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Desconsideração inversa da personalidade jurídica

Desconsideração inversa da personalidade jurídica

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A expressão “desconsideração inversa da personalidade jurídica” é utilizada pela doutrina e jurisprudência como sendo a busca pela responsabilização da sociedade no tocante às dívidas ou aos atos praticados pelos sócios.

Sumário: 1. Introdução. 1.1 Desconsideração inversa. 1.2 A eficácia específica da personalidade jurídica. 1.3. Pressupostos essenciais para a utilização da desconsideração inversa. 1.4. Aplicação dos princípios da desconsideração da personalidade jurídica. 1.5. Efeitos da desconsideração inversa. 2. Considerações finais. 3. Bibliografia.


Introdução.

A expressão “desconsideração inversa da personalidade jurídica” é utilizada pela doutrina e jurisprudência como sendo a busca pela responsabilização da sociedade no tocante às dívidas ou aos atos praticados pelos sócios, utilizando-se par a isto, a quebra da autonomia patrimonial.

A desconsideração inversa da pessoa jurídica é um desmembramento da teoria da desconsideração, cuja sede normativa precípua é o art. 50 do CC/2002.

Nesse norte, Fábio Ulhôa Coelho define da seguinte forma: “desconsideração inversa é o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio”.

Na desconsideração inversa, a responsabilidade ocorre no sentido oposto, isto é, os bens da sociedade respondem por atos praticados pelos sócios.

Desta forma a personalidade jurídica estaria servindo como escudo para a defesa do executado frente à execuções que lhe era movida.

Nesse caso, serão aplicados os mesmos princípios da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

A compreensão da desconsideração inversa tem dois pressupostos:

  1. A personalidade jurídica, ou mais propriamente a eficácia desta na criação de sujeitos de direitos e patrimônios autônomos e distintos de seus sócios.
  2. A desconsideração da personificação jurídica, ou a limitação da eficácia específica da personificação.

A eficácia específica da pessoa jurídica são seus efeitos jurídicos de criar um centro autônomo de imputação de direitos e deveres, passando a ter personalidade, capacidade e patrimônio distintos de seus membros. A desconsideração tem um duplo papel, como uma forma de se atacar os efeitos da personalidade jurídica sem se prejudicar sua existência e continuidade e também como mecanismo de inibição de abuso e fraude desta.

A desconsideração inversa foi introduzida no Brasil dentro do grupo de casos que motivaram sua justificação teórica. Já sua incorporação na jurisprudência sinalizou uma ampliação ainda maior de sua aplicação, efeitos e escopo funcional, firmando sua natureza de princípio jurídico, não de regra como geralmente atribuído à desconsideração direta.

A aplicação da desconsideração inversa quando aplicada nos tribunais, assim denotou incidência sobre uma grande quantidade de situações que não mais guardavam identidade entre si e somente seguiam uma vaga lógica funcional de inibição do uso disfuncional da pessoa jurídica.


Desconsideração inversa.

A par da construção tradicional da desconsideração da personalidade jurídica, com responsabilização de sócios ou administradores por obrigações da sociedade vem se discutindo a possibilidade de aplicação da desconsideração no sentido inverso, isto é, “o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio”.

Em outras palavras, - “a desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para contrariamente ao que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador.

Com efeito é possível que o sócio use uma pessoa jurídica para esconder o seu patrimônio pessoal dos credores, transferindo-o por inteiro à pessoa jurídica e evitando com isso o acesso dos credores a seus bens. Em muito desses casos será possível visualizar a fraude (teoria maior subjetiva), ou a confusão patrimonial (teoria maior objetiva) e, em razão disso, vem sendo admitida a desconsideração inversa para responsabilizar a sociedade por obrigações pessoais dos sócios. O mesmo raciocínio da desconsideração tradicional é usado aqui para evitar o mau uso da pessoa jurídica.

É interessante expor que a desconsideração inversa da personalidade jurídica poderá ser aplicada no Direito de Família.

