liberdade de ação para os cumpridores da lei, o submetimento a juízo de todos os suspeitos de não a cumprir e o castigo de quantos se julguem que a descumpriram” (FERRAJOLI, 1995).

De acordo com HASSEMER e MUNÕZ CONDE, a perspectiva abolicionista funda-se no seguinte pressuposto: “se o Direito Penal é arbitrário, não castiga igualmente todas as infrações delitivas, independentemente do status de seus autores, e quase sempre recai sobre a parte mais débil e os extratos economicamente mais desfavorecidos, provavelmente o melhor que se pode fazer é acabar de vez por todas com este sistema de reação social frente à criminalidade, que tanto sofrimento acarreta sem produzir qualquer benefício” (HASSEMER e MUÑOZ CONDE, 2001).

3.3 Metas do abolicionismo

A meta do abolicionismo de HULSMAN (HULSMAN e BERNAT DE CELIS, 1997) é o desaparecimento do sistema penal, mas não a abolição total das formas coercitivas de controle social. A sociedade, aliás, já conta com inúmeras formas extrapenais de solução de conflitos (reparação civil, acordo, perdão, arbitragens etc.) e pode desenvolver muitas outras. O desaparecimento do sistema punitivo estatal (HULSMAN e BERNAT DE CELIS, 1997) “abrirá, num convívio mais sadio e dinâmico, os caminhos de uma nova justiça”.

O sistema penal formal deve ser abolido porque é patentemente maniqueista, configurado sob uma “máquina desconexa”, cujas instâncias, polícia, ministério público, magistratura, agentes penitenciários, atuam de forma compartimentada e excessivamente desconexa (HULSMAN e BERNAT DE CELIS, 1987).

A prisão é encarada como uma inutilidade, já que dessocializa e despersonaliza o preso. Lado outro, o sistema penal é extremamente burocratizado, não escuta bem as pessoas envolvidas nos conflitos, procura reconstruir os fatos de maneira superficial, fictícia, e a consequência disso é a aplicação de medidas fictícias, irreais (BIANCHINI e GOMES, 2013).

3.4 O abolicionismo e o fim do Direito Penal como forma de controle social

LOUK HULSMAN (HULSMAN, 1984) elaborou seis passos para a abolição do Direito Penal como forma de controle social, a saber:

a) em primeiro lugar, mudando a linguagem e aceitando a relatividade do conceito de crime; não se deve falar em crime senão em “situação problemática” ou “acidente” (BIANCHINI e GOMES, 2013);

b) em segundo lugar, aceitando e incrementando as regras civis de indenização, muito melhores “que trabalhar com o conceito metafísico de culpabilidade” (HULSMAN, 1984); aliás, a maioria dos fatos criminalizáveis já são resolvidos pela sociedade de maneira informal, porque (diante da cifra negra altíssima) poucos são os que ingressam no sistema formal (é a “civilização” do Direito penal que já ocorre em muitos casos de abuso e violência sexual na Holanda) (BIANCHINI e GOMES, 2013);

c) em terceiro lugar, desuniformizando a resposta estatal punitiva para as situações problemáticas, pois muitas vezes o que a vítima deseja não é a punição formal do culpado, senão a reparação dos seus danos e prejuízos (BIANCHINI e GOMES, 2013);

d) em quarto lugar, diminuindo, a intervenção estatal na sociedade, principalmente quando se trata de resolver algum conflito de interesses (BIANCHINI e GOMES, 2013);

e) em quinto lugar, abrindo amplo espaço para o consenso, para os contatos “cara a cara” (BIANCHINI e GOMES, 2013);

f) em sexto e último lugar, incrementando a tolerância e o respeito às diversidades pessoais (BIANCHINI e GOMES, 2013).

Do ponto de vista político-criminal a proposta do abolicionismo é desinstitucionalizadora ou descentralizadora. Em poucas palavras: é não-intervencionista. Procura-se afastar o Estado da solução dos conflitos, deixando que a própria sociedade encontre mecanismos menos repressivos “capazes de alcançar a paz”. Criminalizar é centralizar e institucionalizar (BIANCHINI e GOMES, 2013).

