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As políticas de ação afirmativa e seus reflexos na atual conjuntura

As políticas de ação afirmativa e seus reflexos na atual conjuntura

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Diante dos avanços da globalização, as políticas de inclusão e de promoção da igualdade, em todos os sentidos, mostram-se fundamentais para a estabilização social.

INTRODUÇÃO

É inegável que a diversidade e o multiculturalismo estão cada vez mais presentes na vida da humanidade. Diversidades étnicas, religiosas, econômicas, culturais, de gênero e também etárias são fatores que desagregam naturalmente. Tendo a democracia como um pressuposto indispensável (o que conferirá legitimidade) e o direito como instrumento de concretização, as políticas de ação afirmativa consubstanciam a mais clara e evidente iniciativa de promoção da igualdade em seu sentido maior.

Inicialmente, são traçadas linhas gerais do que seja igualdade formal e igualdade material. O que parece tão óbvio e que percorreu toda a história da civilização ocidental (de Aristóteles, passando pelo medievo até os dias atuais), sob um prisma teórico, é penoso e muitas vezes incompreensível de se concretizar. O caráter formal da norma jurídica desprovida de qualquer absolutismo e arraigada de um desejo de máxima satisfação, sob a perspectiva material, envolve aquilo que se convencionou chamar isonomia. Mostra-se que se deve nutrir a consciência de que as diferenças aparentes não podem ser motivo de segregação, mas mero traço de identidade, individual ou coletiva, carregado de tradição.

Já num segundo momento, abordam-se aspectos conjunturais relevantes a serem considerados na adoção de políticas de ação afirmativa. O mundo envolto na globalização apresenta um novo perfil. Perfil este caracterizado por um consumismo e uma importância considerável do aspecto econômico em detrimento de outras questões. O individualismo e a interdependência das nações, criando uma maior permeabilidade nas relações internacionais, intensificam os conflitos e consequentemente a intolerância, a segregação e as desigualdades. Esta é uma realidade a ser vencida. Dentro deste contexto global, a realidade brasileira apresenta características singulares que mostram toda problemática de exclusão, de abandono e de descaso de anos a fio, notadamente do Estado que sempre adotou uma postura tecnicista desprovida de qualquer objetivo voltado à concretização de direitos fundamentais.

A democracia e mais recentemente o Estado Democrático de Direito são entes presentes na cultura ocidental. O culto à liberdade e à igualdade, surgidos nas revoluções liberais, fortaleceu-se ao longo dos tempos e hoje são praticamente indispensáveis para a vida dos povos europeus e americanos. O debate público nas diferentes arenas (institucionais ou não) configura-se importante instrumento na promoção de tais iniciativas, o que se procura demonstrar nesta apresentação. O processo de inclusão gera conflitos e fomenta ódios, o que merece do Estado uma atenção especial no desenvolvimento de políticas que sejam garantidoras da igualdade em seu sentido maior. Direitos como acesso à educação, saúde, saneamento devem ser, sobretudo, não simples deveres do Estado, mas instrumentos efetivos de inclusão e de promoção da cidadania.

É inegável o importante papel que as ações afirmativas exercem neste contexto de globalização, onde o consumismo e o individualismo são marcas fortes e importantes. Esta exposição não visa esgotar o debate, mas procura iniciar uma reflexão em torno da aceitação de todos os seres humanos como indivíduos merecedores de respeito e dignidade.

O tema não pode se perder em debates filosóficos ou ser tratado como quimera teológica, mas deve ser enfrentado pelo Direito com o rigor e a seriedade que a problemática exige.


IGUALDADE FORMAL VERSUS MATERIAL

Ao longo da história, a humanidade buscou, em meio a lutas até mesmo sangrentas, a igualdade em sua plenitude. A busca incansável pelo reconhecimento de todos os indivíduos como sujeitos dotados de direitos e merecedores de dignidade é algo que se mantém latente na vida cotidiana e é objetivo a ser constantemente almejado pelo Direito. Já na Grécia antiga, Aristóteles já tratava a ideia de igualdade ligada à ideia de justiça, o que, ao longo dos tempos, ganhou novos contornos adequados às realidades que surgiriam. Também na Idade Média, o pensamento aristotélico influenciou pensadores a respeito do tema, como São Tomás de Aquino1. Assim ensinava Aristóteles:

Ora, a igualdade implica pelo menos dois elementos. Portanto, o justo deve ser ao mesmo tempo intermediário, igual e relativo (justo para certas pessoas, por exemplo); como intermediário, deve estar entre determinados extremos (o maior e o menor); como igual, envolve duas participações iguais; e, como justo, ele o é para certas pessoas. O justo, portanto, envolve no mínimo quatro termos, pois duas são as pessoas para quem ele é de fato justo, e também duas são as coisas em que se manifesta – os objetos distribuídos. E a mesma igualdade será observada entre pessoas e entre as coisas envolvidas, pois do mesmo modo que as últimas (as coisas envolvidas) são relacionadas entre si, as primeiras também o são. Se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais; mas isso é origem de disputas e queixas (como quando iguais têm e recebem partes desiguais, ou quando desiguais recebem partes iguais). Ademais, isso se torna evidente pelo fato de que as distribuições devem se feitas “de acordo com o mérito de cada um”, pois todos concordam que o que é justo com relação à distribuição, também o devem ser com o mérito em um certo sentido, embora nem todos especifiquem a mesma espécie de mérito: os democratas o identificam com a condição de homem livre, os partidários da oligarquia com a riqueza (ou nobreza de nascimento), e os partidários da aristocracia com a excelência.2

