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Uma análise notarial do contrato de doação

Uma análise notarial do contrato de doação

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O contrato de doação é um dos mais complexos e que exigem do Notário ou do advogado um absoluto domínio sobre a matéria, tendo em vista que é necessário entender, inicialmente, a real intenção do doador.

Após alguns anos de experiência trabalhando em um Ofício de Notas da Capital do Rio de Janeiro, pude constatar que a lavratura de uma escritura pública de doação, normalmente, não nos desperta tanta atenção. Credito essa desatenção ao fato de acharmos, a meu ver, equivocadamente, que se trata de uma escritura que não apresenta um maior grau de dificuldade na sua elaboração.

Trata-se de um engano, pois, em minha opinião, o contrato de doação é um dos mais complexos e exige do notário ou do advogado um absoluto domínio sobre a matéria.

Na maior parte das vezes, o nosso cliente não sabe exatamente o que quer, ele simplesmente nos diz que pretende doar um determinado imóvel a uma pessoa, normalmente, a um filho.

A partir daí, começa o nosso árduo trabalho. Na verdade, o melhor seria fazermos um checklist contendo todas as perguntas que deverão ser feitas ao cliente, de forma a que tenhamos ciência da sua real intenção.

Passemos, então, ao nosso checklist:

. a) a doação será adiantamento da legítima, da parte disponível ou tratar-se-á de partilha em vida?

. b) a doação será com ou sem reserva de usufruto?  E, se houver a reserva do usufruto, com ou sem direito de acrescer, nos termos do art. 1.411, do CC?

. c) a doação será com ou sem cláusula de reversão?

. d) a doação será com ou sem as cláusulas protetivas e a cláusula restritiva? E, se houver a imposição das cláusulas, serão elas vitalícias ou temporárias?

. e) a doação, se feita ao casal, será com ou sem a cláusula de acrescer, com fundamento no art. 551, do CC?

Como podemos perceber, não se trata, definitivamente, de uma tarefa simples.

Comecemos, pela primeira pergunta: será adiantamento da legítima, será da parte disponível ou será uma partilha em vida?


DA DOAÇÃO COMO ADIANTAMENTO DA LEGÍTIMA

   “Art. 544 – A doação de ascendente a descendentes, ou de um cônjuge a outro,  importa adiantamento do que lhes cabe por herança.” (g.n)

A hipótese do adiantamento da legítima, se feita de ascendente para descendente ou de cônjuge para outro, é a mais comum. A propósito, se nada mencionarmos na escritura, a doação será considerada adiantamento da legítima.


DA DOAÇÃO DE UM CÔNJUGE A OUTRO (ART. 544 X 2.002, ambos do CC).

A novidade que nos trouxe o Código Civil de 2002 foi a de incluir o cônjuge no rol dos herdeiros necessários (art. 1.845, CC). Logo, se houver doação de um cônjuge ao outro e o contrato for silente, a doação será considerada adiantamento da legítima (art. 544, CC) e deverá, na minha ótica, o bem doado ser trazido à colação em futuro inventário, conquanto o art. 2.002 da nossa lei civil obrigar tão somente os descendentes a conferir o valor das doações.

Entendo que, nesses casos, seria conveniente reforçar no contrato de doação que aquele bem está sendo doado, trata-se de adiantamento da legítima, devendo, portanto, o aludido bem ser trazido à colação em futuro inventário.

Diferentemente do que ocorre na compra e venda, em que é imprescindível a intervenção dos demais descendentes e do cônjuge (art. 496), na doação essa intervenção não é obrigatória, haja vista que a doação dos pais aos filhos e, agora, também, do cônjuge ao outro cônjuge, importa em adiantamento da legítima. Isso quer dizer que, quando o ascendente comum falecer, os bens doados deverão ser trazidos ao inventário e conferidos.

DA DOAÇÃO DO COMPANHEIRO A OUTRO

Agora, como devemos proceder quando a doação for feita de um companheiro ao outro, posto que o companheiro não foi incluído no rol dos herdeiros necessários, não foi mencionado no art. 544, tampouco no art. 2.002, ambos do Código Civil?

Entendo que, apesar de o companheiro não ostentar a condição de herdeiro necessário, ele fará jus à herança, de acordo com o art. 1.790, da lei civil vigente.

Logo, se um companheiro resolve doar um bem ao outro, a meu ver, deverá o doador especificar se a doação está sendo feita da sua parte disponível ou como adiantamento do quinhão hereditário a que o companheiro faria jus, devendo ou não o aludido bem ser trazido à colação em futuro inventário.

Sendo o contrato de doação um negócio jurídico bilateral, se o donatário concordar que a doação foi efetivada como adiantamento do seu quinhão hereditário e que o bem deverá ser trazido à colação em futuro inventário, embora não conste da lei esse preceito, reputo essa determinação contratual válida, pois também não há na lei nada que a vede.

Ao que tudo indica, a Reforma do Código Civil corrigirá essas distorções do nosso sistema legal, impondo a obrigatoriedade da colação, não só aos descendentes, mas, também, aos cônjuges e aos companheiros, alterando o art. 2.002, do atual Código.


DA DOAÇÃO DO DESCENDENTE AO ASCENDENTE

Agora, imaginemos outra situação, um filho que resolve doar um bem ao seu pai. Essa doação será considerada adiantamento da legítima, visto que o ascendente é, igualmente, herdeiro necessário?

A resposta é não! E por que não? Por falta de previsão legal.

Pela simples leitura do art. 544, verificamos que o citado artigo trata da doação do ascendente ao descendente e de um cônjuge ao outro, deixando de mencionar a doação do descendente ao ascendente.

Vejamos o que diz o renomado autor Zeno Veloso em sua obra “Direito Hereditário do cônjuge e do companheiro”, sobre essa questão:

Não só na brasileira como em muitas legislações estrangeiras, os ascendentes estão   dispensados da colação. No direito português, Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil anotado, cit. V.6, p. 172) dão a explicação que, universalmente, é utilizada: “Não há, de facto, segundo a ordem natural da vida e das coisas, na doação que o filho excepcionalmente faça ao pai ou a um dos avós, nenhuma razão para presumir que a liberalidade seja feita com a idéia de efectuar um simples adiantamento por conta da quota hereditária que, em regime de igualdade com a mãe ou com os outros avós do doador, será mais tarde devida ao beneficiário. Realmente, se a colação toma por base  a presunção de que o doador, nos casos gerais, quer apenas adiantar (antecipar) a herança do herdeiro, e não coloca-lo em situação vantajosa que a dos outros, não é razoável imaginar que o descendente que doa algo ao pai ou à mãe tenha em mente adiantar a herança dos genitores, pois o normal é que os pais morram antes do filho.”