E “quem persegue ou sugere uma política de descentralização e desinstitucionalização está imbuído de uma confiança muito maior nos processos de regulação sociais informais e não centralizados, ou menos formais e menos centralizados. As reticências a propósito da descriminalização parecem tanto mais incompreensíveis à medida que se percebe o papel que poderia ser desempenhado pelo sistema jurídico civil – feitas as necessárias adaptações – se lhe fosse dada a devida oportunidade” (HULSMAN, 1997).

3.5 Reações e críticas ao abolicionismo

A tese abolicionista sempre foi duramente criticada porque “não leva em conta a fascinação que provoca o mundo delitivo, que é um fenômeno que faz parte da nossa experiência cotidiana” (HASSEMER e MUÑOZ CONDE, 2001).

Não obstante o acerto de muitas das conclusões abolicionistas, dá-se que pregações em favor do desaparecimento do Direito Penal deixam de considerar o custo da anarquia punitiva (BIANCHINI e GOMES, 2013). “Ao monopolizar a força, delimitar seus pressupostos e modalidades e excluir seu exercício arbitrário por parte de sujeitos não autorizados, a proibição e a ameaça penal protegem as possíveis partes ofendidas contra os delitos, enquanto que o juízo e a imposição da pena protegem, por paradoxal que possa parecer, aos réus (e aos inocentes de quem se suspeita como réus) contra vinganças e outras reações mais severas. Sob ambos os aspectos a lei penal se justifica enquanto lei do mais fraco, orientada à tutela de seus direitos contra a violência arbitrária do mais forte” (FERRAJOLI, 1995).

O Direito Penal, quando chamado a atuar na diminuição da violência que abala a sociedade e compromete o bem viver das pessoas, dada a sua característica eminentemente repressiva, acaba gerando, também, violência – violência formal –, razão pela qual há que trazê-lo a limites mínimos e estritamente necessários, o que representa a preocupação central das correntes minimalistas (BIANCHINI e GOMES, 2013).

Apesar das reações e críticas, muitos dos postulados abolicionistas merecem especial reflexão. “Vemos o abolicionismo com reservas, mas mesmo assim é possível fazer bom uso dele, sem ser abolicionista. Suas teses, no mínimo, possuem grande fundo ético (PAVARINI, 1995).


4 O MINIMALISMO PENAL

4.1 O minimalismo e a reforma do sistema penal

Como perspectiva teórica, o minimalismo penal apresenta profunda heterogeneidade e estamos, também, perante diferentes minimalismos. Há minimalismos como meios para o abolicionismo, que são diferentes de minimalismos como fins em si mesmos, e de minimalismos reformistas (ANDRADE, 2006).

Entre os modelos teóricos minimalistas mais expressivos estão o do filósofo e criminólogo italiano Alessandro Baratta, de base interacionista-materialista, o do penalista e criminólogo argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, de base interacionista, foucaudiana e latino-americanista e o do filósofo e penalista italiano Luigi Ferrajoli, de base liberal iluminista (ANDRADE, 2006).

O minimalismo como reforma do sistema penal, sob o signo despenalizador do princípio da intervenção mínima, do uso da prisão como ultima ratio e da busca de penas alternativas a ela (com base nos binômios criminalidade grave/pena de prisão x criminalidade leve/penas alternativas), desenvolve-se desde a década 80 do século XX e, no Brasil, a partir da reforma penal e penitenciária de 1984, com a introdução das penas alternativas (Leis n. 7.209 e 7.210/84) e culmina na atual lei das penas alternativas (Lei n. 9.714/98), passando pela implantação dos juizados especiais criminais estaduais (Lei n. 9.099/95) para tratar dos crimes de menor potencial ofensivo (ANDRADE, 2006).

O contexto, portanto, em que emerge o minimalismo reformador, é o da deslegitimação dos sistemas penais que então tem lugar como resultado de um amplo espectro de desconstruções teóricas e práticas, em cujo centro se encontra a consolidação do paradigma da reação ou controle social na forma de uma revolução de paradigmas em Criminologia (ANDRADE, 2006).

