Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/36293
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Princípios da fragmentariedade e da adequação social e crime de casa de prostituição

Princípios da fragmentariedade e da adequação social e crime de casa de prostituição

Publicado em . Elaborado em .

O desiderato deste ensaio é enfrentar o problema da possibilidade de aplicação dos princípios da fragmentariedade e da adequação social ao crime de casa de prostituição.

1. Introdução

O desiderato deste ensaio é enfrentar o problema da possibilidade de aplicação dos princípios da fragmentariedade e da adequação social ao crime de casa de prostituição.

Para tanto, proceder-se-á à análise de recente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos do Habeas Corpus nº 104.467/RS, relatada pela Ministra Cármen Lúcia e publicada em 09/03/2011. Tal julgado sopesou a conduta tipificada no art. 229 do Código Penal, alterado pela Lei nº 12.015/2009, em face dos postulados citados.

No caso concreto, alegou-se que, em consonância com a fragmentariedade e a adequação social, a conduta perpetrada, encaixada no tipo penal de casa de prostituição, seria materialmente atípica, apesar de presente a tipicidade formal.

Apesar de o Supremo Tribunal Federal já ter exarado anteriormente acórdão negando a incidência do princípio da adequação social ao crime de casa de prostituição (STF, HC 99.144/RS, Rel. Min. Menezes Direito, DJe 10/06/2009), a decisão comentada adquire especial importância porque foi proferida após o advento da Lei nº 12.015/2009, confirmando o entendimento sob a égide da novel legislação.

A fim de cumprir esse mister, é empreendida uma análise do acórdão paradigmático e se realiza um breve estudo do crime de casa de prostituição. Além disso, são examinados os princípios da fragmentariedade e da adequação social, para então raciocinar sobre os argumentos favoráveis e contrários à incidência dos postulados no crime sexual, tomando-se como base o julgado mencionado, porém, sem se limitar a ele. Por fim, são tecidas algumas considerações sobre a temática em debate.

2. Julgado paradigmático

O julgado a ser dissecado nesse trabalho consiste em acórdão recente emanado do Supremo Tribunal Federal, que foi assim ementado:

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. CASA DE PROSTITUIÇÃO. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA FRAGMENTARIEDADE E DA ADEQUAÇÃO SOCIAL: IMPOSSIBILIDADE. CONDUTA TÍPICA. CONSTRANGIMENTO NÃO CONFIGURADO.

1. No crime de manter casa de prostituição, imputado aos Pacientes, os bens jurídicos protegidos são a moralidade sexual e os bons costumes, valores de elevada importância social a serem resguardados pelo Direito Penal, não havendo que se falar em aplicação do princípio da fragmentariedade.

2. Quanto à aplicação do princípio da adequação social, esse, por si só, não tem o condão de revogar tipos penais. Nos termos do  art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (com alteração da Lei n. 12.376/2010), ‘não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue’.

3. Mesmo que a conduta imputada aos Pacientes fizesse parte dos costumes ou fosse socialmente aceita, isso não seria suficiente para revogar a lei penal em vigor.

4. Habeas corpus denegado.

(STF, HC 104.467/RS, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 09/03/2011).

3. Crime de casa de prostituição

Como é notório, recente alteração legislativa, introduzida pela Lei nº 12.015/2009, modificou o Título VI do Código Penal, passando os crimes dessa espécie a serem denominados crimes contra a dignidade sexual, e não mais delitos contra os costumes. Várias modificações foram realizadas nos tipos penais, inclusive com a supressão e a criação de crimes sexuais.

Com relação ao crime de casa de prostituição, que importa ao presente artigo, apesar de não ter sido suprimido, teve sua redação substancialmente alterada. A redação antiga assim dispunha:

Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente.

O novo dispositivo foi redigido da seguinte forma:

Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente.

O tipo penal em destaque visa proteger a liberdade sexual em face da exploração levada a efeito por agentes que, carecendo de escrúpulos, incentivam o favorecimento sexual alheio em benefício próprio. Cuida-se de bem jurídico de elevada importância para a sociedade, havendo relevância suficiente para justificar a intervenção do Direito Penal para resguardá-lo.

Resta evidente que, com a modificação da lei penal incriminadora, para a configuração do crime não mais é suficiente que o local seja destinado a encontros para fins libidinosos, sendo imprescindível que haja exploração sexual.

