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Retroatividade ou não das normas do infortúnio laboral

aplicação do princípio "tempus regit actum"

Retroatividade ou não das normas do infortúnio laboral: aplicação do princípio "tempus regit actum"

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A Lei de Introdução ao Código Civil de 1916 ainda se encontra em vigor no Código Civil de 2002, e trata, entre vários temas, da eficácia da lei no tempo.

Como ensina DE PLÁCIDO E SILVA (Vocabulário Jurídico, 12ª Ed.-Forense- pg.523), "a irretroatividade, pois, quer exprimir que o fato novo não tem eficácia para atingir coisas que se fizeram sob o império ou domínio de fato então existente. Aplicada às leis, quer dizer que a lei nova não alcança ou não atinge, com a sua eficácia, atos jurídicos que se praticaram antes que viesse, bem assim os efeitos que deles se geraram."

Estabelece o artigo 6º da LICC, redação do "caput" de acordo com a lei 3.238, de 11.8.57, "que a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitado o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada".- § 1º - Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou."

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º-XXXVI, mandamenta que a "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

Assim, não existe proibição absoluta à eficácia retroativa, desde que se respeite o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido.

Mas, SILVIO RODRIGUES no seu livro Direito Civil, Parte Geral, vol.1., após indagar o que é a retroatividade da lei, ensina o seguinte:

"Diz-se retroativa a lei que procura alcançar os efeitos dos atos que surgiram anteriormente à sua vigência. Será justo que a lei retroaja?

Muitos espíritos liberais combatem, genericamente, a possibilidade de a lei retroagir, mas não me parece evidente a sua razão.Colin e Capitant, argumentando na defesa da lei retroativa, sustentam que, como a lei nova se supõe melhor do que a anterior, e por isso mesmo é que se inovou, deve ela aplicar-se desde logo. Tal argumento, a meu ver, é irrespondível. De resto, a lei nova atende, em geral, a um maior interesse social, devendo, por conseguinte, retroagir.

Aliás, em casos de interesse social, deve a lei nova ter aplicação imediata. Assim, por exemplo, a lei que traga um novo impedimento matrimonial, deve ser aplicada incontinenti, porque a razão que conduziu o legislador a criá-lo é de evidente interesse social. Do mesmo modo a lei que veda o divórcio, ou que o permite, deve, fora de dúvida, ter aplicação imediata. Apenas, permitindo a retroatividade da lei, deve-se preservar aquelas situações consolidadas em que o interesse individual prevalece.

Entre nós a lei é retroativa, e a supressão do preceito constitucional que, de maneira ampla, proibia leis retroativas constituiu um progresso técnico. A lei retroage, apenas não se permite que ela recaia sobre o ato jurídico perfeito, sobre o direito adquirido sobre a coisa julgada." ( obra referida, pgs. 30/31).

O jurista ALEXANDRE ISSA KIMURA, no seu livro "Constituição Federal de 1988-Apontamentos Doutrinários e Jurisprudenciais-" (Editora Juarez de Oliveira) ensina que o disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal "se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou de lei de ordem pública e lei dispositiva".(obra referida, pg. 34).

Contudo, estamos com a lição de SILVIO RODRIGUES, em que a retroatividade pode funcionar quando existe o interesse social, sendo indiscutível que as regras que versam os acidentes do trabalho têm cunho social e estão constitucionalmente protegidas (Capitulo II - Dos Direitos Sociais, artigo 7º-XXVIII).

Ninguém desconhece que em matéria de acidentes do trabalho já tivemos inúmeras legislações, desde a edição da primeira lei, assinada pelo Presidente Delfin Moreira da Costa Ribeiro, Decreto 3.724, de 15.01.1919, passando-se, sucessivamente, ao Decreto 24.637, de 10.07.1934, Decreto 7036, de 10.11.1944 (legislação que durou quase vinte anos!), Decreto lei nº 293, de 28.02.1967, Lei 5.316, de 14.09.1967, Decreto-Lei 893, de 26.09.1969, Lei 6.195, de 19.12,.1974, Lei 6.367, de 19.10.1976, lei 8.213, de 24.06.1991, sendo certo que esta última cuida de disciplina previdenciária ("Dispõe sobre os planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências"), onde o legislador enxertou regras acidentárias do trabalho, lei 9032/95 e lei 9.528/97.

