Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/38771
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A inconstitucionalidade da exigência de garantia do débito como condição de admissibilidade dos embargos à execução fiscal

A inconstitucionalidade da exigência de garantia do débito como condição de admissibilidade dos embargos à execução fiscal

Publicado em . Elaborado em .

A Lei de Execução Fiscal (Lei 6.830/80) exige a garantia do débito como condição de admissibilidade dos embargos à execução fiscal. Entretanto, tal exigência ofende a Constituição, devendo ser declarada não recepcionada.

INTRODUÇÃO

A Lei 6.830/1980 disciplina a execução fiscal no Brasil.  A execução fiscal é um procedimento especial no processo brasileiro, objetivando a satisfação dos créditos tributários e não tributários do Fisco, através da execução de títulos extrajudiciais, consubstanciados em certidões de dívida ativa. Trata-se de legislação anterior a Constituição Federal de 1988, prevendo normas com esta incompatível. Entretanto, nossa doutrina e jurisprudência se omitem na declaração da inconstitucionalidade ou não recepção das disposições legais viciadas, mormente na violação do direito de defesa. Far-se-á uma análise do procedimento diferenciado da execução fiscal, e  demonstrar-se-á a inconstitucionalidade da exigência da garantia do débito como condição de admissibilidade dos Embargos à Execução Fiscal.


1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A doutrina clássica divide o processo em três espécies: de conhecimento ou declaratório, de execução e cautelar.

O processo de conhecimento por sua vez pode ser meramente declaratório, constitutivo ou condenatório. A primeira hipótese objetiva a declaração da existência ou inexistência de uma relação jurídica. A segunda tem como escopo a criação, modificação ou extinção de uma relação jurídica. E a última, visa o reconhecimento da violação de um direito com a imposição de uma sanção, que poderá ser uma obrigação de dar, fazer ou não fazer.

Somente o processo de conhecimento condenatório, sancionatório, permite posterior execução coativa, em caso de descumprimento de seu mandamento. Referida execução, anteriormente processo autônomo, hodiernamente,  se opera em regra como uma mera fase do processo, no que se denomina processo sincrético (cognitivo-executivo). A fase procedimental executiva é chamada de cumprimento de sentença.

Cumpre observar que a sentença condenatória forma o denominado título executivo judicial, o qual será o objeto da execução. O art. 475-N do Código de Processo Civil elenca os títulos executivos judiciais. Entretanto, ao lado deste, há o titulo executivo extrajudicial, que  prescinde de prévio processo judicial, e que consequentemente será executado em processo executivo autônomo. Os títulos executivos extrajudiciais são documentos públicos ou particulares a que a lei concede força executiva. Estão descritos no art. 585 do Código de Processo Civil.

O processo executório visa garantir o direito do autor, consubstanciado no título executivo, judicial ou extrajudicial, mediante a prática de atos materiais de satisfação. A execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação certa, líquida e exigível (art. 586 CPC).

Por fim, temos o processo cautelar, que almeja a realização de medidas para resguardar a eficácia do provimento final do processo de conhecimento ou executivo, uma vez que a demora da prestação jurisdicional pode gerar a perda de sua utilidade.

Neste contexto, a execução fiscal, disciplinada pela Lei 6.830/1980, surge como procedimento especial de execução, para a satisfação dos créditos tributários e não tributários da Fazenda Pública, através da execução de certidão de dívida ativa, título executivo extrajudicial nos termos do art. 585. inc. VII do Código de Processo Civil.

Nos termos do art. 2ª da Lei 6.830/1980 constitui dívida ativa da Fazenda Pública aquela definida como tributária ou não tributária na Lei 4.320/1964. Esclarece o parágrafo 1º da Lei 6.830/80 que se considera dívida ativa a cobrança de qualquer valor atribuído a Fazenda Pública, ou seja, União, Estados Membros, Distrito Federal, Município e  autarquias. O rol apresentado pela Lei 4.320/1964 não é taxativo.

 Por sua vez, o Código Tributário Nacional define em seu art. 201 a dívida ativa tributária, in verbis: “Constitui dívida ativa tributária a proveniente de crédito dessa natureza, regularmente inscrita na repartição administrativa competente, depois de esgotado o prazo fixado, para pagamento, pela lei ou por decisão final proferida em processo regular”.

