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A aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes nas decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade

A aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes nas decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade

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INTRODUÇÃO

O modelo peculiar de controle de constitucionalidade adotado pelo Brasil sempre esteve no limiar das discussões acerca dos efeitos jurídicos por eles produzidos, eis que a mescla dos dois sistemas de controle requerer efeitos distintos: o sistema norte americano atrai efeitos inter partes, enquanto o Austríaco, erga omnes. (MORAES, 2008)

É justamente a união dos dois sistemas de controle no modelo brasileiro que torna a tarefa de análise da constitucionalidade de lei ou ato normativo tão complexa.

Embora seja uma compilação de dois sistemas distintos, o modelo de controle previsto na Constituição Federal de 1988 inovou quanto à atribuição dos efeitos nas declarações de inconstitucionalidade de cada sistema, notadamente no sistema difuso.

O efeito inter partes da declaração de inconstitucionalidade no controle concreto difuso faz com que seja flexibilizada a supremacia da constituição em face da não vinculação dos fundamentos da declaração, já que o dispositivo da sentença decide apenas o bem da vida pleiteado no caso concreto. Ou seja, as razões que levaram a determinada decisão serão reconhecidas na fundamentação e, assim, afastada a norma inconstitucional, ficando o dispositivo da sentença responsável pelo reconhecimento ou não do direito almejado, bem como seus efeitos ficarão restritos às partes. (MARINONI, 2013)

Esse efeito não transcendente da decisão no controle difuso de constitucionalidade e a possível aplicação de uma teoria Alemã para reforçar a Supremacia da Constituição e o respeito às decisões do STF é o objeto do presente trabalho.

A aplicação da Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes nas decisões definitivas do STF no controle de constitucionalidade difuso será a base que norteará todo este estudo.

A fim de evitar a possibilidade de desrespeito ao Princípio da Supremacia da Constituição e, como consequência, o desrespeito às próprias decisões do STF, a utilização de um mecanismo que permita a vinculação dos demais órgãos do judiciário ao entendimento do seu órgão de cúpula no controle incidente de norma, é algo que merece prioridade no atual contexto jurídico do país.

A flexibilização da Supremacia da Constituição decorrente dos efeitos no controle concreto traz inúmeros reflexos jurídicos relevantes, como a violação da isonomia e a segurança jurídica, entre outros.

O presente trabalho abordará o tema justamente sob essa perspectiva, trazendo a peculiaridade do controle difuso no contexto americano, berço desse sistema incidente, e os instrumentos utilizados no Brasil para atribuir efeitos erga omnes às declarações definitivas de inconstitucionalidades proferidas pelo STF.


2 - O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: BREVE HISTÓRICO

O controle de constitucionalidade é um instrumento de afirmação da supremacia da constituição. Em que pese a divergência na doutrina, esse instrumento está intimamente ligado ao modelo de constituição rígida, eis que, sob o aspecto formal, o princípio da rigidez constitucional pode ser aferido como paradigma de controle sobre atos emanados do poder público. (NOVELINO, 2013)

A doutrina costuma diferenciar os sistemas de controle de constitucionalidade dos chamados modelos de controle constitucional. Nas palavras de Uadi Lammêgo Bulos:

os sistemas de controle de constitucionalidade são as matrizes das quais derivam os diversos modelos de justiça constitucional. Muitos são os modelos de fiscalização da constitucionalidade, por exemplo, o francês, o alemão, o espanhol, o italiano, o português, o brasileiro, etc. Mas sistemas de controle da constitucionalidade das leis ou atos normativos só há dois: o americano e o austríaco ou europeu continental. (BULOS, 2011)

Sob esse enfoque, há vários modelos de controle de constitucionalidade. Cada país adota e adapta o seu próprio modelo de controle. Porem, os chamados sistemas de controle há apenas dois: sistema americano e sistema austríaco, também chamado de europeu.

O controle de constitucionalidade difuso que conhecemos hoje nasceu nos Estados Unidos da América sob o enfoque de uma constituição que não o previu expressamente. Todavia, John Marshall, Chief Justice da Suprema Corte Americana, inaugurou as bases desse controle no ano de 1803, na célebre decisão do caso William Marbury versus James Madison. Nascia aí o sistema americano de controle  constitucionalidade, consistente no entendimento de que, para resguardar a constituição, qualquer juiz pode averiguar a alegação de inconstitucionalidade, num caso concreto, por via de defesa ou de exceção. (BULOS, 2011)

Já o sistema austríaco foi formalizado com o advento da constituição da Áustria em 1920, sob a inspiração de Hans Kelsen - reconhecidamente um dos um dos maiores teóricos do século XX – a pedido do Governo austríaco da época.

Esse sistema consiste em controle abstrato de normas que sejam incompatíveis com a constituição, exercido por um órgão de cúpula do Poder Judiciário por meio de controle concentrado e autores legitimados previamente determinados.

O Brasil adotou vários modelos de controle de constitucionalidade ao longo da sua história, ora usando apenas um sistema, ora mesclando o controle difuso e concentrado.

A constituição Republicana de 1891 inaugurou o modelo difuso de constitucionalidade brasileiro. A constituição reservou ao Supremo Tribunal Federal a competência para rever as sentenças das justiças dos Estados, em ultima instância, quando suscitado a inconstitucionalidade de tratados ou leis federais.

A reforma da constituição em 1926 empreendeu algumas modificações no modelo de controle, sem, contudo, alterar a essência do sistema difuso. Nessa reforma foi ampliada a competência do Supremo Tribunal para uniformizar a jurisprudência dos demais Tribunais. Assim, consolidava-se o sistema americano de constitucionalidade no Brasil. (Moraes, 2011)

Já na constituição de 1934, o controle de constitucionalidade brasileiro sofreu algumas mudanças, mas mantendo sempre o controle incidental das leis e atos normativos pelo Pretório Excelso. Entre outras mudanças sofridas, foi atribuída ao Senado Federal a competência para suspender a execução de lei, tratado, decreto, regulamento ou outra deliberação declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário. (BULOS, 2011)

A constituição Polaca de 1937 manteve o controle difuso de constitucionalidade e repetiu a proibição do Poder Judiciário de conhecer de questões exclusivamente políticas. Permitiu, ainda, ao Presidente da República submeter ao parlamento a lei declarada inconstitucional.O controle de constitucionalidade difuso exercido pelo Supremo Tribunal Federal, por meio de Recurso Extraordinário, só foi permitido na constituição de 1946, que também deu nova configuração à chamada Representação de Inconstitucionalidade Interventiva, atribuindo ao Procurador Geral da República (PGJ) a competência para sua deflagração. Foi, ainda, nessa constituição que, por meio da Emenda n. 16 de 1965, inaugurou-se, oficialmente, o controle abstrato de normas em nosso país. A partir de 1965 que foi conferido ao STF processar e julgar originariamente as ações diretas de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou federal propostas pelo PGJ.

A Constituição de 1967 não trouxe maiores modificações no controle de constitucionalidade, porém ampliou a representação interventiva. Somente com a Emenda Constitucional n. 1 de 1969 houve modificação significativa no modelo de controle de constitucionalidade, consubstanciada no retorno de controle sobre leis municipais em face da Constituição do Estado, para fins de intervenção no Município.

A Constituição Cidadã de 1988, por fim, aperfeiçoando o, até então, controle de constitucionalidade brasileiro, a Constituição de 1988 nos apresentou um modelo de controle avançadíssimo, notadamente no que se refere ao controle concentrado de normas. Nesse ponto, Uadi Lamêgo Bulos comenta que “esse detalhe é significativo, porque a Carta de Outubro ampliou a legitimidade para a propositura de ação direta de constitucionalidade (art. 103)”.

Além disso, a Magna Carta possibilitou que as grandes controvérsias constitucionais fossem submetidas ao Supremo Tribunal Federal pelo processo de controle concentrado de constitucionalidade. Permitiu, ainda, ao STF, suspender – de imediato – a eficácia de ato normativo considerado inconstitucional por meio do pedido de medida cautelar, mantendo, assim, a novidade que originalmente decorre da Emenda Constitucional n. 7/77.

Estabeleceu-se também a possibilidade de controle constitucional sobre as omissões legislativas, seja pela forma concentrada ou difusa: respectivamente, a ação direta de constitucionalidade por omissão e o mandado de injunção.

O constituinte de 1988, ao reforçar a estrutura do controle concentrado de constitucionalidade, acabou por diminuir a importância do controle difuso. Quer dizer, conforme assevera Bulos:

[...] a competência da jurisdição constitucional ordinária foi, de certa forma, atenuada, mas não extinta. Resultado: a inconstitucionalidade das leis ou atos normativos passou a ser examinada, na maioria das situações de relevo, pelo Supremo Tribunal Federal (controle concentrado). Já os juízes – titulares da jurisdição constitucional ordinária – ficaram, praticamente, limitados, tendo em vista que a Carta de 1988 esvaziou o controle difuso de constitucionalidade. (BULOS, 2011)

Ou seja, demandas decorrentes de leis ou atos normativos que requeiram uma atenção maior são, desde logo, submetidas ao controle concentrado de normas, a fim de que o STF se pronuncie sobre a sua constitucionalidade. Não obstante, embora tenha havido uma diminuição da importância do controle difuso, essa diminuição não se refletiu na prática forense, eis que a quantidade de demandas que, no seu curso, suscitam o incidente de inconstitucionalidade supera, e muito, as demandas propostas por meio do controle abstrato de normas, já que seus legitimados são limitados.

Assim, da mescla entre controle incidental e controle concentrado de constitucionalidade, consagrou-se o nosso modelo de controle de normas chamado de modelo misto, onde a constitucionalidade de uma lei poderá ser questionada por meio difuso concreto ou concentrado abstrato.