DA DOAÇÃO DA PARTE DISPONÍVEL

Com efeito, a doação poderá ser da parte disponível do doador.

Atente-se que o cálculo do que se refere à parte disponível será feito por ocasião da liberalidade. Mais uma vez, é bom que se esclareça que o Notário não desempenhará o papel de detetive e não terá de comprovar se o que está sendo doado corresponde realmente ou não à parte disponível.

Para isso, basta que o doador declare que a mencionada doação se refere a sua parte disponível e que o bem ora doado não deverá ser trazido à colação em futuro inventário.  Essa declaração final é de suma importância, não bastando que se coloque na escritura que a doação é da sua parte disponível.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO DAS SUCESSÕES. INVENTÁRIO. COLAÇÃO. "OS DESCENDENTES QUE CONCORREREM À SUCESSÃO DO ASCENDENTE COMUM SÃO OBRIGADOS, PARA IGUALAR AS LEGÍTIMAS, A CONFERIR O VALOR DAS DOAÇÕES QUE DELE EM VIDA RECEBERAM, SOB PENA DE SONEGAÇÃO." (ART. 2002, caput, NCC).DECISÃO QUE DETERMINA A INDISPONIBILIDADE DE BENS IMÓVEIS ADJUDICADOS AO SUCESSOR DO DONATÁRIO E SUA COLAÇÃO AO INVENTÁRIO DA DOADORA, QUE POSSUÍA OUTROS DOIS FILHOS E FEZ A DOAÇÃO DE BENS A UM DOS HERDEIROS, EM VIDA. ADIANTAMENTO DA LEGÍTIMA. I -TANTO PELO ART. 1789 DO CC DE 1916 QUANTO PELO ART. 2006 DO CC EM VIGOR, PARA QUE PRODUZA EFEITO JURÍDICO, A DISPENSA DA COLAÇÃO DEVE SER DECLARADA PELO DOADOR, EM CLÁUSULA EXPRESSA, OU NO PRÓPRIO TÍTULO DE LIBERALIDADE OU NO TESTAMENTO. NÃO HAVENDO ESSA DISPENSA, OBRIGA-SE O DONATÁRIO, OU, QUANDO FALECIDO ANTES DO DOADOR, SEUS SUCESSORES, A TRAZER OS BENS À COLAÇÃO. NECESSIDADE DE APURAÇÃO SE O MONTANTE DOADO EXCEDEU A PARTE DISPONÍVEL DO PATRIMÔNIO DO FALECIDO. II-INDISPONIBILIDADE DOS BENS DOADOS. MEDIDA NECESSÁRIA, PARA IMPEDIR A TRANSFERÊNCIA A TERCEIROS, PROTEGENDO O PATRIMÔNIO DOS DEMAIS HERDEIROS, ATÉ O DESLINDE DA LIDE. RECURSO DESPROVIDO. (g.n)

(Agravo de Instrumento nº 0020943-87.2010.8.19.0000, 17ª CC/TJRJ, Des. Rel. Luisa Bottrel Souza, j. 25.08.2010). [1]

Vale, ainda, registrar que a dispensa da colação poderá ser outorgada de duas formas: na própria escritura de doação ou no testamento, ex vi do art. 2.006, do Código Civil.


DO MOMENTO DA PROPROSITURA DA AÇÃO PARA DECLARAÇÃO DE NULIDADE DA PARTE INOFICIOSA

Insta consignar, para que possamos saber se o doador doou mais do que poderia, considerando a existência de herdeiros necessários e a limitação da possibilidade de dispor de 50% (cinquenta por cento) dos seus bens, que a análise da parte excedente, igualmente denominada inoficiosa, deverá ser feita no momento da liberalidade.

Por doação inoficiosa entende-se aquela em que o doador, no momento da liberalidade, excede a legítima dos herdeiros. Não se lhe concede que doe, além do que poderia dispor em testamento, mas a nulidade não atingirá todo o contrato, senão apenas a parte excedente (vide art. 549, 1.789, 1.846, 1.967 e §3º, do art. 2.007, todos do Código Civil).

Agora, só por curiosidade, por que as doações se chamam inoficiosas?

Porque contrariam o ofício do doador. O pai que doa excessivamente a um dos filhos ou a um estranho, peca contra o estado de pai, o dever, o ofício.”[2]

Por outro lado, existe, ainda, a indagação doutrinária e jurisprudencial sobre a possibilidade de demandar a nulidade da doação inoficiosa antes da morte do doador. Há entendimentos para ambos os lados, uns entendem que a ação somente poderá ser proposta depois da morte do doador, outros entendem que a pretendida ação poderá ser intentada durante a vida do aludido doador.

De qualquer sorte, esse dilema será, certamente, solucionado pelo Projeto de Lei 6.960, que esclarece e altera o princípio segundo o qual “(...) os herdeiros necessários só poderão arguir a nulidade após a morte do doador, pois, antes da morte, não estão investidos de qualquer direito”.

Pois, de acordo com o mencionado Projeto de Lei, o artigo 549, do Código Civil, passaria a ter a seguinte redação:

“Art.549..........................................

Parágrafo único - A ação de nulidade pode ser intentada mesmo em vida do  doador.”             (NR)

Por enquanto, existe julgado do E. Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a ação de nulidade da doação inoficiosa poderá ser proposta mesmo em vida do doador, senão vejamos sua ementa:

“CIVIL. DOAÇÃO INOFICIOSA. A AÇÃO ANULATÓRIA COM BASE NO ART. 1.176 DO CPC PODE SER INTENTADA MESMO EM VIDA DO DOADOR. RECURSO NÃO CONHECIDO.”

(REsp 7879 / SP /RECURSO ESPECIAL 1991/0001754-0, Des. Rel. Paulo Costa Leite, 3ª Turma do STJ, j. 24.02.1994)

No mesmo sentido, os acórdãos prolatados pelos Tribunais de Justiça de Minas Gerais, a exemplo do seguinte:

DOAÇÃO INOFICIOSA. AÇÃO DECLARATÓRIA. DOADOR VIVO. POSSIBILIDADE. FALECIMENTO DA PARTE. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. NECESSIDADE. JULGAMENTO ULTRA PETITA. OUTROS IMÓVEIS. PROVA. ÔNUS. VALOR DOS BENS. VOTOS VENCIDOS.