Eduardo Sabbag define dívida ativa como[1]:

A dívida ativa não tributária representa os créditos a que faz jus a Fazenda Pública, tais como originários de foros, laudêmios, aluguéis, preços públicos, indenizações, além de outros. Por sua vez, a dívida ativa tributária refere-se a tributos, seus adicionais e multas decorrentes do seu não pagamento.

Do Termo de Inscrição de Dívida Ativa, se extrai a Certidão de Dívida Ativa, a qual deverá conter os requisitos do art. 2º, §5º e § 6º da Lei 6.830/1980:

§ 5º - O Termo de Inscrição de Dívida Ativa deverá conter:

I - o nome do devedor, dos co-responsáveis e, sempre que conhecido, o domicílio ou residência de um e de outros;

II - o valor originário da dívida, bem como o termo inicial e a forma de calcular os juros de mora e demais encargos previstos em lei ou contrato;

III - a origem, a natureza e o fundamento legal ou contratual da dívida;

IV - a indicação, se for o caso, de estar a dívida sujeita à atualização monetária, bem como o respectivo fundamento legal e o termo inicial para o cálculo;

V - a data e o número da inscrição, no Registro de Dívida Ativa; e

VI - o número do processo administrativo ou do auto de infração, se neles estiver apurado o valor da dívida.

§ 6º - A Certidão de Dívida Ativa conterá os mesmos elementos do Termo de Inscrição e será autenticada pela autoridade competente.

O art. 202 do CTN também estabelece os requisitos da certidão de dívida ativa, não havendo divergências dignas de nota.

A dívida ativa regularmente inscrita goza de presunção de certeza e liquidez. A presunção é relativa, admitindo prova em contrário, a cargo do executado ou de terceiro a quem aproveite (art. 3º da Lei 6.830/80).


2. PROCEDIMENTO DA EXECUÇÃO FISCAL

A execução fiscal é proposta no domicílio do devedor, se não o tiver, no de sua residência ou no lugar onde for encontrado. Havendo mais de um devedor, a Fazenda Pública poderá escolher o foro de domicílio de qualquer um dos devedores. O Fisco ainda poderá optar pelo foro do lugar do fato gerador (art. 578 CPC).

Proposta a execução fiscal, a posterior mudança de domicílio não desloca a competência já fixada (Súmula 58 do STJ).

As execuções fiscais da Fazenda Nacional (União, autarquias e fundações públicas federais) devem ser propostas na Justiça Federal. Todavia, se o foro escolhido não fosse sede de Subseção Judiciária, a ação era proposta na Justiça Estadual, nos termos do art. 109, §3º da Constituição Federal e art. 15, inc. I da Lei 5.010/66. A súmula 40 do extinto TRF dispõe: “A execução fiscal da Fazenda Pública Federal será proposta perante o juiz da Comarca do devedor, desde que não seja ela sede da Justiça Federal”.

Ocorre que a Lei 13.043/2014 revogou o inc. I do art. 15 da Lei 5.010/66, extinguindo a competência delegada em execuções fiscais. Entretanto a nova regra aplica-se apenas as ações deduzidas em juízo após sua entrada em vigor. Nesse sentido a lição de Carolina Lemos de Faria[2]:

 A Lei n. 13.043/2014, publicada no Diário Oficial da União em 14 de novembro de 2014, trouxe o fim da competência delegada da Justiça Estadual para processar e julgar execuções fiscais promovidas pela União, suas autarquias e fundações públicas, porquanto revogou o inciso I do art. 15 da Lei n. 5.010/66, que previa a competência da Justiça Estadual para estas causas.

 A referida inovação legislativa tem aplicação imediata apenas para as ações ajuizadas após a sua publicação. As execuções fiscais antes de 14 de novembro de 2014 permanecerão no foro estadual, não só em face de disposição expressa no art. 75 da Lei n. 13.043/2014, mas também em decorrência do princípio do juiz natural e do princípio da perpetuatio jurisdicionis.

