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Dos sistemas processuais penais

Dos sistemas processuais penais

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Já é possível afirmar que o Brasil ostenta um sistema acusatório em seu processo penal?

 

1.Introdução

Propõe-se, através do presente artigo, expor as principais características dos sistemas processuais penais. Far-se-ão, deste modo, algumas breves digressões, pautando-se, contudo, na análise do aspecto jurídico, que é o foco do trabalho.

Expostas as peculiaridades dos sistemas inquisitivo, acusatório e misto, discorrer-se-á sobre o modelo adotado pelo Direito Brasileiro, tecendo-se algumas críticas às classificações mais comuns adotadas por parte da doutrina pátria.

Assim, mais que uma simples exposição acerca dos traços inerentes aos modelos processuais estudados, trar-se-ão, com base na melhor doutrina, algumas indagações fundamentais a uma conclusão mais densa de qual sistema, de fato, é adotado pelo ordenamento jurídico pátrio.

Optou-se por seguir a advertência feita por Paulo Rangel quando, em seu Direito Processual Penal, começa a tratar do assunto sistemas processuais. Segundo o autor, grande equívoco metodológico seria dar início à exposição sem, antes, trazer ao conhecimento a epistemologia da palavra “sistema”.

Nesse passo, acatando-se as lições de Paulo Rangel, transcrever-se-ão algumas definições constantes do Dicionário Aurélio:

Significado de Sistema:

1 Conjunto de princípios verdadeiros ou falsos reunidos de modo que formem um corpo de doutrina.

[...]

5 Conjunto de meios e processos empregados para alcançar determinado fim.

6 Conjunto de métodos ou processos didáticos.

7 Método, modo, forma.

[...][1] (sem grifo no original)

Pois bem, valendo-se das definições supracitadas, é possível compreender, mutatis mutandis, que um sistema processual é, também, um conjunto de regras, por meio do qual o Estado atua, fazendo corporificar, através do processo, sua identidade estrutural.  Ou seja, é através do processo que o Estado faz valer suas normas.

Paulo Rangel, com a precisão que lhe é peculiar, discorrendo sobre o tema, afirma que “sistema processual penal é o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas para a aplicação do direito penal a cada caso concreto.”.[2]

O Processo, pode-se afirmar, para ser considerado “bom”, deve seguir uma ordem, deve ter estabelecidas suas regras de forma clara, precisa. Não basta, pois, possuir tão somente esses requisitos, é preciso mais; importante, afora isso, é seguir à risca “as regras do jogo”, do contrário, de nada adianta. Ora, ter garantias e não as respeitar é o mesmo que não as ter. 

Feitas algumas considerações introdutórias, passar-se-á, neste momento, ao estudo dos sistemas processuais em específico.


2.Dos sistemas processuais

2.1.Do sistema inquisitivo

A abordagem desse tema passa, inexoravelmente, por uma rápida remissão à história, principalmente àquele período denominado por muitos de “período das trevas”. Com efeito, a maioria da doutrina cita, como exemplo, quando aborda o sistema inquisitivo, o Tribunal da Inquisição ou Santo Ofício, criado no transcurso do século XIII para reprimir todo tipo de comportamento contrário aos ensinamentos da Igreja Católica.

Entretanto, embora o objetivo do presente trabalho seja a análise dos aspectos jurídicos, como dito no introito do artigo, nada obsta que alguns pontos históricos sejam destacados. Assim, tem-se com Ronaldo Vainfas uma crítica à simples menção do Tribunal da Inquisição como único e principal fato característico do sistema inquisitivo.