Caracteriza-se a desconsideração inversa quando é afastado o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio, como, por exemplo, na hipótese de um dos cônjuges, ao adquirir bens de maior valor, registrá-los em nome de pessoa jurídica sob o seu controle, para livrá-los da partilha a ser realizada nos autos da separação judicial. Ao se desconsiderar a autonomia patrimonial, será possível responsabilizar a pessoa jurídica pelo devido ao ex-cônjuge do sócio.

Relativamente à desconsideração da personalidade jurídica em sentido inverso, quem primeiramente tratou do tema foi o Prof. Fábio Konder Comparato, trazendo com prodigiosa propriedade a lição que:

“137. Aliás, essa desconsideração da personalidade jurídica não atua apenas no sentido da responsabilidade do controlador por dívidas da sociedade controlada, mas também em sentido inverso, ou seja, no da responsabilidade desta última por atos do seu controlador. A jurisprudência americana, por exemplo, já firmou o princípio de que os contratos celebrados pelo sócio único, ou pelo acionista largamente majoritário, em benefício da companhia, mesmo quando não foi a sociedade formalmente parte no negócio, obrigam o patrimônio social, uma vez demonstrada a confusão patrimonial de facto”.

Impõe-se, ainda, rechaçar que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica inversa só pode ser aplicada se for demonstrada a transferência de bens do patrimônio particular do sócio controlador-devedor para a pessoa jurídica. Isto porque, frustradas as diligências realizadas, exsurge evidente que, na condição de “dono” ou “sócio de fato” ou “controlador” das sociedades, seja demonstrado a retira da caixa, mediante expedientes lícitos ou ilícitos, formais ou informais, o necessário para a sua manutenção e de sua família. Ao lado disso, revela-se imprescindível lançar mão dos entendimentos jurisprudenciais emanados pelos Tribunais de Justiça, os quais são utilizados como verdadeiro sedimento, porquanto, ao se manifestarem sobre situações concretas, amoldam as normas genéricas e abstratas, bem como traçam linhas diretivas a serem observadas. Assim, colhem-se os seguintes:

“Ementa: Agravo de Instrumento. Desconsideração da Personalidade Jurídica. Possibilidade. Assim, diante das inúmeras e infrutíferas tentativas de localizar bens em nome dos executados capazes de garantir o juízo executório, bem como da confusão havida entre o patrimônio de seu sócio majoritário, ao lado de sua esposa, e da sociedade que o mesmo integra, possível afigura-se a desconsideração inversa da personalidade jurídica determinada na origem.  Em decisão monocrática, dou provimento ao agravo de instrumento.” (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Vigésima Câmara Cível/ Agravo de Instrumento Nº. 70041914102/ Rel. Desembargador Glênio José Wasserstein Hekman/ Julgado em 04.04.2011)  (destaquei)

“Ementa: Apelação Cível. Locação. Embargos de Terceiros. Penhora. Desconsideração de Personalidade Jurídica Reconhecida, na forma inversa. Existência de dados fáticos que autorizam a incidência do instituto. Possibilidade da penhora de bens da empresa autorizada diante das circunstâncias excepcionais comprovadas nos autos e já destacadas pela sentença, que vai confirmada por seus fundamentos. APELO IMPROVIDO.” (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul - Décima Sexta Câmara Cível/ Apelação Cível Nº 70017992256/ Rel. Desembargadora Helena Ruppenthal Cunha/ Julgado em 07.03.2007).


A eficácia específica da personalidade jurídica.

A pessoa jurídica é instituto jurídico que cria um sujeito autônomo com esferas patrimoniais e subjetivas distintas e estanques da de seus membros. Dentro desta lógica temos que um dos efeitos da personalidade jurídica é a total independência patrimonial e individual desta em relação ao sócio. Este efeito foi central à noção da pessoa jurídica e por largo tempo se mostrou intocável. A idéia foi construída analogicamente à pessoa natural. Como sistema jurídico era construído sobre a noção individualista de esferas pessoais e patrimoniais autônomas, estanques e separadas da pessoa natural, a personalidade jurídica foi construída para igualmente se beneficiar destes efeito.