Como dito, o presente trabalho se restringirá ao estudo do controle difuso de constitucionalidade e a possibilidade de ampliação de seus efeitos com a aplicação da teoria que é o objeto principal desse estudo.

2.1 - O Controle de Constitucionalidade Difuso

O controle difuso de constitucionalidade se dá pela arguição de inconstitucionalidade por parte do jurisdicionado, num determinado caso concreto, de norma em que pauta sua defesa. É chamado de difuso devido o poder de controlar a constitucionalidade de uma norma ser distribuído, difusamente, a vários órgãos do Poder Judiciário diante de toda e qualquer demanda, mas se exerce de forma incidental e concreta. (MARINONI, 2013)

O controle difuso de constitucionalidade, como vimos no tópico anterior, teve origem nos Estados Unidos (EUA), o chamado judicial review, no célebre caso Marbury versus Madison em que John Marshall – Chief Justice – consagrou o entendimento de que havendo conflito entre a aplicação de uma Lei e a Constituição em um caso concreto, aplica-se a regra constitucional, por ser hierarquicamente superior.No Brasil, Luiz Guilherme Marinoni leciona que:

Foi a grande influência do pensamento de Rui Barbosa sobre a Constituição de 1891, que foi fortemente carregada com as tintas do direito estadunidense. Assim, não foi por acaso que o controle de constitucionalidade foi com ela sedimentado, já que a sua semente foi lançada na “Constituição Provisória da República”, de 1890 – Dec. 510, de 26.06.1890, arts. 58, §1º e 59. (MARINONI, 2013)

Observa-se que esse sistema de controle integra nosso ordenamento jurídico desde a Constituição Republicana de 1891 e teve muita influência do pensamento de Rui Barbosa que, inspirado no direito estadunidense, sedimentou o controle de constitucionalidade que hoje conhecemos por difuso concreto.

No campo prático, o controle difuso se processa de forma incidente na demanda posta à apreciação do juiz de primeira instância ou do tribunal, cujo exame do mérito é prejudicado pela arguição de inconstitucionalidade, que não integra o objeto principal da lide, mas, tão-somente, o ponto prejudicial de mérito, óbice para a conclusão do processo.

Noutras palavras, a análise da constitucionalidade de lei ou outro ato normativo dar-se de forma paralela ao processo principal, cujo bem da vida está sendo questionado. Isso porque a decisão de constitucionalidade ou inconstitucionalidade não integrará a parte dispositiva da sentença, sendo mencionado apenas na fundamentação da decisão com o intuito de afastar a norma questionada, se inconstitucional – ou aplica-la – se constitucional, a fim de que se decida a lide sem a prejudicial arguida.

Por isso, a consequência principal, num caso concreto, do argumento sobre a constitucionalidade de uma norma não integrar a parte dispositiva da sentença é que este argumento não ensejará o efeito vinculante às demais pessoas que não polarizaram a lide. Ou seja, não gera efeito erga omines, eis que a parte da fundamentação – ao contrário da dispositiva – não faz coisa julgada nem vincula terceiros estranhos à lide.

Nesse ensejo e a fim de melhorar o entendimento desse ponto sem comprometer a estratégia didática, passa-se à análise dos elementos da sentença para que possamos entender os limites da coisa julgada e a vinculação de seus efeitos, notadamente em sede de controle difuso de constitucionalidade.

2.1.1 - A sentença e seus requisitos essenciais

Toda sentença judicial tem por objetivo encerrar o que parte da doutrina chama de juízo de concreção ou subsunção das regras legais ao caso fático concreto. Nos dizeres de Ovídio A. Batista da Silva: “O juiz, ao contrário do administrador, tem por função específica realizar o enlace entre a norma jurídica abstrata e o caso concreto que lhe é submetido a julgamento”. (BATISTA DA SILVA, 2002).

Em regra, toda sentença deve ser composta por três partes, os chamados elementos ou requisitos essenciais da sentença. Esses elementos estão previstos no Código de Processo Civil (CPC), em seu artigo 458, senão vejamos:

Art. 458. São requisitos essenciais da sentença:

I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;

II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;

III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes Ihe submeterem. (grifo nosso)

Nesse ponto, observa-se – portanto -, que toda sentença deve ser composta, em regra, pelo relatório, pelos fundamentos e pela parte dispositiva que, juntos, formam um todo unitário da decisão a ser proferida. Esses elementos serão analisados individualmente a seguir.

2.1.1.1 - O relatório

O relatório é a parte preliminar de uma sentença, a primeira das três partes contida na decisão. Nela, o magistrado deve fazer um resumo do andamento processual, contendo os desdobramentos mais relevantes e apontando os fundamentos do pedido almejado pelo autor, bem como os argumentos levantados pela defesa e os fundamentos de incidentes suscitados durante o transcorrer do processo. O objetivo dessa primeira parte é demonstrar que o juiz conheceu de todo o processo e analisou os pontos controversos, considerando as razoes do pedido e da defesa.

Ressalvadas as hipóteses previstas em lei, o relatório deve integrar toda e qualquer sentença, sob pena de nulidade.

Nessa linha de pensamento, embora trate especificamente de processo penal, Ada Pelegrini Grinover nos ensina que [...] “Visa-se com o relatório verificar se o juiz tomou conhecimento do processo e das alegações das partes antes de efetuar o julgamento. A absoluta falta do relatório conduz a nulidade insanável” do processo. (GRINOVER, 2010)

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), filiando-se à Ada Pelegrini Grinover, acolheu a tese da nulidade absoluta pela ausência do relatório, no julgamento do RMS 25.082/RJ, sob a relatoria da Ministra Denise Arruda:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. AUSÊNCIA DE RELATÓRIO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. NULIDADE CONFIGURADA (ARTS. 165 E 458, DO CPC, E 93, IX, DA CF/88). RECONHECIMENTO DE OFÍCIO.  RECURSO ORDINÁRIO PREJUDICADO. 1. Nos termos dos arts. 165 e 458 do Código de Processo Civil, são requisitos essenciais da sentença o relatório, os fundamentos e o dispositivo. Na hipótese examinada, não foi lavrado o relatório do acórdão que julgou o mandado de segurança impetrado pela ora recorrente, do qual somente constou a fundamentação e a parte dispositiva do julgado. 2. O relatório é requisito essencial e indispensável da sentença e a sua ausência prejudica a análise da controvérsia, suprimindo questões fundamentais para o julgamento do processo. Tal consideração impõe o reconhecimento da nulidade do julgado impugnado, em manifesta violação dos arts. 165 e 458, do Código de Processo Civil, e 93, IX, da Constituição Federal. 3. Precedentes do STJ. 4. Recurso ordinário prejudicado. (RMS 25.082/RJ, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 21/10/2008, DJe 12/11/2008) (grifo nosso)

Como se pode observar no julgado acima, o relatório constitui requisito essencial para a validade da sentença, elemento ensejador de nulidade do julgado se não observado essa formalidade indispensável.

Assim, descrito o andamento processual no relatório, passa-se a análise do mérito da demanda por meio da fundamentação.

2.1.1.2 - Os fundamentos

Os fundamentos da decisão constituem a segunda parte da sentença, caracterizada pela obrigatoriedade imposta ao magistrado de demonstrar as razões que o levaram a decidir de uma ou outra maneira. O dever de fundamento atribuído aos juízes quando da prolação da sentença é uma exigência legal e decorre, inclusive, da própria Constituição Federal, quando nela prevê sobre o Estatuto da Magistratura no art. 93, inciso IX da Carta da República:

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

[...]

IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentados todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. (grifo nosso)

A fundamentação, portanto, é requisito essencial de validade de uma decisão e deve manter um vínculo estrito com as demais partes da sentença, visto que do relatório decorre a fundamentação e, desta, a conclusão que integra a parte dispositiva da sentença.

É na fundamentação que o magistrado vai apontar os dispositivos legais e constitucionais que motivaram a sua decisão, bem como as razões de fato e de direito que influenciaram no resultado da lide apreciada.

Na motivação o juiz necessariamente deve, antes de tudo, tratar de questões preliminares suscitadas pela parte, que deverão ser apreciadas antes do mérito. Nesse sentido, o art. 301 do CPC, quando trata sobre a contestação, prescreve: “Compete-lhe, porém, antes de discutir o mérito, alegar [...]”(grifo nosso), e apresenta várias preliminares que deverão ser analisadas pelo magistrado antes de adentrar o mérito da questão levada em juízo.

Portanto, é na fundamentação que o órgão julgador expressará o enquadramento fático à norma abstrata existente, que culminará nos motivos determinantes da decisão no caso concreto, a chamada ratio decidendi.

Não obstante, os fundamentos da sentença não constituem somente os motivos determinantes (ou ratio decidendi) da decisão, mas abrangem, também, os argumentos ditos de passagem por foça da retórica jurídica e composta de expressões dispensáveis na fundamentação, que não tiveram força determinante no deslinde da controvérsia, os chamados obter dictum.

Sobre a ratio decidendi e o obter dictum serão feitas considerações mais aprofundadas adiante, eis que são elementos essenciais para a aplicação da Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes, objeto do presente trabalho.

2.1.1.3 - O dispositivo

Finalmente e não menos importante, chegamos à conclusão da sentença, a parte dispositiva da decisão.Depois de relatado o andamento processual com o apontamento dos aspectos mais relevantes e após enquadrar o caso concreto à norma abstrata por meio da fundamentação, o julgador passará ao ultimo elemento da sentença, qual seja: o dispositivo.

O dispositivo nada mais é do que a conclusão da sentença. É sobre esta parte da sentença que se formará a coisa julgada material nos processos contenciosos. Nesse sentido é a conclusão dos arts. 467 e 468 do CPC:

Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.

Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.

Assim, a coisa julgada vincula-se diretamente à parte dispositiva da sentença, onde, efetivamente, serão expostos os limites da decisão e o bem da vida discutido na ação.