Clara Maria Roman Borges, citando Vainfas, assinala “ao contrário do que afirmam os processualistas que enveredam por uma análise pretensamente histórica dos sistemas processuais, os genericamente nominados métodos inquisitoriais de inquirir e processar, tais como o sigilo na formação do processo, o acolhimento de denúncias imprecisas, o anonimato das testemunhas, a prática da tortura na obtenção de confissões e a admissão da confissão como prova máxima não eram exclusividade ou originários dos processos do Santo Ofício, uma vez que eram amplamente utilizados tanto pelos inquisidores como pelos juízes seculares.”.[3]

Continua a autora, “Neste sentido, é possível afirmar que o emprego da tortura nos ditos “réus negativos” era um procedimento judiciário previsto nos códigos de toda a Europa, veja-se que na legislação francesa do século XVII regulava-se desde o momento de aplicá-la até os instrumentos, o tamanho da corda, o peso dos chumbos e outros detalhes sórdidos.”.[4]

Visto não haver necessidade de associar, de forma absoluta, o sistema inquisitivo ao Santo Oficio, porquanto essas práticas eram previstas nos códigos de toda Europa, importante, agora, deixando-se em segundo plano a abordagem histórica, discorrer sobre os traços jurídicos característicos deste sistema, cotejando-o, em verdade, como sistema que é, e não o vinculando a um fato isolado na longa história do Direito que está, desde o início dos tempos, intrinsecamente ligada à da própria humanidade.

No que tange aos aspectos jurídicos, o sistema processual inquisitivo caracteriza-se por ser antidemocrático, autoritário; nos dias atuais, por que não se dizer, inconcebível. Ora, aqui – no sistema inquisitivo –, se tem um “super juiz”, visto que se atribuem ao magistrado diversas funções, e não só a que é verdadeiramente sua, qual seja, a de julgar.

O juiz não consegue, nem que queira, ser imparcial, porquanto é o verdadeiro administrador, gestor do processo, incumbindo-lhe investigar, acusar, defender e julgar. Esse sistema peca, ainda, por carecer de coerência lógica.

Aury Lopes Jr., com a maestria que lhe é peculiar, elenca como sendo

[…] da essência do sistema inquisitivo a aglutinação de funções na mão do juiz e atribuição de poderes instrutórios ao julgador, senhor soberano do processo. Portanto, não há uma estrutura dialética e tampouco contraditória. Não existe imparcialidade, pois uma mesma pessoa (juiz-ator) busca a prova (iniciativa e gestão) e decide a partir da prova que ela mesma produziu.[5]

Por fim, dentre os vários argumentos que sustentam o “fracasso” do sistema ora em estudo, Aury Lopes Jr., citando GOLDSMHIDT, diz ser uns dos principais o erro psicológico, pois é inconcebível crer que uma pessoa possa exercer funções tão antagônicas como investigar, acusar, defender e julgar. 

Pondo-se termo ao presente tópico, importante destacar as principais características do sistema inquisitivo.

São elas, a saber:

a) concentração de poder na mão do juiz que exerce, também, como se disse, as funções de acusador e julgador;

b) a confissão do réu é considerada a rainha das provas. Vigora, aqui, o conhecido sistema da prova tarifada;

c) não há debates orais, ao revés, predominam os procedimentos exclusivamente escritos;

d) os julgadores não estão sujeitos à recusa;

d) o procedimento é sigiloso;

e) o juiz é parcial;

f) não há contraditório;

g) e, por fim, a defesa é meramente simbólica.

2.2. Do sistema acusatório

Preliminarmente, destaca-se que, por ser tema muito denso, com muitas observações relevantes a serem feitas, o presente tópico terá como escopo a exposição dos traços característicos desse tipo de sistema, ressaltando-se, contudo, que, quando da exposição do sistema processual adotado pelo Direito Pátrio, inexoravelmente, haverá de se retornar a esse ponto do artigo, a fim de que, por meio de paralelos e comparações, se possa, com profunda reflexão, identificar se o Brasil adota, como muitos afirmam, este modelo como sistema processual.