A criação da desconsideração inversa, tal como a desconsideração direta, foi efetivada por uma lógica funcional da pessoa jurídica. A tese de José Lamartine de Oliveira parte de seu trabalho clássico sobre a “dupla crise” da pessoa jurídica é que a crise funcional ocorre devido à possibilidade do uso antijurídico, seja por fraude ou abuso.

Para Lamartine a desconsideração é o principal sintoma da crise funcional denotando o descompasso axiológico entre o uso da personalidade jurídica e os valores do ordenamento. A desconsideração foi então situada como mecanismo de coibição do abuso da personalidade jurídica e seu uso além das finalidades admitidas pelo Direito.

Criada como forma de relativizar esta separação e autonomia absoluta da personalidade jurídica, a desconsideração incide sobre o efeito da autonomia e separação patrimonial da pessoa jurídica, estendendo a responsabilidade para os sócios. A desconsideração entretanto teve seu escopo progressivamente ampliado, em consonância coma ampliação da crise funcional da pessoa jurídica.

Tendo como pressuposto que a desconsideração é uma limitação da eficácia da personalidade jurídica desconsiderando a esfera patrimonial autônoma da sociedade para atingir a do sócio; a desconsideração inversa seria a desconsideração dos efeitos da autonomia patrimonial derivados não da personalidade jurídica da sociedade, mas sim da do sócio. A esfera patrimonial desconsiderada em prol de outra é da pessoa do sócio, não da sociedade responsabilizada (que em verdade tem sua esfera patrimonial afirmada dentro da obrigação).

Enquanto os sócios podem ser pessoas jurídicas, os primeiros casos de desconsideração inversa se impuseram sobre sócios que eram pessoas naturais. Isto coloca a teoria inversa da desconsideração na assimétrica posição de muitas vezes limitar os efeitos da personalidade natural, quando inserida em contexto societário. Criada através de uma interpretação teleológica focada nos efeitos de extensão da responsabilidade da desconsideração, a desconsideração inversa passa a agir sistematicamente através de uma pouco confortável lógica de limitação dos efeitos patrimoniais da personalidade natural.

Essa ampliação do escopo da aplicação delimitados na desconsideração inversa, e os efeitos da pessoa jurídica enquanto separação patrimonial entre sociedade e sócios, é repetida na jurisprudência ampliando-se o uso da desconsideração da inversa dos casos de uso abusivo ou ilícito da personalidade jurídica para uma gama ampla de situações, muitas vezes correspondentes a outros institutos.


Pressupostos essenciais para a utilização da desconsideração inversa.

Para ser aplicada, a desconsideração inversa da personalidade jurídica deverá restar caracterizado o desvio de bens, a fraude ou abuso de direito por parte dos sócios que se utilizam da personalidade jurídica para transferir ou esconder bens, prejudicando assim os credores, ou ainda, em casos de separação judicial, onde se verifica o esvaziamento do patrimônio do casal como forma de burlar a meação.

Diante disso, para que haja a desconsideração inversa da personalidade jurídica, o ordenamento jurídico impõe que seja observado a existência dos pressupostos essenciais para a aplicação desta modalidade de desconsideração que usualmente vem a ser empregada pelos julgadores no Direito de Família.

Para isso, será aplicada a desconsideração inversa na esfera familiar quando o cônjuge empresário esconde-se sob as vestes da pessoa jurídica, vislumbrando fraude à partilha matrimonial e, por conseqüência, encobrir a capacidade econômica e financeira da pessoa física, equiparando o sócio à sociedade.

