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Representação e política.

A crise que assola o nosso sistema partidário

Representação e política. A crise que assola o nosso sistema partidário

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Novas massas apartidárias e apolíticas surgem no Brasil? O que as eleições de 2014 nos mostrou e o que ainda pode nos mostrar?

Nos debates e embates políticos recentes muito se fala entre os populares e acadêmicos, nas mesas de bar ou faculdades, acerca das ideologias e projetos que permeiam os planejamentos partidários dos candidatos a futuros representantes da população. Todavia, concomitantemente a este discurso, ganha cada vez mais espaço[1] um tema de importância fundamental para o estado democrático de direito como o nosso: a representação política.

O termo “representação”, como muitos outros conceitos que possuem um uso político, sofre de uma grande variedade de significados léxicos[2] que vão desde a representação artística à advocatícia. Todavia, dentre tais definições encontram-se algumas que se aproximam do tratado neste texto, ou seja, a representação política esperada pelo eleitor ao decidir seu voto de confiança em determinado candidato. O dicionário nos oferece as seguintes denominações: “Exercício do poder legislativo, em nome da nação, por meio de assembleias eleitas” ou ainda “sistema político que dá aos eleitores vencidos, dos vários partidos, o direito de apresentar um candidato por um número fixo de votantes”. Estes conceitos conseguem formular bem a atual concepção idealista que nós temos acerca da democracia representativa e sua capacidade gerência de um poder governamental popular.

Diferentemente de outras formas de governos como a tirania ou a monarquia absoluta a Democracia necessita fundamentalmente da estabilidade e do funcionamento deste conceito, ele estrutura os principais argumentos da representação popular, e como todos os outros termos políticos este também é um ponto retórico que comumente agrega valor ao discurso, viaja de boca em boca na tentativa de estabelecimento do maior “representante” do povo, acaba por fim se tornando um termo vazio, perdendo o significado, um mero argumento discursivo. Luís Felipe Miguel afirma que a fixação de um sentido unívoco a uma palavra como, por exemplo, “democracia” (ainda mais utilizada que “representação”) não é uma tarefa neutra. Pelo contrário, o estabelecimento deste sentido seria o resultado de uma acirrada batalha política [...] Assim, a disputa em torno de palavras e um grau razoável de imprecisão no seu uso são inevitáveis: essa disputa é constitutiva do próprio discurso político.[3]

A representação contudo, sofre uma crise quase intermitente em quase todas as democracias do mundo. Em países onde o voto é facultativo como a França temos, em cada eleição, o aumento gradual de abstenções[4], uma clara demonstração da carência representativa na política Francesa. No Brasil, como se sabe, o voto é obrigatório; este modelo de escrutínio não consegue obscurecer contudo a crise representativa que encontramos no nosso sistema democrático. Campanhas publicitárias tentam, muitas vezes em vão, valorizar o direito ao voto, todavia é notório o aumento gradual das abstenções, votos brancos e nulos[5].

Mas porque tais problemas persistem em terras tupiniquins? Qual seria a motivação da democracia representativa ser cada vez mais relegada pelo eleitor que, mesmo com a imposição de multas e sanções, se nega a comparecer em suas respectivas seções eleitorais?

Um problema crônico.

 Um dos grandes erros cometidos por parte das pessoas que criticam o sistema representativo brasileiro vem da tentativa de particularizar o problema ao Brasil. Como já citado aqui, países considerados desenvolvidos sofrem do mesmo problema que o nosso, mesmo possuindo um eleitorado com alta escolaridade, países como os EUA, França e Inglaterra se defrontam com abstinências recordes nos pleitos recentes. Esses dados demonstram a incapacidade que a democracia representativa/partidária possui de satisfazer política e ideologicamente o cidadão médio, que se vê abandonado entre promessas e propostas de procedência duvidosa.

Tal diagnóstico porém, não é inovador, muito pelo contrário, cientistas políticos, filósofos e sociólogos tratam deste tema com visão similar há mais de cinquenta anos. Um bom exemplo a ser dado é a filósofa Hannah Arendt, vítima e principal especialista do totalitarismo, a também socióloga judia escreveu o que até hoje é considerada a melhor análise acerca dos movimentos totalitários que abalaram a Europa na primeira metade do século XX. Em seu livro “Origens do Totalitarismo” Hannah Arendt disserta sobre a crise representativa que assolava a Alemanha pré-nazi e o aumento gradual da ideologia apartidária nas massas.

