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Homicídios passionais: evolução histórica e jurídica

Homicídios passionais: evolução histórica e jurídica

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RESUMO: Delibera sobre o homicídio passional e sua evolução histórica e jurídica.  O presente estudo tem início com breves considerações sobre o crime de homicídio. Na sequência foram abordados os principais aspectos do homicídio simples, homicídio privilegiado e do homicídio qualificado. Logo após, adentrou-se as particularidades que caracterizam o homicídio passional. Seguidamente buscou-se mostrar que entre os motivos que levam à conduta do delito passional destacam-se o ciúme, a rejeição, o sentimento de vingança e a possessividade. Os homicidas, frequentemente desequilibrados no seu psíquico, acreditam que as vítimas são suas propriedades. Dessa maneira cometem o delito e afirmam que sua ocorrência se deu em “nome da paixão”.  O objetivo do artigo é explorar a evolução da punibilidade do homicida passional devido ao avanço sociocultural ocorrido através dos anos. Com o intuito de alcançar o fim proposto foram utilizadas obras de notáveis doutrinadores, artigos e produções científicas a respeito do tema. Ao final, por intermédio da abordagem do tema pode-se concluir que a doutrina majoritária e a jurisprudência dominante não mais consideram o autor do crime como o sujeito que comete o delito por amor, afirmando que a sua prática advém de uma mistura de sentimentos derivados do egoísmo e não da paixão.

Palavras-chave: Homicídio passional. Possessividade. Punibilidade. Vingança.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho possui como alvo uma análise sobre o homicídio, em especial o passional, abarcando-se a evolução da penalidade do delito impelido por paixão na constituição brasileira. Mesmo com o grande número de crimes nessa modalidade ocorrentes no Brasil, o ordenamento jurídico pátrio não faz alusão ao homicídio passional, apenas tratando-o como uma das vertentes do homicídio, com previsão legal no artigo 121 do Código Penal Brasileiro.

O delito passional é um crime motivado pelos sentimentos de ódio, posse, rejeição, vingança, na maioria das vezes, cometido por autores desequilibrados psicologicamente, ocorrendo o crime em consequência de um “amor conturbado” e por vezes não correspondido. Para sua motivação concorre um complexo de sentimentos egoísticos. Trata-se, na sua mais perfeita exatidão, de uma paixão doentia, cercada de ciúme, possessividade e desejo de vingança.

O homicídio passional é repleto de questões socioculturais. Durante várias décadas a reflexão da sociedade era direcionada para a superioridade do homem e dependência da mulher. Assim, o homem traído foi por muitos anos beneficiado pela tese da legítima defesa da honra. Posteriormente, em decorrência do aumento de índice do delito foi enquadrado nas hipóteses de homicídio privilegiado ou qualificado, podendo classificá-lo somente após análise dos fatos concretos.

Contudo, os inúmeros casos de delitos e a crueldade existente neles fizeram com que o autor deixasse de ser beneficiado pela excludente de ilicitude da legítima defesa e passasse a responder pelo crime de forma mais severa. Como forma de auxílio e tendo como norte o grande número de vítimas mulheres tornou-se necessária a criação de uma lei que objetivasse a proteção do sexo feminino. Nesse intuito surge a Lei nº. 11.340/2006, passando a garantir medidas protetivas às vitimas.

Este artigo tem como objetivo elaborar uma linha sobre a transformação da punição do homicida passional com o caminhar dos anos. Para tanto, inicia-se com um estudo acerca do homicídio e suas modalidades, será dado em seguida enfoque ao homicídio cometido em função da paixão e a posteriori analisa-se a evolução histórico e jurídico do crime passional. 


METODOLOGIA

A metodologia utilizada neste artigo de revisão foi pesquisa bibliográfica a partir de argumentos teóricos, doutrina, revistas, artigos periódicos, entre outras fontes, relevantes para a construção da presente pesquisa científica. O estudo será desenvolvido tendo como base os livros de Direito Penal como: Curso de Direito Penal parte geral e parte especial dos autores Rogério Greco, Cezar Bitencourt e Damásio e Jesus, com relação à doutrina específica optou-se pela obra intitulada “A paixão no banco dos réus” de autoria da Desembargadora Luiza Nagib Eluf. Assim, serão concretizadas ponderações com a finalidade de tornar evidentes os propósitos deste trabalho.