Em várias oportunidades as regras acidentárias, especialmente após a estatização do seguro acidentário, foram modificadas a dano dos infortunados, beneficiando, por outro lado, o ente autárquico (Instituto Nacional do Seguro Social), o que é do amplo conhecimento de todos quantos militam na área infortunística.

Daí que é necessário se conciliar a sucessão de leis que regulam a matéria acidentária, eliminando-se possíveis conflitos para saber-se qual o estatuto que deve ser aplicado ao caso concreto. Já se viu que em matéria infortunística a edição de leis novas foi freqüente na fase de estatização, e isso, é evidente, se torna um complicador maior para aplicação das leis no tempo.

TUPINAMBÁ MIGUEL CASTRO DO NASCIMENTO (Curso de Direito Infortunístico - Sérgio Antonio Fabris Editor, 1983), ensina o seguinte: "...confrontando-se duas normas perfeitamente aplicáveis à hipótese, por incidentes, deve prevalecer aquela mais favorável ao infortunado. No confronto, terá primazia uma das regras, a mais benéfica, e não as partes mais benéficas de cada uma delas, criando-se, por simbiose, uma terceira norma. A comparação, assim, deve ser feita em conjunto e se optar por aquela que, também no conjunto, for mais favorável, embora algumas partes não o seja. Criar um terceiro dispositivo é obra exclusiva do legislador; não do intérprete. Deste princípio se extrai outro: a norma mais benéfica deve retroagir para alcançar os casos não definitivamente constituídos" ( ob.- cit.- pg. 23).

O posicionamento em favor da retroatividade das regras infortunísticas mais favoráveis ao acidentado caminha, embora com dificuldades, para ser prevalente na doutrina e julgados de nossos Tribunais.

O eminente Juiz ACLIBES BURGARELLI, com assento no 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, na apelação sem revisão 471.315-00/0, j. em 17.12.1996, no tocante ao tema da aplicação da lei nova que venha a beneficiar o obreiro, oferece preciosa lição ao mundo jurídico, na seguinte passagem:

"Esta E. 6ª Câmara tem orientado seu entendimento no sentido de que o princípio "tempus regit actum" não deve ser aplicado com o rigor comum, nas normas de direito acidentário, por causa da natureza protetiva do sistema.

O Direito classifica-se em Direito Público e Direito Privado exatamente porque se adotou o critério da certeza de que o Estado politicamente organizado, como sujeito de direito, tem direitos que dizem respeito à sua finalidade social (território, povo e ordem pública). Por essa razão se cogita do INTERESSE PÚBLICO, ao lado do INTERESSE SOCIAL.

As normas de ordem pública, visam tutelar interesse amplo que, em regra, transcende aos conflitos dos particulares, aos conflitos encontrados no Direito Privado, interpessoal.

Especificamente no que tange ao direito à vida, à saúde, à integridade física, à alimentação, à moradia e outras circunstâncias, as normas não se revestem de singeleza restrita aos particulares. Formam-se, sim, por fortes "cargas" de interesse público e daí a tendência de se proteger aos mais fracos, na relação jurídica, com o fito de se manter o equilíbrio de justiça.

A norma acidentária é protetiva, de forte "carga" de interesse público e, porque visa o equilíbrio entre o direito e à vida, à saúde e ao trabalho, estabelece hipóteses em que cabem INDENIZAÇÕES, por fatos que venham a violar referidos direitos.

Não se cuida de indenização do direito comum, do direito privado, mas sim de INDENIZAÇÃO EQUILÍBRIO – e por essa razão os valores são tarifados – de sorte a se proteger, da melhor forma o obreiro.

Dada a natureza da norma acidentária, mitiga-se o princípio "tempus regit actum", no que diz respeito à aplicação da lei acidentária nova. Diz-se que o princípio é mitigado, no sentido de que, NA PARTE EM QUE A LEI NOVA VEM A BENEFICIAR O OBREIRO, RELATIVAMENTE A ACIDENTE DO TRABALHO, APLICA-SE A LEI NOVA.

Nem se alegue que essa interpretação acarreta prejuízo à Fazenda Pública e porque o Estado sobrevive financeiramente dos tributos, sua função tributária seria sobrecarregada e, por resultado indireto, estar-se-ia no campo de outra forma de injustiça social.