Enquanto o abolicionismo protagoniza a abolição do sistema penal e substituição por formas alternativas de resolução de conflitos, o minimalismo defende, associado ou não aos ideais abolicionistas, sua máxima contração.

4.2 Objeto do minimalismo

O objeto do minimalismo não é o Direito Penal, que é a positivação normativa do exercício do jus puniendi estatal, mas o sistema penal em que se institucionaliza este poder punitivo e sua complexa fenomenologia e que inclui a engenharia, a cultura punitiva, bem como a máquina e sua interação com a sociedade.

O sistema penal, neste contexto, pode ser compreendido como a totalidade das instituições que operacionalizam o controle penal (Parlamento, Polícia, Ministério Público, Justiça, Prisão), a totalidade das Leis, teorias e categorias cognitivas (direitos + ciências e políticas criminais) que programam e legitimam, ideologicamente, a sua atuação e seus vínculos com a mecânica de controle social global (mídia, escola, universidade), na construção e reprodução da cultura e do senso comum punitivo que se enraíza, muito fortalecidamente, dentro de cada um de nós, na forma de microssistemas penais (ANDRADE, 2006).

4.3 A crise de legitimidade do sistema penal

Primeiramente, perguntamos: há uma crise de legitimidade do sistema penal (Direito Penal como instrumento de controle social formal, jus puniendi, polícia, ministério público, magistratura, prisão, execução penal, mídia etc)?

A observação empírica mostra que a deslegitimação constitui a radical demonstração de que as múltiplas incapacidades do sistema penal foram desveladas, sobretudo pelo instituto da prisão, reduzida que está a espaço de neutralização e de extermínio indireto.

Compreender a crise de legitimidade do sistema penal é entender que ele está despido, que ele agora exerce, abertamente, sua função real. Significa também entender que “uma nova e mais perigosa relegitimação está em curso, e que se apropria de outras práticas discursivas da sociedade tecnológica, em detrimento do discurso científico que operava sua legitimação histórica, a saber: o espetáculo midiático e dramatúrgico, o medo do inimigo criminalidade que ele constrói em escala massiva” (ANDRADE, 2006).

Destarte, o retrato da deslegitimação pode ser apresentado em seis postulados:

a) O sistema penal vigente constitui uma herança da doutrina escolástica medieval, assentada no maniqueismo (bem x mal) e numa visão expiatória da pena como castigo pelo mal, opondo, numa relação adversarial, autor e vítima, e mantendo a sociedade nessa relação polarizadora (HULSMAN, 1993);

b) É estruturalmente incapaz de cumprir as funções que legitimam sua existência, a saber, proteger bens jurídicos, combater e prevenir a criminalidade, através das funções da pena (intimidando potenciais criminosos, castigando e ressocializando os condenados), e fornecendo segurança jurídica aos acusados e segurança pública à sociedade. E não pode porque sua função real é construir seletivamente a criminalidade e a função real da prisão (violência institucional), como dizia Foucault, é “fabricar os criminosos” (ANDRADE, 2006);

c) Além de funcionar seletivamente, criminalizando os baixos estratos sociais e reproduzindo as desigualdades sociais, o sistema penal engendra mais problemas do que aqueles que se propõem a resolver, “sendo produtor de sofrimentos desnecessários (estéreis) que são distribuídos socialmente de modo injusto”, com o agravante dos seus altos custos sociais e do autêntico mercado do controle do crime que, em torno de si, estrutura (ANDRADE, 2006);

d) Apesar da extensão dos danos que provoca o sistema penal só atua sobre um número reduzidíssimo de casos como revelam, por exemplo, as cifras ocultas: a impunidade é a regra, a criminalização a exceção, confirmando que a intervenção mais intensiva do sistema penal na sociedade é simbólica e não a instrumental: é a ilusão de segurança jurídica (ZAFFARONI, 1991);

e) Mais que um sistema de proteção de direitos é um sistema de violação de direitos humanos, violando todos os princípios da sua programação. Na América Latina a deslegitimação é proveniente dos próprios fatos é o fato empírico mais deslegitimante é a morte (fatos) (ANDRADE, 2006);

f) O sistema penal rouba o conflito às vitimas, não escuta as vítimas, não protege as pessoas, mas o próprio sistema, não resolve nem previne os conflitos e não apresenta efeito positivo algum sobre as pessoas envolvidas nos conflitos (ANDRADE, 2006).