O sucesso dos movimentos totalitários entre as massas significou o fim de duas ilusões dos países democráticos em geral e, em particular, dos Estados-nações europeus e do seu sistema partidário. A primeira foi a ilusão de que o povo, em sua maioria participava ativamente do governo e todo indivíduo simpatizava com um partido ou outro. Esses movimentos, pelo contrário, demonstraram que as massas politicamente neutras e indiferentes podiam facilmente constituir a maioria num país de governo democrático e que, portanto, uma democracia podia funcionar de acordo com as normas que, na verdade, eram aceitas apenas por uma minoria. A segunda ilusão democrática destruída pelos movimentos totalitários foi a de que essas massas politicamente indiferentes não importavam, que eram realmente neutras e que nada mais constituíam senão um silencioso pano de fundo para a vida política da nação.[6]

A filósofa não está só quando afirma a crise da democracia partidária formal. O cientista político brasileiro Paulo Bonavides observa o aparecimento e a institucionalização em alguns países dos chamados “grupos de pressão”, tal denominação é uma tentativa de reunir em um só conceito movimentos que possuem poder político como sindicatos, confederações comerciais, grandes empresas, coletivos e etc. Segundo Bonavides, esta forma de organização, cada vez mais, obtém sucesso na representação do cidadão, diferentemente do partido político que, comumente, não consegue atrair o cidadão médio.[7]

Esta é uma situação crônica do aparato democrático partidário-representativo. Desde o seu surgimento partidos políticos vivem sendo criticados por democratas idealistas como George Washington e Jean-Jaques Rousseau. Todavia, como prezei por adjetivar, tais teóricos, em seus devaneios deontológicos, fechavam os olhos para problemas pragmáticos bem maiores do que a crise de representatividade partidária[8] afirmando a necessidade compulsiva da nação de uma democracia direta; tais teóricos inclusive eram constantemente citados em obras da doutrina autoritária e apartidária do Estado.

Ao que parece, mesmo sendo claro o problema habitual da representação democrática, esta é a forma de governo que preza pela liberdade e escolha individual. Sendo assim, como todas criações humanas, imperfeita por natureza, mas que é, pragmaticamente, a melhor que possuímos (até agora).

 Um problema particular e, assim espero, efêmero.

“O Brasil é um país emocionante!”, afirmava ironicamente meu professor de Introdução ao Estudo do Direito entre suas críticas contundentes feitas ao judiciário e à política nacional. Segundo ele nosso país seria diferente de outros como a Suécia e o Japão, pois nestes você sabe como vai morrer desde o seu nascimento (infarto, velhice, suicídio..,), todavia, no Brasil “emocionante” e imprevisível o inesperado te aguarda na próxima esquina, nas próximas eleições ou na próxima distribuição de um processo.

Uma das pautas tratadas pelo professor era o do tradicional “mercado” parlamentar brasileiro, mercado este que, diferentemente dos problemas crônicos e gerais citados anteriormente, é particular deste país e que, consequentemente, influencia muito no descontentamento popular acerca da representação partidária. Tal mercado, situado basicamente em quase todas as assembleias deste país, tem como principal produto ofertado o apoio parlamentar de vereadores, deputados e senadores. Sua moeda de circulação é variável: votos favoráveis, apoio incondicional de todo um partido e dinheiro (muito dinheiro). Esse mercado, na maioria das vezes tratado eufemisticamente pelos jornalistas políticos e afins, de jogo político despreza escancaradamente o voto de confiança oferecido pelos eleitores que ficam de fora dos conchavos políticos realizados pelos seus “representantes”.

Essa característica patente de nosso sistema representativo vem à tona periodicamente em notícias acerca do surgimento de coligações paradoxais[9] e escândalos de compra de votos parlamentar[10]. O cidadão por fim, depois de seguidas decepções relacionadas a representação democrática, se vê contra a parede da realidade política nacional onde um seleto grupo de tecnoburocratas inertes fantasiados de políticos sérios que, em seus paletós de marca e jatinhos particulares, observam a grande massa populacional se tornar cada vez mais insatisfeita, apartidário e, infelizmente, apolítica. Essas práticas vergonhosas potencializam os problemas crônicos que incidem na democracia representativa partidária tratados anteriormente.

Esta discussão foi parcialmente tratada no pleito de 2014. Alguns candidatos apresentaram a reforma constitucional e política como única solução. Esse discurso, apesar de soar interessante, pode ser perigoso se observarmos o poder ilimitado de uma constituinte originária, ora, você confiaria todos os seus direitos aos representantes que hoje ocupam o congresso nacional? Lembremos que muitos destes provavelmente seriam os mesmos que atualmente vendem seus votos e suas ideologias (se é que possuem alguma) por um cargo ministerial ou um voto a favor em prol da construção de mais uma obra de uma empreiteira qualquer.