CONSIDERAÇÕES SOBRE O HOMICÍDIO

De acordo com Cunha (2013, p.238), “O homicídio é a conduta na qual uma pessoa ceifa a vida de outrem [...] tutela-se a vida extrauterina, iniciada com o parto”.

O ato de matar alguém se embasa em findar a vida de outrem. Esse delito pode ser executado por qualquer pessoa, do mesmo modo o sujeito passivo pode ser qual ser humano. O bem jurídico tutelado é a vida humana.

Conforme os ensinamentos de Greco (2014, p.132), o homicídio é considerado o pior dos delitos que o homem pode praticar. É o que se vê no texto abaixo:

De todas as infrações penais, o homicídio é aquela que, efetivamente, desperta mais interesse. O homicídio reúne uma mistura de sentimentos- ódio, rancor, inveja, paixão, etc.- que o torna um crime especial, diferente dos demais. Normalmente quando estamos diante dos criminosos profissionais, o homicida é autor de um único crime, do qual normalmente se arrepende.

Corrobora com o entendimento Bitencourt (2010, p.45), consoante texto seguinte:

Homicídio é a eliminação da vida de alguém levada a efeito por outrem. Embora a vida seja um bem fundamental do ser individual-social, que é o homem, sua proteção legal constitui um interesse compartido do individuo e do Estado. A importância do bem vida justifica a preocupação do legislador brasileiro, que não se limitou a protegê-la com a tipificação do homicídio, em graus diversos simples, privilegiado e qualificado, mas lhe reservou outras figuras delituosas, como o aborto, o suicídio e o infanticídio, que, apesar de serem figuras autônomas, não passam de extensões ou particularidades daquela figura central, que pune a supressão da vida de alguém.


PRINCIPAIS ASPECTOS DO HOMICIDIO SIMPLES

O homicídio simples se alicerça basicamente no verbo e seu objeto, sem preceituar qualquer circunstância da ação do agente, pode-se observar através do ensinamento de Bitencourt (2010, p.53):

O homicídio simples, em tese, não é objeto de qualquer motivação especial, moral ou imoral, tampouco a natureza dos meios empregados ou dos modos de execução apresenta algum relevo determinante, capaz de alterar a reprovabilidade, para além ou para aquém da simples conduta de matar alguém.

O homicídio será simples quando não se acomodar-se nas modalidades privilegiada ou qualificada. Admite-se ainda nesse delito a figura da tentativa. Sobre o assunto aduz Greco (2014, p.133):

O homicídio simples, previsto no caput do art. 121 do Código Penal, cuja pena de reclusão varia de 6 (seis) a 20 (vinte) anos, possui a redação mais compacta de todos os tipos penais incriminadores, que diz: matar alguém. É composto, portanto, pelo núcleo matar e pelo elemento objetivo alguém. Matar tem o significado de tirar a vida; alguém a seu turno, diz respeito ao ser vivo nascido de mulher. Assim, o ato de matar alguém tem o sentido de ocisão da vida de um homem por outro homem.


PRINCIPAIS ASPECTOS DO HOMICIDIO PRIVILEGIADO

O homicídio na sua espécie privilegiada encontra previsão no § 1º do artigo 121 do Código Penal, significa que o crime possui uma causa especial de redução de pena. Nesse mesmo parágrafo é possível observar três situações diferentes. Na primeira parte a minorante será utilizada quando o sujeito ativo comete o delito compelido por um motivo de relevante valor social, como por exemplo, homem matar traidor da pátria. Com relação ao valor moral, o agente possui interesses particulares como o sentimento de compaixão, exemplo cita-se o homicida que com o intuito de livrar o sofrimento de um doente terminal desliga aparelho vital.  A terceira privilegiadora diz respeito ao homicídio emocional. O agente comete o crime logo em seguida à injusta provocação do agente, agindo de imediato.

Sobre o relevante valor social sustenta Greco (2014, p.133):

Relevante valor social é aquele motivo que atende aos interesses da coletividade. Não interessa tão somente ao agente, mas, sim, ao corpo social. A morte de um traidor da pátria, no exemplo clássico da doutrina, atenderia à coletividade, encaixando-se no conceito de valor social. Podemos traçar um paralelo com a morte de um político corrupto por um agente revoltado com a situação de impunidade do país, em que o Direito Penal, de acordo com a sua característica de seletividade, escolhe somente a classe mais baixa, miserável, a fim de fazer valer a sua força.          