(Apelação nº 393.452-9 - UBERABA, TJMG, j. 11.05.2004).[3]


DA DOAÇÃO PARTILHA EM VIDA

 “Art. 2.018 – É válida a partilha feita por ascendente, por ato entre vivos ou de  última  vontade, contanto que não prejudique a legítima dos herdeiros necessários.”

Trata-se de partilha em vida, que poderá ser levada a efeito de duas formas: por meio de doações ou por meio do testamento.

A partilha por ato inter vivos abarcará parcial ou totalmente os bens do ascendente. Cabe, no entanto, a observação de que, se o ascendente decidir dispor de todos os seus bens em vida, deverá reservar parte deles, ou destinar uma renda suficiente para a sua subsistência, de forma a não contrariar o preceito contido no art. 548, da lei substantiva.

Vale, ainda, assinalar que a decisão de se partilhar todos os bens em vida é extremamente utilizada entre nós, pois os ascendentes, procurando evitar as previsíveis e indesejáveis brigas familiares ou mesmo proteger os herdeiros do alto custo de um inventário, decidem, em vida, partilhar os bens entre os filhos. E, para isso, celebram doações, na maior parte das vezes já atribuindo a cada filho um determinado imóvel.

Para conferir maior garantia a essa partilha em vida, bem como procurando evitar que a mesma não seja questionada no futuro, os ascendentes requerem a intervenção dos demais filhos e dos seus respectivos cônjuges ou companheiros, em cada ato praticado, apesar de essa intervenção ser despicienda.

Com todos esses cuidados, os pais entendem que a questão sucessória estará resolvida e que não haverá discussão, presente ou futura, sobre esse tema.

Infelizmente, eles estão enganados, visto que poderá sim haver discussão sobre a partilha, apesar de todos os filhos terem participado do ato, declarando a sua ciência e concordância.

Passamos, nesse momento, a transcrever o Recurso Extraordinário nº 94.512-1, Primeira Turma, São Paulo, STF:

“Recurso extraordinário. Reexame de prova. Inventário. Partilha em vida. Doação. Colação.

....omissis....

Anotam, outrossim, que a agravada, por ato formal, renunciou à possibilidade de, no futuro, investir contra o aludido ato de liberalidade, o que também induz dispensa da colação.

.....................

A partilha em vida, portanto, equipara-se a uma doação, estando subordinada, nesses termos, às mesmas regras jurídicas que regulam este último instituto citado. Já por aí se vê que não está dispensada a colação, tal como pretendem os agravantes.

........................

pouco importando, neste caso, que  o filho prejudicado tenha aceitado a partilha feita pelo pai, quando foi da respectiva escritura, porque o Código Civil exige, expressamente, no art. 1.776, que a partilha, para ser válida, não prejudique a legítima dos herdeiros necessários.”

Resumindo, nesse caso, foi celebrada a partilha em vida, todos à época concordaram com a referida partilha; posteriormente, uma filha que se sentiu prejudicada, após a morte do pai, exige que todos os bens venham à colação, pois a sua legítima fora prejudicada e não havia na escritura declaração de que o bem doado não deveria ser trazido à colação em futuro inventário.

A meu ver, a solução para evitarmos qualquer tipo de questionamento, presente ou futuro, na celebração da partilha em vida, seria a adoção das seguintes precauções: a) exigir a intervenção e anuência de todos os interessados; b) declarar que o bem doado não deverá ser trazido à colação em futuro inventário e que a presente doação está sendo realizada com fundamento no art. 2.018, do Código Civil; c) por fim, declarar, igualmente, que eventuais diferenças entre os valores das doações deverão ser consideradas como deduzidas da parte disponível do doador.

Creio que, dessa forma, não diria que é impossível, porque o direito de ação é abstrato, mas seria extremamente difícil requerer a conferência daqueles bens, objeto de doação, com fundamento no art. 2.018, do Código Civil, na forma apresentada no parágrafo acima, letras “a “b” e “c”. Ressalve-se, no entanto, que de nenhuma forma a legítima poderá ser prejudicada, atendendo, desse modo, ao princípio da intangibilidade da legítima.


DA DOAÇÃO COM OU SEM RESERVA DE USUFRUTO, COM OU SEM DIREITO DE ACRESCER O USUFRUTO

Com efeito, a doação poderá ser realizada com a reserva de usufruto para os doadores ou doador. Quando houver a reserva do usufruto, em favor de duas ou mais pessoas, é conveniente que se deixe claro se o usufruto extinguir-se-á parte a parte ou acrescerá a do sobrevivente, nos termos do art. 1.411, do Código Civil Brasileiro.     


DA DOAÇÃO COM CLÁUSULA DE REVERSÃO

Vale mencionar que a cláusula de reversão não poderá beneficiar o terceiro, pois vige vedação de fideicomisso inter vivos, na sistemática civil vigente, daí a proibição estampada no parágrafo único do art. 547, do Código Civil.

Entendo, também, que a doação com cláusula de reversão não poderá ser celebrada em favor de pessoa jurídica, pois o caput do art. 547, do Código Civil, determina a hipótese de o doador sobreviver ao donatário. É consabido que as pessoas jurídicas não morrem.

Encerrando este tópico, venho corroborar o entendimento do ínclito Notário Ademar Fioranelli, exarado na sua obra[4] “Das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade”, em que ele sustenta ser aconselhável que a cláusula reversiva e resolutiva venha acoplada à de incomunicabilidade, in verbis:

 “Deve-se preservar a incomunicabilidade do bem, já que toda alteração no estado civil do titular do direito, no caso o donatário, implicará, automaticamente, reflexos de toda ordem acerca de seu exercício, gerando graves consequências à pretensão do doador.

Bastaria imaginar o casamento do donatário solteiro sob o regime da comunhão universal de bens. Algumas questões poderiam ser levantadas: a condição resolutiva se resolve em parte ou em sua plenitude por morte do donatário? Por força da condição, consolida-se a plena propriedade da metade ideal do falecido em favor do proprietário resolúvel, e a outra metade ideal para a viúva e herdeiros do falecido, considerando que com o falecimento abre-se a sucessão que ser resolverá com a partilha?”.