A competência para processar e julgar a execução fiscal a exclui de qualquer outro juízo, inclusive o falimentar (art. 5º da Lei 6.830/80).

Proposta a ação, o juiz proferirá despacho, determinando a citação do executado para no prazo de cinco dias pagar a dívida com os juros, multa de mora e encargos indicados na certidão de dívida ativa, ou garantir a execução (art. 8º da Lei 6.830/80). Até a sentença, a certidão de dívida ativa poderá se emendada ou substituída (art. 2º, §8º da Lei 6.830/80).

Se efetuar o pagamento do débito, o processo será extinto. Caso opte por garantir a execução, poderá se valer de depósito em dinheiro, fiança bancária ou indicar bens à penhora (art. 9º da Lei 6.830/80). Se não efetuar o pagamento ou garantir o processo, o oficial de justiça irá penhorar seus bens, tantos quantos bastem para atingir o valor do débito, observada a ordem de preferência do art. 11 da Lei 6.830/80 c/c art. 655 CPC. A penhora poderá recair em quaisquer bens, excetuado aqueles que a lei declare absolutamente impenhoráveis (art. 10 da Lei 6.830/80 c/c art. 649 CPC).

Garantida a execução fiscal, o executado será intimado da possibilidade de opor embargos à execução fiscal no prazo de 30 dias, contados do depósito, da juntada da prova da fiança bancária ou da  intimação da penhora (não da juntada do mandado) (art. 16 da Lei 6.830/80).  Os embargos à execução fiscal configuram ação autônoma de conhecimento, autuada em apartado, apensa a execução fiscal.

Não será admitida reconvenção, nem compensação, e as exceções, salvo as de suspeição, incompetência e impedimentos, serão arguidas como matéria preliminar e serão processadas e julgadas com os embargos (§3º, art. 16 da Lei 6.830/80). Observa-se que a jurisprudência atual, vem admitindo a arguição de compensação. Nesse sentido:

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Classe: ADRESP - AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RESP - 573212, Processo: 200301274899 UF: RS Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA, Data da decisão: 15/03/2005 Documento: STJ000606310, DJ DATA:25/04/2005 PÁGINA:228.  

“TRIBUTÁRIO. COMPENSAÇÃO. ALEGAÇÃO EM SEDE DE EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. POSSIBILIDADE. I - Está pacificado que, com a edição da Lei nº 8.383/91, regulamentando a compensação na esfera tributária, restou viabilizada a possibilidade de discutir sobre o instituto em sede de embargos à execução. Precedentes: REsp nº 613.757/RS; Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJ de 20/09/2004; REsp nº 395.448/PR, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJ de 16/02/2004 e REsp nº 426.663/RS, Rel. Min. DENISE ARRUDA, DJ de 25/10/2004.II - Agravos regimentais improvidos.”

Origem: STJ - SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Classe: AGRESP - AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL – 659068. Processo: 200400951503 UF: RS Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA DJ DATA:21/03/2005 PÁGINA:273, Rel Min. FRANCISCO FALCÃO.

“TRIBUTÁRIO. COMPENSAÇÃO. VALORES INDEVIDAMENTE RECOLHIDOS . ALEGAÇÃO EM SEDE DE EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. POSSIBILIDADE. I - "Supervenientemente ao art. 16, 3º, da Lei 6.830/80, criou-se, no sistema, nova modalidade de extinção do crédito tributário, a compensação, circunstância que não pode ser desconsiderada em interpretação e aplicação atual desse dispositivo. Não pode haver dúvida que, atualmente, é admissível, como matéria de embargos, a alegação de que o crédito tributário foi extinto por uma das formas de extinção prevista em lei, nomeadamente mediante compensação ou dedução, do valor devido, com valor indevidamente recolhido em período anterior, sem prejuízo do exercício, pela Fazenda, do seu poder-dever de apurar a regularidade da dedução efetuada pelo contribuinte."(REsp nº 395.448/PR, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJ de 16/02/2004). Precedentes: REsp nº 426.663/RS, Rel. Min. DENISE ARRUDA, DJ de 25/10/2004; REsp nº 613.757/RS, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJ de 20/09/2004 e REsp nº 328.616/RS, de minha relatoria, DJ de 14.06.2004. II - Agravo regimental improvido.”