No tocante ao delito impelido por motivo de relevante valor social e moral firma De Jesus (2014, p.95):

Para alguns o CP é redundante ao falar em motivo social ou moral, uma vez, que segundo eles, um abrange o outro. Na verdade as duas expressões evitam interpretação duvidosa. Motivo de relevante valor social ocorre quando a causa do delito diz respeito a um interesse coletivo. A movimentação então é ditada em face de um interesse que diz respeito a todos os cidadãos de uma coletividade.

Sendo reconhecido o privilégio nos crimes de homicídio será obrigatória a redução da pena. Não se trata, portanto, de uma faculdade do juiz e sim de um dever. Assim, o delito deve ter redução de um sexto a um terço. Sobre esse entendimento assevera Greco (2014, p. 147), “Embora a lei diga que o juiz pode reduzir a pena, não se trata de faculdade do julgador, senão direito subjetivo do agente em ver diminuída sua pena, quando seu comportamento se amoldar em uma das situações elencadas pelo parágrafo”.


PRINCIPAIS ASPECTOS DO HOMICIDIO QUALIFICADO

O § 2º do artigo 121 do Código Penal aborda as hipóteses em que o homicídio será qualificado. Essa modalidade de homicídio é considerada crime hediondo conforme o artigo 1º da Lei 8.072 de 1990:

Art. 1º São considerados crimes hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, consumados ou tentados:

I. Homicídios (art.121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado.

 Nos incisos I e II a qualificadora é no que tange aos motivos determinantes, o inciso III trata dos meios, o IV da forma e por fim o inciso V que trata da conexão com outro crime.

Os incisos I e II do citado artigo correspondem ao crime cometido em virtude de pagamento ou promessa deste, motivo fútil ou torpe. Ensina Greco (2014, p. 155), que “torpe é o motivo que causa repugnância, nojo sensação de repulsa pelo fato praticado pelo agente”. No que diz a paga ou promessa de recompensa afirma ainda que esta pode ter ou não cunho patrimonial.

 No inciso III a qualificadora corresponde ao emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum. A respeito do meio insidioso e cruel explica De Jesus (2014, p.100):

Meio insidioso existe no homicídio cometido por intermédio de estratagema, perfídia. O veneno é um meio insidioso [...] meio cruel é aquele que causa sofrimentos à vítima, não incidindo se empregado depois da morte. O fogo pode ser meio cruel ou de que possa resultar perigo comum, conforme as circunstâncias.

Conforme inciso IV a forma utilizada para concretização da infração são: traição, emboscada, mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível à defesa do ofendido. De acordo com Nucci apud Greco (2014, p. 162):

“Trair significa enganar, ser infiel, de modo que, no contexto do homicídio, é a ação do agente que colhe a vítima por trás, desprevenida, sem ter esta qualquer visualização do ataque. O ataque súbito, pela frente pode constituir surpresa, mas não a traição”.

Sobre os fins, trata o inciso V que estes podem ser utilizados para assegurar a execução, a ocultação, impunidade ou vantagem de outro crime. Haverá, portanto, conexão com outro delito.


 O HOMICÍDIO PASSIONAL

O termo passional deriva da palavra paixão, expõe o Dicionário Aurélio (2000, p. 518), passional é “relativo à paixão; suscetível de paixão; causado por paixão”. Com relação ao significado da palavra paixão continua afirmando o Dicionário Aurélio (2000, p. 519), é uma espécie de “afeto violento, amor ardente, vício dominador”.

No ambiente jurídico combinaram-se intitular de passional os crimes ocorridos, principalmente, em razão de relacionamento amoroso ou sexual.

Sobre o tema, Plácido & Silva (1990, p. 326), afirma: “passional” é o vocábulo empregado na terminologia jurídica, especialmente do Direito Penal, para designar o que se faz por paixão, isto é, por uma exaltação ou irreflexão, consequente de um amor desmedido.

A respeito do assunto crimes passionais Eluf, ensina que estes são cometidos em virtude da paixão sendo o crime passional sequente a uma paixão alicerçada no ódio, na posse, na vingança, no ciúme possuindo natureza psicológica, pois tem o poder de transformar a mente humana.

Certos homicídios são chamados de “passionais”. O termo deriva de “paixão”; portanto, crime cometido por paixão. Todo crime é, de certa forma, passional, por resultar de uma paixão no sentido amplo do termo. Em linguagem jurídica, porém, convencionou-se chamar de “passional” apenas os crimes cometidos em razão de relacionamento sexual ou amoroso (ELUF, 2007, p.156).