Bem, ao se discorrer sobre o sistema acusatório, impossível não começar expondo sua principal característica, qual seja, a divisão de tarefas. Se no sistema inquisitivo reúnem-se as funções na mão do “juiz-soberano”, aqui, ao reverso, tem-se (deve-se ter) um magistrado menos ator, ou melhor, nada ator, e sim espectador.

 Ora, para se ter um processo justo, o mínimo que se espera é que quem o conduza seja imparcial, dando às partes o mesmo tratamento, as mesmas chances de atuar no processo. Destarte, ao se dividir as tarefas, procura-se dar ao julgador condições psicológicas de decidir com menos influências externas.

Bem nesse sentido, por ter trabalho de valor singular, impossível não se fazer uso das palavras de Aury Lopes Jr., para quem os sistemas processuais devem ser vistos com olhar de complexidade e não mais com o olhar de Idade Média.

Dissertando sobre o tema, Aury afirma:

[...] que a configuração do “sistema processual” deve atentar para a garantia da ‘imparcialidade do julgador’, a eficácia do contraditório e das demais regras do devido processo penal, tudo isso à luz da Constituição. Assegura a imparcialidade e a tranquilidade psicológica do juiz que irá sentenciar, garantido o trato digno e respeitoso com o acusado, que deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva do processo penal.[6]   

Em continuação, conclui Aury que:

Em última análise, é a separação de funções e, por decorrência, a gestão da prova nas mãos das partes e não do juiz (juiz-espectador), que cria as condições de possiblidade para que a imparcialidade se efetive. Somente no processo acusatório-democrático, em que o juiz se mantém afastado da esfera de atividade das partes, é que podemos ter a figura do juiz imparcial, fundante da própria estrutura processual.[7]

Em conclusão, vislumbra-se que o “bem” maior em um processo penal democrático é imparcialidade daquele que proferirá a sentença. Isto porque, como se sabe, não há neutralidade, tendo em vista que, quando o juiz se depara com o processo, ele, inevitavelmente, fará uma valoração com suas experiências, ideologias e paixões. Ora, negar isso é negar o caráter humano do julgador. Impossível, pois, falar-se em neutralidade. Contudo, a imparcialidade – que é a igualdade de tratamento, a paridade de armas etc. –, além de possível, é exigível.

Como se afirmou no início do tópico, a conclusão do sistema acusatório não se esgotará aqui, pois, quando da análise do sistema adotado pelo Brasil, através dos paralelos que serão feitos, entender-se-á melhor o que se iniciou neste trecho do texto.

Para encerrar, ainda momentaneamente, a explanação do processo acusatório, expõem-se suas principais peculiaridades:

a)Separação entre o órgão acusador e o julgador;

b)Liberdade de acusação;

c)Liberdade de defesa;

d)Isonomia entre as partes no processo;

e)Publicidade do procedimento;

f)Presença do contraditório;

g)Possibilidade de recusa do juiz;

h)A produção de provas se dá de forma livre; e

i)Imparcialidade do magistrado.    

2.3.Do sistema misto

Surgido após a Revolução Francesa, o sistema misto, segundo a doutrina, uniu – por isso mesmo misto – os sistemas inquisitivo e acusatório. Assim, diz-se que ele é composto por duas fases: uma preliminar, instrutória, de caráter inquisitivo; e outra – fase de julgamento – com a observância do contraditório.

Hidejalma Muccio, em seu curso de processo penal, explica detalhadamente as etapas integrantes do processo de tipo misto. Segundo o autor:

Três são as etapas desse processo: a) investigação preliminar (de la policie judiciaire), em que se tem o procés verbaux; b) instrução preparatória (instruction préparatoire); c) a fase de julgamento (de jugement). As funções de acusar, defender e julgar são entregues a pessoas distintas. Na fase do julgamento, o processo é oral, público e contraditório (oralement, publiquement et contradictoirement), contudo, as duas primeiras fases são secretas e não-contraditórias. No processo de tipo misto ou acusatório formal, na fase da investigação preliminar e da instrução preparatória, observa-se o processo de tipo inquisitivo e na fase de julgamento o processo de tipo acusatório.[8]

 Didaticamente está perfeita tal explicação. Todavia, como o objetivo desse artigo não é tão somente expor o óbvio, far-se-ão, data máxima venia, algumas críticas a essa exposição menos aprofundada.