DA DOAÇÃO COM AS CLÁUSULAS PROTETIVAS E A CLÁUSULA RESTRITIVA

 da desnecessidade da justificativa quando se tratar de uma doação

No contrato de doação, assim como no testamento, o doador poderá impor ao donatário as cláusulas de inalienabilidade, de impenhorabilidade e de incomunicabilidade, vitalícias ou temporárias.

Acrescente-se, igualmente, que para a maior parte de nossa doutrina e jurisprudência, a doação com as cláusulas de inalienabilidade, de impenhorabilidade e de incomunicabilidade é considerada uma doação pura.

Por outro lado, em se tratando de testamento, caso as aludidas cláusulas recaiam sobre os bens da legítima, deverá o testador justificá-las, tudo de acordo com o art. 1.848, do CC.

“Art. 1.848 – Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o  testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, de impenhorabilidade e de  incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.” (g.n)

Conforme podemos observar, o artigo supracitado se refere ao testamento, em momento algum faz menção à doação.

Na Parte Especial, Livro I, Título VI, Capítulo IV, da DOAÇÃO, arts. 538 a 564, do Código Civil Brasileiro, que trata da DOAÇÃO, igualmente, não encontramos nenhuma referência às aludidas cláusulas de inalienabilidade, de impenhorabilidade e de incomunicabilidade.

No atual Código, onde encontramos a possibilidade de se gravar em um contrato de doação determinado bem com as cláusulas de inalienabilidade, de impenhorabilidade e de incomunicabilidade?

Essa possibilidade está prevista, timidamente, no art. 1.911, do Código Civil de 2002 (que incorporou a Súmula 49, do STF).

No tocante à necessidade ou não da determinação da “justa causa”, quando se tratar de contrato de doação, como adiantamento da legítima, o Egrégio Conselho Superior da Magistratura paulista, nos Autos 583.00.2005.209086-6-E, da 1ª Vara de Registros Públicos da Capital, por sentença de 30/03/2006, decisão essa fundamentada com precedente do Egrégio Conselho Superior da Magistratura paulista, na Ap. Cív. 440-6/0, de 06/12/2005, oriunda de dúvida suscitada pelo Oficial do 13º Registro de Imóveis da Capital, negou acesso da escritura de doação, como adiantamento da legítima, ao competente Registro, por falta de determinação da “justa causa”.

A meu ver, essa decisão foi, indubitavelmente, injusta, penalizando o cidadão, que desconhece inteiramente os meandros e as discussões doutrinárias jurídicas, acerca da “justa causa”, invadindo, igualmente, a sua esfera patrimonial privada. Quid juris?

Entendo que, quando as cláusulas de inalienabilidade, de impenhorabilidade e de incomunicabilidade são apostas em um contrato de doação, ainda que se trate de adiantamento da legítima, não haverá necessidade de justificativa das citadas cláusulas, pelas razões abaixo expostas:

1)      Falta de previsão legal. Distinção entre lacuna e situação extrajurídica;

2)      Impossibilidade do uso da analogia pelo Notário ou pelo Registrador - Os autores que defendem a justificativa das cláusulas, mesmo na doação, fazem-no utilizando-se de um dos métodos de integração da lei, que seria a analogia;

3)      Distinção entre as situações e não aplicação da analogia – Testamento é um negócio jurídico unilateral, ao passo que a Doação se trata de negócio jurídico bilateral;

4)      Normas que determinam obrigações deverão ser interpretadas restritivamente.               

1)FALTA DE PREVISÃO LEGAL

Como já foi dito acima, o art. 1.911, do Código Civil, não determina que se justifiquem as cláusulas de inalienabilidade, de impenhorabilidade e de incomunicabilidade, ou seja, não existe essa previsão legal.

Devemos atentar para o fato de que nem toda lacuna representa uma omissão legislativa.

Vejamos a lição do ínclito professor e jurisconsulto português J. Oliveira Ascensão[5], a esse respeito:

“4. A determinação da lacuna

Desde cedo a doutrina foi confrontada com a problemática da distinção da lacuna e da situação extra-jurídica.

É que não é imediata, perante uma omissão da lei, a inferência de que há uma lacuna.

Porque pode a matéria não estar regulada e não o dever estar.”

Entendo, pois, que não existe lacuna.  A lei não determinou que se justificassem as mencionadas cláusulas na doação, por entender que, no contrato de doação, as partes estão presentes no ato, doador e donatário. Logo, se o donatário aceita a imposição das citadas cláusulas, não haverá necessidade de justificá-las; caso não concorde com as citadas cláusulas, bastará não aceitar a doação.

Assinale-se que essa situação não ocorre no testamento, em que o ato é praticado unilateralmente. O que a lei, no seu art. 1.848, do Código Civil, quis evitar foi que o testador impusesse as tais cláusulas por mero capricho.

2)DA IMPOSSILIDADE DO USO DA ANALOGIA PELO NOTÁRIO E PELO REGISTRADOR

Primeiramente, não deverá ser utilizada a analogia, posto que não há lacuna na lei a ser preenchida.

Em segundo lugar, os métodos de integração da lei, nas hipóteses de omissão, diante do caso concreto, cabem ao juiz, por força do art. 4º, da Lei de Introdução do Código Civil.

Será lícito ao Notário ou ao Registrador exigir, com fundamento na analogia, a justificativa das cláusulas em questão, quando apostas num contrato de doação?

Creio que não! A função do Notário e do Registrador se circunscreve à análise da legalidade do ato, art. 6º da Lei nº 8.935/94. Logo, se a lei não determina essa justificativa, não poderemos exigi-la com base na analogia ou mesmo de uma interpretação extensiva.

3)DA SITUAÇÃO DISTINTA – DA NÃO APLICAÇÃO DA ANALOGIA

Por amor ao debate, ainda que ultrapassássemos esses dois argumentos, quais sejam, da falta de previsão legal e da impossibilidade do uso da analogia, essa exigência da justificativa das cláusulas protetivas e da restritiva no contrato de doação estaria fulminada por outro argumento, que atingiria a própria possibilidade do uso da analogia.

Para que possamos recorrer ao uso da analogia, o art. 4º, da nossa Lei de Introdução ao Código Civil, determina que alguns requisitos sejam preenchidos. São eles:

- inexistência de dispositivo legal;

- semelhança entre o caso concreto e a situação não regulada;

- identidade de fundamentos lógico/jurídico no ponto comum às duas situações.

É fácil deduzirmos que nos falta, in casu, o terceiro requisito, i.e., identidade lógica/ teleológica entre o fundamento da necessidade da justificativa das cláusulas, quando determinadas num testamento, art. 1.848, do Código Civil, e, quando inseridas num contrato de doação, art. 1.911, também, do Código Civil.

