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A descriminalização do aborto de feto anencéfalo segundo a Constituição Federal do Brasil

A descriminalização do aborto de feto anencéfalo segundo a Constituição Federal do Brasil

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O presente trabalho visa estabelecer alguns critérios ideais da interpretação e julgamento sobre a viabilidade da vida dos fetos com anencefalia, partindo de um ponto de vista jurídico, levando em consideração um dos seus princípios de maior relevância...

RESUMO

O presente trabalho foi publicado na revista de Direito do UNIFACEX, ele visa estabelecer alguns critérios ideais da interpretação e julgamento sobre a viabilidade da vida dos fetos com anencefalia, partindo de um ponto de vista jurídico, levando em consideração um dos seus princípios de maior relevância social, qual seja, o direito à vida, além de discutir juridicamente a constitucionalidade da autorização judicial de aborto de fetos anencéfalos. Assim, temos como foco um tema muito debatido atualmente, tanto social como juridicamente: o aborto de anencéfalos. O problema de maior significância existente no presente tema encontra-se no choque entre a autorização constitucional do aborto de anencéfalos em detrimento do princípio à vida, uma vez que um estaria sobrepondo-se ao outro, trazendo ainda a teoria concepcionista, em uma perspectiva religiosa, em que o feto adquire personalidade no momento da concepção. Em nosso trabalho, temos o objetivo de demonstrar o posicionamento religioso e biológico sobre o assunto, além da estruturação interpretativa que levou o STF a permitir a realização do aborto de fetos anencéfalos, bem como, sua licitude diante das normas constitucionais possibilitando a realização do aborto sem desrespeitar os preceitos constitucionais concernentes ao direito à vida, fundado no entendimento do qual entende ser possível a realização do aborto de anencéfalo sem constituir desrespeito à Constituição ou crime contra vida.

Palavras chave: Aborto. Anencefalia. Inviável. Moral. Religião.

ABSTRACT

This work aims to establish some criteria of ideal interpretation and judgment about the feasibility of the lives of fetuses with anencephaly, from a legal point of view, taking into consideration one of its principles of greater social relevance, namely the right to life, and to discuss legally the constitutionality of judicial authorization abortion of anencephalic fetuses. So we focus on a hotly debated topic today, both socially and legally, that is, anencephalic abortion. The most significant problem of this subject can be found in the authorization between constitutional shock abortion anencefalous against the life principle, since one would be superimposed upon another, bringing the theory Conceptionist still in a perspective religious where the fetus acquire personality at conception. In our work we aim to demonstrate the biological and religious position on the matter, beyond the interpretative structure that led the Supreme Court to allow the abortion of anencephalic fetuses, as well as its legality before the constitutional enabling the execution of abortion without disregard the constitutional provisions regarding the life right, based on the understanding of the CNTS, which considers it possible to perform the abortion of anencephalic not constitute disregard of the Constitution or a crime against life once before the congenital malformation of the fetus is not considered this unborn child but stillborn.

Keywords: Abortion, anencephaly. Unfeasible. Moral. Religion.

1 INTRODUÇÃO

Os médicos, com a constatação de uma mulher grávida com feto anencéfalo, deparam-se com um grande problema. A questão era considerar se é lícito, juridicamente, realizar o aborto de um feto anencéfalo que, provavelmente, pode morrer durante a gestação ou em algumas semanas após o parto. A descriminalização do aborto é um tema de grande relevância moral, jurídica, religiosa, psicológica e biológica, sendo este o motivo pelo qual houve interesse em tratar do tema.

Concentrando em uma análise científica, essa questão envolve os direitos fundamentais com os maiores valores contidos na Constituição Federal, a saber, o direito à vida, à dignidade da pessoa humana e à liberdade. Os dois primeiros, segundo alguns doutrinadores, são quase absolutos no ordenamento brasileiro. Portanto, exige-se uma rigorosa ponderação para definir qual direito irá sobrepor o outro nessa situação específica.
Para chegar a um resultado, é necessário analisar todo o argumento técnico-biológico que versa sobre essa questão.

Como os riscos envolvidos, probabilidade de sobrevivência etc. Que está relacionada juridicamente com o direito â vida, tanto a vida do feto anencéfalo como da mãe. Deve-se interpretar quando a vida é considerada viável, biologicamente, e quando a vida começa segundo a interpretação dos estudos biológicos. Como também a interpretação jurídica para o começo da vida, isto é, o método utilizado pelo STF para interpretar qual é o momento que a vida começa de acordo com o ordenamento brasileiro.