Dispensa-se a lucratividade da exploração. Aliás, é desnecessário não só que o agente obtenha proveito econômico com a exploração da prostituição em seu estabelecimento, mas também que haja mediação direta entre o proprietário da casa, a prostituta e o cliente. (CAPEZ, 2008, p. 99).

Convém sublinhar que essa alteração colocou uma pá de cal sobre a discussão acerca da tipicidade da conduta de manter motel ou hotel de alta rotatividade, sedimentando-se o entendimento de que não há crime na manutenção de estabelecimento destinado a encontros sexuais casuais consentidos.

4. Princípio da fragmentariedade

É indubitável que a eleição de uma conduta como criminosa deve orientar-se pelo desiderato protetivo do bem juridicamente tutelado (WELZEL, 1987, p. 83). Nem todos os bens jurídicos merecem a tutela específica do Direito Penal. Os interesses protegidos pela norma penal são apenas aqueles que exigem especial blindagem, por se revelarem insuficientes as garantias ofertadas pelos demais ramos do Direito. (ROCHA, 2004, p. 88).

Assim, o Direito Penal qualifica-se como fragmentário pelo fato de ocupar-se somente de uma parte dos bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico (BITENCOURT, 2008, p. 14). Analogia interessante sobre o tema é que o Direito Penal constitui um gigantesco oceano de irrelevância, ponteado por pequenas ilhas de tipicidade. (CAPEZ, 2008, v. 1, p. 17).

Com efeito, apenas os ilícitos que atacam os valores fundamentais para o progresso da sociedade configuram infrações penais – o Direito Penal é a ultima ratio na proteção de bens jurídicos (MASSON, 2009, p. 35). Realiza-se uma proteção seletiva dos bens jurídicos, exigindo-se a gravidade e a intensidade da ofensa, de maneira a sancionar tão somente as condutas mais austeras praticadas contra os interesses mais relevantes. (BITENCOURT, 2008, p. 15).

A doutrina moderna é praticamente unânime em afirmar que o Direito Penal qualifica-se como subsidiário e fragmentário. O postulado da fragmentariedade traduz uma característica do princípio da intervenção mínima, assim como a subsidiariedade.

Enquanto a subsidiariedade norteia a intervenção do Direito Penal em seu âmbito abstrato, que somente deve interferir diante do fracasso dos outros ramos do Direito (ultima ratio ou derradeira trincheira), a fragmentariedade guia a operação do Direito Penal diante de caso concreto, que apenas deve interferir nos fatos causadores de intolerável e relevante lesão ao bem jurídico tutelado.

De um lado, a subsidiariedade exige do legislador cautela ao eleger as condutas que merecerão sanção penal, devendo tipificar somente os comportamentos que, segundo comprovada experiência anterior, não puderam ser contidos de forma suficiente pela aplicação dos demais ramos do Direito. A fragmentariedade, a seu turno, demanda que o operador do Direito não realize o enquadramento típico quando a situação específica puder ser solucionada satisfatoriamente por ramos do Direito menos agressivos. (CAPEZ, 2008, p. 19). Quando bastarem outras especialidades do Direito, o Direito Penal deve sair de cena.

Todavia, há quem afirme que a fragmentariedade, em verdade, evidencia uma consequência da adoção dos princípios da intervenção mínima, lesividade e adequação social, pois, uma vez escolhidos os interesses fundamentais (comprovada a lesividade e a inadequação social das condutas que os violam), esses bens jurídicos passam a ser protegidos pelo Direito Penal. (GRECO, 2010, p. 57).

Exemplificando, se um empregado furta uma caixa de canetas e é demitido por justa causa, ao ressarcir o prejuízo, constata-se que o problema foi satisfatoriamente resolvido pelo Direito do Trabalho e Direito Civil, não havendo necessidade da drástica intervenção do Direito Penal.

Destarte, dado o caráter fragmentário do Direito Penal, esse ramo do Direito se limita a castigar apenas os comportamentos mais severos contra os bens jurídicos mais importantes. (CONDE, 1975, p. 71-72).

5. Princípio da adequação social

O Direito Penal somente tipifica comportamentos que tenham certa relevância social, tendo em vista que o tipo penal abrange somente as condutas contrárias ao interesse público. (JAKOBS, 1997, p. 244). A lei penal não tem o intuito de coibir condutas úteis para a coletividade. (ESTEFAM, 2010, p. 121). Nesse sentido, os comportamentos aceitos socialmente não podem sofrer a repulsa penal (sendo erigidos à categoria de infração penal) a não ser que sejam efetivamente rechaçados pela sociedade. (CAPEZ, 2008, p. 16).