Ledo engano. Se não existir paz e equilíbrio social, quanto à saúde, segurança, educação e à vida o Estado estará impossibilitado de cumprir sua função política e estará caracterizado pela deterioração de seus pilares sustentadores.

Esta é a razão pela qual o obreiro faz jus ao auxílio acidente de 50%, porque este é o critério da nova sistemática legislativa que, para ser editada, levou em conta razão de justiça social."

O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA no RECURSO ESPECIAL n.º 140.096-SP, j. em 27.10.1997, Relator Ministro Anselmo Santiago,decidiu que " A lei de acidentes do trabalho tem tido como finalidade o interesse social, dispondo que nas demandas acidentárias deve ser aplicada a lei mais benéfica. Esta Corte assim já decidiu, como nos mostra o REsp. 60.800-7-SP, Rel. Ministro Adhemar Maciel, j. em 30.05.95".

O fundamento da retroatividade benéfica reside no aspecto social da questão infortunística, exigindo proteção do beneficiário e o cunho alimentar. O infortunado normalmente é trabalhador assalariado, de parcos recursos, havido, pois, como hipossuficiente. Alcança-lhe, portanto, o disposto no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, ainda em vigor no Código atual. Nem se deve olvidar, por fim, que a proteção à saúde e a reparação se inscrevem na Constituição Federal no Título DA ORDEM SOCIAL, com especial proteção do Estado.

A questão não é simples, sendo certo que a doutrina está dividida, havendo quem adote o princípio da irretroatividade das regras acidentárias, prevalecendo o princípio "tempus regit actum", que traria maior segurança às relações jurídicas. Para nós, entretanto, deve prevalecer a corrente que postula a aplicação da lei mais benéfica em favor do acidentado, admitindo como suporte o objetivo alimentar do procedimento acidentário, cumprindo-se, como dito anteriormente, o disposto na Constituição Federal (Direitos Sociais) e artigo 5º da LICC de 1916. O conjunto de todos esses fatores justifica plenamente, segundo nosso entendimento, a exceção ao princípio geral da irretroatividade das leis.

Nem seria necessário que a própria lei dissesse de sua aplicação retroativa a uma situação jurídica anterior se, pelo império da ordem pública laborativa estabelece uma indenização diferente, mais benéfica para o trabalhador, que deve ser adotada sem demora para que se cumpra a finalidade própria da proteção infortunística.

As normas acidentárias em vigor só prevêem o ressarcimento através de auxílio-doença-acidentário (temporário, mas de prazo indefinido), auxílio-acidente (permanente= 50%) e aposentadoria por invalidez acidentária (permanente=100%). Para aquelas situações idênticas que a lei nova oferece uma retribuição mais favorável ao acidentado, somos da posição que admite a revisão do benefício, quer administrativa, quer judicialmente. Se o legislador entendeu que determinada incapacidade laborativa merece atenção especial para melhor tipo de ressarcimento, não se vê razão plausível impedir que o acidentado pleiteie a revisão de seu benefício por um apego, infundado, no princípio "tempus regit actum". Neste caso se estaria criando um descompasso odioso entre lesões iguais, autorizando-se ressarcimentos diferentes, por força de legislações diversas, aplicáveis no tempo.

A jurisprudência de nossos Tribunais não é uniforme no tocante à retroatividade benéfica, decisões havendo que prestigiam a prevalência da lei contemporânea ao fato infortunístico.

É flagrante, porém, que a jurisprudência se inclina decisivamente no sentido da aplicação da lei mais benéfica ao acidentado, a teor do que já decidiu o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 338.107-SC, relatado pelo Ministro FELIX FISCHER, j. em 18.06.2002, onde se assentou o seguinte:

"EMENTA

PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ACIDENTÁRIO. LEI NOVA MAIS BENÉFICA. APLICABILIDADE.

A lei nova que estabelece condições mais favoráveis àqueles que usufruem benefícios acidentários, tal como, v.g., o acréscimo de percentual do auxílio-acidente, aplica-se de imediato a todos os benefícios, inclusive sobre os já concedidos definitivamente, e não apenas aos futuros e pendentes.(Precedentes da Terceira Seção; EREsp 324.380/SC, Relator Min.Fernando Gonçalves).