Com referência à análise sobre a conduta do homicida, prossegue a mesma autora defendendo que:

Em uma primeira análise, superficial e equivocada, poderia parecer que a paixão, decorrente do amor, tornaria nobre a conduta do homicida, que teria matado por não suportar a perda de seu objeto de desejo ou para lavar sua honra ultrajada. No entanto, a paixão que move a conduta criminosa não resulta do amor, mas sim do ódio, da possessividade, do ciúme ignóbil, da busca da vingança, do sentimento de frustração aliado à prepotência, da mistura de desejo sexual frustrado com rancor.  Paixão não é sinônimo de amor. Pode decorrer do amor e, então, será doce e terna, apesar de intensa e perturbadora; mas a paixão também resulta do sofrimento, de uma grande mágoa, da cólera. Por essa razão, o prolongado martírio de Cristo ou dos santos torturados é chamado de “paixão” (ELUF, 2007, p.156).

A preocupação principal dos indivíduos que realizam o crime passional é com imagem e honra perante a sociedade. Para eles pouco importa a sanção legal.  Continua Eluf, os seus estudos sobre os delitos passionais e assevera:

Os homicidas passionais trazem em si uma vontade insana de auto-afirmação. O assassino não é amoroso, é cruel. Ele quer, acima de tudo, mostrar-se no comando do relacionamento e causar sofrimento a outrem. Sua história de amor é egocêntrica. Em sua vida sentimental, existem apenas ele e sua superioridade. Sua vontade de subjugar. Não houvesse a separação, a rejeição, a insubordinação e, eventualmente, a infidelidade do ser desejado, não haveria necessidade de eliminá-lo (Eluf, 2007, p.159).

Por fim, aborda, Toigo (2010, p.13), que a sociedade por razões morais e psicológicas entende os crimes passionais como inaceitáveis, conforme se pode constatar na citação abaixo transcrita:

Os crimes passionais são crimes que chocam a sociedade em virtude da repúdia inaceitável do “matar por amor” por razões morais e psicológicas. Com características bem peculiares, o homicídio passional, uma espécie de vingança privada, cresce de forma desordenada e comumente visível em noticiários e reportagens jornalísticas diárias. O homicídio passional, assim denominado por ser um crime que deriva da paixão, do ciúme, de um sentimento amoroso e da possessão, já teve sua sentença decretada de diversas formas, ora o autor do delito era absolvido, ora condenado.

Nada obstante, atenta-se que o delito analisado é um crime que relaciona ligame afetivo e sexual entre os agentes, e apesar de ser decorrente da paixão, não pode ser confundido com o amor, pois, a circunstância que leva a concretização do ato é um complexo de sentimentos nocivos como o sentimento de posse e ciúme doentio.


EVOLUÇÃO HISTÓRICA E JURÍDICA DO HOMICÍDIO PASSIONAL

O crime passional existe incessantemente desde o início da civilização humana. Abrange o delito, a paixão perturbadora, motivada por sentimentos característicos do homem. Sobre isso, pontifica Eluf (2007, p.158):

A literatura mundial está repleta de romances que relatam homicídios passionais. Tanto se escreveu sobre o tema, e de forma por vezes tão adocicada, que se criou uma aura de perdão em torno daquele que mata seu objeto de desejo. O homicídio passional adquiriu glamour, atraiu público imenso ao teatro e, mais modernamente, ao cinema; foi, por vezes, tolerado, resultando disso muitas sentenças judiciais absolutórias até que a sociedade, de maneira geral, e as mulheres, de forma especial, por serem as vítimas prediletas dos tais “apaixonados”, insurgiram-se contra a impunidade e lograram mostrar a inadmissibilidade da conduta violenta “passional”.

Durante o período colonial, o meio para solução dos conflitos existentes no Brasil era as ordenações do Reino de Portugal, dentre elas, destacam-se as Ordenações Filipinas, que vedavam a represália privada com exceção a duas hipóteses: nos casos de crimes contra a ordem pública e quando houvesse adultérios da mulher contra o marido. Assim, as normas da época davam aos homens o arbítrio para matarem suas esposas e seus amantes nos casos de traição ou a simples suspeita desta.