A teoria da adequação social prega que a conduta não se revela típica se, apesar de haver subsunção ao modelo legal incriminador, estiver em conformidade com a ordem social da vida (PRADO, 2006, p. 83), isto é, em consonância com a vida social ordenada (WELZEL, 1970, p. 66). Assim, a conduta será formalmente típica, porém materialmente atípica, pela ausência de lesividade ao bem jurídico protegido – haverá tipicidade formal, mas não tipicidade material.

Nessa esteira:

[...] se o tipo delitivo é um modelo de conduta proibida, não é possível interpretá-lo, em certas situações aparentes, como se estivesse também alcançando condutas lícitas, isto é, socialmente aceitas e adequadas. (TOLEDO, 1994, p. 131).

Esse postulado estabelece que não se considera criminoso o procedimento que, conquanto seja tipificado na lei penal, não afronte o sentimento social de justiça, ou seja, aquilo que a sociedade tem por justo. (CAPEZ, 2008, p. 16).

A tipificação de fato socialmente adequado deve ser repudiada, resultando em atuação inconstitucional do legislador, dada sua incompatibilidade com o princípio da dignidade da pessoa humana. (ESTEFAM, 2010, p. 121-122).

Interessante exemplo consiste em imaginar uma norma que infligisse pena àqueles que praticassem doações a pessoas necessitadas. Restaria evidente o absurdo de uma lei penal dessa estirpe, pois o legislador não pode agir de modo arbitrário, com ausência de critério, incriminando toda e qualquer conduta a seu bel-prazer.

Em que pese a grande adesão doutrinária de que o princípio goza, há quem critique o postulado, direcionando sua opinião desfavorável ao fato de o Direito Penal não admitir o costume como forma de integração da lei penal, em razão da exigência da lex scripta decorrente do princípio da legalidade. Ademais, o Judiciário não se pode substituir ao Legislativo para revogar uma lei penal incriminadora, sob pena de violação aos princípios democrático e da separação dos poderes. Como se não bastasse, o princípio da adequação social é por demais impreciso e vago, não se ajustando às exigências da dogmática penal. (CAPEZ, 2008, p. 17).

6. Argumentos em prol da incidência dos postulados no crime de casa de prostituição

Aqueles que defendem a atipicidade da casa de prostituição em decorrência da aplicação dos princípios da fragmentariedade e da adequação social desenvolvem uma série de argumentos para embasar sua posição.

Menciona-se a ausência de dano ou de perigo de dano a valores da comunidade pela tão só manutenção de casa de prostituição em que haja relações sexuais consentidas entre pessoas capazes. Por óbvio, dessa permissão de exploração da casa de prostituição estão excepcionadas as hipóteses de exploração sexual de crianças e adolescentes (art. 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), de rufianismo (art. 230 do Código Penal – CP) e de favorecimento da prostituição (art. 228 do CP), em relação aos quais a sociedade expressa profunda repugnância.

Além disso, aquilo que não pode ou não deve ser proibido pela via direta não deve ser proibido pela via indireta. Se a prostituição não é vedada, não há razão para criminalizar a sua exploração.

Importante grifar que eventuais crimes praticados no estabelecimento em que haja a exploração da prostituição (como perturbação do sossego, ato obsceno, cárcere privado, extorsão, porte ilegal de armas, porte de drogas para consumo pessoal, constrangimento ilegal) são autonomamente puníveis, não ficando impunes em razão da descriminalização da casa de prostituição.

Ademais, proibir a casa de prostituição não a previne, mas simplesmente remete a atividade vedada para a clandestinidade, em que não existe qualquer controle. Por essa razão, a intervenção penal é inadequada e contraproducente, criando mais problemas do que resolvendo. Nessa ordem de ideias, caso fosse regulamentado o exercício da prostituição, seria possível exercer um controle mínimo por parte do Estado, visando a proteger clientes e prestadores de serviço.

Criminalizando a casa de prostituição, o Estado acaba por negar a dignidade da pessoa humana, tratando as pessoas prostituídas não como sujeitos de direitos, mas como simples objetos, instrumentalizando-as e negando-lhes a liberdade de decidirem por conta própria. As pessoas adultas são livres para disporem de seus corpos como bem entenderem, inclusive de forma onerosa se assim o desejarem. O Estado não deve pretender proteger pessoas capazes contra suas próprias decisões, tratando-as como crianças indefesas.