4.4 O minimalismo e a máxima contração do sistema penal: minimalismo-meio e minimalismo-fim

Os modelos minimalistas estão às voltas com a limitação da violência punitiva e com a máxima contração do sistema penal, mas também com a construção alternativa dos problemas sociais (ANDRADE, 2006).

O minimalismo-meio parte da aceitação da deslegitimação do sistema penal, concebida como uma crise estrutural irreversível. Assume postulados abolicionistas porque não vislumbram possibilidade de relegitimação do sistema penal, a médio ou longo prazo. Na verdade, trata-se o minimalismo-meio de estratégias de curto e médio prazo de transição para o abolicionismo, destacando-se nesse contexto os modelos de Alessandro Baratta e Raúl Zaffaroni.

O modelo de Baratta é contextual e aberto e se estrutura sobre a razão abolicionista e o minimalismo como tática a médio e curto prazo. Esclarece o próprio Baratta, já na passagem da década de 1970 para a década de 1980, sua posição substantivamente abolicionista: “O princípio cardeal do modelo de uma política criminal alternativa não é a criminalização alternativa, mas a descriminalização, a mais rigorosa redução possível do sistema penal.” (BARATTA, 1983).

O modelo de Zaffaroni, denominado “Realismo Marginal Latino-americano” foi enunciado sobretudo em seu também clássico “Em Busca das Penas Perdidas” (em resposta e em homenagem latino-americana ao clássico “Penas Perdidas”, de Louk Hulsman).

Esclarece também o próprio Zaffaroni: “Em nossa opinião, o direito penal mínimo é, de maneira inquestionável, uma proposta a ser apoiada por todos os que deslegitimam o sistema penal, não como meta insuperável e, sim, como passagem ou trânsito para o abolicionismo, por mais inalcançável que este hoje pareça; ou seja, como um momento do 'unfinished' de Mathiesen e não como um objetivo 'fechado' ou 'aberto'. O sistema penal parece estar deslegitimado tanto em termos empíricos quanto preceptivos, uma vez que não vemos obstáculos à concepção de uma estrutura social na qual seja desnecessário o sistema punitivo abstrato e formal, tal como o demonstra a experiência histórica e antropológica.” (ZAFFARONI, 1991).

O minimalismo-fim ou garantismo tem Luigi Ferrajoli como destaque dessa corrente, conforme exposto no seu clássico “Direito e Razão”. Parte da deslegitimação do sistema penal, mas crê que ele possa ser relegitimado, ou seja, um direito penal mínimo para uma sociedade futura (FERRAJOLI, 1989).

O Direito Penal mínimo de Ferrajoli centra-se nos custos potenciais de uma anarquia punitiva, sustentando que o Direito penal mínimo estaria legitimado pela necessidade de proteger, a um só tempo, as garantias dos “desviantes” e “não desviantes” (ANDRADE, 2006).

O minimalismo de Ferrajoli se propõe como fim e, neste sentido, polemiza com o abolicionismo e, de certo, modo contribuiu para vulgarizar a dicotomia abolicionismo x garantismo, que não tem lugar quando se abre o leque minimalista (ANDRADE, 2006).

No campo da prática, no entanto, abolicionismos e minimalismos oferecem ferramentas de trabalho preciosíssimas para ser apropriadas cotidianamente, na prática do sistema, em todos os níveis, e na militância societária, para conter violência e proteger direitos humanos, aqui e agora, relativamente a todas as ações e decisões do sistema, mas também para avançar (ANDRADE, 2006).