Nesse sentido, cumpre observar que a parte da sentença que resolverá o bem da vida discutido será a conclusão. Logo, a parte da sentença que, de fato, vincula os litigantes e gera efeitos, inclusive para terceiros, é a parte dispositiva da sentença.

Uma decisão em controle difuso, por exemplo, não terá em sua parte dispositiva a declaração da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma impugnada, já que o objeto principal da lide não é o incidente constitucional em abstrato da norma, mas sim o bem da vida pleiteado. A arguição de inconstitucionalidade é usada apenas como via de defesa para a demonstração do direito que se objetiva no processo analisado.

Portanto, essa análise se processará como incidente e integrará apenas a fundamentação da sentença com o objetivo de aplica-la ou afastá-la, dependendo da conclusão sobre a constitucionalidade, no caso concreto. Nesse caso, a parte dispositiva da sentença se limitará a decidir o bem da vida pleiteado no processo, atribuindo-lhe os limites da decisão a fim de restringir os contornos da coisa julgada.

Logo, tratando-se de incidente de inconstitucionalidade, cuja analise se opera na fundamentação da sentença, a inaplicabilidade de norma declarada inconstitucional somente produzirá efeitos para as partes litigantes e, ainda, somente naquele caso onde foi suscitada a inconstitucionalidade, já que somente a parte dispositiva vincula. Ou seja, se as mesmas partes, pautando-se na mesma norma já declarada inconstitucional, discutirem outro bem da vida qualquer, esta demanda não será atingida pela inconstitucionalidade declarada na demanda anterior, eis que somente o dispositivo da sentença formou a coisa julgada material e, ainda, somente para o bem da vida questionado na demanda originária.

Destarte, a parte principal de uma sentença em nosso ordenamento jurídico é, sem dúvida, o dispositivo já que é a parte que vincula os litigantes e dita os limites da decisão, independente do que foi explanado na fundamentação, respeitando – por óbvio -, a coerência lógica e harmônica entre relatório, fundamentação e dispositivo, sob pena de nulidade da mesma ou, no mínimo, de recurso de embargo de declaração.

2.2 - O exercício do controle difuso de constitucionalidade

O objetivo principal do controle difuso concreto de constitucionalidade é a proteção dos direitos subjetivos, ou, nos ensinamentos de Marcelo Novelino, “do processo constitucional subjetivo.”

Portanto, o exercício desse controle se dá pela análise da compatibilidade da norma impugnada aos mandamentos constitucionais, a fim de se evitar o desrespeito dos direitos subjetivos conferidos pela Norma Maior.

A importância dessa observância de compatibilidade é tamanha que, em que pese não ser unanime, a inconstitucionalidade incidenter tatum de uma norma, por ser apenas uma questão incidental analisada na fundamentação da decisão, pode ser reconhecida inclusive de ofício, sem provocação das partes. (NOVELINO, 2013)

Nesse sentido, cumpre observar o seguinte o julgado:

[...] CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE – SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Todo e qualquer órgão investido do ofício judicante tem competência para proceder ao controle difuso de constitucionalidade. Por isso, cumpre ao Superior Tribunal de Justiça, ultrapassada a barreira de conhecimento do especial, apreciar a causa e, surgindo articulação de inconstitucionalidade de ato normativo envolvido na espécie, exercer, provocado ou não, o controle difuso de constitucionalidade. Considerações. AGRAVO REGIMENTAL – JULGAMENTO SUMÁRIO. A circunstância de o agravo regimental ser examinado de forma sumária é conducente a assentar-se o provimento quando não alcançada a unanimidade no Colegiado – salutar doutrina trazida do Superior Tribunal de Justiça pelo saudoso Ministro Menezes Direito e adotada pelo relator.

(STF - AI: 666523 BA , Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 26/10/2010, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-234 DIVULG 02-12-2010 PUBLIC 03-12-2010 EMENT VOL-02444-02 PP-00415)  (grifo nosso)

Assim, conclui-se que, para o exercício do controle difuso de constitucionalidade, não há, necessariamente, a provocação da parte beneficiada pela inconstitucionalidade para que a analise se processe. Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes no julgamento da ADPF 33:

[...] Não se contesta que, no sistema difuso de controle de constitucionalidade, o STJ, a exemplo de todos os demais órgãos jurisdicionais de qualquer instância, tenha o poder de declarar incidentalmente a inconstitucionalidade da lei, mesmo de ofício [...]. (MENDES, 2006)

Com tais declarações, não restam dúvidas de que havendo fundado receio de inconstitucionalidade por parte do magistrado, este poderá exercer o controle de constitucionalidade da norma de ofício, sem a intervenção das partes.

Isso porque, como dito acima, o objetivo principal do controle difuso de constitucionalidade é verificar se houve ou não a violação de um direito subjetivo decorrente da incompatibilidade entre um ato do poder público e a Constituição vigente no momento em que o fato ocorreu. (NOVELINO, 2013)


3 - O CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE PERANTE O STF

O controle difuso de constitucionalidade, como dito anteriormente, diferentemente do controle abstrato concentrado, caracteriza-se pela possibilidade de qualquer juiz ou tribunal declarar a inconstitucionalidade de lei ou outro ato normativo emanado do poder público. (MORAES, 2011)

Seus efeitos, em regra, são ex nunc e vinculam somente as partes envolvidas na demanda, como vimos no tópico anterior.

Geralmente, o incidente de inconstitucionalidade chega ao Supremo Tribunal por meio de determinado recurso processual ou por incidente suscitado no próprio STF em demandas de competência originária daquela Corte.

A Constituição Federal, em seu art. 102, estabelece as hipóteses em que o STF, como órgão de cúpula do judiciário, deve exercer a proteção dos valores constitucionais a ele confiados.

A forma mais comum do STF apreciar, por meio do controle difuso, a constitucionalidade de uma lei ou ato normativo é mediante o Recurso Extraordinário, ressalvados, no entanto, os casos de competência originária em que o incidente é suscitado no processo que transcorre diretamente na Suprema Corte.

A previsão de exercício do controle difuso de constitucionalidade pelo STF, mediante a utilização do Recurso Extraordinário decorre diretamente da Carta Maior, precisamente em seu art. 102, inciso III, alínea “b”, senão vejamos:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

[...]

III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

a) contrariar dispositivo desta Constituição;

b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;

c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.

d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. (grifo nosso)

Desse modo, excluídos os casos de processos originários daquela Corte, o controle de constitucionalidade difuso exercido pelo STF é suscitado via Recurso Extraordinário interposto pela parte interessada.

Consoante leciona Luiz Guilherme Marinoni, ao tratar da previsão constitucional do Recuro Extraordinário:

[...] esta norma deixa bem claro que a decisão acerca de questão constitucional, proferida na forma incidental em processo destinado ao exame do caso conflitivo concreto, assim como a decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade de competência do Tribunal de Justiça, podem chegar ao STF mediante o sistema recursal, ou melhor, mediante recurso extraordinário. (MARINONI, 2013)

Ou seja, em outras palavras, o Recurso Extraordinário é verdadeiro instrumento recursal de otimização do controle de constitucionalidade difuso exercido pelo Pretório Excelso.

O recurso extraordinário é limitado ao que a doutrina costuma chamar de esgotamento de instância. Ou seja, nas palavras do mestre Marinoni, “[...] o recurso extraordinário apenas é cabível quando não existe outro recurso para impugnar a decisão perante o tribunal[...]”. É, também, esse entendimento que predomina em nossa Corte Constitucional, conforme se extrai da súmula 281 do STF:

STF Súmula nº 281 - 13/12/1963

Admissibilidade - Recurso Extraordinário - Cabimento - Justiça de Origem - Recurso Ordinário da Decisão Impugnada

“É inadmissível o recurso extraordinário, quando couber, na justiça de origem, recurso ordinário da decisão impugnada.” (grifo nosso)

Assim, só é possível a utilização de Recurso Extraordinário quando na justiça de origem não mais houver recurso cabível ao caso concreto.

Na prática, imaginemos uma demanda ajuizada em primeira instância de jurisdição e que teve suscitado o incidente de inconstitucionalidade de lei federal no caso concreto. Digamos que a norma questionada foi declarada inconstitucional e afastada a sua aplicação pelo juiz singular.

Então, a parte prejudicada, inconformada com a decisão, interpôs Recurso de Apelação para o Tribunal de Justiça que, por sua vez, confirmou a inconstitucionalidade da norma, mantendo integralmente a sentença do juízo a quo. Diante da decisão, foi interposto embargo de declaração, não provido pelo Tribunal.

Nesse exemplo, o instrumento processual cabível para combater a decisão do Tribunal é o Recurso Extraordinário direto para o Supremo Tribunal Federal que exercerá o controle de constitucionalidade difuso no caso concreto, nos termos do art. 102, inciso III, alínea “b” da Constituição Federal.

Nesse exemplo, teoricamente, o STF - como Guardião da Constituição - daria a ultima palavra em termos constitucionais e seu entendimento deveria se estender aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública.

Porém, no atual ordenamento jurídico brasileiro, em sede de controle difuso de constitucionalidade, essa vinculação dos demais órgãos ao entendimento do STF não é tão simples como se imagina.

Isso porque os efeitos de uma decisão do Supremo em incidente de constitucionalidade não transcende a demanda em cujo incidente foi suscitado. Seus efeitos, portanto, são mais restritos, conforme veremos.

3.1 - Os efeitos da decisão do STF em controle difuso de constitucionalidade

Quanto aos efeitos da decisão de mérito no controle concentrado de constitucionalidade, não resta dúvidas que são vinculantes e erga omnes, nos termos do art. 102, § 2º, da Constituição Federal:

Art. 102. [...]