Destarte, a desigualdade, ao longo da história, configurou-se como uma das maiores violências contra aquilo que se pode denominar dignidade humana. A humanidade se conformou com este grande hiato, que divide os seres humanos por critérios étnicos, econômicos, culturais e até mesmo de gênero. Determinados grupos carregam uma espécie de “maldição”, já que a certas características que os diferenciam acabam sendo causa de privação de direitos, bem como motivo de discurso de ódio. No período medieval, o caráter religioso de distinção era preponderante. Ou seja, quem não fosse seguidor da religião cristã era considerado infiel e, portanto, merecedor de discriminação. O alemão Jürgen Habermas dispõe com propriedade a influência da religião como fundamento desta concepção:

As doutrinas religiosas da criação e da história da salvação haviam fornecido razões epistêmicas para que os mandamentos divinos não fossem vistos como advindos de uma autoridade cega, mas sim como razoáveis ou “verdadeiros”. Ora, quando a razão se retira da objetividade da natureza ou da história da salvação e se transfere para o espírito de sujeitos atuantes e julgadores, tais razões “objetivamente razoáveis” para os julgamentos e os atos morais têm de ser substituídas por outras, “subjetivamente razoáveis”. 3

As revoluções liberais, ocorridas no final do século XVIII, revestem-se de singular importância como estopim de um processo de conquistas de direitos fundamentais, notadamente a igualdade e a liberdade. Aliás, não há qualquer inovação sob uma perspectiva racional, mas a busca de um avanço no caminhar do curso histórico que rejeita qualquer comportamento despótico.

Analisando a realidade vivida pela humanidade nos dias atuais, este discurso não foi abandonado. No Oriente Médio, o fundamentalismo islâmico e as práticas religiosas ainda são consideradas a base para sustentação de toda uma sociedade que vive, de alguma forma, num grande isolamento cultural e também econômico.

O discurso da igualdade pode parecer óbvio, porém na linha do tempo mostra-se novo e carecedor de inúmeras medidas implementadoras. Há pouco mais de meio século o mundo assistia as atrocidades praticadas nos campos de concentração nazistas onde judeus e outros grupos minoritários eram barbaramente eliminados sob o argumento de se purificar a raça ariana, cultivando um antissemitismo doentio, visto sob um prisma moderno. Celso Lafer, fazendo alusão a Hannah Arendt, assim discorre:

O anti-semitismo moderno, ao contrário, resulta das transformações ocorridas na Europa a partir do século XVIII. Estas induziram a uma dissolução da sociedade tida como tradicional, através do processo que se convencionou chamar de modernização. Entre os importantes fatores deste processo de transformação, cabe os judeus – que antes não participavam como sujeitos da vida política e social mais ampla. Este processo de inclusão e assimilação dos judeus e dos outros grupos à civitas – a lógica, por assim dizer, da liberação, trazida pela ilustração e pela Revolução Francesa – gerou, em relação aos judeus, manifestações de intolerância que fizeram do anti-semitismo um instrumento de poder que o prefigura, nas suas características, como uma pré-história do totalitarismo. Neste sentido, o anti-semitismo moderno constitui uma ruptura com a tradição ocidental do mesmo tipo que outras tantas rupturas, que no seu conjunto assinalam as tendências históricas do mundo contemporâneo. 4

A partir das Declarações de Direitos oriundas das revoluções liberais e da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, o discurso da igualdade não pode ser lido de forma linear, absoluta. As características e principalmente as diferenças de cada indivíduo devem constituir fator preponderante para busca desta igualdade. Norberto Bobbio assim destaca conceitos relevantes sobre igualdade:

Com relação ao terceiro processo, a passagem ocorreu do homem genérico – do homem enquanto homem – para o homem específico, ou tomado na diversidade de seus diversos status sociais, com base em diferentes critérios de diferenciação (o sexo, a idade, as condições físicas), cada um dos quais revela diferenças específicas, que permitem igual tratamento e igual proteção. A mulher é diferente do homem; a criança, do adulto; o adulto, do velho; o sadio, do doente; o doente temporário, do doente crônico; o doente mental, dos outros doentes; os fisicamente normais, dos deficientes, etc. 5

Maurizio Fioravante aborda com propriedade a igualdade sob uma perspectiva de um constitucionalismo visto na atualidade:

[...] O princípio da igualdade, que - nas constituições democráticas - tende a afirmar-se para além da mera proibição de discriminação, atingindo o nível de acesso a bens básicos de uma sociedade, como a educação ou trabalho, refletindo assim a outra grande questão da garantia e da realização dos direitos sociais. (Tradução livre) 6

A concretização da igualdade, em seu sentido material, exige, sobremaneira, o respeito às diferenças o que leva a um necessário contraponto ao direito à liberdade. Tal evidência se confirma no caso Grutter v. Bollinger, julgado pela Suprema Corte Americana em 20037. Neste rumo, Ronald Dworkin assim dissertou:

Será mesmo mais importante que a liberdade de algumas pessoas seja protegida para melhorar a vida que essas pessoas levam, do que outras pessoas, que já estão em pior situação, disponham dos diversos recursos e de outras oportunidades de que elas precisam para levar uma vida decente? Como poderíamos defender essa tese? Talvez o dogmatismo seja tentador: declarar nossa intuição de que a liberdade fundamental que não se deve sacrificar à igualdade, e afirmar que não é preciso dizer mais nada. Mas isso é por demais superficial e insensível. Se a liberdade tem importância transcendente, deveríamos estar aptos a dizer algo, pelo menos, que a justificasse.8

Toda história do constitucionalismo se funda sobre ideais de igualdade e liberdade, constituindo verdadeiro rompimento com antigas práticas que aprisionavam o indivíduo e o tornavam mero objeto perante o soberano. Contudo, liberdade e igualdade coexistem dentro de um ambiente social, consubstanciado por um paradigma chamado Estado Democrático de Direito, por meio de uma forte tensão que impõem mitigações e concessões para que haja um aumento no nível de satisfação desses direitos fundamentais. A conjuntura atual caracteriza-se por aquilo que Zygmund Bauman chama de “Modernidade Líquida” 9. Ou seja, a liquidez ou fluidez conjuntural refere-se às mudanças rápidas e as múltiplas diversidades acerca do mundo da vida10.