Pierangeli sobre as Ordenações Filipinas aduzia:

Mandamos que o homem, que dormir com mulher casada, e que em fama de casada stiver, morra por ello. Porém se o adultero for de maior con-dição, que o marido dela, assi como, se o tal adultero fosse fidalgo, e o marido cavaleiro ou scudeiro , e o marido peão, não farão as jus-tiças nelle execução, até nol-o fazerem saber, e verem sobre isso nosso mandado. E toda mulher, que fizer adultério a seu marido morra por isso (PIERANGELI, 2001, p. 113).

Com relação ao homicídio cometido em decorrência de suspeita de adultério Eluf, enfatiza que:

O exemplo de paixão assassina, trazido por Shakespeare em Otelo, é bastante atual, pois mostra o aspecto doentio daquele que mata sob o efeito de suspeitas de adultério por parte de sua esposa. Após o crime, o grande dramaturgo atribui ao matador a seguinte frase: “Dizei, se o quereis, que sou um assassino, mas por honra, porque fiz tudo pela honra e nada por ódio”. Na verdade, a palavra “honra” é usada para significar “homem que não admite ser traído”. Aquele que mata e depois alega que o fez para salvaguardar a própria honra está querendo mostrar à sociedade que tinha todos os poderes sobre sua mulher e que ela não poderia tê-lo humilhado ou desprezado. Os homicidas passionais não se cansam de invocar a honra, ainda hoje, perante os tribunais, na tentativa de ver perdoadas suas condutas.  (Eluf, 2007, p.157,158).

As ordenações Filipinas perduraram até o ano de 1830, em seguida, no mesmo ano foi instituído o primeiro código penal brasileiro conhecido com Código Criminal do Império. Nessa época a mulher adúltera deveria cumprir de um a três anos de prisão como forma de um castigo e aqueles considerados “loucos de todos os gêneros” seriam absolvidos. As novas regras deixaram de contemplar crime o homicídio cometido sob total perturbação dos sentidos, ficando fora do elenco dos réus os assassinos investidos de loucura.  Pierangeli (2001, p.263), a respeito do crime de adultério no Código Criminal do Império ensina: “Art. 250- a mulher casada que cometer o adultério será punida com a pena de prisão com trabalho por um a três anos.”.

O código posterior, datado de 1890, recebeu o nome de Código Criminal Republicano. Surgiu a possibilidade de diminuir ou absolver a pena dos homicidas alegando que estes cometiam o delito em virtude da privação dos sentidos.

O código Criminal Republicano reconhecia que a condição emocional do homicida passional era excessiva ao ponto de levar a uma insanidade momentânea, sendo executado sob condição de absoluta perturbação dos sentidos, elidindo a ilicitude do crime.

Nessa época, ao Júri não caberia mais o poder de deliberar sobre as razões do réu. A partir de então só seria conceituado como louco aquele que estava sobre absoluta “falta de inteligência e domínio dos sentidos”, acerca disso Eluf (2007, p.162), aduz que:

 [...] deixava de considerar crime o homicídio praticado sob um estado de total perturbação dos sentidos e da inteligência. Entendia que determinados estados emocionais, como aqueles gerados pela descoberta do adultério da mulher, seriam tão intensos que o marido poderia experimentar uma insanidade momentânea. Nesse caso, não teria responsabilidade sobre seus atos e não sofreria condenação criminal.

Cabe frisar que a figura do adultério continuou prevista no código de 1890 e sua pena manteve-se a mesma. Foi necessária a consolidação das leis penais em virtude da criação das mesmas, assim, teve origem à Consolidação das Leis Penais de 1932, preservando o mesmo entendimento do código vigente.

A Consolidação das Leis Penais de 1932 teve duração até o ano de 1940. Todavia, o Código Penal Brasileiro datado do mesmo ano baniu a excludente de ilicitude alusivo à “perturbação dos sentidos e da inteligência”, prevendo esse código que a emoção ou a paixão não excluiriam a imputabilidade penal. No código de 1940 o homicídio foi abordado no artigo 121, conforme ensinamentos de Cunha (2013, p.132):

Art 121. Matar alguem:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

Caso de diminuição de pena

§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

Homicídio qualificado

§ 2° Se o homicídio é cometido:

I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;

II - por motivo futil;

III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;

IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossivel a defesa do ofendido;

V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:

Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

Homicídio culposo

§ 3º Se o homicídio é culposo:

Pena - detenção, de um a três anos.

Aumento de pena

§ 4o No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos.

§ 5º - Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.

§ 6º- A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio.