§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)  (grifo nosso)

Portanto, não há dúvidas de que a decisão do STF “nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”. (CF, 102, § 2º)

O problema aparece quando analisados os efeitos dessas decisões em sede de controle difuso concreto de constitucionalidade, efeitos ex tunc e inter partes, já que esses efeitos são restritos às partes litigantes no processo em que se impugna a norma. Nos dizeres de Alexandre de Morais:

Declarada incidenter tantum a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo pelo Supremo Tribunal Federal, desfaz-se, desde sua origem, o ato declarado inconstitucional, juntamente com todas as conseqüências dele derivadas, uma vez que os atos inconstitucionais são nulos e, portanto, destituídos de qualquer carga de eficácia jurídica, alcançando a declaração de inconstibicionalidade da lei ou do ato normativo, inclusive, os atos pretéritos com base nele praticados. Porém, tais efeitos ex tunc (retroativos) somente têm aplicação para as partes e no processo em que houve a citada declaração  (MORAIS, 2011) (grifo nosso)

Ou seja, a contrário senso, a decisão não vinculará além dos polos da demanda, bem como não obrigará os demais órgãos judiciário e administrativo, salvo se houver modulação dos efeitos. E é nesse contexto que o problema ganha forma.Sabe-se que o STF é o Guardião Máximo da Constituição (art. 102, caput) e que, em termos constitucionais, ele é o Órgão Mor de interpretação da Carta Magna.

Porém, esse monopólio da ultima palavra sobre a interpretação constitucional resta flexibilizada diante de uma decisão proferida em sede de controle difuso de constitucionalidade.

Isso porque, como explicado acima, uma decisão em controle difuso, mesmo proferida pelo STF, não produz efeitos extra partes. Seus efeitos limitam-se à demanda em si e se restringem a vincular apenas os polos ativo e passivo do caso concreto, isto é, a obrigatoriedade de observância do seu entendimento opera somente nas partes envolvidas no processo em que surgiu o incidente.

Em outras palavras, se o STF decidir sobre a constitucionalidade de determinada norma em sede de controle difuso, tal decisão não vinculará os demais órgãos do Poder Judiciário. Assim, um juízo de primeiro grau poderia, em tese, entender diferentemente do STF e aplicar uma norma já declarada inconstitucional pelo Supremo, o que constituiria total desrespeito à sua decisão.

Para enxergamos o tamanho do problema, imaginemos uma determinada demanda em que foi suscitada a inconstitucionalidade de um dispositivo de uma Lei Federal e que, em sede de controle difuso, o Supremo Tribunal Federal tenha acolhido os argumentos de inconstitucionalidade e entendido que o dispositivo questionado, de fato, era incompatível com a Constituição Federal. Assim, na fundamentação da decisão, o STF levantou os motivos determinantes da inconstitucionalidade do referido dispositivo e, afastando a sua, decidiu o caso concreto.

Ocorre que, em uma determinada comarca, um juízo monocrático, apreciando um caso semelhante em que é questionada a constitucionalidade do mesmo dispositivo, e que já fora declarado inconstitucional pelo STF, poderia simplesmente ter entendimento diferente do Supremo e aplicar o dispositivo questionado sem que essa decisão seja passível de Reclamação no STF, em verdadeira afronta à decisão do Órgão Máximo do judiciário.

O problema é agravado se imaginarmos que, de acordo com o caso acima, um mesmo dispositivo é julgado inconstitucional para uma pessoa e constitucional para outra, em total detrimento ao Principio da Segurança Jurídica e insegurança dos jurisdicionados.

Nesse sentido, no intuito de evitar exatamente a restrição dos efeitos da decisão, em sede de controle difuso de constitucionalidade, o nosso ordenamento jurídico previu um instrumento político de suspensão da execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal a ser exercido pelo Senado Federal. (CF, 52, X). É a participação do Senado no controle difuso de constitucionalidade.

3.2 - A Competência do Senado Federal no Controle Difuso de Constitucionalidade

Antes de debruçarmos efetivamente sobre a análise do papel desempenhado pelo Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade, é necessário compreendermos o contexto em que esse instrumento político de suspensão de lei declarada inconstitucional, em decisão definitiva do STF, foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro.

Inicialmente, vale lembrar que o exame da compatibilidade das leis ordinárias com as normas constitucionais pelo judiciário, o chamado judicial review, teve início nos Estados Unidos no caso Marbury versus Madison em que se consagrou o controle difuso de constitucionalidade. (LEWANDOWSKI, 2007)

Nesse controle, exercido nos Estados Unidos, as decisões proferidas pela Suprema Corte têm eficácia erga omines e efeito vinculante aos demais órgãos do judiciário por força do instrumento chamado stare decisis, em que os precedentes judiciais devem ser obrigatoriamente observados. (MARINONI, 2013)

O Stare decisis é utilizado para garantir a autoridade das decisões da Suprema Corte Constitucional nos Estados Unidos, país que utiliza a estrutura jurídica da commom law, diferentemente de países de origem romanística em que as principais fontes do direito são os textos normativos, característica principal da civil law. Sobre esse ponto, cumpre observar o Ministro Ricardo Lewandowski, no Voto vista da Reclamação 4335/AC, proferida no plenário do dia 19 de abril de 2007, que aborda o tema sob o aspecto histórico quando trata da origem do controle concentrado de constitucionalidade:

[...] Durante o século XX, o sistema norte-americano cedeu espaço para um novo modelo de jurisdição constitucional, originário da Áustria, que se concentra em um único Tribunal, ou melhor, numa Corte Constitucional (Verfassungsgerichtshof). Tal sistema foi idealizado por Kelsen que, a pedido do governo austríaco, colaborou na elaboração da Constituição de 1º de outubro de 1920, conhecida como Oktoberverfassung, que abrigou tal modelo.

Esse sistema de controle concentrado foi adotado especialmente na Europa continental, ou seja, na Alemanha, Bélgica, Espanha, Itália, Iugoslávia, Portugal, Tchecoslováquia, bem como na Turquia, entre outros países.

Consoante CAPPELLETTI, as razões que levaram os referidos países a adotar o sistema concentrado de jurisdição constitucional têm a ver com a origem romanística de seu Direito, ou seja, com a civil law, que não contempla o stare decisis, característico da common law.

Essa particularidade faz com que se mostre recorrente, no sistema da civil law, o problema representado pelo conflito entre normas julgadas constitucionais por alguns juízes, e inconstitucionais por outros. Tal dissonância praticamente não existe no sistema da common law em razão da “força dos precedentes”, que decorre do stare decisis, no qual, como visto, as decisões da Suprema Corte vinculam todos os órgãos do Poder Judiciário. (LEWANDOWSKI, 2007) (grifo nosso)

Como se pode observar com esse trecho do Voto vista do Ministro, o Brasil – por ser um país com característica da civil law –, quando implementou o sistema de controle difuso na primeira Constituição Republicana de 1891, não previu instrumento semelhante ao Stare decisis, utilizado na commom law para atribuir efeitos vinculantes aos precedentes judiciais, fato que ocasionou grande dissonância na jurisprudência do STF quando na solução de conflitos constitucionais, eis que a ausência de instrumento de vinculação de seus julgados abria margem para decisões conflitantes nas instâncias inferiores, ocasionando, com isso, muita insegurança jurídica à época.

Esse destoamento jurídico perdurou até a Constituição de 1934, quando o constituinte atribui ao Senado Federal a competência para suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento declarados inconstitucionais pelo Judiciário. Tal instrumento político de suspensão de lei ou ato normativo estava previsto nos artigos 91, IV, e 96 da Constituição de 1934, nos seguintes termos:

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL (DE 16 DE JULHO DE 1934)

Art 91 - Compete ao Senado Federal:

[...]

IV - suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário;

[...]

Art 96 - Quando a Corte Suprema declarar inconstitucional qualquer dispositivo de lei ou ato governamental, o Procurado Geral da República comunicará a decisão ao Senado Federal para os fins do art. 91, nº IV, e bem assim à autoridade legislativa ou executiva, de que tenha emanado a lei ou o ato. (grifo nosso)

Conforme se percebe, com a implantação desse sistema, o constituinte pretendeu atribuir efeitos vinculantes às decisões de inconstitucionalidade proferidas pela Suprema Corte, como o Stare decisis da commom law, necessitando – para tanto – da atuação efetiva do Senado Federal para alcançar o fim almejado pelo instrumento.

Outra razão para atribuir ao Senado Federal o poder de suspender a execução de lei foi encontrada numa visão já superada do princípio da separação dos poderes. Entendia-se que a suspensão da eficácia da norma em caráter geral deveria depender da manifestação do poder incumbido de criar as leis e não apenas do poder judiciário. (MARINONI, 2013)

Assim, nasceu a importante competência do Senado no controle difuso de constitucionalidade. Tal competência se repetiu nas constituições de 1946 (art. 64), de 1967/69 (art. 42, VII) e a nossa atual Constituição Cidadã de 1988 (art. 52, X). (LEWANDOWSKI, 2007)

Atualmente, esse instrumento político de atribuição de eficácia erga omines  às decisões definitivas do STF, em controle concreto de constitucionalidade, está previsto no artigo 52, inciso X da Constituição Federal:

Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

[...]

X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;

[...]

Na prática, o Supremo Tribunal Federal, após decidir um caso concreto em que se declare a inconstitucionalidade de um dispositivo normativo, oficia ao Senado Federal para que este, nos termos da Constituição, por meio de espécie normativa chamada de Resolução, suspenda a execução da norma declara inconstitucional. Ou seja, o efeito extra partes da norma declarada inconstitucional em sede de controle concreto pelo STF será concluída com a Resolução de suspensão desse dispositivo pelo Senado Federal. (MORAIS, 2011)Cuida-nos, contudo, traçar os limites da competência da Câmara Alta do Congresso Nacional, quando do exercício da competência imposta pelo art. 52, inciso “X” da atual Constituição Federal.