Neste contexto, absolutamente heterogêneo, a concretização dos direitos fundamentais em sua plenitude deve ser um objetivo a ser alcançado. A igualdade em seu sentido formal, expressada no artigo 5º, caput, da Constituição da República, "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", não pode deixar de lado o caráter universalista deste enunciado, devendo ser materialmente concretizado por meio de políticas que abarquem um número indefinido de cidadão, por meio de ações de cunho afirmativo, cujo alvo sejam grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas, culturais, étnicas ou quaisquer outras que caracterizem um diferença particular.

Neste cenário, é salutar mencionar aquilo que John Rawls chamou de “justiça distributiva”. Assim discorreu Rawls: “As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos” 11.

Não há, portanto, outro caminho para uma verdadeira concretização do direito à igualdade que não seja a adoção de ações afirmativas, que caráter universalista, que possa atingir a vulnerabilidade de certos grupos. Assim, é imperioso identificar os grandes problemas que atingem a sociedade, para que, de forma pró-ativa, possa-se adotar ações eficazes para promoção da igualdade em sentido material.


ASPECTOS CONJUNTURAIS ACERCA DA NECESSIDADE DE POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA

Aspectos de cunho econômico asseveram a insensibilidade humana. Não se observa nos indivíduos aquilo que se traduz na alteridade. Vive-se numa sociedade consumista, individualista e que se abstém da convivência interpessoal, gerando novos problemas que se configuram próprios de uma realidade caracterizada por influências incontroversas da chamada globalização. Mas, o que seria esta globalização? O sociólogo polonês Zygmund Bauman dispõe:

A “globalização” está na ordem do dia; uma palavra da moda que se transforma rapidamente em um lema, uma encantação mágica, uma senha capaz de abrir as portas de todos os mistérios presentes e futuros. Para alguns, “globalização” é o que devemos fazer se quisermos ser felizes; para outros, é a causa da nossa infelicidade. Para todos, porém, “globalização” é o destino irremediável do mundo, um processo irreversível; é também um processo que nos afeta a todos na medida e da mesma maneira. Estamos todos sendo “globalizados” – e isso significa basicamente o mesmo para todos. 12

A globalização é um caminho sem volta. É um dado da nossa realidade. Abertura e expansão de mercados, comunicações rápidas e eficazes e acesso fácil a bens de consumo13 marcam este fenômeno que envolve toda a humanidade. Também Bauman assim procura retratar esta realidade por meio daquilo que ele chama de cultura de oferta:

A cultura de hoje é de ofertas, não de normas. Como observou Pierre Bourdieu, a cultura vive de sedução, não de regulamentação; de relações públicas, não de controle policial; da criação de novas necessidades/desejos/exigências, não de coerção. Esta nossa sociedade é uma sociedade de consumidores. E, como o resto do mundo visto e vivido pelos consumidores, a cultura também se transforma num armazém de produtos destinados ao consumo, cada qual concorrendo com os outros para conquistar a atenção inconstante/errante dos potenciais consumidores, na esperança de atraí-la e conservá-la por pouco mais de um breve segundo. 14

Dado todo arcabouço conceitual já exposto, salutar se torna destacar a realidade brasileira. De uma cultura considerada primitiva, inferior, mas, ao mesmo tempo, rica em diversidades e também em problemas. O Brasil é um país que tem um território com dimensões continentais, superando 8 milhões de quilômetros quadrados. Neste vasto território, as diferenças regionais são gritantes para não dizer preocupantes. No sudeste, considerada uma das regiões mais desenvolvidas, dentro de uma mesma cidade é possível se verificar um grande abismo: bairros nobres, com serviços públicos de qualidade, ruas pavimentadas e limpas coexistindo com comunidades pobres sem disponibilidade de serviços públicos essenciais, como fornecimento de água, captação de esgoto, coleta de lixo, serviço de saúde, escolas e creches. É este o pano de fundo que ilustra o cenário que se descortina e desafia a sociedade em geral a promover ações que promovam, de maneira efetiva, a inclusão, a dignidade, enfim, a igualdade em sua plenitude. O primeiro grande desafio é certamente a compreensão desta realidade. É abrir os olhos para este cenário. Jessé Souza bem explora esta necessidade de compreensão da realidade:

O tema da gênese da identidade nacional peculiar a cada sociedade moderna é fundamental para a compreensão da forma como essa sociedade e seus membros se percebem a si próprios. Tal autocompreensão, por sua vez, é o que permite e explica o desenvolvimento social e político em uma dada direção e não em outra qualquer. É ela que permite explicar por que existem sociedades mais ou menos justas, igualitárias ou liberais. Nesse sentido, o mito de pertencimento nacional faz parte de uma espécie de “núcleo político” do senso comum. O “senso comum” é a forma como as pessoas comuns, ou seja, nós todos, conferimos sentido às nossas vidas e ações cotidianas. 15

A realidade brasileira dos últimos vinte anos demonstra avanços significativos do ponto de vista econômico, com a conquista da estabilidade e melhora das relações comerciais internacionais. Todavia, outros aspectos avançaram muito pouco, não caminharam, ou, até, retrocederam. O Brasil, como uma federação, necessita de uma rediscussão do pacto federativo, revendo a repartição do bolo tributário entre a União, os Estados e os Municípios, a fim de melhorar os serviços públicos, que atualmente são ineficientes. Os grandes problemas que concretizam as severas desigualdades acontecem nas periferias, longe dos centros de concentração de poder.