Repito, o que a lei quis evitar no testamento – esta é a mens legis – foi que o testador, por diletantismo ou por puro capricho, impusesse as cláusulas aos herdeiros necessários, sem que houvesse uma “justa causa”.

Data venia, essa situação não ocorre na doação, doador e donatário estão presentes no ato, ambos concordam no que se refere à imposição das cláusulas. Repito, caso o donatário não concordasse, bastaria não aceitar a doação.

4) NORMAS QUE DETERMINAM OBRIGAÇÕES DEVERÃO SER INTERPRETADAS RESTRITIVAMENTE.

Reitere-se, à exaustão, a tarefa interpretativa será do juiz, na análise do caso concreto.

Mas, ainda que admitamos, em tese, essa possibilidade, qual seja, o uso da analogia ou da interpretação extensiva, para que Notários e Registradores obriguem a justificativa das cláusulas em um contrato de doação, tal linha de raciocínio estaria fulminada por um princípio basilar de hermenêutica, e.g., as normas que cri­am obrigações devem ser interpretadas restritivamente e as normas que criam faculdades devem ser interpretadas amplamente, valendo, nesses casos, a máxima romana, odiosa restringenda favorabilia amplianda.


DA JUSTA CAUSA

Embora fuja um pouco do assunto desse estudo, vejo-me premida a discorrer algumas palavras sobre essa questão da obrigatoriedade da justificativa da “justa causa”, quando imposta por ocasião de um testamento, visto que tenho observado que grande parte da doutrina tem exigido a justa causa específica e real para o seu cabimento.

Embora denominemos as ditas cláusulas de restritivas, devemos separar o joio do trigo.

Excetuando-se a cláusula de inalienabilidade, que carrega em si grande carga negativa, não cumpre com a função social, consubstancia-se em entrave para a livre e desejável circulação de bens, despoja o proprietário de um dos direitos mais elementares do domínio, que é o poder de dispor da coisa, sendo, portanto, rechaçada pela quase totalidade das pessoas, as demais cláusulas são extremamente protetivas e são bem acolhidas por todos, razão pela qual só me refiro às cláusulas de incomunicabilidade e de impenhorabilidade, dessa forma: cláusulas protetivas.

   Portanto, tratar a cláusula de inalienabilidade de forma idêntica às cláusulas de impenhorabilidade e de incomunicabilidade nos conduzirá a distorções e injustiças que, certamente, repudiamos. A propósito, desde a edição da Lei Feliciano Pena, o legislador conferia tratamento diverso para a imposição da cláusula de inalienabilidade em relação à cláusula de incomunicabilidade. Vejamos então:

“Art. 3º - O direito dos herdeiros, mencionados no artigo precedente, não impede que o testador determine que sejam convertidos em outras espécies os bens que constituírem a legítima, prescreva-lhes a incomunicabilidade, atribua à mulher herdeira a livre   administração, estabeleça as condições de inalienabilidade temporária ou vitalícia, a qual não prejudicará a livre disposição testamentária e, na falta desta, a transferência dos bens aos herdeiros legítimos, desembaraçados de qualquer ônus.”

   Como podemos verificar, a questão da justificativa da cláusula de inalienabilidade é muito mais antiga do que possa parecer. O ínclito civilista José Ulpiano[6], discorrendo sobre o art. 3º da Lei Feliciano Pena, já assim asseverava:

 “Assim, o testador pode estabelecer a inalienabilidade da legítima, mas, se não declarar a causa ou as condições do seu estabelecimento, este será ineficaz. É  justificável o procedimento do legislador: a inalienabilidade é uma grande restrição à propriedade, um importantíssimo corte nos direitos elementares do domínio, e que diz respeito à organização da propriedade, à ordem pública, ao crédito público. Só condições legítimas, interesses sérios podem fundamentá-la, e para isso é necessária a declaração das suas condições ou seus motivos.”

Entendo, pois, que, somente diante de situações absolutamente necessárias e devidamente justificadas, seria facultada a imposição da cláusula restritiva de inalienabilidade. E, na minha ótica, igualmente, de lege ferenda, por se tratar de questão que envolve interesse público, essa justificativa deveria abranger não só a legítima, mas, também, quando se tratasse da parte disponível.

Situação inversa ocorre com as cláusulas de incomunicabilidade e de impenhorabilidade. As mencionadas cláusulas não restringem absolutamente nada! Não envolve interesse público, interessa apenas aos herdeiros e donatários. E, na hipótese de o donatário ou o herdeiro se sentir restringido de alguma forma, será muito simples de se resolver o problema, basta alienar o imóvel.

Será que alguém, algum dia, proporia uma ação judicial para declarar a ineficácia de uma cláusula de impenhorabilidade ou de incomunicabilidade por considerá-la injusta? Certamente, o tempo perdido e a subjetividade da questão afastariam qualquer pretensão desse tipo, seria muito mais eficiente alienar o imóvel.

Essas cláusulas são tão benéficas, que, se fosse possível, indubitavelmente, em todo patrimônio que fôssemos adquirir as incluiríamos. No entanto, as referidas cláusulas somente são permitidas nos contratos de doação e no testamento, ou na hipótese de compra e venda acoplada com a doação modal, este último exemplo com ressalvas, conforme nos ensina o douto Registrador do 5º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo, Sergio Jacomino, em seu artigo “Doação Modal e Imposição de Cláusulas Restritivas.”[7]

Continuando na defesa das cláusulas protetivas, partiremos, então, agora, de algumas premissas que, a meu ver, são irrefutáveis:

a)      - nenhum pai, mãe, filho ou cônjuge deseja que o bem que deixará para o seu herdeiro se comunique com o seu cônjuge ou companheiro (a), por mais que haja entre eles laços de profunda e verdadeira amizade.

Além disso, faz parte do conhecimento popular que as relações hodiernas são voláteis, fugazes, merecendo, portanto, que tomemos todas as cautelas no que diz respeito à proteção do patrimônio.

Então, como justificar a cláusula de incomunicabilidade de forma específica e real? O testador terá de justificar e provar que o seu filho ou a sua filha se casaram muitas vezes, perderam boa parte do seu patrimônio ou que não simpatizam com a sua nora ou o seu genro e comece a destilar todas as mágoas, nas suas declarações de última vontade? E se o herdeiro ou donatário tiver 2 anos de idade?