[1] Vale destacar que o debate sobre a representação política cresceu bastante após as chamadas “Jornadas de junho”; manifestações que, em grande parte, não se viam representadas por nenhum movimento político-partidário.

[2]Representação - re.pre.sen.ta.ção - sf (representar+ção1-Ato ou efeito de representar; exibição, exposição. 2-Realização de uma cena, de um desenho ou de imagem que representa, reproduz ou simboliza um fato ou um objeto. 3-Ato pelo qual por meio de uma petição escrita, se reclama ou protesta contra alguma coisa, ou se acusa alguém de falta ou crime. 4-Exibição em cena; récita. 5-Aparência de importância e distinção que requerem certos cargos de qualidade; dignidade, ostentação inerente a um cargo. 6-Filos Ato pelo qual se faz ver um objeto presente ao espírito. 7-Exercício do poder legislativo, em nome da nação, por assembleias eleitas. 8-Conjunto dos membros das câmaras políticas de um país democrático representativo. 9-Dir Benefício legal concedido aos herdeiros de pessoa falecida, atribuindo-lhes poderes iguais aos desta. 10-Dir Ato pelo qual alguém é legalmente autorizado a agir em nome de outrem. R. coletiva, Sociol: concepções e símbolos que resultam da interação social e adquirem um significado comum para os membros do grupo, suscitando-lhes reações emocionais semelhantes. R. comercial, Com: contrato no qual alguém se compromete a realizar vendas ou negócios para o representado mediante comissões. R. das minorias: sistema político que dá aos eleitores vencidos, dos vários partidos, o direito de apresentar um candidato por um número fixo de votantes. R. nacional: assembleia dos deputados ou representantes da nação.R. proporcional: a que se obtém por uma proporcionalidade mais ou menos exata entre os componentes dos diferentes partidos, e não pelo processo das maiorias absolutas. Ser homem de representação: ser personagem importante; ocupar elevada posição social. Dicionário Michaelis, encontrado em < http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php? lingua=portugues-portugues&palavra=representa%E7%E3o >

[3] MIGUEL, Luis Felipe. Mito e discurso político. Imprensa oficial, 2000.

[4] BRACONNIER, Céline; DORMAGEN, Jean-Yves. Abstenção deforma a política francesa. Em: Le Monde Diplomatique Brasil. Ano 7, número 82

[5] Nas eleições para o primeiro turno compareceram ao pleito 115.122.883 (80,61%) do eleitorado nacional. O número de abstenções corresponde a 27.698.475 (19,39%). Os votos válidos somam 104.023.802 (90,36%), brancos 4.420.489 (3,84%) e nulos 6.678.592 (5,80%), ou seja, dos mais de 140 milhões de eleitores brasileiros cerca de 38 milhões, um em cada quatro, negaram seu direito ao voto, fosse ele anulado, em branco ou abstenção. Fonte:  Tribunal Superior Eleitoral.

[6] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Companhia das letras, 2012.

[7] Bonavides analisa a incapacidade que as ideologias partidárias possuem de agregar eleitores em contradição às personalidades políticas específicas que muitas vezes se mantém no poder ou conseguem eleger correligionários através de sua popularidade. Vide em: BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. Malheiros Editores, 1994.

[8] “Tanto que os serviços públicos deixam de ser o principal negócio dos cidadãos e entram estes a prezar mais a bolsa que a si mesmos, já o Estado se acha à beira da ruína. Faz-se mister combater? Ei-los que pagam tropas e ficam em casa; urge deliberar? Ei-los que nomeiam deputados e permanecem em casa. A poder da preguiça e dinheiro, têm enfim soldados para escravizar a pátria e representantes para vende-la. [...] A ideia de representante, afirma ele, é moderna; deriva do governo feudal, desse iníquo e absurdo governo no qual a espécie humana foi degradada e que tanto fez cair em desonra o nome do ser humano. Nas antigas repúblicas, e até nas monarquias, jamais teve o povo representantes; ignorava-se tal palavra.” ROUSSEAU, Jean-Jaques. Contrato Social. L&PM, 2012.

[9] PT e PMDB, PFL(DEMOCRATAS) e PSDB são alguns exemplos nacionais, contudo, são nas unidades federativas que iremos encontrar coligações que conseguem unir partidos socialistas e neoliberais sob um mesmo estandarte, ao que parece coerência não é o forte dastas coligações.

[10] Vale ressaltar também a fatídica prática da criação de ministérios que tem praticamente o único intuito de servir de mais uma moeda parlamentar. 


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Ulisses B. F.. Representação e política. A crise que assola o nosso sistema partidário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4296, 6 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32726. Acesso em: 23 abr. 2024.