Uma parcela dos juristas defende que tornar crime a casa de prostituição configura nítida confusão entre “moral” e “direito”, pois cada indivíduo tem sua particular percepção sobre a liberdade de sexo, conceituando moralidade sexual à sua própria maneira. O Estado não pode impor ao indivíduo uma determinada orientação moral, porquanto a esfera moral não se confunde com o plano jurídico.

De mais a mais, a prostituição está presente de forma pública em todos os lugares e meios de comunicação, demonstrando uma evidente incompatibilidade entre a tolerância real e a intolerância legal.

Acerca do tema, ressalta a doutrina que:

Tanto passou a ser irrelevante para o Direito Penal a manutenção de casa de prostituição, que existem estabelecimentos dessa natureza em praticamente todos os municípios do país, fato que é conhecido da população e das autoridades policiais e administrativas. Ademais, a penalização da conduta [...] se constituiu tratamento hipócrita apenas de casos isolados, normalmente marcado pela participação de pessoas de baixa renda, diante da prostituição institucionalizada, amplamente anunciada com rótulos como ‘acompanhantes’, ‘massagistas’ e outros, inclusive pelos meios de comunicação social. Os que forem contrários aos locais de prostituição devem buscar sanar o que consideram um problema através de campanhas de esclarecimento ou educação moral, mas jamais valendo-se [sic] do direito penal, que há muito tempo mostra-se [sic] ineficaz para combater esse comportamento. (NUCCI, 2003, p. 707-708).

Assim, a eficácia da norma penal nos casos de casa de prostituição mostra-se prejudicada em razão do anacronismo histórico. Manter a penalização resulta num tratamento hipócrita diante da publicidade da exploração das casas de prostituição, que não sofrem praticamente reprimenda alguma do poder punitivo estatal. Não é surpresa para ninguém que quase não há fiscalização nos bordéis, boates de stripteases e estabelecimentos congêneres, sendo tal conduta tolerada há muito tempo. Outrossim, a existência de tipos penais como o do art. 229 apenas gera descrédito e desmoralização para a Justiça Penal (Polícia, Ministério Público e Judiciário).

Segundo essa corrente doutrinária, o controle social informal seria suficiente para efeitos de conscientização dos males causados pela prática dos comportamentos que envolvem a prostituição, não havendo necessidade da repressão penal. (GRECO, 2010, p. 650-651).

Muito embora a figura típica da casa de prostituição ainda seja albergada no Código Penal vigente (editado no longínquo ano de 1940), a conduta a que se refere o art. 229 deixou de ser vista à conta de delituosa, porque se trata de um conceito moral reconhecidamente ultrapassado que já não se sustenta nos dias atuais. É inegável que a sociedade evoluiu sobremaneira no que tange ao pudor e à quebra de paradigmas atinentes à conduta sexual.

Existe a necessidade de atentar-se, passados quase setenta anos da publicação do Código Penal, para os novos conceitos morais da sociedade, sendo ilógico considerar e tipificar como crime uma conduta moralmente aceita nos dias atuais. A prostituição é institucionalizada no meio social com rótulos de acompanhantes, massagistas e motéis, sendo amplamente divulgada pelos meios de comunicação, sem qualquer reprimenda do poder estatal, que lhes concede alvará de funcionamento e se beneficia da arrecadação tributária. O Direito Penal existe para proteger bens relevantes para a sociedade e esta deixou de considerar as casas de prostituição como ofensivas à moralidade pública sexual.

Demais disso, a casa de prostituição possui uma função preventiva na entrosagem da máquina social: é uma

válvula de escapamento à pressão de recusável instinto, que jamais se apaziguou na fórmula social da monogamia, e reclama satisfação até mesmo que o homem atinja a idade civil do casamento ou a suficiente aptidão para assumir os encargos da formação de um lar. Anular o meretrício, se isso fora possível, seria inquestionavelmente orientar a imoralidade para o recesso dos lares e fazer referver a libido para a prática de todos os crimes sociais. (HUNGRIA, 1959, p. 169-170).

Apesar da norma penal incriminadora hospedada no art. 229 do Código Penal estar em plena vigência, é preciso interpretá-la de forma cuidadosa para que possa ter validade e aplicabilidade em relação aos fatos da vida real. Conclui-se que a punição da casa de prostituição consubstancia uma violência absolutamente despropositada, devendo o Estado intervir, nessa seara, por outros meios mais adequados e menos lesivos à liberdade.