Sem dúvida, essa situação será extremamente constrangedora e indesejável. Por outro lado, essa deletéria justificativa será posteriormente analisada pelo futuro julgador, para que este decida se é ou não uma “justa causa”.

O que poderia ser mais subjetivo do que a análise do que seja uma “justa causa”?

No entanto, para nossa felicidade, essa impropriedade da lei será corrigida, na próxima Reforma, em que não mais será necessária a justificativa da cláusula de incomunicabilidade, por ela ser óbvia.

Entendo que o mesmo destino deverá seguir a cláusula de impenhorabilidade, por ser óbvia, igualmente.

b)Nenhum pai, mãe, filho, cônjuge gostaria que o bem que está sendo deixado seja objeto de penhora em razão de dívidas do herdeiro. Ou que o seu herdeiro venha a perder o bem recebido em consequência de empréstimos ou maus negócios;

Vivemos num mundo, principalmente, num país onde o número de pessoas inscritas no cadastro do SPC é incomensurável, onde exercer uma atividade empresarial se tornou uma tarefa prometeica, onde o número de idosos com créditos consignados, com doença senil e Alzheimer é cada vez maior.

Na verdade, as pessoas diante dessa dura realidade, por um fundado e justificado receio, tentam de alguma forma proteger os seus entes queridos, deixando o patrimônio amealhado, na maior parte das vezes, com tanto esforço, gravado com as cláusulas protetivas de incomunicabilidade e de impenhorabilidade.

Entretanto, esse entendimento a respeito da justa causa vem evoluindo de uma tal forma que, somente aqueles que tiverem herdeiros estroinas, pródigos, com atestado,  devedores contumazes e comprovados,  herdeiros com diversos casamentos ou uniões, com perdas patrimoniais, é que terão o direito de proteger o patrimônio dos seus herdeiros.

Os demais não terão esse direito, pois lhes faltará a “justa causa”, ainda que haja a concordância no inventário dos herdeiros.

Imaginemos, igualmente, as últimas palavras de um de um pai para o seu filho, para justificar a cláusula de impenhorabilidade: “determino que todos os bens que o meu filho venha a herdar fiquem gravados com a cláusula de impenhorabilidade, pois o meu filho é um devedor contumaz, irresponsável, não tem trabalho fixo, vive às custas dos outros, enfim, é um perdedor nato!”

Não seria constrangedor e repulsivo? E mais, e se as declarações forem falsas? Deveríamos seguir o mesmo procedimento da deserdação? Isso tudo não seria uma infindável, deletéria e indesejável discussão?

Por sua vez, poderíamos, ainda, argumentar que a cláusula de impenhorabilidade fere o interesse dos credores, devendo, por essa razão, ser rechaçada.

Esse argumento, a meu ver, não merece acolhida, visto que quando o credor ofereceu  crédito ao devedor fê-lo com base e na análise do patrimônio do devedor, naquela ocasião. Ora, o bem doado ou o bem herdado não foi levado em consideração, no momento em que se ofereceu aquele crédito, consequentemente, não há que se cogitar de frustração do credor.

Retornando à questão da necessidade da justificativa real e específica da “justa causa”, volto a dizer, a atual linha de raciocínio da nossa doutrina, certamente nos conduzirá a indesejáveis injustiças e nos afastará radicalmente do preceito contido no art. 5º, da nossa Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro.

Mais uma vez, de lege ferenda, sugiro às Comissões que estão estudando a Reforma do Código Civil a modificação do art. 1.848, para que nele somente se exija a “justa causa”, para a hipótese da imposição da cláusula de inalienabilidade, dispensando as demais, pelas razões expostas neste trabalho, deixando, igualmente, explícito no art. 1.911 a desnecessidade da justificativa quando se tratar de doação.


DAS SUB-ROGAÇÕES REAIS

. CANCELAMENTO e MODIFICAÇÃO DAS CLÁUSULAS

Apesar de haver opinião minoritária divergente, pacificou-se na nossa doutrina e jurisprudência o entendimento no sentido de ser possível o cancelamento, bem como a modificação das mencionadas cláusulas (inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade), desde que acordes as partes interessadas, doador e donatário, e que não se fira interesse de terceiros, mediante simples requerimento dos interessados dirigido ao Oficial Registrador, nos termos do inciso II, do art. 250, da Lei de Registros Públicos.

Nesse sentido, reputo indispensável a leitura do primoroso artigo de um dos nossos maiores civilistas, Miguel Reale, intitulado “Da Cláusula de Inalienabilidade”, disponível no sítio oficial do 15º Ofício de Notas  - http://www.cartorio15.com.br/conteudo/apresentacoes-e-artigos

Caso as ditas cláusulas tenham sido impostas num testamento, obviamente, o pretendido cancelamento administrativo não será possível, devendo a parte interessada recorrer à via judicial.

. DA SUB-ROGAÇÃO DAS CLÁUSULAS

Quando se pretende transferir as cláusulas de um bem para outro só será permitida a via judicial, ex vi do art. 1.112, do Código de Processo Civil.

. DA SUB-ROGAÇÃO DE UM BEM PARTICULAR EM OUTRO

Por outro lado, não devemos confundir a sub-rogação das cláusulas com a sub-rogação de um bem particular em outro, ambas são hipóteses de sub-rogação real, obrigação com eficácia real, no entanto, o tratamento que se lhes confere é inteiramente distinto.

A sub-rogação de gravames dar-se-á quando se pretende transferir as cláusulas que incidem sobre determinado bem para outro; será imprescindível, nesse caso, a autorização judicial, por força do disposto no art. 1.112, do Código de Processo Civil.

Já a sub-rogação de bem particular ocorre quando o detentor de um bem particular vende esse bem e adquire outro com o produto da venda daquele bem particular e pretende que esse novo bem ostente, igualmente, a condição de bem particular.

Nessa segunda hipótese não haverá, a princípio, necessidade de autorização judicial, conforme veremos adiante.

É importante que tenhamos esses conceitos bem definidos e sedimentados, para que não façamos confusão entre eles. Bens particulares são aqueles que pertencem exclusivamente a um dos cônjuges ou companheiros, em razão do seu título aquisitivo e do regime de bens adotado no matrimônio.

Para que a sub-rogação de bem particular ocorra, deverá constar, na escritura da compra desse novo bem, declaração do comprador de que esse bem está sendo adquirido com recursos exclusivamente seus, oriundos da venda de um bem particular.