Recebidos os embargos, o juiz mandará intimar a Fazenda para impugná-la no prazo de trinta dias, designando-se audiência de instrução e julgamento, salvo se os embargos versarem exclusivamente sobre matéria de direito, ou sendo de direito e de fato, a prova for documental, caso que o juiz proferirá sentença no prazo de trinta dias (art. 17 da Lei 6.830/80).

Da sentença que julgar os embargos, cabe apelação no prazo de quinze dias, salvo para o Fisco que possui prazo em dobro nos termos do art. 188 CPC. Das sentenças de primeira instância proferidas em execuções de valor igual ou inferior a 50 ORTN - Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional - caberão embargos infringentes, que serão decididos pelo próprio juiz sentenciante. O prazo para interposição é de dez dias, contados em dobro para a Fazenda (art. 34 da Lei 6.830/80).

Cumpre ainda observar que em caso de sentença de procedência nos embargos, caberá reexame obrigatório pelo Tribunal, dispensado somente nos casos de ações de valor inferior a sessenta salários mínimos (art. 475 CPC). Aplica-se subsidiariamente o Código de Processo Civil.

Os embargos não têm efeito suspensivo, podendo o juiz concedê-lo nos casos de preenchidos os requisitos do art. 739 CPC. Leciona Regina Helena Costa[3]:

Desse modo, face à aludida complementariedade dos sistemas de execução civil por título extrajudicial e fiscal vigentes, impede concluir-se pela possibilidade de concessão de efeito suspensivo aos embargos à execução fiscal, desde que comprovado o preenchimento de todos os requisitos previstos pela novel legislação processual: a) requerimento expresso do embargante nesse sentido, submetido à apreciação do juízo a quo; b) tempestividade; c) relevância dos fundamentos (plausibilidade); d) possibilidade do prosseguimento da execução causar grave dano de incerta ou difícil reparação; e) a segurança do juízo com bens suficientes para esse fim. Por conseguinte, prescindível, num primeiro momento, que a segurança do juízo corresponda ao valor integral da execução, como pressuposto de admissibilidade dos embargos, uma vez que, a qualquer momento, poderá ser determinado o reforço de penhora. No entanto, a garantia integral do débito configura um dos requisitos a serem atendidos para postular-se a concessão do efeito suspensivo aos embargos, como mencionado.

Julgados improcedentes os embargos ou se procedentes, não implicarem na extinção da execução fiscal, como por exemplo, apenas a diminuição do débito, prosseguirá a execução. Caso a garantia do juízo tenha sido feita por depósito em dinheiro, este será convertido em favor da Fazenda. Confirmada a transferência o processo será extinto em razão do pagamento.  O mesmo se dá em caso de fiança bancária.

Contudo, havendo penhora de bens, estes serão levados a leilão, cujo produto da arrematação será destinado ao pagamento do débito, aplicando-se as subsidiariamente as regras previstas no Código de Processo Civil (art. 23 da Lei 6.830/80).

Destaca-se que se até a sentença, a inscrição de dívida ativa for a qualquer título cancelada, a execução fiscal será extinta sem qualquer ônus para as partes (art. 26 da Lei 6830/80).

Ressalta-se que pode o executado não pagar e nem garantir a execução, e que não sejam localizados bens passíveis de penhora pelo Oficial de Justiça. Nessa hipótese, aplicar-se-á o art. 40 da Lei 6.830/80:

Art. 40 - O Juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa recair a penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição.

§ 1º - Suspenso o curso da execução, será aberta vista dos autos ao representante judicial da Fazenda Pública.

§ 2º - Decorrido o prazo máximo de 1 (um) ano, sem que seja localizado o devedor ou encontrados bens penhoráveis, o Juiz ordenará o arquivamento dos autos.

§ 3º - Encontrados que sejam, a qualquer tempo, o devedor ou os bens, serão desarquivados os autos para prosseguimento da execução.