É mister destacar dentro deste conteúdo, que o mundo vive as consequências da globalização, com a evidente influência e dependência das nações umas das outras. O então Cardeal Joseph Ratzinger, atual Papa Bento XVI, durante debate com Jürgen Habermas na Academia Católica da Baviera, em Munique – Alemanha, em 2004, assim expôs sua visão da realidade:

Na fase de aceleração do desenvolvimento histórico em que nos encontramos hoje, destacam-se, a meu ver, sobretudo dois fatores marcantes de um processo que teve um início bastante lento: Por um lado, temos a formação de uma sociedade mundial em que as diversas potências políticas, econômicas e culturais passam a depender cada vez mais uma da outra, tendo contato mútuo e permeando-se cada vez mais nos diversos âmbitos. Por outro lado, temos o desenvolvimento das possibilidades do ser humano, do poder de criar e destruir que, superando tudo o que até hoje era habitual, levanta a questão do controle jurídico e moral do poder. 16

Percebe-se que o discurso de Ratzinger não é puramente teológico, mas disserta sobre algo relevante da realidade vivida pela humanidade. A bipolarização do poder no mundo do pós-guerra está superada e certamente o aspecto econômico é preponderante para o exercício de influência no âmbito internacional.

Trazendo este pensamento para a realidade brasileira, vê-se a realidade do patrimonialismo, que é absoluta, sectária e desagregadora. Em severa crítica ao livro A cabeça do brasileiro, de Alberto Carlos Almeida, Jessé Souza esclarece a existência desta organização social que estimula a desigualdade.

O nordestino “arcaico” de Almeida é percebido como o tipo ideal do “preguiçoso”, “conservador”, “machista” e, ao fim e ao cabo, do “tolo” culpado do próprio destino trágico. Na verdade, não é o “nordestino” que está em jogo aqui, mas a “ralé” e a classe baixa brasileira apenas sobrerrepresentada no Nordeste. E essa classe social, conceito que Almeida desconhece, posto que associa classe à renda como todo liberal, foi produzida e continua sendo reproduzida pelo esquecimento secular da sociedade brasileira em relação aos seus membros mais necessitados. Precisamente àquele sentimento compartilhado de solidariedade social que faz com que um europeu ocidental julgue, hoje em dia, inimaginável que exista um sistema de saúde e um escolar para uma classe de privilegiados, e um outro sistema escolar e de saúde precarizado e muito pior para as classes baixas, como acontece tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. 17

A “ralé”, mencionada por Jessé Souza, engloba uma classe de pessoas cuja existência é negada pela sociedade, inclusive pelo Estado. Identifica a “ralé” por aquilo que a criminologia chama de labeling approach.18 O criminólogo italiano Alessandro Baratta preleciona acerca do labeling approach:

[...] uma direção conduziu ao estudo da “identidade” desviante, e do que se define como “desvio secundário”, ou seja, o efeito da aplicação da etiqueta de “criminoso” (ou também de “doente mental”) sobre a pessoa em quem se aplica a etiqueta; a outra direção conduz ao problema da definição, da constituição do desvio como qualidade atribuída a comportamentos e a indivíduos, no curso da interação e, por isto, conduz também para o problema da distribuição do poder de definição, para o estudo dos que detêm, em maior medida, na sociedade, o poder de definição, ou seja, para o estudo das agências de controle social. 19

Também o jurista alemão Winfried Hassemer também discorre acerca do labeling approach:

Neste ponto aparece o chamado labeling approach (enfoque do etiquetamento), que adota o seu nome a partir da sua tese central: a criminalidade não é característica de uma determinada conduta, mas o resultado de um processo de atribuição, de uma estigmatização; a criminalidade é uma etiqueta, a qual é aplicada pela polícia, pelo ministério público e pelo tribunal penal, pelas instâncias formais de controle social. Alguns representantes menos radicais desta teoria reconhecem (nisso) que os mecanismos do labeling existem não só no âmbito dos controles sociais formais, como também dos informais: os processos de “interação simbólica” em que as famílias definem prematuramente a ovelha negra entre os irmãos, ou os professores e os alunos o estranho da classe, e assim estigmatizam com os sinais do fracasso social aqueles que mais tarde serão percebidos e aprofundados por outras instâncias de controle social e assumirão esta marca como parte de suas biografias, como papel impingido e arrastado.20

Portanto, o Estado controla a “ralé” por meio do Direito Penal21, do cárcere e contribui para a manutenção deste status quo que se perpetua ao longo da história. História de opressão aos índios, massacrados no processo de colonização; aos negros, escravizados para sustentar a economia cafeeira; e outras minorias que por diferentes motivos se viram dentro do mundo da “ralé”.


AÇÕES DE ESTATAIS COM A FINALIDADE DE PROMOÇÃO DE AÇÕES AFIRMATIVAS

A sociedade brasileira está a cada momento enfrentando novos desafios e quebrando paradigmas, herança de um passado de preconceitos e exclusão. São desafios na medida em que há obstáculos a serem vencidos, direitos a serem concretizados e lutas a serem travadas. Após a Constituição promulgada em 1988, várias conquistas podem ser citadas como atos garantidores de direitos fundamentais. A liberdade e a igualdade, direitos indissociáveis num Estado Democrático de Direito, estão sempre em constante mutação (ou construção). Como já alhures explanado, a realidade brasileira caracteriza-se por uma heterogeneidade, fruto de um processo histórico que se iniciou com a colonização portuguesa, que escravizou e exterminou os indígenas e patrocinou a utilização da mão de obra escrava do negro africano nos diversos ciclos econômicos (mineração, cana-de-açúcar e café).