Argumenta-se na doutrina que não há um sistema verdadeiramente puro, porquanto esses “modelos puros” são históricos, não havendo correspondência com os atuais. Acontece, entretanto, que dizer que o sistema é misto é pouco ou quase nada falar sobre ele. Isso é assim, visto que, hodiernamente, todo sistema é “misto”. O que se deve levar em conta é o núcleo fundamental que predomina neste ou naquele sistema.

Deste modo, se há a presença de um juiz mais atuante, tem-se, por óbvio, um processo com caráter inquisitivo; por outro lado, se o magistrado é mais inerte, ou seja, “espectador”, tem-se um sistema com viés acusatório.

De modo geral, quer-se concluir pela impossibilidade de conceituar (de forma rígida) o sistema misto, pois, como se disse, para entendê-lo, faz-se necessário saber qual a “medida” de sua composição. Nesse passo, exemplificando-se, se um sistema é composto de “30% acusatório + 70% inquisitivo”, por óbvio, conquanto seja “misto”, terá claramente um maior enfoque inquisitivo.

Assim, encerrando-se o presente tópico, vale a pena conferir o que JACINTO COUTINHO, citado por Aury Lopes Jr., diz sobre a questão:

Não há – e nem pode haver – um princípio misto, o que, por evidente, desconfigura todo o sistema. Para o autor, os sistemas, assim como os paradigmas e os tipos ideais, não podem ser mistos; eles são informados por um princípio unificador. Logo, na essência, o sistema é sempre puro. E explica, na continuação, que o fato de ser misto significa ser, na essência, inquisitório ou acusatório, recebendo a referida adjetivação por conta dos elementos (todos secundários), que de um sistema são emprestados ao outro.[9]

Em conclusão, conquanto se afirme que não existam sistemas puros, se se levar em conta o raciocínio de Jacinto Coutinho, que tem muita coerência, todos os sistemas, em verdade, são puros. A questão não seria identificar o sistema de per se, mas, sim, verificar qual o seu núcleo informador. Somente assim, adotando-se essa posição, se conseguir-se-á evitar que sistemas inquisitivos sejam bem quistos sob o argumento de serem “mistos”.


3.Qual sistema o Direito Brasileiro adotou?

É chegado o momento de expor qual modelo, de fato, foi adotado pelo Brasil. Espera-se, destarte, conseguir, não obstante as divergências doutrinárias, chegar a uma conclusão hígida. Nesse sentido, por meio de comparações, procurar-se-á identificar quais as características do sistema processual pátrio e, depois, compará-las com as correspondentes nos sistemas já estudados. Sem retórica alguma, far-se-ão, somente com as informações expostas, confrontações para, ao final, buscar, se é que seja possível, uma resposta à pergunta título do presente tópico. 

Pois bem, no Brasil, para que se possa punir alguém, deve haver, por força do princípio da necessidade, um devido processo penal – nulla poena sine judicio. Destarte, conforme se lê nos diversos manuais de processo penal, para que Estado exercite seu jus puniendi, há a chamada persecução penal, que é o caminho percorrido para a imposição da sanção àquele que violou as normas penais incriminadoras.

A persecução penal, no sistema pátrio, é composta por duas fases: a primeira – o inquérito policial – é um procedimento de natureza administrativa, de caráter inquisitivo (não há contraditório), cujo objetivo é angariar elementos de informação que sirvam de subsídio ao titular da ação penal, para que este possa ingressar em juízo; já a segunda fase – o processo judicial propriamente dito – é onde ocorrerá a produção de provas, onde haverá o contraditório e a ampla defesa, enfim, há nessa fase o cumprimento de todas as garantias constitucionais. 