7. Argumentos contrários à aplicação dos princípios ao crime de casa de prostituição

O julgado em exame, na esteira da doutrina e jurisprudência majoritárias, nega aplicação ao postulado da adequação social ao crime de casa de prostituição, e o faz ancorado numa sequência de raciocínio sólida e congruente.

Primeiramente, importante destacar que a norma penal não pune a pessoa que se prostitui, porquanto se confere ao ser humano o direito de fazer uso do seu próprio corpo da maneira que melhor lhe aprouver, em consonância com o direito à liberdade individual. Contudo, é fundamental frisar que a liberdade sexual (nela inserida a disposição do próprio corpo para fins libidinosos mediante paga) não se confunde com a exploração da liberdade sexual alheia. Enquanto o Direito Penal não criminaliza a ofensa àquele bem jurídico, em função do princípio da lesividade (que impede a punição da autolesão), tipifica as condutas que violem este objeto jurídico, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF).

Por isso, em que pese se extrair da ementa transcrita que o crime de casa de prostituição protege a moralidade sexual e os bons costumes, em verdade o tipo penal visa impedir a exploração da liberdade sexual alheia. Isso porque, como “moral” e “direito” não se confundem, o Direito Penal não tem como escopo punir condutas que atentem tão somente contra o sentimento ético da coletividade.

Demais disso, os estabelecimentos em que ocorrem exploração sexual são dos mais propícios para a disseminação de inúmeros outros ilícitos, tais como a prostituição infanto-juvenil, o porte ilegal de armas de fogo e o tráfico de drogas.

É muito importante diferenciar adequação social com mera leniência ou indulgência. Aquilo que pode ser tolerado por um setor da sociedade jamais será, só por isso, socialmente adequado. (ESTEFAM, 2010, p. 122). Essa é a razão que leva o Supremo Tribunal Federal a entender que o postulado não se presta a descriminalizar a casa de prostituição. Pelo mesmo motivo é que as Cortes Superiores entendem pela persistência da tipicidade (formal e material) também nos casos de jogo do bicho (STF, RE 608.425/MG, Rel. Min. Ayres Britto, DJe 02/08/2010), de descaminho praticado por camelô (STF, HC 45.153/SC, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ 26/11/2007) e de violação de direitos autorais por venda de DVDs piratas (STF, HC 98.898/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 21/05/2010).

A prostituição é tolerada como uma fatalidade da vida social, mas a ordem jurídica faltaria à sua finalidade se deixasse de reprimir aqueles que contribuem para o fomento dessa mazela da sociedade.

Nessa toada, o legislador foi criterioso ao tipificar a casa de prostituição, pois o art. 229 busca impedir que pessoas sem escrúpulos se beneficiem da miséria alheia, incentivando a prostituição e obtendo ganho fácil em detrimento da dignidade sexual alheia.

A tolerância ou a omissão de algumas autoridades em reprimir o ilícito penal não tem a capacidade de ab-rogar ou derrogar a norma legal. Disso decorre que é manifesta a inadequação social da conduta de explorar a prostituição alheia, não podendo jamais motivar a licitude do comportamento. A indiferença social tampouco traduz causa excludente da ilicitude ou mesmo da culpabilidade.

Apesar da efetiva aplicação da norma penal incriminadora da casa de prostituição estar em desuso, a aceitação social de um fato reputado criminoso em razão da reiterada prática não tem o condão de descriminalizá-lo (CAPEZ, 2008, p. 97). Nesse diapasão:

O princípio da adequação social [...] destina-se precipuamente ao legislador, orientando-o na escolha de condutas a serem proibidas ou impostas, bem como na revogação de tipos penais. Embora sirva de norte para o legislador, que deverá ter a sensibilidade de distinguir entre [sic] condutas consideradas socialmente adequadas daquelas que estão a merecer a reprimenda do Direito Penal, o princípio da adequação social, por si só, não tem o condão de revogar tipos penais incriminadores. Mesmo que sejam constantes as práticas de algumas infrações penais, cujas condutas incriminadas a sociedade já não mais considera perniciosas, não cabe, aqui, a alegação, pelo agente, de que o fato que pratica se encontra, agora, adequado socialmente. Uma lei somente pode ser revogada por outra, conforme determina o caput do art. 2o da Lei de Introdução ao Código Civil. (GRECO, 2010, p. 54).