Necessita-se uma análise da questão psicológica dos envolvidos, pois a família, a mãe, e o pai do feto podem ficar extremamente comovidos, o que acaba também se relacionando com a questão jurídica do princípio da dignidade da pessoa humana. Com isso, obriga a Justiça a interpretar os danos sofridos pela perda, para relacionar com as demais questões e interpretar corretamente o que o ordenamento jurídico irá considerar superior.

Vale observar que o STF não tem poder constitucional para tipificar um crime ou criar exceções de tipo penal, mas apenas interpretar o fato que é questionado e criar uma decisão definitiva como resultado para uma determinada questão. Portanto, a decisão do STF não criou uma exceção ao tipo penal de aborto, mas apenas interpretou as ações elementares do tipo e o fato em questão.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 ANENCEFALIA

A anencefalia consiste em uma má formação no cérebro do feto, ocorrida nas primeiras semanas de gestação. Pode ser uma ausência do encéfalo, ou uma deformação parcial. Portanto, a deficiência pode ser maior em um feto e menor em outro, isto é, existem graus de anencefalia, e, por isso, pode haver casos em que um bebê pode viver mais de dois anos, e outros que morrem em algumas semanas de gestação. O bebê pode ter algumas funções do cérebro funcionando, garantindo as funções vitais.
A medicina analisa a anencefalia como

[...] uma condição caracterizada pela má formação ou ausência do cérebro e/ou da calota craniana (os rudimentos de cérebro, se existem, não são cobertos por ossos). Embora o termo sugira a falta total de cérebro, nem sempre é isso que acontece e muitas vezes há falta de partes importantes do cérebro, mas a presença de algumas estruturas do tronco cerebral, o que sustenta a sobrevivência do feto. Contudo, a expectativa de vida de bebês nascidos com anencefalia é muito curta e ela é sempre uma patologia letal a curtíssimo prazo.1

Geralmente, os médicos consideram anencefalia, em sentido técnico, quando o bebê/feto não apresenta meninge, calota craniana, e grande parte do encéfalo, tendo apenas um tronco cerebral. A medicina afirma que a anencefalia não é compatível com a vida extrauterina, não existindo nem mesmo cirurgia ou tratamento para tornar a vida possível.

2.2 ABORTO

Etimologicamente, aborto significa privar do nascimento. Situação em que o feto é removido, e, portanto, tem a vida interrompida. O aborto é a interrupção da gravidez de um feto vivo, que, no código penal vigente, é tipificado como crime nos artigos 124, 125 e 126. Tendo como exceção, no art. 128, somente se a gravidez tiver sido ocasionada por estupro ou se o feto põe a vida da mãe em alto risco, não tendo outro meio de salvar a vida da mãe. Lembrando que deve ser um risco muito alto, caso contrário, a mãe e o médico responderão a processo criminal, pois o médico tem uma obrigação meio2, devendo fazer o possível para que a mãe e o feto fiquem vivos.

2.3 OPINIÕES SOBRE ABORTO DE ANENCÉFALO

Devido aos problemas envolvidos na expectativa de vida dos fetos com anencefalia, entra-se em discursão a viabilidade de fazer um aborto nessa situação. Surgem, nesse momento, várias teorias e opiniões de todos os grupos da nação, de todas as classes. Cabe então interpretar o que será considerado válido.

2.3.1 Ótica religiosa

A primeira opinião sobre o assunto que é vista como irrelevante na seara jurídica é a religiosa, pois lembram imediatamente que vivemos em um Estado laico, e, portanto, não se consideram opiniões de cunho religioso. Entretanto, esquecem que esta nação tem usos e costumes com origem no cristianismo, e os usos e costumes de uma sociedade são avaliados como fonte indireta do direito romano-germânico. Segundo Oton Lustosa, essas fontes auxiliam na interpretação:

Nada obstante seja a lei a principal fonte do Direito, este emerge, também, do costume do povo, das lições dos doutores(doutrina), da analogia, da jurisprudência e dos princípios gerais. Justiça é um sentimento. O povo sente-se, racional e espiritualmente, realizado e feliz diante de determinadas situações fáticas. [...] O Direito, então, há que levar em consideração este importante componente: o costume do povo, que são práticas usuais tornadas regras no meio social.3

No tocante ao início da personalidade jurídica, o cristianismo segue a teoria concepcionista (adotada na França), na qual afirma que a personalidade jurídica começa no momento da concepção, independentemente da formação do sistema nervoso, como dizem as demais teorias. Ou seja, garante os direitos do feto antes do nascimento.