Nesse ponto, sabe-se da relevância do papel do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade para atribuir efeitos gerais em norma declarada inconstitucional em decisão definitiva do STF. Essa competência, diga-se, restringe-se apenas ao controle difuso concreto de constitucionalidade, já que o sistema concentrado abstrato não carece dessa suspensão por já ser dotado de “eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”. (CF, art. 102, §2º)

Contudo, questiona-se se esta suspensão é ato vinculado/obrigatório ou discricionário/facultativo; bem como se estaria o Senado Federal adstrito aos limites da declaração do STF ou se poderia atribuir efeitos para além dos limites fixados na Sentença pelo Pretório Excelso.

Em outras palavras, resta-nos saber se, num determinado caso concreto, caso o STF declarasse inconstitucional um artigo de lei - questionada em um incidente de inconstitucionalidade -, o Senado Federal estaria obrigado a suspender a execução de toda a norma ou se ele estaria ele vinculado a suspender apenas o artigo declarado inconstitucional pelo STF; ou se simplesmente é ato discricionário.

Para suprir essas indagações, nos filiamos ao que leciona Marcelo Novelino quando afirma que:

“A suspensão da execução de lei pelo Senado se restringe às decisões proferidas pelo STF no âmbito do controle difuso (RISTF, art. 178), uma vez que no controle concentrado-abstrato, a decisão já possui eficácia contra todos e efeito vinculante. A suspensão da execução da lei pelo Senado é considerada um ato discricionário. Este é o entendimento adotado pelo STF e pelo Senado que, caso resolva editar a resolução suspensiva, deverá se ater aos exatos limites da decisão proferida pelo STF, não podendo retirar no mundo jurídico normas que não tiveram sua inconstitucionalidade proclamada pelo Tribunal. A suspensão da lei “no todo ou em parte” deve corresponder integralmente a que foi declarado inconstitucional: nem mais, nem menos.” (NOVELINO, 2013) (grifo nosso)

Assim, resta claro que o papel do Senado no controle difuso de constitucionalidade não é ato vinculado - obrigatório - sendo, pois, ato discricionário do Poder Legislativo, classificado como deliberação essencialmente política de alcance normativo. Cabe, portanto, ao Senado examinar a conveniência dessa suspensão.

Por outro lado, também não é facultado ao Senado ampliar ou restringir os efeitos da declaração do Supremo. Estará a Câmara Alta vinculada aos estritos limites da declaração, ou seja, se o STF declarar inconstitucional apenas um dispositivo da norma, não cabe ao Senado suspender toda a lei, mas somente o artigo declarado inconstitucional.

Ressalte-se, por fim, que essa competência do Senado Federal aplica-se a suspensão no todo ou em parte, tanto de lei federal quanto de leis estaduais, distritais ou municipais, declaradas incidentalmente inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. (MORAIS, 2011) Isso porque o Senado, nessa competência, não atua como órgão federal, mas sim como órgão nacional. (NOVELINO, 2013)

Por se ato discricionário, que não gera obrigatoriedade do Senado Federal em suspender a norma declarada inconstitucional pelo Supremo, retomamos o ponto inicial da criação desse mecanismo, ou seja, da insegurança jurídica, já que o Senado, por critério de conveniência ou por sobrecarga da pauta de julgamento daquela Casa Legislativa, deixa de julgar a oportunidade de suspenção das normas inconstitucionais, deixando o instrumento em desuso.

Sobre essa competência, o Ministro Gilmar Mendes vem defendendo a tese de redefiniçao do papel do Senado Federal, propondo uma verdadeira mutação constitucional do artigo 52, X da Constituição Federal, sustentando que essa previsão deve ser interpretada no sentido de o Senado apenas dar publicidade às decisões do STF, as quais já teriam efeitos gerais. Essa tese foi defendida no voto da Reclamação 4335/AC, cujo ministro é relator.

Ora, se o Senado Federal, que é competente para emprestar eficácia erga omines às decisões de inconstitucionalidades proferidas em controle difuso pelo STF, deixa de utilizar este instrumento concedido pela Constituição, coloca o ordenamento jurídico brasileiro em vulnerabilidade, principalmente a supremacia da Constituição, já que o efeito inter partes do controle concreto não permite a transcendência para se aplicar a todos e vincular os demais órgãos do judiciário.

A percepção de que as decisões do STF constituem precedentes constitucionais, que obrigatoriamente devem ser respeitados pelos demais tribunais, tornou imprescindível atribuir eficácia vinculante aos motivos determinantes de suas decisões, não importando se estas são proferidas em sede de controle principal ou incidental. (MARINONI, 2013)

Note-se que é conatural que a eficácia vinculante das decisões do Supremo seja reconhecida em todo e qualquer precedente daquela Corte Constitucional. Porem, a eficácia erga omines, contra todos, necessita da atuação do Senado Federal.

E se o Senado deixa de exercer o seu papel, cabe aos juristas, doutrina e jurisprudência, encontrar a solução para ausência de obrigatoriedade das decisões do STF em controle difuso de constitucionalidade, eis que a insegurança jurídica decorrente dessa inércia da Casa Legislativa não pode, nem deve, afetar os jurisdicionados.

E é nesse contexto que entra o objeto do presente trabalho: a aplicação da Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes nas Decisões do Supremo Tribunal Federal em Controle Difuso de Constitucionalidade com objetivo de atribuir força vinculante aos precedentes da Corte Constitucional.


4 - A IMPORTÂNCIA DA OBRIGATORIEDADE DOS PRECEDENTES DAS CORTES CONSTITUCIONAIS EM PAÍSES QUE ADOTAM O CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE

Nos Estados Unidos, o judicial review, fundado na ideia de Supremacia da Constituição sobre as leis e, precisamente, na tese de que o judiciário tem o poder de controlar a atividade do Legislativo, é entendido no sentido de que todo juiz tem o dever de analisar a compatibilidade da lei com a Constituição.

Nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni:

A partir da premissa de que o juiz, para decidir os casos conflitivos, deve analisar a relação da lei com a constituição, entendeu-se que o juiz americano poderia realizar, incidentalmente, o controle da constitucionalidade. Assim, o poder de afirmação de constitucionalidade e de inconstitucionalidade da lei, nos Estados Unidos, sempre esteve nas mãos do juiz do caso concreto.” (MARINONI, 2013)

Ou seja, a ideia de que qualquer juiz pode fazer a compatibilidade da norma com a constituição e declarar a sua inconstitucionalidade, nasceu nos Estados Unidos e deu origem ao controle difuso, conforme estudamos em tópicos anteriores.

Exatamente por essa característica do controle difuso e pela realidade inafastável de que a lei pode ser interpretada de diversos modos, não há outra alternativa para se preservar a igualdade perante a lei e a segurança jurídica, senão atribuindo a obrigatoriedade de observância dos precedentes judiciais das Cortes Supremas.

Fredie Didier Jr nos ensina que “precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos”. (DIDIER JR, 2008)

Nos Estados Unidos, como país da common law, os precedentes judiciais são observados segundo a teoria do Stare decisis, cuja expressão completa refere-se ao brocardo latino Stare decisis et non quieta movere ("mantenha-se a decisão e não ofenda o que foi decidido").

Juridicamente, o emprego da expressão denota que os precedentes firmados por um tribunal superior são vinculantes para todos os órgãos jurisdicionais inferiores dentro de uma mesma jurisdição. (TEODORO, 2013)Marinoni, citando Cappelletti, quando trata da importância do respeito dos precedentes judiciais das Cortes Constitucionais, adverte:

“É intuitivo que, num sistema que ignora o precedente obrigatório, não há racionalidade em dar a todo e qualquer juiz o poder de controlar a constitucionalidade da lei. Como bem adverte Cappelletti, a introdução no civil law do método americano de controle de constitucionalidade conduziria à consequência de que uma lei poderia não ser aplicada por alguns juízes e tribunais que a entendessem inconstitucional, mas, no mesmo instante e época, ser aplicada por outros juízes e tribunais que a julgassem constitucional. Ademais – diz o professor italiano –, nada impediria que o juiz que aplicasse determinada lei não a considerasse no dia seguinte ou vice-versa, ou, ainda, que se formassem verdadeiras facções jurisprudenciais nos diferentes graus de jurisdição, simplesmente por uma visão distinta dos órgãos jurisdicionais inferiores, em geral compostos de juízes mais jovens e, assim, mais propensos a ver uma lei como inconstitucional, exatamente como aconteceu na Itália no período entre 1948 e 1956. Demonstra Cappelletti que, desta situação, poderia advir uma grave situação de incerteza jurídica e de conflito entre órgãos do Judiciário”. (MARINONI, 2013)

Fica claro, com a citação de Marinoni, que não haveria sentido que, num sistema fundado no direito à igualdade das decisões, na segurança jurídica e, principalmente, na Supremacia da Constituição e da Corte Constitucional, os precedentes constitucionais não fossem respeitados.

Ainda de acordo com Marinoni, não há como esquecer a falta de racionalidade em obrigar alguém a propor uma ação para se livrar dos efeitos de uma lei que em inúmeras vezes já foi afirmada inconstitucional pelo Judiciário.