§ 4o Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato. (Incluído pela Lei nº 11.051, de 2004)

§ 5o  A manifestação prévia da Fazenda Pública prevista no § 4o deste artigo será dispensada no caso de cobranças judiciais cujo valor seja inferior ao mínimo fixado por ato do Ministro de Estado da Fazenda. (Incluído pela Lei nº 11.960, de 2009)

O executado também poderá se defender na execução fiscal através da exceção ou objeção de pré-executividade, instrumento que não exige a garantia da execução fiscal. Porém, este meio de defesa é restrito, cabível somente nas matérias passíveis de reconhecimento de ofício pelo juiz e que não demandem dilação probatória, tais como prescrição e decadência. Nesse sentido a Súmula 393 do STJ. Oportuno frisar, que a jurisprudência não faz distinção entre objeção e exceção de pré-executividade, utilizando-se de ambos vocábulos no mesmo sentido. A exceção, segunda doutrina majoritária, não tem previsão legal, sendo criação jurisprudencial.

Ademais, poderá o executado se valer de ação de repetição do indébito, mandado de segurança ou ação anulatória do débito fiscal (art. 38 da Lei 6830/80). Embora não previsto na lei, é cabível ainda ação declaratória da inexistência do débito fiscal. Outrossim, restou superada pela jurisprudência a exigência de depósito preparatório do valor do débito para ajuizamento das ações. A dedução em juízo dessas, independe de depósito do valor do débito. A existência deste apenas terá o condão de suspender a exigibilidade do crédito e consequentemente obstar a propositura da execução fiscal ou se já proposta, suspender seu andamento nos termos do art. 151 CTN. Nesse sentido:

Ação anulatória de débito fiscal. Deposito prévio. Art. 38 da lei de execuções fiscais (lei 6830/80). Pressuposto da ação anulatória de ato declaratório da divida ativa e o lançamento do crédito tributário, não havendo sentido em protrai-lo ao ato de inscrição da divida. O deposito preparatório do valor do débito não e condição de procedibilidade da ação anulatória, apenas, na circunstancia, não e impeditiva da execução fiscal, que com aquela não produz litispendência, embora haja conexidade. Entretanto, a satisfação do ônus do deposito prévio da ação anulatória, por ter efeito de suspender a exigibilidade do crédito (art.151, II do CTN), desautoriza a instauração da execução fiscal. Recurso extraordinário não conhecido. (STF, RE 103.400/SP, DJ 01-02-1985).

O antigo Tribunal Federal de Recursos também já havia se pronunciado sobre a matéria, consolidando o entendimento da inexigibilidade de garantia do débito, exposto na súmula 247.


3.  INCONSTITUCIONALIDADE DA EXGÊNCIA DE GARANTIA DO DÉBITO COMO CONDIÇÃO DE ADMISSIBILIDADE DOS EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL

A Lei 6.830/1980, em seu art. 16, §1º dispõe que: “não são admissíveis embargos do executado antes de garantida a execução”. A exigência de garantia do débito para exercício do direito de ação e  defesa afronta a Constituição Federal de 1988.

A Constituição Federal de 1988 garante o livre acesso ao judiciário, prevendo em seu art. 5º, inc. XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Trata-se do denominado Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição, também chamado de Princípio do Livre Acesso ao Judiciário ou direito de ação ou defesa.

Segundo este princípio, todo aquele que tiver sofrido ou for ameaçado de sofrer lesão a seu direito, tem a garantia de socorrer-se ao Poder Judiciário. Nada poderá impedir intervenção do Poder Judiciário, bem como limitar-se ou condicionar-se o seu acesso.

Entretanto, o acesso ao Judiciário não se restringe ao direito de ação, mas implica também na garantia do direito de defesa. José Afonso da Silva assevera que[4]:

O art. 5º, XXXV, consagra o direito de invocar a atividade jurisdicional, como direito público subjetivo. Não se assegura aí apenas o direito de agir, o direito de ação. Invocar a jurisdição para a tutela de direito é também direito daquele contra quem se age, contra quem se propõe a ação. Garante-se a plenitude de defesa, agora mais incisivamente assegurada no inc. LV do mesmo artigo.