Outra hipótese para a desconsideração inversa da personalidade jurídica pode ser verificada nos casos em que o sócio obtém o absoluto controle dos bens da sociedade, ou seja, é constituída uma sociedade para a guarnição do ativo, ficando o passivo na responsabilidade da pessoa do sócio. Diante disso, terceiros que contratam o sócio poderão deduzir de acordo com a teoria da aparência, que por residir em endereço luxuoso e possuir carros de alto valor, o sócio seja pessoa merecedora de crédito, porém, estes bens, que aparentemente poderiam ser de sua propriedade, pertencem à pessoa jurídica.


Aplicação dos princípios da desconsideração da personalidade jurídica.

Para haver a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica serão observados a existência de fraude, simulação ou abuso na utilização da personalidade jurídica por parte dos sócios.

Diante do exposto, a desconsideração inversa vem sendo usualmente aplicada no âmbito do Direito de Família. Para que esta seja utilizada pelo magistrado, deverão estar presentes os pressupostos essenciais da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que por sua vez, também são da desconsideração inversa.

Nesse contexto, Rolf Madaleno (1998, p. 27), acerca da desconsideração inversa no Direito de Família e a aplicação dos princípios da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, afirma:

“É larga e procedente a sua aplicação no processo familiar, principalmente frente à constatação nas disputas matrimoniais, do cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, se não todo, o rol mais significativo de seus bens (...) quando o marido transfere para a sua empresa o rol significativo de seus bens matrimoniais, sentença final de cunho declaratório haverá de desconsiderar esse negócio específico, flagrada a fraude ou o abuso, havendo, em conseqüência, como matrimoniais esses bens, para ordenar a sua partilha no ventre da separação judicial, na fase destinada a sua divisão, já considerados comuns e comunicáveis”.

Dessa forma, a pessoa jurídica e os sócios poderão responder por uso abusivo, simulado ou fraudulento da sociedade, tanto diretamente como inversamente, podendo ser atingidos os bens sociais, no tocante à responsabilização do sócio, ou do cônjuge empresário, no caso do Direito de Família, em que haverá a responsabilização no tocante aos bens matrimoniais.

Nesse mesmo sentido, Fábio Ulhôa Coelho (2014, p. 44-45) ao comentar acerca da desconsideração inversa afirma:

“Trata-se de responsabilizar a sociedade por dívidas do sócio, caso este, para perpetrar fraudes a seus próprios credores, transfere seus bens para a empresa, continuando a fruí-los livremente (...) A desconsideração inversa pode vir a ser medida de extrema utilidade em matéria de Direito de Família, considerando a possibilidade de um dos cônjuges transferir bens de valor para a empresa que integre, com o escopo de fraudar futura partilha”.

A aplicação da desconsideração inversa, da mesma forma que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, não visa a anulação da personalidade jurídica, mas apenas a declaração da ineficácia para determinado ato.

Faz-se necessário expor que o princípio da separação da personalidade jurídica da sociedade e dos sócios, ou princípio da autonomia da vontade, não será destruído, atingindo apenas o episódico sem atingir a validade do ato constitutivo da sociedade.


Efeitos da desconsideração inversa.

Em razão da utilização ilícita da pessoa jurídica será aplicada a desconsideração inversa da personalidade jurídica, que acarretará efeitos: a quebra do princípio da autonomia patrimonial, o alcance dos bens patrimoniais da sociedade e a partilha dos bens do casal.

Ao separar a pessoa jurídica da pessoa física de seu sócio, estabelecendo desta forma, patrimônios e responsabilidades diversas, estabeleceu-se por sua vez, uma ampla forma de utilização indevida da pessoa jurídica, sendo instrumento de fraude para prejudicar terceiros.

Nesse sentido, Rubens Requião (1969, p.14) em trabalho pioneiro no Brasil assegura: “Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos”.

Portanto, o princípio da separação do sócio e da sociedade é relativizado quando o sócio utiliza este princípio como anteparo para prática de fraude, abuso e simulação.