Entendo, s.m.j., que essa declaração poderá ser feita unilateralmente ou com a interveniência do cônjuge ou do companheiro, declarando que está ciente e de acordo com a pretendida sub-rogação real.

Na hipótese de haver declaração do cônjuge ou do companheiro, no sentido de concordar com essa transferência de um bem particular para que o outro assim o seja, entendo que, nesse caso, deverá ser averbado, junto à matrícula desse novo bem, tratar-se de bem particular, de acordo com os arts. 167, II, “5”, 172 e 246 § 1º, todos da Lei de Registros Públicos.

Caso não haja essa anuência  ?  sendo declaração unilateral do interessado  ?  entendo não ser possível a pretendida averbação. A não ser que a parte interessada proponha uma ação judicial para suprimento da manifestação de vontade do outro consorte ou companheiro.

No entanto, se houver a concordância da outra parte  ?  a meu ver, a única que poderia ser prejudicada  ?  não terá necessidade de comprovação pelo Notário ou pelo Registrador, repito  ?  não somos detetives  ?  da origem do bem sub-rogado, se os valores dos bens se equivalem, entre outros questionamentos.

Até porque, quando nos referimos a um bem que esteja sendo sub-rogado, esse bem poderá ser dinheiro, títulos, ações, não necessariamente um bem imóvel.

Sendo essa matéria  ?  a sub-rogação de bem particular  ?  inserida no âmbito do direito patrimonial privado, interessa somente às partes envolvidas.

E mais, caso as partes estejam em conluio, com o objetivo de prejudicar terceiros e prestarem declaração falsa, elas responderão por crime de falsidade ideológica, previsto no art. 299, do Código Penal, sendo certo, ainda, que eventuais direitos de terceiros estarão resguardados e poderão ser questionados na via própria.

Vale ressaltar que, para que haja a sub-rogação real de um bem particular em outro, não basta declararmos na escritura que o bem está sendo adquirido com recursos exclusivos do comprador, esses recursos deverão ser exclusivos e provenientes da venda de um bem particular.


COMPRA E VENDA CONJUGADA COM DOAÇÃO MODAL

A compra e venda conjugada com doação modal ocorre quando, por exemplo, o filho adquire determinado bem imóvel, com dinheiro doado pelos pais. Nesse caso, é possível que se imponham ao imóvel que está sendo adquirido as cláusulas protetivas e restritivas, que, como sabemos, não são permitidas, via de regra, nos contratos onerosos.

Aproveito a oportunidade para transcrever a lição de Ademar Fioraneli, Registrador do 7º Ofício do Registro de Imóveis de São Paulo, no artigo denominado, DA COMPRA E VENDA NO REGISTRO IMOBILIÁRIO, pág. 89, in verbis:

“A denominada doação modal, hoje de uso frequente, consiste, para concretização da vontade do doador ou doadores, mediante celebração de um único instrumento público   (compra e venda acoplada com doação), na aquisição de um determinado imóvel, em                que o numerário utilizado no pagamento do preço é doado quase sempre pelos pais ou avós do adquirente donatário. O negócio é celebrado entre outorgantes vendedores e    outorgado comprador, figurando o doador ou doadores da pecúnia como interveniente anuente doador que pode impor ao bem as cláusulas referidas e mesmo a constituição, em seu favor, do usufruto. (Registro de Imóveis – IRIB - Estudos de Direito Registral Imobiliário XXII Encontro de Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil –   Cuiabá – Mato Grosso/1995) (g.n.)

Registre-se, igualmente, que esse entendimento não é unívoco, sofrendo severas críticas de outro grande Registrador de São Paulo, Sergio Jacomino, no seu trabalho “Doação Modal e Imposição de Cláusulas Restritivas”[8].


A DOAÇÃO AO CASAL

 “Art. 551 – Salvo declaração em contrário, a doação em comum a mais de uma pessoa entende-se distribuída entre elas por igual.

Parágrafo Único – Se os donatários, em tal caso, forem marido e mulher, subsistirá na  totalidade a doação para o cônjuge sobrevivo.”

Esse artigo repete ipsis litteris o art. 1.178, do antigo Código Civil.

E, pasmem, há 50 anos, Agostinho Alvim, no seu Livro DA DOAÇÃO, comentando o art. 1.178, do antigo Código Civil, que trata da doação para o casal, já dizia que esse artigo havia sido esquecido pela maioria daqueles operadores do direito.

Enfim, 50 anos depois, Maria Helena Diniz, comentando o art. 551, parágrafo único, que trata do mesmo assunto, do atual Código Civil, repete o mesmo comentário do ilustre mestre Agostinho Alvim.

Apesar de estar expresso no art. 1.178, do antigo Código Civil, e repetido agora no atual, no seu art. 551, parágrafo único, esse artigo é muito pouco conhecido pela maioria de nós.

Ele trata do direito de acrescer.  Ou seja, falecendo qualquer dos cônjuges, a parte ideal do bem que a ele pertencia passa automaticamente a integrar o patrimônio do cônjuge sobrevivente.

No caso de falecimento de um dos cônjuges, não há a necessidade de se levar a inventário tal bem, para que se consolide a propriedade apenas na pessoa do cônjuge sobrevivente.  É um dispositivo de enorme praticidade, pois o bem adquirido pela doação não precisa, nem deve ser levado a inventário.

A averbação é o meio de que dispõe o RGI para fazer valer o preceito contido no art. 551, parágrafo único, do Código Civil.

Bastará o cônjuge sobrevivente requerer a averbação, na matrícula do imóvel, do óbito do cônjuge falecido, com o esclarecimento de que a totalidade do bem passou a lhe pertencer, instruindo o pedido com a certidão de óbito.

Na hipótese de posterior separação, não há que se falar mais em direito de acrescer, já que o parágrafo único, do art. 551, do Código Civil, é expresso ao afirmar que a doação ao casal subsistirá na totalidade ao cônjuge sobrevivo.


DA DOAÇÃO E DA INEXISTÊNCIA DO DIREITO DE PREFERÊNCIA

No contrato de doação não há que se falar em direito de preferência.

Determinada pessoa é condômina de um bem imóvel. Obviamente, se ela pretender doar para alguém a sua parte do bem, ela não deverá oferecer aos demais condôminos.

No contrato de doação não haverá o pagamento do laudêmio, haja vista que o laudêmio se caracteriza pelo não exercício do direito de preferência, por parte do senhorio direto.