Ademais, a manutenção do crime no ordenamento jurídico pátrio, mesmo com o advento da Lei nº 12.015/09, demonstrou a inequívoca vontade do legislador em manter criminalizada a conduta. Nesse contexto, deve prevalecer a vontade do legislador em detrimento da opinião do julgador quando o assunto é definição de tipos penais, em respeito à garantia da lex populi derivada do princípio da legalidade.

Cabe somente ao legislador o papel de revogar ou modificar a lei penal em vigor, de modo que não se aplica o princípio da adequação social à casa de prostituição. Não compete ao Poder Judiciário descriminalizar conduta tipificada formalmente pela legislação penal e que se encontra em conformidade com os princípios que preservam sua tipicidade material.

Descabe potencializar o que transparece como óptica de grande parte da população e concluir pela insubsistência do tipo penal. A tolerância notada quanto à prostituição não leva a entender-se como derrogado o art. 229 do Código Penal. É preciso pagar um preço por se viver em um Estado Democrático de Direito (o respeito às regras estabelecidas), e esse custo é módico. Somente assim se faz possível a paz na vida gregária no seio social.

8. Conclusão

Do exame dos argumentos supraexpostos, é fácil perceber que a questão sobre a atipicidade material do crime de casa de prostituição (em razão da incidência dos princípios da fragmentariedade e da adequação social) está longe de ser pacificada, sendo controvertida tanto na doutrina quanto na jurisprudência.

No que se refere especificamente ao Supremo Tribunal Federal, cujo julgado mais recente sobre o tema é objeto do presente estudo, constata-se que foi firmado entendimento no sentido de afastar a aplicação dos referidos postulados ao delito sexual.

A decisão em estudo pretende demonstrar que, conquanto alguns juristas caracterizem a inaplicabilidade da adequação social ao crime de casa de prostituição como pensamento conservador e injustificável nos tempos modernos, não se pode esquecer que se vive em um Estado Democrático de Direito que preza pelo respeito às normas, que são editadas pelo Poder Legislativo.

Como se não fosse suficiente, a descriminalização da casa de prostituição pelos costumes fere de morte um princípio basilar do Direito Penal, qual seja, o da legalidade. Como se depreende do julgado indicado, a descriminalização é tarefa do legislador, e não do julgador, cuja missão cinge-se em aplicar a lei.

Ao se considerar a argumentação procedida, conclui-se que a problemática é polêmica e enseja um constante debate em todas as instâncias públicas, de maneira a compatibilizar o sentimento social do justo com a necessidade de se preservarem valores e bens jurídicos fundamentais à sociedade.


9. Referências bibliográficas

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte especial. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 3.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1.

CONDE, Francisco Muñoz. Introducción al Derecho Penal. Barcelona: Bosch, 1975.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1.

ESTEFAM, André. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 1.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 12. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010.

GRECO, Rogério. Código Penal comentado. 4. ed. Niterói: Impetus, 2010.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959.

JAKOBS, Gunter. Derecho Penal: parte general. 2. ed. Madrid: Marcial Pons, 1997.

MASSON, Cleber Rogério. Direito Penal esquematizado. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

ROCHA, Fernando A. N. Galvão. Direito Penal: parte geral. Niterói: Impetus, 2004.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1994.

WELZEL, Hans. Derecho Penal alemán. Santiago: Jurídica de Chile, 1987.


Autor

  • Henrique Hoffmann

    Professor e coordenador de pós-graduação do CERS. Autor de livros e coordenador de coleção pela Juspodivm. Colunista do Conjur e da Rádio Justiça do STF. Professor da Escola da Magistratura Mato Grosso, Escola da Magistratura do Paraná, Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e SENASP. Coordenador do IBEROJUR no Brasil. Mestre em Direito pela UENP. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF. Bacharel em Direito pela UFMG. Delegado de Polícia Civil do Paraná. Premiado como melhor Delegado de Polícia do Brasil na categoria jurídica. Publicou mais de 25 livros e 70 artigos, e proferiu mais de 60 palestras em 17 estados. www.henriquehoffmann.com

    Textos publicados pelo autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Henrique Hoffmann. Princípios da fragmentariedade e da adequação social e crime de casa de prostituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4574, 9 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36293. Acesso em: 19 abr. 2024.