Para Marcelo Novelino, “[...] o controle difuso seria inadequado para o Brasil por ser um modelo próprio de países do sistema da common law.” E continua, “nos Estados Unidos, onde surgiu esta espécie de controle de constitucionalidade (controle difuso), atribui-se o devido peso aos precedentes dos tribunais superiores (stare decisis), considerados vinculantes para os tribunais inferiores (binding effect). Diferente, portando, do que ocorre no Brasil, onde as decisões proferidas no controle difuso, em tese, têm apenas efeitos inter partes e não vinculam juízes e tribunais inferiores.” (NOVELINO, 2013)

Esse entendimento segue o mesmo caminho do entendimento trilhado por Mauro Cappelletti, quando trata do controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Segundo este autor:

[...] o manifesto insucesso da adoção do controle difuso nos países de tradição romanística (civil law) e as graves consequências resultantes de “conflito e de incerteza foram evitados nos Estados Unidos da América, como também nos outros Países de common law, em que vige o sistema de controle judicial ‘difuso’ de constitucionalidade. Ali vale de fato [...] o fundamental princípio do stare decisis”, por força do qual a decisão proferida pelas cortes superiores de cada jurisdição são vinculantes para as cortes inferiores da mesma jurisdição. “O resultado final do princípio do vínculo aos precedentes é que, embora também nas Cortes (estaduais e federais) norte-americanas possam surgir divergências quanto à constitucionalidade de uma determinada lei, através do sistema das impugnações a questão de constitucionalidade poderá acabar, porém, por ser decidida pelos órgãos judiciários superiores e, em particular, pela Supreme Court, cuja decisão será, daquele momento em diante, vinculatória para todos os órgãos judiciários. Em outras palavras, o princípio do stare decisis opera de modo tal que o julgamento de inconstitucionalidade da lei acaba, indiretamente, por assumir uma verdadeira eficácia erga omnes e não se limita então a trazer consigo o puro e simples efeito da não aplicação da lei a um caso concreto com possibilidade, no entanto, de que em outros casos a lei seja, ao invés, de novo aplicada. Uma vez não aplicada pela Supreme Court por inconstitucionalidade, uma lei americana, embora permanecendo on thebooks, é tornada a dead Law, uma lei morta” (CAPPELLETTI, 1984)

Noutras palavras, os países que adotam o controle de constitucionalidade difuso, importado dos Estados Unidos - como o Brasil -, não podem deixar de respeitar os precedentes da respectiva Corte Constitucional, sob pena de se admitir decisões contrastantes, estimular a litigiosidade e incentivar a propositura de ações sem fundamento em constitucionalidade. Não faz sentido países com raízes romanísticas adotar o modelo americano de constitucionalidade das normas sem atribuir o devido valor vinculativo dos precedentes da Corte Mor em matéria constitucional.

A saída racional para os países de tradição romanística, em que não se adota o Stare decisis, é a adoção de um único sistema de controle de constitucionalidade, qual seja, o concentrado, onde as decisões já são dotadas de eficácia erga omines. (MORINONI, 2013)

Insistir um modelo de controle de constitucionalidade híbrido, como o adotado pelo Brasil, e não dotar o sistema modelo de um instrumento eficaz de atribuição de efeitos gerais em sede de controle concentrado fragilizará o ordenamento jurídico do país, por conta dos motivos expostos acima. Porém, persistindo nesse modelo, torna-se inevitável dotar o sistema de precedentes de natureza constitucionais obrigatórios para que tenham efeitos vinculantes e, indiretamente, também eficácia erga omines. Nesse sentido, Marinoni em nota de rodapé:

Segundo Cappelletti, o stare decisis acaba conferindo à decisão de inconstitucionalidade da lei, ainda que indiretamente, eficácia erga omnes. Fala-se, neste sentido, numa verdadeira transformação da decisão que seria simples cognitio incidentalis de inconstitucionalidade com eficácia restrita ao caso concreto em pronunciamento dotado de eficácia erga omnes (CAPPELLETTI, Mauro. Il controlo giudiziario di costituzionalità delle leggi nel diritto comparato, cit., p. 64). Embora a afirmação de Cappelletti deva ser vista com reservas, pois há diferença entre eficácia erga omnes e eficácia vinculante, é ela digna de nota por significar a necessidade de vincular os juízes às decisões de inconstitucionalidade proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do controle difuso.” (MARINONI, 2013) (grifo nosso, itálico no original)

Portanto, consoante Marinoni, embora a obrigatoriedade dos precedentes vincule somente os órgãos do judiciário, indiretamente, se estará – também - atribuindo efeitos gerais, eis que, num caso concreto, o jurisdicionado também estaria limitado à vinculação do juiz ao precedente da Corte Constitucional. Ou seja, determinada lei não seria aplicada ao jurisdicionado, uma vez que já fora, noutra ocasião, declarada inconstitucional pela Suprema Corte. Nas palavras de CAPPELLETTI, o dispositivo normativo declarado inconstitucional pela Corte Constitucional, “embora permanecendo on thebooks, é tornada a dead Law, uma lei morta.”

No caso do Brasil, o sistema de súmulas vinculantes já prevê a obrigatoriedade de vinculação dos demais órgãos do poder judiciário ao entendimento obtido de reiteradas decisões em matéria constitucional, nos termos do art. 103-A da Constituição Federal, que fora inserido pela Emenda Constitucional (EC) n. 45, chamada de emenda da reforma do judiciário:

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (grifo nosso)

Como se observa, a criação desse sistema é claramente uma tentativa de atribuir caráter obrigatório às decisões do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional. Porém, esse sistema não é satisfatório quando se trata de controle difuso de constitucionalidade, uma vez que um dos requisitos da súmula vinculante é a reiteração de matéria constitucional e, sabe-se que uma decisão no controle concreto não necessita ser reiterada para ser conhecida pelo STF. A Suprema Corte nos Estados Unidos, país da common law, em matéria constitucional não precisa reiterar suas decisões para serem observadas pelos órgãos do judiciário de hierarquia inferior.

Nesse sentido, o próprio STF, por meio do voto do Ministro Gilmar Mendes no RE 376.852/SC, afirma textualmente que a atribuição do efeito vinculante à decisão tomada em controle difuso é dominante, há muito, também no direito americano.

Nas palavras de Rafael Teodoro sobre o Stare decisis dos Estados Unidos:

Dessa maneira, o stare decisis afirma-se, no controle de constitucionalidade estadunidense, como meio destinado a garantir a segurança jurídica do sistema normativo ao forçar a coerência entre o pensamento dos juízes e dos tribunais (com destaque especial para a Corte Suprema). Acorde com essa teoria é conveniente evitar decisões conflitantes diante de casos análogos, de modo que a atividade judicial, em princípio, fica subordinada à ratio decidendi (tese jurídica) consubstanciada no núcleo do precedente vinculante. (TEODORO, 2013)

Portanto, quando se imagina um precedente com eficácia vinculante (stare decisis), surge naturalmente a curiosidade de se saber o que realmente vincula, assim como quem tem autoridade para identificar a porção do precedente hábil a produzir efeito vinculante, ou seja, a identificação da ratio decidendi da decisão. Essa identificação é fundamental quando o precedente não é claro ou há dificuldade em identificar qual a tese que efetivamente foi determinante para a solução do conflito constitucional. (MARINONI, 2013)

Note-se que os fundamentos determinantes, ou simplesmente a ratio decidendi de um precedente nem sempre é obtida de forma imediata ou é de fácil extração. Daí, a importância de se destacar a obtar dicta da ratio decidendi na fundamentação, a fim de se extrair os contornos do precedente e os limites da sua vinculação. 

4.1 - A Ratio decidendi e obter dicta

Numa sentença, cumpre chamar a atenção para dois pontos sensíveis quanto ao conteúdo da fundamentação, quais sejam: a ratio decindendi e o obta ditum; ou dicta no plural.

O significado da obediência de um precedente judicial é encontrado na sua fundamentação, ou seja, nas razões que levaram ao magistrado a decidir de certa maneira ou os fundamentos que culminaram na fixação da parte dispositiva da sentença.

Como óbvio, para se compreender a fundamentação pode ser exigida menor ou maior atenção ao relatório e ao dispositivo. Esses últimos não podem ser ignorados quando se procura o significado de um precedente. O que se quer evidenciar, contudo, é que o significado de um precedente está, essencialmente, na sua fundamentação, e que, por isso, não basta somente olhar à sua parte dispositiva, deve-se identificar os motivos determinantes daquela decisão, a chamada Ratio decidendi. (MARINONI, 2013)

Uma decisão tem sua razão de decidir extraída da norma atribuída ao caso concreto, de tal modo que a ratio decidendi seja obtida na fundamentação, mas com esta não se confunde.

Como vimos no tópico 1.3.1.2, a fundamentação poderá abordar várias teses levantadas pelas partes no caso concreto, bem como poderá valorar essas teses dando mais importância a uma em detrimento de outra. Contudo, a decisão não abordará apenas as teses relevantes, mas terá, também – em seu conteúdo -, abordagens irrelevantes, periféricas, para a decisão da causa, mas de certa importância para a elucidação das teses em que se fundará os motivos determinantes daquela decisão.

Portanto, os motivos verdadeiramente relevantes de uma decisão constituem Ratio decidendi ou, em expressão mais comum, razão da decisão; enquanto que as abordagens periféricas, irrelevantes para o deslinde da causa, aquelas expressões ditas de passagem, constituem o que se costuma chamar de obter ditum; ou dicta no plural.

Não obstante, parte da doutrina entende que a ratio decidendi não decorre somente da parte dos fundamentos da decisão, mas sim de todo o conjunto decisório da sentença, de onde se extrai os fundamentos que realmente foram essenciais e cruciais para a resolução da lide. Nesse sentido, Luiz Gulherme Marinoni:

É preciso sublinhar que a ratio decidendi não tem correspondente no processo civil adotado no Brasil, pois não se confunde com a fundamentação e com o dispositivo. A ratio decidendi, no common law, é extraída ou elaborada a partir dos elementos da decisão, isto é, da fundamentação, do dispositivo e do relatório. Assim, quando relacionada aos chamados “requisitos da sentença”, ela certamente é “algo mais”. E isso simplesmente porque, na decisão do common law, não se tem em foco somente a segurança jurídica das partes – e, assim, não importa apenas a coisa julgada material –, mas também a segurança dos jurisdicionados, em sua globalidade. Se o dispositivo é acobertado pela coisa julgada, que dá segurança à parte, é a ratio decidendi que, com o sistema do stare decisis, tem força obrigatória, vinculando a magistratura e conferindo segurança aos jurisdicionados. (MARINONI, 2013)

Explica o autor que a razão de se conferir obrigatoriedade aos precedentes, por meio da ratio decidendi, não tem haver com a coisa julgada material, pois não se tem foco somente na segurança jurídica das partes envolvidas na demanda, mas sim na segurança jurídica dos jurisdicionado como um todo. Ou seja, a Ratio decidendi não vai ser extraída somente da fundamentação da decisão, mas de todo o conjunto dos elementos essenciais da sentença, quais sejam: relatório, fundamentação e dispositivo.