Segundo Liebman, em seu Mannuale di diritto processuale civille[5]:

 O poder de agir em juízo e o de defender-se de qualquer pretensão de outrem representam a garantia fundamental da pessoa para a defesa de seus direitos e competem a todos indistintamente, pessoa física e jurídica, italianos (brasileiros) e estrangeiros, como atributo imediato da personalidade e pertencem por isso à categoria dos denominados direitos cívicos.

Intrinsicamente ligada a inafastabilidade da Jurisdição estão as garantias do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.

Proclama a Constituição Federal, art. 5º, inc. LIV: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” e inc. LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Os princípios declinados asseguram que somente teremos nossa esfera individual invadida mediante instauração de um processo formal, o qual observará o ordenamento jurídico e garantirá o exercício do direito de defesa.

Dirley da Cunha Junior define devido processo legal como “a exigência da abertura de regular processo como condição para restrição de direitos”, contraditório como “garantia que assegura a pessoa sobre a qual pesa uma acusação o direito de ser ouvida antes de qualquer decisão a respeito”, e ampla defesa como “garantia que proporciona a pessoa contra quem se imputa uma acusação a possibilidade de defender-se e provar o contrário”.[6] Assim, somente pode se falar em respeito a estes princípios quando as partes tiverem asseguradas a possibilidade de influenciaram na decisão judicial, tomando ciência do processo, sendo ouvidas e produzindo provas, mediante regras pré-estabelecidas e em igualdade de condições.

Por sua vez, Celso Ribeiro Bastos lecionando sobre o devido processo legal, diz[7]:

Por ele visa-se a proteger a pessoa contra a ação arbitrária do Estado. Colima-se, portanto, a aplicação da lei. O princípio se caracteriza pela sua excessiva abrangência e quase que se confunde com o Estado de Direito. A partir da instauração deste, todos passaram a se beneficiar da proteção da lei contra o arbítrio do Estado.

Resta claro que os princípios da inafastabilidade da jurisdição, devido processo legal, contraditório e ampla defesa, estão a garantir ao indivíduo o livre acesso ao Judiciário, sem condições ou limites, para o exercício dos seus direitos. Desta forma, condicionar o ingresso dos embargos à execução fiscal, à prévia garantia do débito, ofende a Constituição Federal.

Destarte, os embargos à Execução fiscal são o meio de defesa do executado, ação em que se poderá alegar qualquer matéria de defesa, uma vez que na execução fiscal em si, somente é cabível exceção de pré-executividade, instrumento que não admite dilação probatória e em que somente se alega matérias conhecíveis de ofício pelo juiz.

Neste contexto, podemos observar que o Supremo Tribunal Federal, já reconheceu a inconstitucionalidade de se exigir à garantia do débito como condição para ingresso de recurso administrativo, editando a Súmula Vinculante nº 21: “é inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévio de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo”.

Se na esfera administrativa não pode haver limitação ao direito de defesa, condicionando-o a garantia do débito, com mais razão não poderá havê-lo como limite ao exercício do direito de defesa em juízo, uma vez que cabe ao Judiciário a solução final da lide, inclusive fazendo controle dos atos administrativos.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal também já reconheceu a inconstitucionalidade da exigência de depósito prévio como condição para ações judiciais de natureza tributária. Dispõe a Súmula Vinculante nº 28: “é inconstitucional a exigência de depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial na qual se pretenda discutir a exigibilidade de crédito tributário”.

A súmula teve como precedente a Adin 1074-3, em que se declarou a inconstitucionalidade do art. 19 caput da Lei 8.870/1994, que exige depósito prévio para ações judiciais que discutem débito com o INSS, por ofensa ao art. 5º, incs. XXXV e  LV da Constituição Federal.

O Ministro relator Eros Grau em seu voto destacou que[8]:

Por outro lado, ao dispor de forma genérica que “as ações judiciais, inclusive cautelares, que tenham por objeto a discussão de débito para com o INSS serão, obrigatoriamente, precedidas do depósito preparatório”, o artigo 19 da Lei 8.870/94, consubstancia barreira ao acesso ao Poder Judiciário. A mera leitura do texto normativo impugnado dá conta da imposição de condição à propositura das ações cujo objeto seja a discussão de créditos tributários, ainda que não esteja em fase de execução.