Não é possível a adoção de medidas que englobam ações de inclusão que não seja dentro de um ambiente democrático, onde toda esta problemática seja amplamente discutida. Jürgen Habermas, com propriedade, assim se refere à democracia como garantidora de toda inclusão:

O lado contrário está convencido de que o próprio processo democrático pode assumir o papel de fiador em caso de falta de integração social, numa sociedade que cada vez mais se diferencia internamente. Assim é que, nas sociedades pluralistas, esse ônus não pode ser desviado do nível formação de vontade política e da comunicação pública e aberta para o substrato cultural, aparentemente de origem natural, de um povo supostamente homogêneo. 22

E continua Habermas:

As minorias étnicas e culturais se defendem da opressão, marginalização e desprezo, lutando, assim, pelo reconhecimento de identidades coletivas, seja no contexto de uma cultura majoritária, seja em meio à comunidade dos povos. São movimentos de emancipação cujos objetivos políticos coletivos se definem culturalmente, em primeira linha, ainda que as dependências políticas e desigualdades sociais e econômicas também estejam sempre em jogo. 23

Neste viés, também o jurista americano Ronald Dworkin demonstra a necessidade de um ambiente democrático para a busca da igualdade no início da sua obra A virtude soberana:

A consideração igualitária é a virtude soberana da comunidade política – sem ela o governo não passa de tirania – e, quando as riquezas da nação são distribuídas de maneira muito desigual, como o são as riquezas de nações muito prósperas, então sua igual consideração é suspeita, pois a distribuição das riquezas é produto de uma ordem jurídica: a riqueza do cidadão depende muito das leis promulgadas em sua comunidade – não só as leis que governam a propriedade, o roubo, os contratos e os delitos, mas suas leis de previdência social, fiscais, de direitos políticos, de regulamentação ambiental e de praticamente tudo o mais. 24

As ações afirmativas (ações voltadas à inclusão) necessitam de um amplo processo de debate e de discussão, para a construção de uma mentalidade no seio social que seja caracterizada por um sentimento de promoção da igualdade. Jamais haverá efetividade quando a mera atividade legislativa do Estado tenta promover ações afirmativas. Combate-se com ações afirmativas vícios que por anos e anos a fio mancharam a história humana.

Verifica-se que as ações afirmativas se iniciam, em grande parte na educação. O acesso universal à educação é garantia fundamental e que merece ser tratada com maior atenção pelo Estado. Pode-se citar como iniciativa de ação afirmativa o sistema de cotas para ingresso em instituições de ensino superior, estabelecendo-se o critério racial. Outra iniciativa é a criação do sistema de seleção unificado (SISU) que oferece vagas a participantes do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em instituições públicas. Quanto ao sistema de cotas, sua constitucionalidade já foi afirmada pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 186, ajuizada pelo partido Democratas (DEM) e relatada pelo Ministro Ricardo Lewandowski. A ação questionava o sistema de cotas adotado na Universidade de Brasília. Em seu voto, o relator se referiu às universidades como sendo um verdadeiro símbolo das políticas de ação afirmativa. Neste rumo, assentou o Ministro Ricardo Lewandowski:

Todos sabem que as universidades, em especial as universidades públicas, são os principais centros de formação das elites brasileiras. Não constituem apenas núcleos de excelência para a formação de profissionais destinados ao mercado de trabalho, mas representam também um celeiro privilegiado para o recrutamento de futuros ocupantes dos altos cargos públicos e privados do País.

O relevante papel dos estabelecimentos de ensino superior para a formação de nossas elites tem, aliás, profundas raízes históricas. 25

Importa destacar que as políticas de ação afirmativa devem ser marcadas por um traço de transitoriedade, tendo, assim, o condão de estimular a diminuição das desigualdades. Assim dissertou o Ministro Ricardo Lewandowski:

É importante ressaltar a natureza transitória das políticas de ação afirmativa, já que as desigualdades entre negros e brancos não resultam, como é evidente, de uma desvalia natural ou genética, mas decorrem de uma acentuada inferioridade em que aqueles foram posicionados nos planos econômico, social e político em razão de séculos de dominação dos primeiros pelos segundos.

Assim, na medida em que essas distorções históricas forem corrigidas e a representação dos negros e demais excluídos nas esferas públicas e privadas de poder atenda ao que se contém no princípio constitucional da isonomia, não haverá mais qualquer razão para a subsistência dos programas de reserva de vagas nas universidades públicas, pois o seu objetivo já terá sido alcançado. 26

As ações afirmativas constituem um grande leque de iniciativas que tem como alvo não somente as minorias negras, mas também são dirigidas às crianças e adolescentes, idosos, portadores de necessidades especiais, dentre outras minorias27. Contudo, diante da grande importância dessas políticas, os Poderes Legislativo e Executivo deveriam, em boa parte das vezes, ser os grandes condutores deste grande processo de inclusão. Entretanto, num quadro de crise da representatividade e de paralisia estatal, o Judiciário acaba tomando a frente para garantir a efetividade das ações afirmativas. Este cenário é preocupante, pois a judicialização de determinados temas e o ativismo judicial daí nascido inibem o salutar debate que fomenta e enriquece estas iniciativas. Não é uma sentença de um juiz ou o poder decisório de um acórdão de um determinado tribunal que incrementam as ações afirmativas, mas a discussão na busca do consenso sobre aquilo que uma comunidade ambiciona. Uma das alternativas para busca de um destes objetivos está na ação comunicativa de Jürgen Habermas. Eis o que retrata o alemão da Escola de Frankfurt:

Apesar da distância em relação aos conceitos tradicionais da razão prática, não é trivial constatar que uma teoria contemporânea do direito e da democracia continua buscando um engate na conceituação clássica. Ela toma como ponto de partida a força social integradora de processos de entendimento não violentos, racionalmente motivadores, capazes de salvaguardar distâncias e diferenças reconhecidas, na base da manutenção e uma comunhão de convicções. 28

A ação comunicativa, como preconizada por Habermas, é certamente o instrumento mais adequado de promoção da igualdade em todos os sentidos. A democracia pressupõe fundamentalmente práticas que privilegiem a opinião de todos os indivíduos, uma vez que as decisões produzidas afetarão a vida da coletividade. A tensão entre direito e democracia (que Habermas denomina como sendo tensão entre facticidade e validade) deve figurar como ponto a ser observado para a promoção da verdadeira igualdade. Certamente, vivendo numa democracia, não há melhor instrumento para se definir ações concretas da sociedade para um determinado fim que não seja ouvir a voz do sujeito que mais é afetado por uma decisão. Privilegiar o debate nos pequenos grupos das periferias, bem como nas arenas institucionalizadas (como os parlamentos) é o caminho que confere maior legitimidade para o agente que conduz uma dada política ou iniciativa.


AS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA E O SEU PAPEL NA PROMOÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Boa parte do mundo respira os ares trazidos pelos ventos do Estado Democrático de Direito. Ventos estes que pretendem garantir liberdade e igualdade a todos os seres humanos. Nos dias atuais, é inconcebível que se inferiorize o outro pelo simples fato de ser diferente. É importante refletir as palavras de Boaventura de Sousa Santos:

[...] temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades. 29

Nos Estados Unidos, a discriminação esteve sempre presentes na vida cotidiana. Dessa experiência é possível buscar uma compreensão do que seja propriamente igualdade formal e igualdade material, principalmente em casos cujo tema de fundo é o acesso à educação e a discriminação racial. Acerca das decisões da Suprema Corte, o caso Brown versus Board of Education, de 1954, foi o grande marco para mudança do entendimento daquele Tribunal que por meio do caso Plessy versus Ferguson firmara aquilo que se convencionou “separados mas iguais” 30. Além deste caso, outros se somam para assegurar a igualdade entre os seres humanos, independente de qualquer característica que os diferencie, como Bakke versus Regents of the University of Califórnia, de 1978; Gratz versus Bollinger, 2003; e Grutter versus Bollinger, também de 2003. Ronald Dworkin também expõe com propriedade acerca da igualdade:

Proponho que o direito a ser tratado como igual deve ser visto como fundamental na concepção liberal de igualdade, e que o direito mais restritivo a igual tratamento somente tenha validade naquelas circunstâncias específicas nas quais, por alguma razão especial, ele decorra do direito mais fundamental, como talvez seja o caso na circunstância especial dos casos de realinhamento dos distritos eleitorais. Proponho igualmente que os direitos individuais a diferentes liberdades devam ser reconhecidos somente quando se puder mostrar que o direito fundamental a ser tratado como igual exige tais direitos. Se isso for correto, o direito a diferentes liberdades não entra em conflito com nenhum suposto direito à igualdade concorrente; ao contrário, decorre de uma concepção de igualdade que se admite como mais fundamental. 31

Conclui-se que as políticas de ação afirmativa notabilizam-se como sendo a maior expressão de materialização da igualdade, em seu mais amplo sentido. Partindo da adoção de políticas de caráter afirmativo, os demais direitos fundamentais se concretizam com mais facilidade e efetividade. Apura-se que o âmago de toda temática acaba sendo o ser humano na sua mais elementar essência. Ser humano que busca o seu reconhecimento perante o diferente na sociedade. Habermas questiona se o tratamento tão individualista pode construir um reconhecimento de uma identidade coletiva:

As constituições modernas devem-se a uma idéia advinda do direito racional, segundo a qual os cidadãos, por decisão própria, se ligam a uma comunidade de jurisconsortes livres e iguais. A constituição faz valer exatamente os direitos que os cidadãos precisam reconhecer mutuamente, caso queiram regular de maneira legítima seu convívio com os meios do direito positivo. Aí já estão pressupostos os conceitos do direito subjetivo e da pessoa do direito enquanto indivíduo portador de direitos. Embora o direito moderno fundamente relações de reconhecimento intersubjetivo sancionadas por via estatal, os direitos que daí decorrem asseguram a integridade dos respectivos sujeitos em particular, potencialmente violável. Em última instância, trata-se da defesa dessas pessoas individuais do direito, mesmo quando a integridade do indivíduo – seja no direito, seja na moral – dependa da estrutura intacta das relações de reconhecimento mútuo. Será que uma teoria dos direitos de orientação tão individualista pode dar conta de lutas por reconhecimento nas quais parece tratar-se sobretudo da articulação e afirmação de identidades coletivas? 32

Certamente a construção de uma identidade coletiva passa, necessariamente, pelo fortalecimento de relações intersubjetivas e da compreensão que o semelhante merece tratamento com igual dignidade. O acesso a oportunidades, de maneira universal, reveste-se de grande significado e o Direito deve ser o meio que concretize esta universalidade. Mais uma vez pontua o teólogo alemão Cardeal Joseph Ratzinger:

O problema de que o direito não pode ser instrumento do poder de uns poucos, pois precisa ser a expressão do interesse comum de todos, parece resolvido, pelo menos provisoriamente pelos instrumentos de formação da vontade democrática, uma vez que por meio dessa todos participam da criação do direito, que, por isso mesmo, se torna o direito de todos, podendo e devendo ser respeitado como tal. 33

Enfim, o Direito é fruto de um amplo debate, resultante da vontade democrática. Somente a formação de uma consciência, que enfatize a necessidade de inclusão, de respeito às diferenças e de promoção da ideia de igualdade, concretizará os direitos fundamentais constitucionalmente albergados. A tensão entre constitucionalismo e democracia será fundamental, neste aspecto, para garantir, num grau máximo, a igualdade no seu sentido material.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de toda esta exposição, pode-se afirmar que as políticas de ação afirmativa são remédios imprescindíveis para a concretização de direitos fundamentais, já que o ambiente vivido pela humanidade (e o Brasil não foge a regra) é revestido de desigualdade e de intolerância. Estas ações visam dar concretude a anseios expressos nas constituições de forma textual, no que tange à igualdade. Tradições e práticas culturalmente arraigadas no seio dos diferentes grupos sociais merecem de toda coletividade o respeito e a harmoniosa convivência com intuito de se garantir direitos.