Assegura Luiz Guilherme Marinoni e Lima Júnior (2001, p.155) em artigo publicado na Revista dos Tribunais que: ”(...) o afastamento da forma externa da pessoa moral permite que se busque no patrimônio pessoal dos sócios a satisfação dos créditos frustrados. Dessa forma, todos aqueles que, valendo-se do manto societário, agiram de modo fraudulento ou abusivo (...) responderão pelos créditos insatisfeitos dos credores sociais”.

A quebra da autonomia patrimonial é, sem sombra de dúvidas, um avanço e uma proteção maior ao instituto da pessoa jurídica e esta proteção está na aplicação da desconsideração inversa. O jurista Rolf Serick citado por Rubens Requião (1969, p.17), afirma “(...) quem nega a personalidade é quem dela abusa, pois quem luta contra semelhante desvirtuamento é quem a afirma”. Desse modo, como visto na doutrina e jurisprudência, a proteção da personalidade jurídica está positivada de tal forma a evitar malícia ou desvirtuamento em sua utilização.

Outro efeito da aplicação da desconsideração inversa é o alcance dos bens que se encontrem na esfera da pessoa jurídica por intermédio de manobras fraudulentas dos sócios.

Como pôde ser visto nos itens acima, a desconsideração inversa é utilizada não só no Direito Comercial como também no campo do Direito de Família, estando autorizada quando há a transferência do patrimônio particular do devedor, para assim burlar a obrigação ou dever de alimentar, para o patrimônio da empresa, onde o devedor é sócio.

Diante disso, a desconsideração inversa da personalidade jurídica poderá ser aplicada, pois os atos dos sócios serão atribuídos à pessoa jurídica.

Outro exemplo da aplicação da desconsideração inversa e o efetivo alcance dos bens transferidos à sociedade ocorrerá quando se busca a majoração da pensão alimentícia baseada no aumento da fortuna do alimentante e na necessidade do alimentado. Nesse caso, o devedor de alimentos dissimula a sua condição de sócio majoritário da pessoa jurídica e transfere grande parte do capital social para interposta pessoa, para numa revisão de alimentos afirmar que não é sócio majoritário, mas apenas um mero prestador de serviços à sociedade, buscando ao final, o não aumento da pensão alimentícia.

Dessa forma, dar-se-á o alcance dos bens do devedor quando o sócio da sociedade ou pessoa jurídica, mantém sob esta o controle total sobre os seus órgãos administrativos, concretizando assim, com maior eficácia, a fraude do desvio de bens.

Diante disso, Fábio Ulhoa Coelho (2014. p.45) arremata:

“(...) O devedor transfere seus bens para a pessoa jurídica sobre a qual detém absoluto controle. Desse modo, continua a usufruí-los, apesar de não serem de sua propriedade, mas da pessoa jurídica controlada. Os seus credores, em princípio, não podem responsabilizá-lo executando tais bens. É certo que, em se tratando de pessoa jurídica de uma sociedade, ao sócio é atribuída a participação societária, isto é, quotas ou ações representativas de parcelas do capital social. Essas são em regra penhoráveis para a garantia do cumprimento das obrigações do seu titular(...)”.

Como exposto na doutrina e jurisprudência, a desconsideração inversa da personalidade jurídica possui como um de seus efeitos o efetivo alcance dos bens patrimoniais da sociedade, quando esta for utilizada como “esconderijo” de bens que eram antes de propriedade do sócio e sua família e também nos casos, onde o sócio em questão detém o absoluto controle da sociedade. Isto ocorre, contudo, em decorrência de manobras fraudulentas, visando assim, acobertar o seu patrimônio pessoal, transferindo-o para uma pessoa jurídica, maculando o princípio da autonomia patrimonial.

A desconsideração inversa da personalidade jurídica pode ser observada e aplicada largamente no campo do Direito de Família, como exposto acima, para descobrir a finalidade ilícita que a sociedade encobre, adentrando através do disfarce societário onde o sócio se esconde, para assim, frustrar o resultado abusivo e fraudulento o qual se pretendeu alcançar com a sociedade.