O Relator ainda citou parte do voto do Ministro Francisco Resek em medida cautelar na referida Adin[9]:

O que o dispositivo impugnado institui importa cerceamento do direito à tutela jurisdicional. O artigo determina que a admissão de ‘ações judiciais’ que tenham por objeto a discussão de débito para com o INSS se condiciona – obrigatoriamente – ao depósito preparatório do valor do débito cuja legalidade será discutida. Esta claro que o (sic) a norma cria séria restrição à garantia de acesso aos tribunais (art. 5º - XXXV da CF).

O que se pretende, à primeira vista, é assegurar a eventual execução. Nesta trilha, a norma não representaria grande novidade em nosso ordenamento jurídico. Entretanto, o que a singulariza é a restrição vestibular e ponderável do acesso ao Poder Judiciário. A necessidade do depósito, tal como aqui lançada, limitará o próprio acesso a primeira instância.

Da garantia de proteção judiciária decorrem  diversos princípios tutelares do processo – o contraditório, a ampla defesa, o duplo grau de jurisdição, entre outros – e o depósito aqui exigido poderá em muitos casos inviabilizar o direito de ação.

A procedência da Adin 1074 demonstra a inconstitucionalidade da exigência de garantia do débito para ingresso dos embargos à execução fiscal.  Os fundamentos expostos pelo STF aplicam-se ao caso em análise. Exigir-se garantia da dívida implica em violação aos princípios expostos.

Aliás, a súmula vinculante 28 deve ser utilizada como fundamento para a inexigibilidade da garantia do débito. Referida súmula refere-se as ações judiciais nas quais se pretenda discutir exigibilidade do crédito tributário e os embargos à execução fiscal tem esta natureza. Os Embargos à Execução Fiscal tem natureza de ação de conhecimento e se discute o crédito tributário.

Outrossim, o extinto Tribunal Federal de Recursos já havia decido a inexigibilidade de depósitos como condição para admissibilidade da ação judicial, editando a súmula 247: “Não constitui pressuposto da ação anulatória do débito fiscal o depósito de que cuida o art. 38 da Lei 6.830/80”.

Podemos ainda asseverar, que a exigência de garantia do débito  ofende ao princípio da igualdade.

O art. 5º, caput da Constituição Federal proclama que todos são iguais perante a lei.  Todavia, a moderna doutrina nos ensina que não basta a isonomia meramente formal, mas deve-se buscar a igualdade material das partes. Por igualdade material entende-se tratar igualmente os iguais, e desigualmente os desiguais, no limite de suas desigualdades, para alcançar-se a isonomia. Pedro Lenza ensina que[10]:

Deve-se, contudo, buscar não somente essa aparente igualdade formal (consagrada no liberalismo clássico), mas, principalmente, a igualdade material, uma vez que a lei deverá tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Isto porque, no Estado Social ativo, efetivador dos direitos humanos, imagina-se uma igualdade mais real perante os bens da vida, diversa daquela apenas formalizada perante a lei.

Desta forma, exigir de todos a garantia do débito, sem levar-se em consideração a diversidade da situação econômica dos indivíduos, é privilegiar aqueles que possuem melhor condição financeira. A exigência de garantia acaba por possibilitar o exercício do direito de defesa somente aos que possuem dinheiro para depósito bancário ou fiança, ou bens para oferecer a penhora.

Cumpre observar ainda, que nosso Poder Legislativo já deu o primeiro passo para garantia do direito de defesa dos executados, embora apenas naquelas execuções regidas pelo Código de Processo Civil. A Lei 11.382/2006, que alterou dispositivos do referido código, deixou de exigir a garantia do débito como condição de admissibilidade dos embargos do devedor, in verbis: “o executado, independentemente de penhora, depósito ou caução, poderá opor-se à execução por meio de embargos” (Art. 736).