Por essa exposição inaugural, é possível afirmar, ainda que de forma intuitiva, que no Brasil adota-se o sistema misto ou, como também é conhecido, acusatório formal. Certamente, se se adotar essa postura, não haverá “equívoco”, visto que vozes fortes na doutrina afirmam ser o sistema brasileiro acusatório formal – ou misto, como se disse alhures.

 Nesse sentido, por todos, cita-se Guilherme de Souza Nucci que, dissertando sobre o tema, afirma peremptoriamente:

O sistema adotado no Brasil, embora não oficialmente, é o misto. Registremos desde logo que há dois enfoques: o constitucional e o processual. Em outras palavras, se fôssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituição Federal, poderíamos até dizer que nosso sistema é acusatório (no texto constitucional encontramos princípios que regem o sistema acusatório). Ocorre que nosso processo penal (procedimento, recursos, provas, etc.) é regido por Código específico, que data de 1941, elaborado em nítida ótica inquisitiva (encontramos no CPP muitos princípios regentes do sistema inquisitivo, como veremos a seguir).

Logo, não há como negar que o encontro dos dois lados da moeda (Constituição e CPP) resultou no hibridismo que temos hoje. Sem dúvida se trata de um sistema complicado, pois é resultado de um Código de forte alma inquisitiva, iluminado por uma Constituição Federal imantada pelos princípios democráticos do sistema acusatório. Por tal razão, seria fugir à realidade pretender aplicar somente a Constituição à prática forense. Juízes, promotores, delegados e advogados militam contando com um Código de Processo Penal, que se estabelece as regras de funcionamento do sistema e não pode ser ignorado como se inexistisse. Essa junção do ideal (CF) com o real (CPP) evidencia o sistema misto.[10]

Torna-se difícil sustentar a adoção, pelo Brasil, do sistema acusatório. De fato, muito se tem a evoluir para se chegar a esse sistema, que é o ideal em um estado Constitucional e Democrático de Direito. Malgrado os fortes argumentos levantados por Nucci, há grande parte da doutrina, senão a maioria, que afirma ser o sistema acusatório o adotado pelo direito pátrio.

Para alguns autores, determinados “detalhes” do Código de Processo Penal não desnaturam a característica acusatória do sistema processual brasileiro. Nesse sentido, vale a pena conferir os escólios de Eugênio Pacceli que, em seu Curso de Processo Penal, aduz:

A doutrina brasileira costuma referir-se ao modelo brasileiro de sistema processual, no que se refere à definição da atuação do juiz criminal, como um sistema de natureza mista, isto é, com feições acusatórias e inquisitoriais. Alguns alegam que a existência do inquérito policial na fase pré-processual já seria, por si só, indicativa de um sistema misto; outros, com mais propriedade, apontam determinados poderes atribuídos aos juízes no Código de Processo Penal como justificativa da conceituação antes mencionada (NUCCI, 2005, p.101). [...] Com efeito, não é porque o inquérito policial acompanha a denúncia e segue anexado à ação penal que se pode concluir pela violação da imparcialidade do julgador ou pela violação ao devido processo legal. [...] De todo modo, e, sobretudo, a partir da possibilidade de participação do acusado e de seu defensor no ato do interrogatório, não vemos como não se reconhecer, ou não vemos por que abdicar de um conceito acusatório de processo penal na atual ordem constitucional. (Sem grifo no original)[11]

Em que pese a autoridade do autor, com ele, data máxima venia, não se pode concordar. Ora, momento algum a doutrina se refere, para dizer que o sistema pátrio não acusatório, somente à questão de o inquérito seguir, ou não, a denúncia e a ação penal. Entrar em celeuma tão grande como essa, tendo somente esse argumento, seria empresa deveras arriscada, fadada ao insucesso.