Para isso, Fábio Ulhôa Coelho (1999, p.45) explica: “A desconsideração invertida ampara, de forma especial, os direitos de família. Na desconstituição do vínculo de casamento ou união estável, a partilha dos bens comuns pode resultar fraudada. Se um dos cônjuges ou companheiros, ao adquirir bens de maior valor, registra-os em nome da pessoa jurídica sob o seu controle, eles não integram, sob o ponto de vista formal, a massa familiar. Ao se desconsiderar a autonomia patrimonial, será possível responsabilizar a pessoa jurídica pelo devido ao ex-cônjuge ou ex-companheiro do sócio, associado ou instituidor.

Nesse condão, para se ver livre e dispensado de prestar contas da circulação dos bens comuns, o cônjuge transfere todo e qualquer patrimônio para o rol de bens da pessoa jurídica que é administrada por ele, facilitando o trânsito do parceiro empresário. Seguindo a mesma linha, o cônjuge preocupado com a partilha judicial, retira-se da sociedade às vésperas do intento separatório, transferindo a sua participação para outro sócio. Após a separação judicial, ele retorna à empresa e à livre administração dos bens que eram comuns ao casal.

Diante dessas práticas ilícitas, o magistrado pode desconsiderar, no âmbito da sentença judicial, lançada no processo de separação ou de dissolução de união estável, as alterações contratuais que transferiram ou reduziram a participação social do cônjuge empresário, voltando assim, ao estado anterior da flagrante apropriação da meação do cônjuge despojado. Estando, pois, autorizada a partilha conjugal diante da aplicação da desconsideração inversa.

Desse modo, a desconsideração inversa poderá ser aplicada sempre que o cônjuge, ao se utilizar da pessoa jurídica, busque através de fins escusos, burlar à meação. Com isso, a retirada do véu societário e o seu consequente alcance dos bens garantirá a intangibilidade da verdadeira meação.

O presente efeito da desconsideração inversa estudado neste item, poderá ser aplicado na separação judicial, e na dissolução de união estável. No entanto, torna-se indispensável examinar esse efeito, em medida cautelar, na divisão de quotas sociais e até no âmbito dos alimentos.

A aplicação da desconsideração inversa como medida cautelar, dá-se como proteção aos bens que tem origem no casamento ou na união estável quando estes são transferidos para uma sociedade por intermédio de fraude, abuso de direito ou pela simulação. Para isso, o arrolamento judicial de bens dá ao cônjuge uma noção exata dos bens reputados comuns ao casamento, os quais ficarão sob a guarda de um fiel depositário.

Desse modo, a medida cautelar, apresentada através do arrolamento de bens, visa impedir a transferência e venda de bens pertencentes ao casal para terceiros.

Com efeito, além da desconsideração inversa na medida cautelar, a divisão de quotas sociais também merece enfoque no presente estudo, quando o magistrado em sentença judicial ordena a compensação em favor do cônjuge prejudicado, até obter a soma de bens desviados com a utilização da pessoa jurídica.

Além disso, nos casos em que houver qualquer modificação contratual que tenha sido empregada para diminuir ou reduzir a participação do cônjuge poderá o julgador desconsiderar inversamente.

Dessa forma, a aplicação da desconsideração inversa ordenará o retorno ao monte conjugal os bens desviados fraudulentamente para a pessoa jurídica, havendo então, a desconsideração da transferência dos bens do casal para a sociedade, sendo ordenado ao final, a integral partilha.

Por fim, ocorrerá a desconsideração inversa no âmbito dos alimentos, quando o alimentante procura dissimular, aproveitando-se do manto da pessoa jurídica para ocultar sua real capacidade econômica e financeira da pessoa física, a qual tem o dever legal de alimentos.