O tratamento diferenciado dos procedimentos executivos, não se justifica face ao princípio da igualdade material, não há razões para exigir-se garantia do débito na execução fiscal e não exigi-lo na execução comum, ambos os executados devem ter a possibilidade de exercer o direito de defesa sem limitações ou condições. Ademais, não bastasse o tratamento diferenciado entre executados, também não se justifica a prerrogativa da Fazenda Pública de somente em suas execuções exigir-se a garantia do débito, mormente se considerarmos que a Fazenda Pública já conta com um procedimento mais célere na cobrança judicial, não se justificando maiores obstáculos a defesa. O tratamento diferenciado fere o princípio da isonomia.

Nosso legislador, ciente da inconstitucionalidade e falta de justificativa para o tratamento dispare, já iniciou o debate para alteração desta realidade. Os Projetos de Lei 2412/2007 e 5080/09, que visam a alteração da disciplina da execução fiscal, não exigem a garantia do débito como condição de admissibilidade dos Embargos. A exposição de motivos do Projeto de Lei 5080/09, expressamente corrobora nosso posicionamento[11]:

18. Para a defesa do executado adota-se o mesmo regime proposto na execução comum de título extrajudicial, onde os embargos podem ser deduzidos independentemente de garantia do juízo, não suspendendo, como regra geral, a execução.

 19. Prestigia-se, assim, o princípio da ampla defesa, que fica viabilizado também ao executado que não disponha de bens penhoráveis. Desaparece, por conseguinte, a disciplina da prévia garantia do juízo como requisito indispensável à oposição da ação incidental. 

Os projetos de leis evidenciam que a exigência de garantia de débito, não corresponde ao anseio da sociedade e nem se amoldam a Constituição Federal de 1988.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei de Execução Fiscal (Lei 6.830/80) exige a garantia do débito como condição de admissibilidade dos Embargos à Execução Fiscal. Entretanto, tal exigência ofende a Constituição Federal de 1988, devendo ser declarada não recepcionada.

Com efeito, os princípios da inafastabilidade da jurisdição, contraditório e ampla defesa e igualdade, garantem o livre e incondicionado acesso ao Poder Judiciário para o exercício do direito subjetivo de ação ou defesa.

 O Supremo Tribunal Federal, embora ainda não tenha decidido especificamente sobre o tema, já demonstrou a inconstitucionalidade destas exigências, editando as Súmulas Vinculantes números 21 e 28, bem como o Poder Legislativo já evoluiu deixando de exigir a garantia do débito nos embargos do devedor (art. 736 CPC) e debate alterações na Lei de Execução Fiscal.

Desta forma, enquanto não haja alteração legislativa ou manifestação específica da Suprema Corte sobre o tema, devemos afastar a exigência da garantia com a aplicação da Súmula Vinculante nº 28, uma vez que  os embargos à execução fiscal têm natureza de ação de conhecimento e objetiva a discussão do crédito tributário, amoldando-se à descrição da súmula.


BIBLIOGRAFIA

[1] SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2014.

[2] FARIA, Carolina Lemos. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/34801/o-fim-da-competencia-delegada-em-execucao-fiscal-promovida-pela-uniao-autarquias-e-fundacoes-publicas-federais>. Acesso em 10.02.2015.

[3] COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2014.

[4] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2000.

[5] Apud Silva, José Afonso, op. cit.

[6] JUNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Juspodivm, 2009.

[7] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.

[8] Supremo Tribunal Federal. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em 10.02.2015.

[9] Supremo Tribunal Federal. Op. cit.

[10] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2012.

[11] Câmara dos Deputados. Disponível em: www.camara.gov.br. Acesso em: 15.02.2015


Autor

  • Rodrigo Fernandes Lobo da Silva

    Analista judiciário da Justiça Federal de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade de Taubaté - Unitau . Pós Graduado lato sensu em Direito Tributário pela Anhanguera Uniderp. Pós Graduado lato sensu em Direito do Estado pela Anhanguera Uniderp. Pós Graduado Lato Sensu em Ciências Penais pela Universidade do Sul de Santa Cataria - Unisul

    Textos publicados pelo autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

, Rodrigo Fernandes Lobo da Silva. A inconstitucionalidade da exigência de garantia do débito como condição de admissibilidade dos embargos à execução fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5294, 29 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38771. Acesso em: 25 abr. 2024.