Em que pese os argumentos do referido autor, filiamo-nos aos que entendem estar a Ratio decidendi na parte da fundamentação da sentença, cuja divisão se dá, como visto acima, em dois pontos distintos: a Ratio decindendi e obter dictum. Nesse entendimento estar Fredie Didier Jr, que citando José Rogério Cruz e Tucci, estabelece que:

No conteúdo da fundamentação, é preciso distinguir o que é ratio decidendi e o que é o obter dictum. A ratio decidendi são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão [...] a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi [...] trata-se da tese jurídica acolhida pelo órgão julgador no caso concreto. A ratio decidendi [...] constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto (rule of law).” [...] “para a correta inferência da ratio decidendi, proõe-se uma operação mental, mediante a qual, invertendo-se o teor do núcleo decisório, se indaga se a conclusão permaneceria a mesma, se o juiz tivesse acolhido a regra invertida. Se a decisão ficar mantida, então a tese originária não pode ser considerada ratio decidendi; caso contrário a resposta será positiva.” (DIDIER, 2006) (grifo nosso)

Como bem explanado pelo citado autor, as razões da decisão são extraídas da fundamentação, por meio de um exercício mental, onde é descartado a obter dicta, ou seja, as partes irrelevantes da sentença, e destacado a ratio decidendi ou as razões da decisão.Noutra esteira, “não há como esquecer que a busca da definição de razões de decidir ou de ratio decidendi parte da necessidade de se evidenciar a porção do precedente que tem efeito vinculante, obrigando os juízes a respeitá-lo nos julgamentos posteriores. No common law, há acordo em que a única parte do precedente que possui tal efeito é a ratio decidendi.” (MARINONI, 2013)

Claro que, migrando a experiência dos precedentes nas cortes americanas à realidade do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade difuso, há que se trabalhar mais as razões de fundamento do voto de cada Ministro no Supremo Tribunal Federal, de modo que, havendo consenso quanto aos motivos que levaram àquela decisão, se extraia do acórdão proferido a ratio decidendi, os fundamentos determinantes da decisão.

Essa tendência de se aproximar os efeitos do controle difuso de constitucionalidade aos efeitos do controle concentrado, a doutrina costuma chamar de abstrativaçao. Parte da doutrina defende que atribuir efeitos abstratos e gerais à decisão em controle difuso de constitucionalidade se estará aproximando mais ainda o concreto do concentrado, eis que se está dando os mesmos efeitos abstratos do controle concentrado ao controle difuso. Nesse sentido:

A [...] abstrativização do controle concreto de constitucionalidade surge no âmbito judicial quando o efeito vinculante e geral é conferido pelo STF em algumas decisões proferidas no controle difuso, trazendo uma discussão em face o papel/função do Senado Federal. O que ocorre é que ao longo dos anos, não vem sendo respeitado o que está expressamente no texto constitucional, no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal, qual seja, a exemplo dos sistemas de pesos e contra pesos que vigora na constituição ou a separação dos poderes, que acaba tornando comum no sistema a decisão com eficácia geral. [...] o fenômeno da abstrativização tanto no controle concreto, como no controle difuso que ocorre com as decisões enfrentadas em ambos os controles, que é visada diante de omissões legislativas. O STF tem ostentando um moderno protagonismo no cenário jurídico brasileiro. (FERREIRA, 2012)

Como se vê, a abstrativação já é uma tendência no judiciário brasileiro, o que contribuirá para a otimização da aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes no âmbito do Supremo Tribunal Federal, em sede de controle de constitucionalidade.

4.2 - A aplicação da Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes e sua aplicação no âmbito do STF

A teoria da transcendência dos motivos determinantes teve origem no direito alemão, sob o entendimento de que o efeito vinculante de uma decisão do Tribunal Constitucional daquele país não se limitava à parte dispositiva da sentença, mas se estendiam, também, ao fundamento determinante do caso concreto.

Nas palavras de Ricardo Muciato Martins:

A teoria da transcendência dos motivos determinantes [...] tem sua origem no direito germânico, por entender o Tribunal Constitucional alemão que o efeito vinculante não pode ser restringido à parte dispositiva de suas decisões, devendo, ao contrário, se estender aos motivos que se mostraram determinantes, ou fundamentais, para se chegar a tal entendimento. A relevância da teoria da transcendência é ampliar o efeito vinculante, fazendo-o alcançar matérias fronteiriças ao verdadeiro objeto da ação, mas que estão umbilicalmente ligadas a este, e que se tornaram também foco da decisão, sendo exaustivamente discutidas e sobre as quais a Corte firmou entendimento. (MARTINS, 2011)

Ou seja, a teoria da transcendência dos motivos determinantes do direito germânico constitui verdadeira Ratio decindend utilizada nas decisões da Suprema Corte americana. Os dois institutos são semelhantes e têm o mesmo objetivo, o de tornar vinculante as razões que justificaram a decisão.

A grande questão da aplicação da teoria dos motivos determinantes é fixar as razões que, de fato, foram cruciais para a decisão. Para tanto, busca-se identificar na fundamentação da decisão a ratio decindend e afastar a obter dictum para que, a partir daí, se extraia os limites do precedente que terá eficácia vinculante.

A teoria da transcendência dos motivos determinantes ganhou amplitude no Brasil por obra do Ministro Gilmar Mendes, quando do julgamento da Reclamação 2126/SP. Nesse sentido, veja-se o entendimento de José Ribas Vieira e Deilton Ribeiro Brasil, em artigo publicado na Revista de Informação Legislativa em 2008:

Como a Constituição Federal coloca em seu vértice maior o Supremo Tribunal Federal, ao poder de criação do direito deve ser reconhecida maior autoridade e, portanto, o poder de vincular os Tribunais inferiores, conforme entendimento defendido no voto proferido pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes na RCL 2126/SP (BRASIL, 2002) em que se consagrou que a eficácia da decisão do Tribunal transcende o caso singular, de modo que os princípios dimanados da parte dispositiva e dos fundamentos determinantes sobre a interpretação da Constituição devem ser observados por todos os Tribunais e autoridades nos casos futuros.

Assim, nos termos do voto do Ministro Gilmar Mendes ao tempo em que foi proferido, era possível concluir que a autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal deviam ser respeitadas pelos demais órgãos do Poder Judiciário. Contudo, essa aplicação se dava somente no controle abstrato de normas, como se infere das palavras do Ministro Gilmar Mendes, na Medida Cautelar na Reclamação 2126/SP, “[...] discute-se, especificamente, acerca das implicações processuais do efeito vinculante oriundo da decisão de mérito em ação direta de inconstitucionalidade”. (MENDES, 2002)

O entendimento sobre a possibilidade de aplicação da teoria dos motivos determinantes, nas decisões do STF, referia-se tão-somente ao controle concentrado de constitucionalidade.

Esse entendimento, contudo, não logrou êxito por muito tempo, sendo afastada a sua aplicação no âmbito Tribunal Constitucional com a mudança de composição dos Ministros daquela corte. A rejeição da possibilidade de aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes pelo STF pôde ser observada em algumas decisões posteriores, como se observa do Voto da Ministra Carmen Lucia, na Reclamação 11.479/CE:

[...] Na espécie vertente, o que pretende o Agravante é valer-se desse instituto para exigir respeito aos fundamentos determinantes aproveitados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 3.715/TO, 1.779/PE e 849/MT, que não teriam sido observados pela autoridade reclamada. No entanto, a aplicação da teoria dos motivos determinantes foi rejeitada por este Supremo Tribunal, sendo exemplo disso: Rcl 5.703- AgR/SP, de minha relatoria, DJe 16.9.2009; Rcl 5.389-AgR/PA, de minha relatoria, DJe 19.12.2007; Rcl 9.778-AgR/RJ, Rel Min. Ricardo Lewandowski, DJe 10.11.2011; Rcl 9.294-AgR/RN, Rel. Min. Dias Toffolli, Plenário, DJe 3.11.2011; Rcl 6.319-AgR/SC, Rel. Min. Eros Grau, DJe 6.8.2010; Rcl 3.014/SP, Rel. Min. Ayres Britto, DJe 21.5.2010; Rcl 2.475- AgR/MG, Redator para o acórdão o Ministro Marco Aurélio, DJe 31.1.2008; Rcl 4.448-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 8.8.2008; Rcl 2.990-AgR/RN, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14.9.2007; Rcl 5.365- MC/SC, Rel. Min. Ayres Britto, decisão monocrática, DJ 15.8.2007; Rcl 5.087-MC/SE, Rel. Min. Ayres Britto, decisão monocrática, DJ 18.5.2007. (grifo nosso)

Como se infere do Voto da Ministra, o STF rejeitou a aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes em sede de controle concentrado de normas, citando vários julgados que reafirmam essa rejeição.

Em suma, o Supremo Tribunal Federal já chegou a aceitar a teoria da transcendência dos motivos determinantes na manifestação de Voto de alguns ministros em sede de controle concentrado de constitucionalidade, mas atualmente, a posição pacífica da Corte é pela sua rejeição.