O ordenamento brasileiro, apesar de adotar a teoria natalista no Código Civil, já garante direitos ao feto, como por exemplo: pensão alimentícia, proteção a vida (criminalizando o aborto) etc. Algumas decisões dos tribunais, cada vez mais, mostram seguir a teoria concepcionista. Ora, se o feto já tem direitos garantidos, não foi resultado de estupro, e a gravidez não coloca a vida da mãe em risco, deve-se deixar o embrião se desenvolver e tentar viver, pois considera-se que fere o princípio da dignidade da pessoa humana discutir a questão de “viabilidade da vida”, haja vista que isso reduz a vida humana a estatísticas e probabilidade. Numa concepção cristã, toda vida é viável, todos devem ter a oportunidade de tentar viver.

2.3.2 Ótica biológica

Os médicos não acreditam que o feto com anencefalia está vivo, pois de acordo com a Lei de Transplante de Órgãos, um ser é considerado morto quando há morte encefálica. Usando o silogismo, observamos que a vida só é viável se houver atividade cerebral, os bebês com anencefalia não possuem cérebro, portanto as vidas dos fetos com anencefalia não são viáveis.

Ou seja, é correto afirmar que os anencéfalos apresentam morte cerebral, segundo a medicina, pois, como exposto, não apresentam atividade cerebral. Logo, não seria considerado aborto uma interrupção da gestação do feto anencéfalo.

Segundo ABC.MED.BR,

[...] Se o bebê com anencefalia chega a nascer, ele geralmente é cego, surdo, inconsciente e incapaz de sentir dor, sendo, portanto, inviável. Os fetos anencéfalos podem assumir posições anômalas, dificultando o parto, já que o fenômeno físico do parto precisa do crânio. O ombro deles, não se sabe o porquê, é maior. E ainda existe o risco de não contração uterina após o parto levando a hemorragias no pós-parto, o que pode colocar a vida da mulher em risco. [...]4

Os médicos veem como um conjunto de órgãos interligados que conseguem manter todo o organismo vivo, temporariamente. Isto é, acreditam que o feto é um ser totalmente sem consciência, já que todo o sistema irá parar em um curto período de tempo.

Na visão da medicina, a mãe tendo a continuação da gestação até o nascimento do filho, só irá gerar falsas esperanças e expectativas, fazendo com que haja até danos psicológicos na mãe, quando as funções vitais do bebê, inevitavelmente, cessarem. Com isso, a medicina acredita que o aborto terapêutico é a melhor forma de evitar um dano ainda maior na vida da mãe e da família.

2. 4 MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO

Antes de se fazer uma aplicação jurídica sobre o fato, é necessário fazer um breve comentário sobre os tradicionais meios de interpretação dos casos que precisam ser julgados pelo Estado, ou seja, apenas mostrar como o Estado interpreta, quais as fontes de interpretação dos casos concretos.

A Hermenêutica se faz sempre presente na área jurídica, sempre auxiliando o intérprete e possibilitando a execução da comunicação entre as leis e a sociedade. Esta comunicação se dá quando o exegeta faz um estudo da lei e a partir deste estudo se concretiza a ideia da atividade comunicativa entre o sistema jurídico e a sociedade com seu entendimento sobre o assunto.

Para que a interpretação aconteça, existem alguns métodos que guiam o intérprete a alcançar a compreensão do que o código jurídico expõe. Os métodos Clássicos, abordados e estudados por Savigny, são exemplos de meios que auxiliam o exegeta a conseguir estabelecer a comunicação entre as leis e a sociedade.

Os métodos clássicos se subdividem em:

Método Histórico: este método consiste em analisar os antecedentes das normas jurídicas em foco para que seja possível entender o sentido atual desta. O estudo da evolução do sistema jurídico possibilita o conhecimento de toda adaptação pela qual passou o ordenamento;

Método Gramatical: busca da interpretação no sentido literal da norma, sem que sofra qualquer alteração, sendo assim conservada em seu sentido original, e sendo, portanto, aplicada ao pé da letra. Segundo Pontes de Miranda, “As regras gramaticais e o uso da linguagem impõem-se ao intérprete, como a todos os que falam a mesma língua.”5

Método Teleológico consiste no tipo de interpretação que tem por objetivo principal executar a pura finalidade das normas, não estando presa, pois, a realidade descrita o ordenamento.