A questão vai muito mais além. Como se viu, para haver um sistema acusatório é importante verificar se há ou não a divisão de tarefas. Sem essa divisão de tarefas, compromete-se a imparcialidade do julgador, e o processo, que era para ser algo ordenado, com cada parte agindo nos limites da lei e fazendo o que lhe incumbe, vira uma coisa sem limites, sem parâmetros. É por isso que se busca, no sistema acusatório, que cada um faça o que lhe compete. Acusação, acusando; defesa, defendendo; e julgador, julgando (só julgando!).

 Ademais, não é porque o acusado tem direito a participar do processo com um defensor lhe dando suporte que o sistema será o acusatório. Ora, até mesmo no processo inquisitivo, embora simbólica, havia a defesa. O ponto fulcral da questão, repita-se, é a posição adotada pelo juiz. O juiz deve ser imparcial! Não deve pender para lado algum, sob pena de ofensa ao postulado do due process of law.

Expor-se-ão alguns “pequenos detalhes” que, na visão de alguns doutrinadores, em nada prejudicam a imparcialidade do juiz. Assim, como exemplo, citam-se: a) possiblidade de conversão, ex officio, da prisão em flagrante em preventiva, consoante o art. 310, CPP; b) possibilidade de decretação da prisão preventiva de ofício no curso do processo (observação pertinente é feita por Aury Lopes Jr. Para ele, “o problema não está na fase, mas, sim, no atuar de ofício![12]); c) busca e apreensão, art. 242; d) sequestro, art. 127; e) ouvida de testemunhas, além do número indicado pela defesa e acusação, art. 209; f) possibilidade de fazer o interrogatório do réu a qualquer tempo, art. 196; g) determinação de diligências, ex officio, durante a faze processual, bem como até mesmo na investigação preliminar, art. 156, I e II, CPP; h) reconhecimento de agravantes ainda que não tenham sido alegadas pela acusação, art. 385 (clara sentença ultra petita, haja vista que o juiz concede além do que lhe foi pedido); i) possiblidade de condenar o acusado, ainda que o parquet tenha postulado sua absolvição, art. 385, CPP. Ora, “Condenar sem pedido é violar, inequivocamente, a regra do fundante do sistema acusatório que é o ne procedat iudex ex officio.”.[13] 

Por todos esses exemplos – que não foram exauridos, ressalte-se –, pergunta-se: será mesmo que se adotou no Brasil o sistema acusatório?

Ora, a título de argumento, indaga-se: se o juiz deve ser inerte, espectador, para que conceder-lhe o poder de determinar diligências de ofício durante a fase processual ou, até mesmo, extrapolando os limites do razoável, em sede de investigação preliminar?

É consabido, e isso se aprende nas primeiras aulas de Direito Penal, que há um princípio em Direito chamado in dubio pro reo, e que, por esse preceito, estando o magistrado em dúvida, deve absolver. E mais, a condenação somente pode se dar quando houver juízo de certeza. Assim, pergunta-se: se o magistrado não tem certeza, vale dizer, se está em dúvida, não precisa requerer diligências, basta absolver; a menos que queira, de fato, “achar” algo que incrimine o acusado.

Nessa senda, Aury Lopes Jr., dissertando sobre a Teoria da dissonância cognitiva, observa:

É elementar que ao se atribuir poderes instrutórios ao juiz, fere-se de morte a imparcialidade, pois ‘quem procura, procura algo’ (Geraldo Prado). Transforma-se o processo em uma encenação simbólica, pois o juiz– desde o momento em que decide ir atrás da prova de ofício – já tem definida a hipótese acusatória como verdadeira. Logo, com ensina Franco Cordero, esse juiz não decide a partir dos fatos apresentados no processo, senão da hipótese acusatória inicialmente eleita (pois se fosse a defensiva ele não precisava ir atrás da prova). Quando o juiz, em dúvida, afasta o in dubio pro reo e opta por ir atrás da prova (juiz-ator=inquisidor), ele decide primeiro e depois vai atrás dos elementos que justificam a decisão que ele já tomou. Portanto, ‘ele é a prova’ e, depois, decide a partir da prova por ele mesmo produzida. Sem falar que a dúvida deve dar lugar a absolvição (o in dubio pro reo é fruto de evolução civilizatória!) e, quando um juiz afasta essa regra de julgamento e decide ‘ir atrás da prova’, não é preciso maior esforço para compreender que está buscando prova para condenar, pois se fosse para absolver, ele parava no momento anterior... [14]