Contudo, em controle difuso de constitucionalidade, a possibilidade de aplicação dessa teoria não foi rejeitada, eis que a inércia do Senado Federal, para suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo STF, contribui para o aprufundamento das discussões sobre os mecanismos que possam emprestar efeitos vinculantes a essas decisões, como o Stare decisis americano. E um desses instrumentos que possibilita expandir os efeitos de uma decisão em controle difuso é justamente a teoria da transcendência dos motivos determinantes.

Transcender os motivos determinantes, nada mais é do que dotar de eficácia geral os fundamentos da decisão. Essa dificuldade de expandir os efeitos de uma sentença é agravada no controle difuso porque o Brasil adota a teoria restritiva, onde os limites de uma decisão estão na parte dispositiva da sentença, onde se faz a coisa julgada e estão restritos às partes litigantes. Por isso, a importância da adoção da teoria da transcendência dos motivos determinantes.

Para emprestar eficácia erga omines aos fundamentos da sentença, terá que se chegar aos motivos determinantes da decisão. Para tanto, será necessário um trabalho mental intuitivo, onde se afastaria a obter dictum, as expressões irrelevantes ditas de passagem, e se extrairia daquela fundamentação a Ratio decindendi, que constitue exatamente os motivos determinantes da decisão prolatada.

Até recentemente, havia expectativa quanto à possibilidade da aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes em sede de controle difuso de constitucionalidade. O julgamento da Reclamação 4335/AC acendeu as discussões sobre a possibilidade dos efeitos de uma decisão do STF em controle concreto não se limitar ao dispositivo da sentença, mas expandir-se à fundamentação da decisão, questionando-se, então, papel do Senado Federal para suspender a execução de norma declarada inconstitucional.

4.2.1 - Reclamação 4335/AC

A Reclamação 4335/AC questiona os efeitos da declaração do STF sobre progressão de regime de condenado por crime hediondo.

A Lei 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos), no parágrafo 1º do artigo 2º, vedava a progressão de regime para condenados por crimes nela previstos.

Porem, o STF, em fevereiro de 2006, reconheceu a possibilidade de progressão de regime de condenados por crimes hediondos no julgamento do Habeas Corpus 82959 (controle difuso), declarando, por seis votos contra cinco, a inconstitucionalidade o parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos), que proibia tal progressão.

Ocorre que essa declaração de inconstitucionalidade se deu em controle concreto, onde a norma foi afastada na fundamentação da sentença do Habeas Corpus, não surtindo nenhum efeito extra parte além daqueles decorrentes do dispositivo da decisão, obrigando somente os envolvidas na própria demanda.

O Senado Federal, oficiado a respeito dessa declaração, permaneceu inerte, não suspendendo a execução do dispositivo declarado inconstitucional, conforme competência constitucional.

Nesse contexto, alguns condenados por crimes hediondos no Município de Rio Branco no Acre, assistidos pela Defensoria Pública da União (DPU) e pautados nessa decisão de inconstitucionalidade do Supremo, peticionaram ao juiz das execuções penais daquela Comarca que lhes negou a progressão de regime sob o seguinte argumento:

[...]conquanto o Plenário do Supremo Tribunal, em maioria apertada ,(...) tenha declarado incidenter tantum a inconstitucionalidade do (6 votos x 5 votos) art. 2o, § 1o da Lei 8.072/90 , por via do Habeas Corpus n. 82.959, isto após dezesseis anos (Crimes Hediondos) dizendo que a norma era constitucional, perfilho-me a melhor doutrina constitucional pátria que entende que no controle difuso de constitucionalidade a decisão produz efeitos inter partes.[...]( Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco)

Ou seja, o Juiz aplicou ao caso concreto o dispositivo que já havia sido declarado inconstitucional pelo STF, causando, com isso, insegurança jurídica e desrespeitando um entendimento da Corte Máxima em matéria constitucional e que recebeu a incumbência de Guardião da Constituição.

Inconformada com a decisão negativa, a DPU apresentou em 2006 Reclamação direto no STF, que foi distribuída sob o n. 4.335/AC, pautada na alegação de que a decisão do magistrado havia desrespeitado o entendimento firmado pela Corte Constitucional de que, independente do crime praticado, a possibilidade de progressão de regime decorrente da individualização da pena era um direto amparado pela própria Carta da República, entendimento que cominou na declaração de inconstitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei de Crimes Hediondos.

O cerne dessa Reclamação estava na discussão sobre o seu cabimento ou não no Supremo, eis que a decisão paradigmática (HC 82959) se deu em controle difuso de constitucionalidade, não se podendo falar em desrespeito da decisão do STF até que o Senado Federal cumprisse o seu papel de suspender a execução da norma declarada inconstitucional, já que os efeitos, nesse controle, são inter partes.

Ocorre que a referida Reclamação foi distribuída ao Ministro Gilmar Mendes, maior defensor da mudança do papel do Senado no controle difuso de constitucionalidade. Mendes, em seu Voto, defende uma mutação constitucional, da interpretação do inciso X, art. 52 da Constituição Federal, para que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle difuso já gozem de eficácia erga omines e o Senado apenas atribua publicidade àquela decisão.

Havendo, de fato, a mutação constitucional proposta pelo Ministro Gilmar Mendes, deixaria de ter relevância a aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes, já que seria refutada pelos efeitos gerais que decorreriam da decisão no controle difuso de constitucionalidade. Isto é, os fundamentos da decisão que, no caso, seria a inconstitucionalidade da norma, já teriam efeitos transcendentes para alcançar a parte da fundamentação, não se restringindo à parte dispositiva da decisão.

Portanto, se o Supremo conhecesse da Reclamação, estaria adotando a teoria do Ministro Gilmar Mendes sobre a mutação constitucional. Porem, se a rejeitasse, descartaria a proposta do Ministro Relator e se concedia habeas corpus de ofício, conforme propôs alguns Ministros. (Px. Ricardo Lewandowski)

Não obstante, durante o decurso processual da Reclamação, o Supremo Tribunal, em 2009, editou a Súmula Vinculante 26, nos seguintes termos:

STF Súmula Vinculante nº 26 - PSV 30 - DJe nº 35/2010 - Tribunal Pleno de 16/12/2009 - DJe nº 238, p. 1, em 23/12/2009 - DOU de 23/12/2009, p. 1Progressão de Regime no Cumprimento de Pena por Crime Hediondo - Inconstitucionalidade - Requisitos do Benefício - Exame Criminológico.

Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.

Isso significa que a Reclamação agora poderia ser conhecida, pois o desrespeito à Súmula Vinculante enseja a possibilidade de apresentação de Reclamação, o que acabou acontecendo no julgamento da referida Reclamação em julgado deste ano de 2014.Assim, restou prejudicada a análise apurada do papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade, ficando o inciso X, art. 52 da Constituição Federal intacto quanto à sua interpretação.

Com o não reconhecimento da mutação constitucional proposta pelo Ministro Gilmar Mendes, a aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes, em sede de controle difuso de constitucionalidade no STF, ganha reforço, eis continuamos com a incongruência jurídica de uma mesma norma ser declarada inconstitucional para uma pessoa e constitucional para outra. Tal incongruência gera insegurança jurídica, desrespeito à autoridade do Supremo e flexibiliza a Supremacia da Constituição.


5 - CONSIDERAÇÕES GERAIS

Como se pôde observar, a dissonância jurídica causada pela ausência de efeitos vinculativos das decisões, em controle de constitucionalidade difuso, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, gera consequências que trincam, dentre outros princípios constitucionais, a segurança jurídica, além de enfraquecer a própria constituição, causando transtornos aos jurisdicionados.

Assim, atribuir força aos precedentes da Corte Mor, em matéria Constitucional, é reforçar a segurança e rigidez do ordenamento jurídico pátrio, objetivo que o constituinte de 1934 pretendia quando dotou o Senado Federal de competência para suspender a execução das normas declaradas inconstitucionais pelo STF, atribuindo-lhes efeitos gerais e vinculantes.

Ocorre, porem, que a inércia do Senado Federal, não pode ser óbice capaz de engessar o Judiciário, principalmente o Supremo Tribunal que tem o poder dever de buscar mecanismos efetivos de proteção da Supremacia da Constituição e do respeito da autoridade de suas decisões.Um dos mecanismos que se poderia adotar para atribuir efeitos vinculantes às decisões do Supremo Tribunal em controle difuso de constitucionalidade seria a aplicação da Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes. Com a aplicação dessa teoria se evitaria a esdrúxula possibilidade de uma mesma norma ser declarada inconstitucional pelo STF para uma pessoa e, ao mesmo tempo, constitucional para outra pessoa por um outro juiz, evitando, assim, dois pesos e duas medidas.

Portanto, no presente trabalho, tentou-se mostrar a importância e a necessidade de se atribuir efeitos gerais e vinculantes às decisões do STF em sede de controle de constitucionalidade difuso, pela a adoção da Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes, a fim de se evitar consequências inadmissíveis para a segurança jurídica em países que adotam esse sistema concreto de constitucionalidade.


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Autor

  • Rafael da Silva Pantoja

    Graduação em Direito pela Escola Superior Batista do Amazonas (ESBAM-2014) Atualmente, Servidor Público Federal - Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (TRE/AM). Chefe de Cartório Eleitoral (Portaria TREAM 585/2015 - 44ª Zona Eleitoral - Pauini/Am) Trabalhou na Assembleia Legislativa do Amazonas (ALEAM). Advogado (OAB/AM 10272). Foi servidor concursado do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM)

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Informações sobre o texto

Trabalho de conclusão de curso como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel. Escola Superior Batista do Amazonas. Curso de graduação em Direito. Trabalho sob orientação da profª. Ma. Natasha Lazzaretti

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PANTOJA, Rafael da Silva. A aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes nas decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4453, 10 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42194. Acesso em: 19 abr. 2024.