Como afirma Carlos Maximiliano,

Considera-se o Direito como uma ciência primariamente normativa ou finalística; por isso mesmo a sua interpretação há de ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o fim da norma, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesses para a qual foi regida.6

Método Sistemático, muito importante para julgar no ordenamento jurídico baseado um código normativo. Esta é a teoria que defende o Direito sendo como um sistema, uma estrutura, que deve ser coordenada e organizada, não devendo ser tratado isoladamente, pois, ocorrendo isso, será evitado que o intérprete preocupe-se com fatos separados, e que, consequentemente, atente-se ao sistema jurídico como um todo.

Segundo considera Luís Roberto Barroso,

O direito objetivo não é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmonicamente. A interpretação sistemática é fruto da ideia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas.7

Método Sociológico: dispõe-se a averiguar o contexto histórico no qual os fatos da sociedade estão inseridos para que, então, possa ser dado um parecer a seu respeito.

Como afirma Carlos Maximiliano, “interpretar uma expressão do Direito não é simplesmente tornar claro o respectivo dizer, abstratamente falando; é, sobretudo, revelar o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta".8

2.5 ANÁLISE JURÍDICA

Então, diante dos fatos que o supracitado problema causa, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) formalizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54 perante o STF para questionar a constitucionalidade e a descriminalização da interrupção da gestação de feto anencéfalo. Questionando os dispositivos penais que punem o médico e a mãe se realizarem tal operação. A CNTS considera que o feto com anencefalia não tem qualquer perspectiva de vida extrauterina e afirma que a não execução do aborto fere outros princípios e direitos constitucionais expostos na Carta Magna.

Segundo o ministro Marco Aurélio, no relatório da ADPF nº 54, a CNTS:

[...] apontou como envolvidos os preceitos dos artigos 1º, IV – dignidade da pessoa humana -, 5º, II – princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade -, 6º, cabeça, e 196 – direito à saúde -, todos da Carta da República e, como ato do Poder Público, causador da lesão, o conjunto normativo ensejado pelos artigos 124, 126, cabeça, e 128, incisos I e II, do Código Penal – Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.9

Portanto, vê-se que esta situação põe diversos direitos constitucionais em conflito. Vale ressaltar que o código normativo deve ser interpretado como um todo, não somente trechos isolados. Devendo o magistrado usar métodos de interpretação para analisar o caso com uma rigorosa ponderação de princípios, seguindo com uma solução definitiva para questão. Observa-se que, basicamente, os principais direitos que estão em contraposição são o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio do direito à vida.

2.5.1 O princípio da dignidade da pessoa humana

Esse princípio, disposto na Constituição Federal do Brasil, é uma garantia fundamental agregado a esta, que serve para versar da proteção pessoal de um indivíduo num espaço socialmente habitado. Diz-se princípio da dignidade da pessoa humana de forma proposital, para afastar qualquer possibilidade de utilizá-lo em coisas distintas a de pessoas físicas, como por exemplo, as empresas por serem pessoas jurídicas.

Tal princípio faz referência a qualquer pessoa que se sinta ofendida em sua intimidade pessoal, em sua característica de ser humano, dando-lhe a proteção necessária de que qualquer fato superveniente que acarrete a sua integridade. A ofensa ao princípio é bastante abrangente, de uma forma tão subjetiva que nem mesmo podemos definir sua dimensão por conta interpretativa de seu significado, assim como afirma Ivone Ballao Lemisz in verbis:

A dignidade da pessoa humana é um conceito extremamente abrangente, desta forma, existe uma grande dificuldade de se formular um conceito jurídico a respeito. Sua definição e delimitação são amplas, haja vista englobar diversas concepções e significados. Seu sentido foi sendo criado e compreendido historicamente como valor, preexistiu ao homem.10

Visando estabelecer uma compreensão mais específica do princípio supracitado a formar uma comparação deste ao aborto, o que estaria mais em questão seria a livre escolha da gestante sobre seu corpo e como estaria seu estado psicológico para assumir tais responsabilidades futuras sobre um ser que não tem expectativa de vida, além do apego emocional em todo período de gestação até o nascimento, com a morte logo em seguida.