A diferença entre igualdade formal e material é algo que deve ser compreendido num primeiro momento, para que a problemática que envolve, sobremaneira, a interpretação e a aplicação do direito seja nitidamente visualizada. Aliás, percebe-se que este problema atravessou a história da humanidade, desde a Grécia de Aristóteles até os dias atuais. O abismo existente entre os diferentes seres humanos (e consequentemente entre os diferentes grupos sociais) apresenta proporções incomensuráveis. Este fato atravessou a Idade Média, a modernidade e foi motivo de grande reflexão nas revoluções liberais, sobressaindo a Revolução Francesa. Todavia, ainda, continua sendo um problema da pós-modernidade ou modernidade líquida, para usar uma expressão de Bauman. Em pleno século XXI, constata-se a prática de atos de intolerância e de “ódio” 34, o que deve ser combatido.

Tais ações de caráter afirmativo não podem estar dissociadas do cotidiano da política e do debate que a ela é peculiar. Se uma sociedade busca a convivência harmoniosa entre os indivíduos que a compõem, faz-se necessário o combate a todo tipo de discriminação, desigualdade ou discurso de ódio. Portanto, o papel do Direito, seja pela produção legislativa ou pela atividade jurisdicional do Estado, é importante para concretização desses ideais. O mundo da globalização é o mundo do estreitamento das relações. Relações que são construídas entre indivíduos e grupos de diferentes origens e culturas.

Ao se tratar de ações afirmativas, a iniciativa que mais é abordada é a promoção da igualdade no acesso à educação superior, por meio do sistema de cotas. Esta característica não se restringe somente ao Brasil, mas é muito evidente nos Estados Unidos, como se constata nos diversos precedentes da Suprema Corte americana (Brown versus Board of education, de 1954; Bakke versus Regents of the University of Califórnia, de 1978; Gratz versus Bollinger, de 2003; e Grutter versus Bollinger, de 2003). Já no Brasil, dentre os casos mais notórios acerca das políticas de ação afirmativa destacam-se a ADPF 186 e o RE 597.285/RS, julgados recentemente pelo Supremo Tribunal Federal.

A sociedade brasileira mostra que há ainda muito a fazer para que se tenha, verdadeiramente, um ambiente social onde a liberdade e a igualdade sejam os alicerces de uma República. Certamente o acesso à educação tem um cunho simbólico ao tratar de ações afirmativas diante da relevância e da importância que a escola e as universidades têm na promoção de políticas de inclusão; seja de forma direta, com sistema de cotas, ou indireta através da formação da opinião pública e na difusão do conhecimento.

Todos os conceitos e abordagens que foram apresentadas no presente texto, leva à conclusão de que as caminhadas das sociedades contemporâneas são duras, complexas e cheias de obstáculos. A tão sonhada igualdade é uma conquista diária, de todo tempo. O que é tão óbvio na retórica, não o é na prática. Nunca é demais lembrar os horrores patrocinados pelo nazismo em Auschwitz – Birkenau ou Mauthausen há pouco mais de sessenta anos. A mentalidade da segregação e do antissemitismo ainda está longe de fazer parte do passado. É algo presente e preocupante. Este anseio por igualdade é, certamente, um dos maiores desafios para o Direito no século XXI.


REFERÊNCIAS

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Notas

1 Com a finalidade de exemplificar a influência de Aristóteles em todo pensamento de São Tomás de Aquino, notadamente acerca da igualdade, a ideia de que a mulher é um “homem inacabado” é na verdade uma herança aristotélica que se estendeu e ganhou força no período medieval. Assim, a mulher era aqui vista como mero receptáculo passivo para a força generativa única do varão, acrescentando ainda São Tomás de Aquino que “a mulher necessita do homem não somente para engendrar, como fazem os animais, mas também para governar, porquanto o homem é mais perfeito por sua razão e mais forte por sua virtude”.

2 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 108-109.

3 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro – estudos de teoria política. (Die Einbeziehung des Anderen – Studien zur politischen Theorie). Trad. George Sperber, Milton Camargo Mota e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 1997, p. 22.

4 LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 38.

5 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 64.

6 [...] el principio de igualdad, que – en las constituciones democráticas – tiende a afirmarse más allá de la mera prohibición de la discriminación, situándose en el plano del acceso a los bienes fundamentales de la convivencia civil, tal como la instrucción o el trabajo, poniendo así de mainifiesto la otra gran cuestión de la garantía y de la realización de los derechos sociales. Cf. FIORAVANTE, Maurizio. Constituición: de la antigüedad a nuestros días. Madrid: Trotta, 2001, p. 150.

7 A controvérsia surgiu em 1996, quando Barbara Grutter, uma mulher branca, moradora de Michigan, com notas relativamente altas no teste de admissão para faculdades de direito norte-americanas, não foi aceita na Faculdade de Direito da Universidade daquele Estado. No final de 1997, ingressa em juízo contra a Universidade, sob o argumento de que havia sofrido discriminação racial, o que violaria tanto a cláusula de proteção da igualdade prevista na XIV Emenda à Constituição dos Estados Unidos como no Título VI da Lei de Proteção aos Direitos Civis de 1964 (Civil Rights Act).