Nessa seara, sobre a imputabilidade da “perturbação dos sentidos”, afirma Bitencourt (2010, p.426), que somente as doenças mentais podem servir como modificadores da culpabilidade:

[...] os estados emocionais ou passionais só poderão servir como modificadores da culpabilidade se forem sintomas de uma doença mental, isto é, se forem estados emocionais patológicos. Mas, nessas circunstâncias, já não se tratará de emoção ou paixão, estritamente falando, e pertencerá à anormalidade psíquica, cuja origem não importa, se tóxica, traumática, congênita, adquirida ou hereditária. O trauma emocional pode fazer eclodir um surto psicótico, e, nesse estado, pode o agente praticar um delito. No entanto, aí o problema deve ser analisado à luz da inimputabilidade ou da culpabilidade diminuída, nos termos do art. 26 e seu parágrafo único.

Destarte, o assassino não ficaria mais inatingível, auferindo uma pena inferior a atribuída ao homicídio simples. Apesar da mudança advinda com o código de 1940, grande maioria da população admitia a ideia de que a traição seria motivo relevante para o homicídio. Desse modo, nasceu à tese da chamada legítima defesa da honra e da dignidade, quando parte dos responsáveis pelos homicídios passou a responder na modalidade de homicídio privilegiado.

Até a década de 60, os homicidas podiam ser absolvidos pela legítima defesa da honra. Na década posterior, por influência dos movimentos feministas, a impunidade começou a diminuir. Por volta do início dos anos 80, o Código Penal, já desatualizado, não abarcava mais as necessidades da sociedade, principalmente no tocante às mulheres. Então, no ano de 1984 ocorreu uma reformulação do Código Penal com o intuito de ser finalizada toda discriminação contra a mulher por parte do Estado.

Nos tempos atuais, apesar dos avanços angariados na legislação brasileira no que tange à garantia dos direitos fundamentais, como também a evolução do posicionamento das mulheres frente às questões sociais, econômicas, culturais, entre outras, elas ainda continuam sendo vítimas de seus maridos, ex-maridos, companheiros, ex-companheiros, namorados e ex-namorados.

Cabe enfatizar que, como consequência do elevado número de crimes, aumentou-se consideravelmente a condenação dos homicidas passionais pelo Tribunal do Júri, sendo, na maioria das vezes, o réu condenado por homicídio qualificado, e deixando um pouco de lado a condenação na modalidade privilegiada.

Num contexto geral, o crime passional qualificado, passou a receber pena mais severa, desse modo o homicida não pode desfrutar da anistia, graça, indulto, fiança, liberdade provisória e progressão no regime prisional, sendo que a sua condenação em reclusão deverá ser cumprida em regime plenamente fechado.

No ano de 1994 a Lei nº 8.072/90 conhecida como Lei dos Crimes Hediondos foi alterada em virtude do movimento coordenado pela autora Glória Perez em decorrência do assassinato de sua filha Daniella Perez, morta por 18 golpes de tesoura, por seu colega de novela, o também ator Guilherme de Pádua em conjunto com sua esposa Paula Thomaz. A partir de então, o homicídio qualificado passou a fazer parte do rol de crimes hediondos. Dessa maneira, por ser o crime passional na maioria das vezes, cometido por um motivo torpe e, portanto, qualificado, passou em grande parte ser considerado um crime hediondo.

Visando a elucidar o entendimento aqui abordado, cuja doutrina majoritária defende o crime passional como qualificado, Eluf (2007, p.11), afirma que:

É importante mostrar que o homicídio passional, em regra, é qualificado, não privilegiado. Qualificado pelo motivo que é torpe (vingança), pelo uso de recurso que dificulta ou impede a defesa da vítima (surpresa), pelo emprego de meio cruel (vários tiros ou facadas no rosto, no abdome, na virilha). Não é privilegiado porque, na grande maioria dos casos, o agente não se encontra sob o domínio de violenta emoção logo em seguida a injusta provocação da vítima.