4.5 O minimalismo penal e o Direito Penal Mínimo de Zaffaroni

O Direito Penal Mínimo de Zaffaroni (ZAFFARONI, 1991b) possui uma ética básica de valorização da vida humana, pautada na reconstrução das garantias fundamentais e baseada nos Direitos Humanos como fio condutor.

Para Zaffaroni, a recuperação das garantias dos Direitos Humanos pelo programa de Direito Penal Mínimo é imperiosa pois, segundo ele, os resultados das pesquisas que demonstram a deslegitimação do sistema penal revelam que este viola abertamente os Direitos Humanos. Esta violação é oriunda não só da violência operacional do exercício de poder punitivo em nossos sistema penais periféricos, como também de todos os sistemas penais, constituindo-se como fruto de suas características estruturais (SANCHES, 2010). “Em resumo, o exercício de poder dos sistemas penais é incompatível com a ideologia dos direitos humanos.” (ZAFFARONI, 1991b).

A constituição do sistema penal atual iniciou-se no século XII, consolidando-se no século XIX, enquanto que, apesar de possuir diversas raízes e origens, a formulação dos Direitos Humanos em sua versão moderna se deu no século XVIII, fruto do Iluminismo e na tentativa de limitar o poder soberano (SANCHES, 2010). Ao invés, porém, de ter o seu poder limitado, o sistema penal conseguiu aumentá-lo através da proliferação das agências policiais nos séculos XVIII e XIX, que exercem o mais importante poder do sistema penal: o positivo e o configurador. (ZAFFARONI, 1991b).

Entretanto, na opinião do autor, os Direitos Humanos não representam uma utopia, mas “um programa de longo alcance de transformação da humanidade.” (ZAFFARONI, 1991b).

A necessidade e a urgência de uma resposta fundada na deslegitimação do sistema penal se impõe também, a partir da perspectiva do programa transformador que os direitos humanos implicam, particularmente em nossa localização no mapa do poder planetário, onde o caminho progressivo até a realização dos direitos humanos é muito claramente submetido a interrupções abruptas e onde o exercício de poder do sistema penal constitui a peça chave do extermínio brutal. (ZAFFARONI, 1991b).

Neste sentido, Zaffaroni compara a deslegitimação do sistema penal com a deslegitimação da guerra, demonstrando que o papel da agência judicial no sistema penal é o mesmo que o da Cruz Vermelha Internacional que, apesar de não possuir o poder de acabar com a guerra, procura evitar seus piores efeitos e busca contê-la dentro dos limites do seu poder (ZAFFARONI, 1991b). Segundo o autor, esta é a forma de progredir sempre mais na limitação da violência, e exige um papel crítico do discurso jurídico-penal para com os padrões alcançados pelas agências judiciais (SANCHES, 2010).

A única forma de se manter esta progressividade da limitação repressiva e de fazer com que os princípios penais permaneçam sempre “abertos” ou “inacabados” consiste em sustentar um certo grau de contradição entre o discurso jurídico-penal da agência de reprodução ideológica e o padrão obtido pelas agências judiciais. (ZAFFARONI, 1991b).


5 DIREITO PENAL CONTEMPORÂNEO E EXPANSIONISMO PUNITIVO

5.1 Direito Penal Mínimo: crítica ao expansionismo punitivo do Direito Penal Contemporâneo

Em meio à turbulência provocada pelo reconhecimento do Direito Penal como veículo de imposição de um mal, o qual, porém, é um “mal necessário”, praticamente todos os esforços têm se voltado para o intento de humanizar, na medida do possível, a seara jurídico-penal (CABETTE e NAHUR, 2012).

Os esforços se dirigem desde antanho para a melhoria das condições do cárcere, abolição de penas cruéis, infamantes e de morte (CABETTE e NAHUR, 2012). Surgem, então, propostas alternativas para a solução das questões penais, emergindo uma série de substitutivos para a reação penal tradicional, tais como os institutos da “diversão” e da “mediação” (OLIVEIRA, 2001).