No trato processual dos alimentos a pesquisa destes ingressos tem sido costumeiramente dificultada pelo alimentante quando ele é sócio de alguma empresa e aproveita-se desse fato para agir escondido sob o véu empresarial, mantendo vida e atividade notoriamente faustas, em contraponto ao seu miserável estado de quase indigência, considerando os parcos rendimentos que a sociedade lhe alcança como pro labore, isso quando ele não se retira ficticiamente da sociedade, embora siga nela atuando na suposta condição de preposto.

Atua também de forma fraudulenta, o ex-cônjuge que hesita em prestar alimentos declarando que possui baixos rendimentos, porém a sua conduta pública não condiz com a presente postura processual, quando este ostenta riqueza e luxo. Nesse caso, a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica e do princípio da aparência será para o devido caso, a justa solução para o litígio alimentar.

Em muitos casos, pais ou cônjuges insensíveis, relapsos ou irresponsáveis se utilizam da pessoa jurídica que integram como sócios para montar diversos estratagemas, tudo com a inequívoca e deliberada intenção de impedir que o autor da ação de alimentos possa demonstrar, através de dados concretos e escoimados de dúvidas, os reais rendimentos por eles percebidos ou os seus respectivos bens particulares.

Dessa forma, a utilização da desconsideração inversa vem tornar ineficaz a constituição do ato, apenas episodicamente, para julgar a conduta abusiva ou fraudulenta do sócio, estando para os demais atos jurídicos válidos e eficazes.

Porém, ao se aplicar à mencionada desconsideração deve-se ter a plena convicção e comprovação do nexo entre o prejuízo e o ato praticado, para assim, não reconhecer os efeitos de tais abusos contra os rendimentos do credor alimentar.


Considerações finais

Pelo exposto o instituto da pessoa jurídica, mais precisamente o princípio da separação patrimonial, trás um caminho amplo e incontrolado de seu uso, favorecendo assim, a utilização abusiva e fraudulenta, inclusive no campo das relações conjugais.

Diante disso, convém ressaltar que a jurisprudência pátria, em harmônico entendimento com a doutrina, acolheu a Desconsideração da Personalidade Jurídica em sua forma inversa.

Sendo inegável o uso já corrente da desconsideração inversa, especialmente em casos de direito de família.

Inegável que a jurisprudência e a doutrina, de há muito tempo, admitam a penhora das cotas das sociedades limitadas e das ações das companhias. A jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça, de forma pacífica, permitia a penhora das cotas sociais em execução de credor particular contra sócio de limitada, mesmo de natureza personalista, determinando apenas a observância de certas cautelas para garantir aos sócios ou às sociedades a possibilidade de manutenção do personalismo societário. Entretanto, o interesse do credor é o recebimento de seu crédito e não a participação em ou mesmo a venda de quotas ou ações de uma sociedade a respeito da qual não tem qualquer informação.

Além disso, do ponto de vista processual, existem vantagens da desconsideração inversa em relação à penhora de quotas. A desconsideração é mais eficiente para o credor, evitando tanto a demora na avaliação das quotas ou ações como a propositura freqüente de embargos à arrematação que tornam o processo de execução extremamente lento. Os efeitos da aplicação da teoria da desconsideração são benéficos não apenas para o credor. Podem sê-lo também para o devedor. A desconsideração ao evitar a alienação compulsória das participações impede a interferência judicial na sociedade, evitando em certos casos a apuração de haveres relativamente às quotas penhoradas e a consequente sangria patrimonial da sociedade ou impedindo que os demais sócios se vejam obrigados a adquirir as quotas para impedir a entrada de terceiros adquirentes. Por fim, se penhoradas as participações societárias, poderiam jamais encontrar interessados em arrematá-las, eis que o controle societário pode ser exercido com exclusividade pelo devedor, fato este que impediria sua comercialização.

O credor tem o direito de receber seu crédito pela forma mais eficiente possível.


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