Afirmar que o Brasil adotou o sistema acusatório, olvidando-se de todos os argumentos supramencionados é, de duas, uma: ou se está incorrendo em ingenuidade, ou se está a sofismar, visto que não há como negar o viés inquisitivo que impregna o CPP.

Destarte, em conclusão, como se viu, não é correto afirmar que o Brasil adota um sistema acusatório, tampouco, consoante as lições de Jacinto Coutinho, misto. Assim, “Pensamos que o processo penal brasileiro é essencialmente inquisitório, ou neoinquisitivo se preferirem, para descolar do modelo histórico medieval. Ainda que se diga que o sistema brasileiro é misto, a fase processual não é acusatória, mas inquisitória ou neoinquisitória, na medida em que o princípio informador é o inquisitivo, pois a gestão da prova está nas mãos do juiz.”.[15]


4. Conclusão

Por tudo que foi exposto, nota-se que não há consenso na doutrina brasileira acerca de qual o sistema adotado pelo Direito Pátrio. Muitos autores de renome na seara jurídica sustentam com maestria suas posições, adotando, para tanto, relevantes argumentos.

Com efeito, embora haja certa celeuma, não se pode negar que o Direito Brasileiro vem, ainda que a passos lentos, evoluindo. Hoje, por exemplo, para se poder aplicar qualquer norma jurídica a algum caso concreto, deve-se, obrigatoriamente, fazer uma interpretação à luz da Constituição Federal.

Nesse passo, hodiernamente, tendo em vista o espírito democrático da Carta Cidadã de 88, não se pode dela descuidar um segundo sequer, sob pena de, por negligencia aos seus mandamentos, incidir em retrocesso, atravancando a tão querida evolução levada a afeito quando de sua elaboração.

Destaca-se, por fim, sobretudo em Direito Penal e Processo Penal, a importância da observação aos princípios informadores da CF, ela, sim, como era de se esperar, adotou um sistema acusatório, com todas as garantias processuais que devem alicerçar um Estado Constitucional e Democrático de Direito. Contudo, como alerta Guilherme de Souza Nucci, não obstante os princípios constitucionais, o operador do direito lida, diariamente, com um Código de Processo Penal do outro milênio, esse código – antigo e de espírito inquisitivo – é, portanto, sua ferramenta de trabalho.

A priori, deve-se tentar conformar, através de uma leitura constitucional, os diplomas ou, como sugere Aury Lopes Jr., “fazer uma ‘filtragem constitucional’ dos dispositivos incompatíveis com o princípio do acusatório (como o art. 156, 385 etc.), pois são “substancialmente inconstitucionais[16]”.

Em arremate, como solução, conclui o autor “Assumido o problema estrutural do CPP, a luta passa a ser pela acoplagem constitucional e pela filtragem constitucional, expurgando de eficácia todos aqueles dispositivos que, alinhados ao núcleo inquisitório, são incompatíveis com a matriz constitucional acusatória.”.[17]


5.Bibliografia

BORGES, Clara Maria Roman. Um olhar para além dos sistemas processuais penais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 104/2013, p. 147 Set / 2013.

DICIONÁRIO AURÉLIO. http://dicionariodoaurelio.com/sistema. Acesso em 02 de julho de 2015, às 08h58min.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015

__________http://www.conjur.com.br/2014-jul-11/limite-penal-dissonancia-cognitiva-imparcialidade-juiz. Acesso em 15/07/15 às 21h40min.