Tourinho Filho, em comentário à Lei n. 9.099/95, afirma que há uma “tendência do mundo moderno de se adotar um Direito Penal mínimo” com medidas alternativas que agilizem o processo, ensejando rapidez nas respostas à “pequena criminalidade”, evitando “o estigma do processo” (TOURINHO FILHO, 2000).

Reservar-se-ia a aplicação da pena privativa de liberdade e até mesmo a submissão do indivíduo às agruras do Processo Penal como recursos extremos e não sua utilização indiscriminada em infrações graves e leves, assemelhando-se àquilo que Foucault descreveu como “punição generalizada” (FOUCAULT, 1995).

Na verdade, por mais que aparentemente tenha evoluído o pensamento acerca das funções e da conformação do Sistema Penal, ainda não se logrou deixar de caminhar em círculos, e o pior: trata-se de um círculo vicioso. Na realidade vivenciamos hoje e sempre um enorme marasmo intelectual e prático que se retroalimenta em uma circularidade viciosa, sem um mínimo sequer de espaço para um pensamento legitimamente inovador, revolucionário ou reformador. (CABETTE e NAHUR, 2012).

As alterações do protagonismo de umas penas por outras têm passado pela real e efetiva aplicação dos princípios da fragmentariedade, subsidiariedade ou do Direito Penal como ultima ratio?

Ora, todos esses princípios orientam para a excepcionalidade da solução criminal dos conflitos. Somente na ausência da proteção de outros ramos do Direito ou onde esta seja falha ou insuficiente e ainda tratando-se de lesão ou perigo de lesão grave a certos bens jurídicos é que deve o Direito Penal atuar (TOLEDO, 1994).

Seja com penas de prisão, “penas alternativas” ou “consensuadas”, o Direito Penal não se contrai nem fragmenta. O que se verifica constantemente é uma expansão incontrolada da seara penal, uma verdadeira criminalização generalizada dos mais diversos conflitos e problemas sociais e individuais (CABETTE e NAHUR, 2012).

Diante da constatação do expansionismo punitivo, Silva Sánchez esboça um modelo que consiste praticamente numa mera descrição do processo de expansão do Direito Penal na atualidade. Trata-se de um movimento expansivo bifronte: por um lado o acirramento punitivo, com incremento das penas privativas de liberdade, aumento do rigor dos regimes de cumprimento etc, para a criminalidade considerada mais gravosa; de outra banda, surge um modelo flexibilizado de imputação onde se fazem ausentes as “penas corporais”. No entanto, mesmo no segundo caso, em reverência à sanha do punitivismo, seria imprescindível que “a sanção fosse imposta por uma instância judicial penal, de modo que preservasse (na medida do possível) os elementos de estigmatização social e de capacidade simbólico-comunicativa próprios do Direito Penal” (SÁNCHEZ, 2002).

O melhor caminho não pode ser a conformação perante o fenômeno da expansão irracional do Direito Penal e muito menos a tentativa de legitimar essa aberração, acenando com o clamor popular por punição criminal a qualquer custo e controle social pelo aparato repressivo-penal (CABETTE e NAHUR, 2012).

Esse Direito Penal paquidérmico em voga na atualidade perde não só sua credibilidade pelas enormes “cifras negras” (CERVINI, 2002) que produz, como também vem rapidamente se transformando em algo diverso do que era pela sobreposição e agregação de características e funções que jamais lhe foram próprias, mas que aos poucos vem usurpando e açambarcando de outros ramos do Direito.

Note-se que esse problema que deforma, deslegitima, põe em descrédito e disfuncionaliza o Direito Penal, não é novidade de vanguardistas pós-modernos, mas já havia sido diagnosticado há tempos pelo Marquês de Beccaria (século XVIII) ao asseverar: “não é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança, mas a certeza do castigo” (BECCARIA, 1985).

Inobstante, as pessoas preferem crer numa mentira simples a encarar uma verdade complexa; preferem cultivar falsas mudanças, simples aparências, empreendendo grandes batalhas para que, ao final, como diz Lampedusa, “tudo fique na mesma” ou num exercício meticuloso de “mudar tudo para que tudo fique como está” (LAMPEDUSA, 2002).