No VOTO, o eminente Ministro Relator consignou precisamente isto:

"O entendimento da Terceira Seção, no entanto, restringiu a aplicação da lei nova apenas aos casos pendentes. Desse modo, passou-se a entender como inviável a revisão de um benefício definitivamente concedido apenas para adaptá-lo ao regime da lei superveniente, por trazer esta vantagem ao obreiro. Nesse sentido há precedentes desta Corte, de ambas as Turmas que compõem a Terceira Seção: REsp 282.825/SC, 5ª Turma, Relator Min. Edson Vidigal, DJ 18/12/00;REsp 240.476/SC, 5ªTurma, do qual fui relator, DJ 29/5/2000, REsp 240.755/SC, 6ª Turma, Rel.Min.Vicente Leal, DJU de 03/04/2000.

O caso em tela retrata exatamente essa hipótese. O autor recebe benefício acidentário com percentual definido de acordo com a legislação vigente à época do sinistro. Com a sucessão de diplomas legais ocorrida posteriormente, ajuizou a ação revisional buscando seja aplicado ao seu benefício o percentual da lei superveniente, que é superior.

É necessário, no entanto, que sejam feitas algumas observações.

O fundamento principal do entendimento adotado pela Terceira Seção, conforme se verifica das ementas acima transcritas, foi o caráter público das normas em matéria acidentária, que implicaria na sua incidência de imediato aos benefícios pendentes, mesmo com o sinistro ocorrido ainda sob o manto da lei antiga.

Ocorre que não parece arrazoado estender as vantagens da lei mais benéfica somente àqueles segurados sujos benefícios estavam pendentes quando do advento desse diploma legal. Não faz sentido premiar apenas aquele que recorreu ao Poder Judiciário ou mesmo administrativamente, somente porque tomou a iniciativa de discutir formalmente (com ou sem razão, não importa) o quantum de seu benefício ou a falta dele.

Se a norma em matéria acidentária é de natureza pública, e se por isso deve ter aplicação geral a todos aqueles que se encontram na mesma situação, não se deve estabelecer distinção não prevista em lei apenas em favor dos que foram discutir seus direitos em juízo. Caso contrário, encontraremos sem muita dificuldade diversos exemplos de obreiros com o mesmo tipo de lesão, ocorridas na mesma época, e que receberão valores diferentes só porque um deles teve "a sorte" de se ver obrigado a buscar corrigir em juízo erro na concessão do auxílio-acidente.

Com base nessas considerações, reformulo a posição que adotei no REsp 240.476/SC, DJ 29/05/2000 (já citado acima), por considerar necessária uma ampliação do entendimento consagrado na Terceira Seção, de maneira a estender a incidência da lei nova mais vantajosa não só aos benefícios pendentes, mas a todos os segurados, independentemente da lei vigente na data do sinistro.

Recentemente, a Terceira Seção, apreciando novamente o tema, veio a adotar esse entendimento.

Nesse sentido:

"PREVIDENCIÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA AUXÍLIO-ACIDENTE. BENEFÍCIO CONCEDIDO ANTES DA LEI Nº 9032/95. ALTERAÇÃO.

1.- Consoante entendimento da Terceira Seção a retroatividade da lei previdenciária mais benéfica abrange também as situações consolidadas.

2.- O percentual de 50% (cinqüenta por cento) estabelecido pela lei 9032/95, que altera o § 1º, do art. 86, da lei nº 8.213/91, se aplica aos benefícios já concedidos sob a égide da legislação anterior.

3.- Nova orientação pretoriana.

4.-Embargos de Divergência conhecidos e rejeitados."

( EREsp 324.380/SC, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJU de 03/06/2002).

Portanto, os benefícios acidentários concedidos em legislações passadas e que, perante as normas acidentárias em vigor outorgam ao acidentado uma situação melhor, notadamente no que diz respeito ao percentual de incapacidade laborativa, forma de cálculo das prestações, etc, permitem a revisão administrativa ou judicial, para se adequarem ao novo modelo legal, o que virá estabelecer um patamar de igualdade com aqueles trabalhadores que, em idênticas situações, estão a postular direitos na vigência da lei nova.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Hertz Jacinto. Retroatividade ou não das normas do infortúnio laboral: aplicação do princípio "tempus regit actum". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3915. Acesso em: 26 abr. 2024.