Homicídios passionais: evolução histórica e jurídica

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Resumo:


  • O homicídio passional é motivado por sentimentos como ódio, posse, rejeição, vingança e ciúme, sendo cometido na maioria das vezes por indivíduos desequilibrados psicologicamente.

  • A evolução histórica e jurídica do homicídio passional mostra que antigamente a legítima defesa da honra era utilizada como justificativa, mas com o avanço sociocultural, o crime passional passou a ser considerado qualificado e até mesmo hediondo.

  • A paixão, por si só, não pode ser usada como justificativa para o homicídio, pois o verdadeiro amor é tímido, manso, resignado e não se alia ao crime, sendo o homicídio passional uma deturpação monstruosa do amor.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA E JURÍDICA DO HOMICÍDIO PASSIONAL

O crime passional existe incessantemente desde o início da civilização humana. Abrange o delito, a paixão perturbadora, motivada por sentimentos característicos do homem. Sobre isso, pontifica Eluf (2007, p.158):

A literatura mundial está repleta de romances que relatam homicídios passionais. Tanto se escreveu sobre o tema, e de forma por vezes tão adocicada, que se criou uma aura de perdão em torno daquele que mata seu objeto de desejo. O homicídio passional adquiriu glamour, atraiu público imenso ao teatro e, mais modernamente, ao cinema; foi, por vezes, tolerado, resultando disso muitas sentenças judiciais absolutórias até que a sociedade, de maneira geral, e as mulheres, de forma especial, por serem as vítimas prediletas dos tais “apaixonados”, insurgiram-se contra a impunidade e lograram mostrar a inadmissibilidade da conduta violenta “passional”.

Durante o período colonial, o meio para solução dos conflitos existentes no Brasil era as ordenações do Reino de Portugal, dentre elas, destacam-se as Ordenações Filipinas, que vedavam a represália privada com exceção a duas hipóteses: nos casos de crimes contra a ordem pública e quando houvesse adultérios da mulher contra o marido. Assim, as normas da época davam aos homens o arbítrio para matarem suas esposas e seus amantes nos casos de traição ou a simples suspeita desta.

Pierangeli sobre as Ordenações Filipinas aduzia:

Mandamos que o homem, que dormir com mulher casada, e que em fama de casada stiver, morra por ello. Porém se o adultero for de maior con-dição, que o marido dela, assi como, se o tal adultero fosse fidalgo, e o marido cavaleiro ou scudeiro , e o marido peão, não farão as jus-tiças nelle execução, até nol-o fazerem saber, e verem sobre isso nosso mandado. E toda mulher, que fizer adultério a seu marido morra por isso (PIERANGELI, 2001, p. 113).

Com relação ao homicídio cometido em decorrência de suspeita de adultério Eluf, enfatiza que:

O exemplo de paixão assassina, trazido por Shakespeare em Otelo, é bastante atual, pois mostra o aspecto doentio daquele que mata sob o efeito de suspeitas de adultério por parte de sua esposa. Após o crime, o grande dramaturgo atribui ao matador a seguinte frase: “Dizei, se o quereis, que sou um assassino, mas por honra, porque fiz tudo pela honra e nada por ódio”. Na verdade, a palavra “honra” é usada para significar “homem que não admite ser traído”. Aquele que mata e depois alega que o fez para salvaguardar a própria honra está querendo mostrar à sociedade que tinha todos os poderes sobre sua mulher e que ela não poderia tê-lo humilhado ou desprezado. Os homicidas passionais não se cansam de invocar a honra, ainda hoje, perante os tribunais, na tentativa de ver perdoadas suas condutas.  (Eluf, 2007, p.157,158).

As ordenações Filipinas perduraram até o ano de 1830, em seguida, no mesmo ano foi instituído o primeiro código penal brasileiro conhecido com Código Criminal do Império. Nessa época a mulher adúltera deveria cumprir de um a três anos de prisão como forma de um castigo e aqueles considerados “loucos de todos os gêneros” seriam absolvidos. As novas regras deixaram de contemplar crime o homicídio cometido sob total perturbação dos sentidos, ficando fora do elenco dos réus os assassinos investidos de loucura.  Pierangeli (2001, p.263), a respeito do crime de adultério no Código Criminal do Império ensina: “Art. 250- a mulher casada que cometer o adultério será punida com a pena de prisão com trabalho por um a três anos.”.