Em geral as pessoas não estão dispostas a praticar o mal, ainda que seja contra aqueles que infringem as normas de convivência social pacífica. Por isso surge a ideia do Direito Penal como ultima ratio enquanto hipótese teoricamente aceita. Acontece que a racionalidade e o bom senso da “intervenção mínima” da seara penal não tem conseguido domar a irracionalidade da desenfreada tendência expansiva do Direito Penal e do punitivismo exacerbado. Então surge um dilema: “como conciliar expansionismo e minimalismo?” (CABETTE e NAHUR, 2012).

A suposta solução tem sido o crescimento deformado do Direito Penal nos moldes acima mencionados. As intenções são boas; pretende-se regular e pacificar os conflitos sociais mediante uma normatização milimétrica de toda atividade e relação humana, optando-se pelo instrumento da coerção penal, mas procurando mitigar sua atuação mais incisiva e seus efeitos mais gravosos (CABETTE e NAHUR, 2012). Mas, como lembra Neiman, “somos ameaçados com mais frequência por quem tem intenções indiferentes ou mal direcionadas do que por quem tem intenções malévolas” (NEIMAN, 2003).

O resultado dessa excessiva intervenção penal se vê na prática: sobre o imputado recai a carga pesada e infamante do Sistema Penal. E sobre o depauperado e sobrecarregado Sistema Penal, com suas agências repressivas deficitárias (Polícia, Ministério Público, Judiciário, Sistema Penitenciário), desaba uma avalanche de procedimentos simbólicos que bem poderiam ser muito melhor levados a termo por outras instâncias de controle social já existentes ou que poderiam ser criadas para fins específicos. Até mesmo os próprios atores do cenário criminal passam a sofrer desvios em suas funções, sendo inclusive, muitas vezes, exigidos além de suas capacidades (CABETTE e NAHUR, 2012).

Mas, qual a solução para esse impasse? O Direito Penal e o Processo Penal são meios instrumentais para imposição do mal aos indivíduos que infringem gravemente as normas básicas do convívio social pacificado. É preciso ter consciência de que vivemos em uma sociedade que é formada de homens dotados de vícios e virtudes. Dessa forma, o Sistema Penal é um mal necessário. E o Direito Penal e suas penas são um mal e como um mal devem ser tratados.

Com a consciência de sua efetiva natureza poderemos distinguir mais nitidamente o Direito Penal dos outros ramos do Direito. Ele seguirá reservado às infrações extremas das regras de convívio social que afetem bens jurídicos de altíssima relevância, os quais não possam ser eficazmente tutelados por outros instrumentos de controle social menos drásticos. Nisso consistiria sua face minimalista. Além disso, as sanções para serem consideradas de natureza penal teriam de ser realmente duras, aflitivas para o infrator, sobressaindo a privação de liberdade, a qual, no máximo, poderia ser cumulada com penalidades pecuniárias em casos especiais (CABETTE e NAHUR, 2012).

Deve-se ter em mente que o processo pelo qual seriam selecionadas as condutas dignas de tratamento penal não consiste em um único momento histórico. Tratar-se-á de um contínuo e dinâmico policiamento a impedir futuras tendências expansionistas, que podem então tornar-se ainda mais perigosas e lesivas para os valores humanos, especialmente para nossa dignidade e liberdade (CABETTE e NAHUR, 2012).

Como saber que condutas deveriam ser criminalizadas? Entendemos que um bom guia para um paradigma minimalista do Direito Penal é a eleição da Constituição como depositária dos bens jurídicos dignos de tutela penal. Somente bens jurídicos de estatura constitucional seriam dignos de proteção por via penal (CABETTE e NAHUR, 2012).

Trata-se, portanto, de uma reforma penal que transcende seu campo necessariamente, impondo-se alterações no cenário jurídico global. Sua implantação ao mesmo tempo que urgente, exige grande ponderação e estudos meticulosos. Hassemer já acenou há tempos com seu “Direito de Intervenção” ou uma “Terceira Via”, admitindo que a proposta ainda carece de maior desenvolvimento teórico e prático (HASSEMER, 1994).