No entanto, em se tratando de bem imóvel, foreiro à União, ainda que a transação imobiliária seja gratuita, haverá necessidade da juntada certidão autorizativa de transferência, expedida pela Secretaria do Patrimônio da União, nos termos dos §2º e 3º, do Decreto-Lei 2.398, de 21/12/1987, alterado pelo artigo 33, da Lei 9.636, de 15.05.1998.


DA DOAÇÃO E DOS TERMOS INADEQUADOS

Outro ponto importante que gostaria de abordar reside nos termos inadequados, com os quais constantemente nos deparamos, mormente, quando o assunto é inventário.

É muito comum escutarmos que os filhos abriram mão da herança ou renunciaram em favor da mãe. Essa linguagem tem cabimento numa conversa coloquial, entre pessoas que não têm conhecimento jurídico, não para aqueles que militam na área jurídica.

No entanto, esse linguajar é inservível para a confecção de um instrumento público. O correto é mencionarmos que os filhos cederam os seus quinhões hereditários gratuitamente a sua mãe.

Outra forma equivocada e, também, recorrente, de encontramos nas escrituras, é a renúncia ad favorem. Ora, renunciar em favor de determinada pessoa é doar ou ceder gratuitamente. A renúncia é incondicional.

Data venia, abrir mão, renunciar em favor de fulano de tal, não existe no mundo jurídico. O que existe é doar (quando se tem o domínio) e ceder (quando alienamos um direito) gratuitamente. A cessão poderá ser de direitos hereditários ou de meação. 


CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS OU DE MEAÇÃO

A cessão de direitos hereditários ou de meação, seja de bens móveis ou imóveis, deverá ser feita por meio de escritura pública, posto que o direito à sucessão aberta é considerado bem imóvel para efeitos legais, vide inciso II, do art. 80, do Código Civil.

Com efeito, vale lembrar que a lavratura das escrituras de cessão de direitos hereditários de bem singular foi vedada pela nossa Corregedoria Geral de Justiça, por meio do PARECER CGJ Nº SN160, de 11/07/2007 (ESTADUAL) Procedimento nº 2006 -324253. Relator Dr. Fábio Ribeiro Porto.

Conquanto eu discorde inteiramente do teor desse parecer, tal proibição ainda continua vigente.

Sobre esse tema, sugiro a leitura do excelente artigo publicado pelo nosso colega Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho, Oficial do 1º Tabelionato de Notas e Ofício de Registros Públicos de Volta Redonda, disponível para leitura no sítio oficial do 15º Ofício de Notas da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro  ? http://fm.cartorio15.com.br/plugins/filemanager/files/artigos/CessaoDireitosHereditariosBemEspecifico_EduardoSocrates.pdf).


DA DOAÇÃO, DA EVICÇÃO DE DIREITO, DOS VÍCIOS REDIBITÓRIOS E DOS JUROS LEGAIS

Já escrevi anteriormente em outro artigo que não há necessidade de se incluir no contrato de compra e venda que o vendedor responderá pela evicção de direito, pois em todo contrato comutativo, como é o de compra e venda, o vendedor responderá pela evicção e pelos vícios redibitórios, em razão de estar previsto na lei.

Situação inversa ocorre no contrato de doação, em que o doador não responderá pela evicção, pelos vícios redibitórios, tampouco arcará com os juros legais, somente excepcionalmente, quando a lei assim determinar ou por convenção das partes.

Então, vejamos o que diz o art. 552 e o § único, do art. 441, ambos do Código Civil:

“Art. 552 – O doador não é obrigado a pagar juros moratórios, nem é sujeita às           consequências da evicção ou de vício redibitório. Nas doações para casamento com       certa e determinada pessoa, o doador ficará sujeito à evicção, salvo convenção em contrário.” (g.n).

Por outro lado, o Parágrafo único, do art. 441, Seção V, dos Vícios Redibitórios, do Título V, Dos Contratos em Geral, estipula que:

 “Art. 441 – A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor.”

§ único - É aplicável a disposição deste artigo às doações onerosas.”

Pelo que foi dito acima, sugiro aos operadores de direito que, ao lavrar as escrituras de doação ou de compra e venda, entre outras, não façam menção à evicção de direito, aos vícios redibitórios e aos juros legais, quando as consequências desses negócios jurídicos já estiverem previstas na lei.

Por seu turno, somente quando houver convenção diversa entre as partes envolvidas que trate dessas matérias é que devemos deixar de forma expressa e clara nos contratos a vontade das partes.


Notas

[1] No mesmo sentido os acórdãos da Apelação nº 0082968-85.2000.8.19.0001, 14ª CC/TJRJ, Des. Rel. Nascimento Povoas Vaz, j. 15.12.2010 e do Resp 730483/MG, Recurso Especial 2005/0036318-3, Ministra Nancy Andrighi, T3 - Terceira Turma do STJ, Julgamento: 03/05/2005, Data da publicação: DJ 20/06/2005 p. 287, RBDF vol. 31 p.67.

[2] ALVIM, Agostinho.  Da doação, 3ª edição, Editora Saraiva

[3] Veja também os acórdãos da Apelação nº 9215833-14.2006.8.26.0000, 1ª Câmara de Direito Privado TJSP, Des. Rel. Rui Cascaldi, j. 09.08.2011, bem como da Apelação APC 20120110638855 DF 0017774-54.2012.8.07.0001, 2ª CC/TJDF, Des, Rel, Waldir Leôncio Lopes Junior, j. 27.11.2013).

[4] FIORANELLI. Ademar. Das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. 1ª Edição. pág. 41.Editora Saraiva

[5]http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/OAInter.pdf

[6] MALUF, Carlos Alberto Dabus. Das Cláusulas de Inalienabilidade, Incomunicabilidade e Impenhorabilidade, Editora Saraiva; 1981. Pág. 23 e 24.

[7]http://www.irib.org.br/html/biblioteca/biblioteca-detalhe.php?obr=191

[8]http://www.irib.org.br/html/biblioteca/biblioteca-detalhe.php?obr=191


Autor

  • Fernanda de Freitas Leitão

    Tabeliã titular do 15º Ofício de Notas da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito em 1991 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Exerceu a advocacia na iniciativa privada. Admitida em concurso público, exerceu o cargo de Procuradora do Estado do Rio de Janeiro.

    Textos publicados pela autora


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITÃO, Fernanda de Freitas. Uma análise notarial do contrato de doação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4096, 18 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31717. Acesso em: 16 abr. 2024.