___________http://www.conjur.com.br/2014-dez-05/limite-penal-juiz-nao-condenar-quando-mp-pedir-absolvicao. Acesso em 15/07/15 às 21h03min.

MUCCIO, Hidejalma. Curso de processo penal. Bauru/SP: Edipro, 2000.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 9.ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 16. ed. atual. de acordo com as leis nº 12.403, 12.432, 12.461, 12.483 e 12.529, todas de 2011, e Lei Complementar nº 140, de 8 de dezembro de 2011. São Paulo: Atlas, 2012.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal.10. ed. rev., ampl. e atualizada de acordo com: - EC 45/04. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005.


Notas

[1]http://dicionariodoaurelio.com/sistema. Acesso em 02 de julho de 2015, às 08h58min.

[2]RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal.10. ed. rev., ampl. e atualizada de acordo com: - EC 45/04. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005.  p.49.

[3]BORGES, Clara Maria Roman. Um olhar para além dos sistemas processuais penais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 104/2013, p. 147 Set / 2013.

[4]Ibidem.

[5]LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 42.

[6] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 44.

[7] Ibdem.

[8] MUCCIO, Hidejalma. Curso de processo penal. Bauru/SP: Edipro, 2000. p.65

[9] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. págs. 46 e 47.

[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 9.ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 126.

[11] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 16. ed. atual. de acordo com as leis nº 12.403, 12.432, 12.461, 12.483 e 12.529, todas de 2011, e Lei Complementar nº 140, de 8 de dezembro de 2011. São Paulo: Atlas, 2012. p. 13 e 15.

[12] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 48.

[13] http://www.conjur.com.br/2014-dez-05/limite-penal-juiz-nao-condenar-quando-mp-pedir-absolvicao. Acesso em 15/07/15 às 21h03min.

[14] http://www.conjur.com.br/2014-jul-11/limite-penal-dissonancia-cognitiva-imparcialidade-juiz. Acesso em 15/07/15 às 21h40min.

[15] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 47.

[16] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 49.

[17] Ibidem. p. 49.

 


Autor

  • Filipe Maia Broeto Nunes

    Advogado Criminalista e professor de Direito Penal e Processo Penal, em nível de graduação e pós-graduação. Professor Convidado da Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal da PUC-Campinas. Mestre em Direito Penal (sobresaliente) com dupla titulação pela Escuela de Postgrado de Ciencias del Derecho/ESP e pela Universidad Católica de Cuyo – DQ/ARG. Mestrando em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Internacional de La Rioja – UNIR/ESP e em Direito Penal Econômico e da Empresa pela pela Faculdade de Direito da Universidade Carlos III de Madrid - UC3M/ESP. Especialista em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG e também Especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT-IBCCRIM. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes - UCAM, em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC/PT-IBCCRIM, em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes - UCAM e em Compliance Corporativo pelo Instituto de Direito Peruano e Internacional – IDEPEI e Plan A – Kanzlei für Strafrecht, Alemanha (Curso reconhecido pela World Compliance Association). Foi aluno do curso “crime doesn't pay: blanqueo, enriquecimiento ilícito y decomiso”, da Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca – USAL/ ESP, e do Módulo Internacional de "Temas Avançados de Direito Público e Privado", da Universidade de Santiago de Compostela USC/ESP. Membro da Câmara de Desagravo do Tribunal de Defesa das Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Mato Grosso - OAB/MT; Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM; do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico - IBDPE; do Instituto de Ciências Penais - ICP; da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB/MT; Membro efetivo do Instituto dos Advogados Mato-grossenses - IAMAT e Diretor da Comissão de Estudos Jurídicos da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Abracrim. Autor de livros e artigos jurídicos, no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected].

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NUNES, Filipe Maia Broeto. Dos sistemas processuais penais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5332, 5 fev. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41014. Acesso em: 25 abr. 2024.