6 CONCLUSÃO

A partir dos anos 1970, os movimentos abolicionista e minimalista passaram a ocupar o cenário do controle social e das políticas criminais nas sociedades capitalistas. O contexto em que estes movimentos emergem é o da deslegitimação dos sistemas penais, e, como resposta a esse processo de deslegitimação, o abolicionismo propõe a absoluta extinção do sistema penal, e, em sua substituição, a adoção de formas alternativas de resolução de conflitos, ao passo que o minimalismo penal defende, associado parcialmente aos postulados abolicionistas, sua máxima contração.

Nada obstante a diversidade apresentada por ambos os movimentos no plano teórico, na prática, tendo como ponto de partida críticas a situações patentes do cotidiano do sistema penal, o abolicionismo e o minimalismo penal oferecem interessantes e úteis ferramentas ao aprimoramento do sistema e à defesa da sociedade, sobretudo, no que tange à contenção da violência (redução dos níveis de criminalidade, ressocialização, descriminalização, despenalização etc) e salvaguarda dos direitos humanos.

De fato, a era da globalização neoliberal é também a era da onda expansionista e de relegitimação do sistema penal orquestrada pelo neopunitivismo (discursos como “Lei e Ordem”, “Tolerância Zero” etc), e não propriamente da hegemonia de práticas minimalistas e abolicionistas.

Sistemas penais seletivos e arbitrários, especialmente na América Latina, fazem do jus puniendi estatal um exercício de poder altamente violento e transgressor dos Direitos Humanos e dos direitos e garantias fundamentais do Estado Democrático de Direito, vale dizer, um exercício de poder deslegitimado que se manifesta como violência inútil.

A implementação dos postulados minimalistas significa a contração dos excessos da intervenção estatal punitiva e a contenção da sua violência. Isso implicaria em um processo amplo e necessário de descriminalização e despenalização, afastando-se os efeitos perversos e inúteis da criminalização e da prisão. A pena corporal seria aplicada somente em último caso, tolerando-se de igual modo uma série de condutas que não constituam grave lesão para os Direitos Humanos.

O Direito Penal não é panaceia para todos os males. De fato, ele é um dos males, malgrado necessário e em certa medida, mas não deixa de ser um mal. Portanto deve sofrer uma contração de seu campo de aplicação, a fim de assegurar-lhe uma correspondência entre o legalmente previsto e aquilo que é efetivamente cumprido quando da infração às suas normas.

A proposta final resumiu-se em demonstrar a necessidade de se dar efetividade e concretude ao princípio da intervenção mínima, com seus subprincípios da fragmentariedade, subsidiariedade e ultima ratio, conformando um Direito Penal racional e com atuação reservada às lesões extremamente relevantes aos bens jurídicos por ele tutelados.

Destacou-se, ainda, que a reforma não deve se concentrar e se reduzir ao campo penal. Ela deve alcançar também os demais instrumentos de controle social existentes nos outros ramos do Direito. Restou nítido o descrédito gerado pela ineficiência dos demais ramos do Direito no enfrentamento dos conflitos sociais e individuais, a ensejar a excessiva expansão da intervenção estatal punitiva (Direito Penal como prima ratio) devido ao incremento dos índices de criminalidade e ao déficit de solução dos conflitos nos outros campos.

Portanto, a pesquisa levada a termo neste trabalho revelou a necessidade de urgente revisão da atual política criminal de cunho expansionista, ou seja, uma revisão do mundo jurídico em diversos aspectos, abrindo-se caminho para novos instrumentos de controle social que não exclusivamente o Direito Penal, atualmente de cunho repressivo, punitivo e deletério, razão pela qual deve ser encarada pela comunidade jurídica a possibilidade de implementação de postulados abolicionistas e minimalistas, dando-se seguimento a estudos mais amplos e profundos.


REFERÊNCIAS

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMILO, Alisson Trajano. Abolicionismo e minimalismo penal. A contração do avanço expansionista do direito penal contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4145, 6 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30622. Acesso em: 20 abr. 2024.