2.5.2 O princípio do direito à vida
O princípio do direito à vida basicamente afirma que todos tem o direito de estar vivo. Este é considerado, por alguns doutrinadores, como o direito fundamental mais importante, pois é um pré-requisito para o exercício dos demais direitos. A vida é o valor supremo do ordenamento jurídico pátrio, haja vista ser a própria existência do homem. Como afirma Paulo Branco, no Curso de direito constitucional,

O direito à vida é a premissa dos direitos proclamados pelo constituinte; não faria sentido declarar qualquer outro se, antes, não fosse assegurado o próprio direito de estar vivo para usufruí-lo. O seu peso abstrato, inerente à sua capital relevância, é superior a todo outro interesse.11

Quando este direito é sobreposto por outro, quase sempre é pelo princípio da dignidade da pessoa humana, ou por ele mesmo. Atualmente, existem somente quatro situações excepcionais em que o direito à vida é sobreposto por outro princípio, a saber, quando se realiza o aborto em um feto que foi resultado de um estupro (direito à vida em concorrência com dignidade da pessoa humana); quando se realiza um aborto em uma situação que a mãe está em risco de vida (direito à vida de um indivíduo em concorrência com direito à vida de outro indivíduo); nas excludentes de ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, exercício regular de direito estrito cumprimento do dever legal); e quando se realiza a execução de pena de morte para militares, em estado de guerra declarada.

Bobbio afirma que o problema da definição dos direitos fundamentais já foi resolvido, e quanto a isto, não é necessário buscar mais fundamento, isto é, o assunto já foi exaurido. O problema, atualmente,

[...] Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.12

Com isso, põe-se em confronto a vida do feto com anencefalia e o princípio da dignidade da pessoa humana, que neste caso é a vida mãe, que tem grande probabilidade de sofrer danos psicológicos. Portanto, verifica-se se a vida do feto é viável para se sobrepor a dignidade da mãe, ou se realmente estamos falando de uma vida.

2.5.3 O caso no STF
Cabe então ao STF decidir a questão do aborto terapêutico. Houve muitas discussões a respeito do tema. Analisando o decorrer do processo da ADPF 54, observa-se como foi interpretado o supracitado problema, e também como os ministros ponderaram os princípios e direitos envolvidos.

Conforme o art. 2 do Código Civil, “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”13. Entretanto, não se deve interpretar a situação do feto com essa má formação cerebral como um nascituro, mas sim um natimorto, pois se percebe que o feto com anencefalia nunca chegou a estar vivo.

Portanto, não se trata de um aborto, mas sim de uma interrupção de gestação, pois o feto está morto. Conclui-se, então, que o médico que realiza apenas um procedimento de remoção de um corpo estranho, não sendo tipificado, portanto, no Código Penal.

Fazendo uma breve análise, apesar de o problema aparentar envolver conflito de direitos e princípios, na verdade consiste apenas numa questão de interpretação. A grande questão é interpretar quando a vida começa, e quando a vida termina. O ordenamento brasileiro é omisso no que diz respeito ao início da vida, mas define claramente quando a vida termina.

Dois ministros eram contra permissão da interrupção da gravidez, mas, no julgamento, a maioria dos votos concordou com os argumentos da CNTS. Vale ressaltar que o ordenamento jurídico, na lei de transplantes, considera morto quando se constata a morte encefálica, e no feto anencéfalo isto é claro, pois não apresenta um cérebro funcional, muito menos tem possibilidade de ter consciência.

Na medicina, consideram-se dois tipos de morte, a morte cerebral, e a morte clínica, assim:

[...] A morte cerebral é a parada total e irreversível das funções encefálicas, em consequência de processo irreversível e de causa conhecida, mesmo que o tronco cerebral esteja temporariamente funcionante. A morte clínica (ou biológica) é a parada irreversível das funções cardiorrespiratórias, com parada cardíaca e consequente morte cerebral, por falta de irrigação sanguínea, levando a posterior necrose celular. [...].14

Na esfera jurídica, considera-se morto aquele que apresenta morte cerebral. Assim sendo, a questão dos fetos anencéfalos não envolve discutir exatamente a viabilidade de uma vida, mas a viabilidade de manter funcionando os órgãos de um ser que tem ausência de atividade cerebral, e, portanto, está morto legalmente.