8 DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 159.

9 BAUMAN, Zygmund. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

10 O conceito de mundo da vida, Habermas toma de Edmund Husserl e possui três características básicas: é dado aos sujeitos de modo que não pode ser problematizado, mas pode desmoronar; os pontos em comum estão a frente de qualquer dissenso; e a conjuntura muda mas o mundo da vida possui barreiras intransponíveis. Por fim, o agir comunicativo depende de contextos situativos que, se sua parte, representam recortes do mundo da vida concernentes aos participantes da interação. É tão somente esse conceito de mundo da vida – tomado como complementar ao agir comunicativo por conta de análises do saber contextual estimuladas por Wittgenstein – que assegura a ligação entre a teoria da ação e conceitos básicos da teoria social. Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo, 1. Trad. Paulo Astor Soethe; revisão Flávio Beno Siebeneichler. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, p. 485.

11 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta, Lenita M. R. Esteves. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1997, p. 3.

12 BAUMAN, Zygmund. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 7.

13 O Brasil terminou Nov/12 com 260 milhões de celulares e 131,99 cel/100 hab. As adições líquidas de 738 mil celulares no mês foram inferiores as de Nov/11 quando foram adicionados 4,5 milhões de celulares, reforçando a tendência de um crescimento menor que 10% em 2012. O pós-pago, com adições líquidas de 588 mil, voltou a superar o pré-pago (158 mil) em novembro. (http://www.teleco.com.br/ncel.asp. Acesso em 7 jan 2013).

14 BAUMAN, Zygmund. Capitalismo parasitário. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 33-34.

15 SOUZA, Jessé. Ralé brasileira: quem é e como vive / Jessé Souza ; colaboradores André Grillo ... [et al.] – Belo Horizonte : Editora UFMG, 2009, p. 41.

16 HABERMAS, Jürgen. RATZINGER, Joseph. Dialética da secularização: sobre razão e religião. Org. Florian Schüller. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 61-62.

17 SOUZA, Jessé. Ralé brasileira: quem é e como vive / Jessé Souza ; colaboradores André Grillo ... [et al.] – Belo Horizonte : Editora UFMG, 2009, p. 80.

18 A teoria do labeling approach se insere no contexto das teorias do processo social, ao lado das teorias de aprendizagem social e de controle social. Para este grupo de teorias psicosociológicas “o crime é uma função das interações psicossociais do indivíduo e dos diversos processos da sociedade.

19 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 89.

20 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal (Einführung in die Grundlagen des Strafrechts). Trad. Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2005, p. 101-102.

21 As normas penais que compõem o Direito Penal são as matizes legais da violência institucional concretizada no processo de criminalização, como conjunto de práticas e procedimentos policial, judiciário e prisional delimitados e determinados por aquelas matizes legais. O processo de criminalização representa a forma de existência social concreta do sistema penal, modalidade superestrutural específica constituída de normas penais, que descrevem os caracteres essenciais das ações puníveis e fixam limites penais mínimos e máximos aos autores e fixam limites penais mínimos e máximos aos autores dessas ações (comprovado o conjunto dos pressupostos da pena, como a tipicidade, a antijuridicidade e a reprovabilidade do comportamento, objeto da chamada teoria do crime) e de aparelhos do Estado, que movimentam o processo de criminalização (polícia, justiça e prisão). Se a violência institucional do Direito Penal se concretiza no processo de criminalização, cujas matizes são as normas penais, e cujos órgãos são a polícia, a justiça e a prisão, o estudo do processo de criminalização, deve destacar o modo de integração e a significação real do funcionamento das normas e aparelhos punitivos que o constituem. Cf. CIRINO DOS SANTOS. As raízes do crime: um estudo sobre as estruturas e as instituições da violência. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 102.

22 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro – estudos de teoria política. (Die Einbeziehung des Anderen – Studien zur politischen Theorie). Trad. George Sperber, Milton Camargo Mota e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 1997, p. 151-152.

23 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro – estudos de teoria política. (Die Einbeziehung des Anderen – Studien zur politischen Theorie). Trad. George Sperber, Milton Camargo Mota e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 1997, p. 246.

24 DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. IX-X.

25 http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf (Acesso em 12 jan. 2013).

26 http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf (Acesso em 12 jan. 2013).

27 É relevante mencionar que os Estatutos da Criança e do Adolescente e do Idoso também são exemplos de ações afirmativas, tendo em vista o seu caráter inclusivo. Além disso, a Constituição no artigo 37, inciso VII, dispõe “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”.

28 HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo, 1. Trad. Paulo Astor Soethe; revisão Flávio Beno Siebeneichler. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, p. 22.

29 SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 56.

30 Separate but equal. Sob esta doutrina, serviços, instalações e acomodações públicas podiam ser separados por raça, com a condição de que a qualidade dos serviços oferecidos a cada grupo fosse a mesma.

31 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, p. 421.

32 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro – estudos de teoria política. (Die Einbeziehung des Anderen – Studien zur politischen Theorie). Trad. George Sperber, Milton Camargo Mota e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 1997, p. 229.

33 HABERMAS, Jürgen. RATZINGER, Joseph. Dialética da secularização: sobre razão e religião. Org. Florian Schüller. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 66.

34 A fim de ilustrar a abordagem pode-se citar o chamado “Caso Ellwanger”, em que Siegfried Ellwanger, editor de livros de conteúdo antissemita. Trata-se do HC 82.424, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 2003.



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