Ribeiro (2004, p.45) discute o homicídio passional apresentando reflexões sobre o amor. É o que se vê no texto abaixo:

[...] quando se fala em homicídio passional, entende-se significar o homicídio por amor. Mas, será que o amor, esse nobre sentimento humano, que se entristece de fantasia e sonho, de ternura êxtase, de suaves emoções e íntimos enlevos, e que nos purifica de nosso próprio egoísmo e maldade, para incutir-nos o espírito da renuncia e do perdão, será, então que o amor possa deturpar-se num assomo de cólera vingadora e tomar de empréstimo o punhal do assassino? Não. O verdadeiro amor é timidez e mansuetude, é resignação é conformidade com o insucesso, é santidade, é a autossacrifício: não se alia jamais ao crime. O amor que mata, o amor açougueiro, é uma contrafação monstruosa do amor, é o animalesco egoísmo da posse carnal, é o despeito do macho preterido e a vaidade da fêmea abandonada [...] o passionalismo que vai até o crime muito pouco tem haver com o amor.[...].

Conforme explanado anteriormente é certo que a paixão é o sentimento que por vezes pode derivar no ódio, obsessão, desejo de vingança e uma série de sentimentos que tem o desejo de posse como norte. Eluf ensina que a paixão sozinha não é motivo suficiente para concretização do delito:

A paixão não basta para produzir o crime. Esse sentimento é comum aos seres humanos, que, em variáveis medidas, já o sentiram ou sentirão em suas vidas. Nem por isso praticaram a violência ou suprimiram a existência de outra pessoa.  A paixão não pode ser usada para perdoar o assassinato, senão para explicá-lo. É possível entrever os motivos que levam um ser dominado por emoções violentas e contraditórias a matar alguém, destruindo não apenas a vida da vítima mas, muitas vezes, sua própria vida, no sentido físico ou psicológico. Sua conduta, porém, não perde a característica criminosa e abjeta, não recebe a aceitação social  (Eluf, 2007, p. 157).


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final deste estudo chega-se ao entendimento de que é característico do homem conduzir-se no êxtase dos seus sentimentos e, em decorrência desse impulso, realizar atos reprováveis pela sociedade, justifica-se assim a circunstância do delito passional sempre existir independente do lugar e da época no percurso da humanidade. A mistura de sentimentos egoísticos afeta a mente humana de modo a atingir o comportamento e a vida do homem. Diante desses sentimentos o indivíduo, aparentemente normal, pode se tornar um assassino cruel.

Características como o sentimento de posse e de domínio, na maioria das vezes existentes nos homicídios passionais, estão historicamente presentes na educação do sexo masculino, fazendo com que o homem seja o maior autor dos delitos passionais. Busca o homem rejeitado, como forma de se sentir superior aniquilar aquela que o desprezou. É certo que é normal à conduta humana a mágoa e até mesmo a raiva quando se tem uma decepção amorosa. Nada obstante, é indiscutível que o homicídio passional não pode ser conhecido como crime de amor, pois o sujeito que se vangloria e satisfaz com o óbito do seu companheiro em nenhum momento pode falar em amor. O amor é sentimento digno, sublime, saudável e superior, não pode, portanto, ser contrafeito por algo tão desprestigiado como o homicídio passional. Por fim, conclui-se que o amor e paixão não podem ser utilizados para perdoar o homicida, mas auxilia-nos a entender a estremeção criminosa. Por ser um anseio comum aos homens, o procedimento de quem a invoca não se extravia da característica criminosa e não se deve, portanto, admitir a aceitação da sociedade.


REFERÊNCIAS

ARCARI, I. O atual entendimento acerca do homicídio passional. Monografia (Bacharelado em Direito)- Universidade do Vale do Itajaí- UNIVALE. 2010

BITENCOURT, C. R. Tratado de direito penal – parte geral 1. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 

BITENCOURT, C. R. Tratado de direito penal – parte especial 2. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 

BRASIL. Lei n .8072. 25 de Julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos.

BRASIL. Lei n .11.340. 7 de agosto de 2006. Dispõe sobre a violência doméstica.

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Autores

  • Eujecio Coutrim Lima Filho

    Delegado de Polícia Civil no Estado de Minas Gerais. Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA, RJ). Mestre em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (UNESA, RJ). Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Estado da Bahia (UFBA, BA). Graduado em Direito pelo IESUS (BA). Professor de Direito Processual Penal na UNIFG (BA) e na FAVENORTE (MG). Professor nos cursos de pós-graduação da UNIFG/UNIGRAD (BA) e da ACADEPOL (MG). Ex-Advogado. Ex-Juiz Leigo do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Autor de obras jurídicas. Colunista do Canal Ciências Criminais.

    Textos publicados pelo autor

  • Tuana Ranielli Fernandes Cotrim

    Bacharel em Direito. Faculdade Guanambi-FG/CESG.

    Textos publicados pela autora


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