Portanto, diante de todos os fatos, o STF deferiu o pedido da CNTS, e, com isso, autorizou a interrupção da gravidez de fetos com este problema. Agora não sofrerá processo criminal o médico e a mãe que realizar esta operação. A decisão do STF é considerada justa, razoável e totalmente racional. Vale ressaltar que todo o processo tinha o intuito de descriminalizar a interrupção da gravidez de feto com anencefalia, e não para tornar esse procedimento obrigatório, ou seja, se a mãe não almejar se submeter ao aborto terapêutico, poderá tentar cuidar do seu bebê anencéfalo, isto é, a realização do procedimento é facultativo.

3 METODOLOGIA

O presente trabalho partiu da análise interpretativa acerca da descriminalização de aborto de anencéfalos, julgado pelo SFT e já autorizado a sua realização.

4 CONCLUSÃO

Embora haja grande discussão religiosa e moral acerca da autorização prolatada, os argumentos constitucionais para a sua autorização são plausíveis, uma vez que, baseado no entendimento da CNTS, não pode o aborto de anencéfalos ser considerado um crime contra a vida, uma vez que este feto sequer é considerado como nascituro, devido à sua má formação congênita, em ser gerado sem o cérebro, mas sim, entende-se que o feto anencéfalo é um ser sem vida viável.

Nesse sentido, apesar das alegações contrárias à interrupção de gravidez dos fetos anencéfalos, que afirmam uma discrepância constitucional da autorização, tendo em vista os princípios em favor da vida que tratam o vigente ordenamento jurídico, e consideram que, autorizando o aborto, estaria em choque com seus próprios fundamentos, tem suas alegações derrubadas com fulcro na fundamentação e interpretação trazida pelo CNTS, fazendo com que seja plenamente possível a permissão não estando ao contrário dos princípios fundamentais trazidos por nossa Carta Magna.

Ante o exposto, vale ressaltar que a decisão fundamentada pelo STF foi uma forma de evitar todo o dano à moral da mãe em permanecer com uma criança com anencefalia, devido ao sofrimento de carregar durante todo o período de gestação uma criança a qual é sabido que não sobreviverá, isto é, terá uma vida inviável.

Desse modo, com base em todos os argumentos trazidos no decorrer do trabalho, entende-se que a interpretação da descriminalização do aborto de feto com anencefalia está em consonância com a Constituição Federal.

Notas de rodapé:

1 ANENCEFALIA: causas, sinais e sintomas, diagnóstico, evolução. ABC.MED.BR, 2013. Disponível em: <http://www.abc.med.br/p/saude-da-mulher/340714/anencefalia-causas-sinais-e-sintomas-diagnostico-evolucao.htm>. Acesso em: 04 mai. 2013.

2 Nos direitos das obrigações, a doutrina classifica a obrigação do médico como obrigação meio, que consiste, basicamente, na obrigação do profissional obter o melhor resultado possível.

3 LUSTOSA, Oton. A lei, o costume, o direito. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001 . Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/2113. Acesso em: 06 maio 2013.

4 ANENCEFALIA: causas, sinais e sintomas, diagnóstico, evolução. ABC.MED.BR, 2013. Disponível em: <http://www.abc.med.br/p/saude-da-mulher/340714/anencefalia-causas-sinais-e-sintomas-diagnostico-evolucao.htm>. Acesso em: 04 maio 2013.

5 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes De. Tratado de direito privado: parte especial, tomo XXXI. Rio de Janeiro: Borsoi, 1961. p. 79.

6 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 15ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 151-152

7 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 127-128

8 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 22.

9 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 54. Relator: Min. MARCO AURÉLIO. Publicado no DJ de 20/10/2004. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=136389880&tipoApp=.pdf >. Acesso em: 04 maio 2013 p. 2.

10 LEMISZ, Ivone Ballao. Principio da dignidade da pessoa humana. DireitoNet. 25 mar. 2010. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/5649/O-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana>. Acesso em: 25 out. 2013.

11 MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 393.

12 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 17

13 BRASIL. Código civil de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 14 de nov. 2013.

14 LARA, André Martins; WILHELMS, Fernando Rigobello. Existe aborto de anencéfalos?. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 617, 17 mar. 2005. .<Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/6467>. Acesso em: 08 maio 2013.

REFERÊNCIAS

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BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

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LARA, André Martins; WILHELMS, Fernando Rigobello. Existe aborto de anencéfalos?. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 617, 17 mar. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6467>. Acesso em: 08 maio 2013.

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