O código posterior, datado de 1890, recebeu o nome de Código Criminal Republicano. Surgiu a possibilidade de diminuir ou absolver a pena dos homicidas alegando que estes cometiam o delito em virtude da privação dos sentidos.

O código Criminal Republicano reconhecia que a condição emocional do homicida passional era excessiva ao ponto de levar a uma insanidade momentânea, sendo executado sob condição de absoluta perturbação dos sentidos, elidindo a ilicitude do crime.

Nessa época, ao Júri não caberia mais o poder de deliberar sobre as razões do réu. A partir de então só seria conceituado como louco aquele que estava sobre absoluta “falta de inteligência e domínio dos sentidos”, acerca disso Eluf (2007, p.162), aduz que:

 [...] deixava de considerar crime o homicídio praticado sob um estado de total perturbação dos sentidos e da inteligência. Entendia que determinados estados emocionais, como aqueles gerados pela descoberta do adultério da mulher, seriam tão intensos que o marido poderia experimentar uma insanidade momentânea. Nesse caso, não teria responsabilidade sobre seus atos e não sofreria condenação criminal.

Cabe frisar que a figura do adultério continuou prevista no código de 1890 e sua pena manteve-se a mesma. Foi necessária a consolidação das leis penais em virtude da criação das mesmas, assim, teve origem à Consolidação das Leis Penais de 1932, preservando o mesmo entendimento do código vigente.

A Consolidação das Leis Penais de 1932 teve duração até o ano de 1940. Todavia, o Código Penal Brasileiro datado do mesmo ano baniu a excludente de ilicitude alusivo à “perturbação dos sentidos e da inteligência”, prevendo esse código que a emoção ou a paixão não excluiriam a imputabilidade penal. No código de 1940 o homicídio foi abordado no artigo 121, conforme ensinamentos de Cunha (2013, p.132):

Art 121. Matar alguem:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

Caso de diminuição de pena

§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

Homicídio qualificado

§ 2° Se o homicídio é cometido:

I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;

II - por motivo futil;

III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;

IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossivel a defesa do ofendido;

V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:

Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

Homicídio culposo

§ 3º Se o homicídio é culposo:

Pena - detenção, de um a três anos.

Aumento de pena

§ 4o No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos.

§ 5º - Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.

§ 6º- A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio.

Nessa seara, sobre a imputabilidade da “perturbação dos sentidos”, afirma Bitencourt (2010, p.426), que somente as doenças mentais podem servir como modificadores da culpabilidade:

[...] os estados emocionais ou passionais só poderão servir como modificadores da culpabilidade se forem sintomas de uma doença mental, isto é, se forem estados emocionais patológicos. Mas, nessas circunstâncias, já não se tratará de emoção ou paixão, estritamente falando, e pertencerá à anormalidade psíquica, cuja origem não importa, se tóxica, traumática, congênita, adquirida ou hereditária. O trauma emocional pode fazer eclodir um surto psicótico, e, nesse estado, pode o agente praticar um delito. No entanto, aí o problema deve ser analisado à luz da inimputabilidade ou da culpabilidade diminuída, nos termos do art. 26 e seu parágrafo único.

Destarte, o assassino não ficaria mais inatingível, auferindo uma pena inferior a atribuída ao homicídio simples. Apesar da mudança advinda com o código de 1940, grande maioria da população admitia a ideia de que a traição seria motivo relevante para o homicídio. Desse modo, nasceu à tese da chamada legítima defesa da honra e da dignidade, quando parte dos responsáveis pelos homicídios passou a responder na modalidade de homicídio privilegiado.

Até a década de 60, os homicidas podiam ser absolvidos pela legítima defesa da honra. Na década posterior, por influência dos movimentos feministas, a impunidade começou a diminuir. Por volta do início dos anos 80, o Código Penal, já desatualizado, não abarcava mais as necessidades da sociedade, principalmente no tocante às mulheres. Então, no ano de 1984 ocorreu uma reformulação do Código Penal com o intuito de ser finalizada toda discriminação contra a mulher por parte do Estado.

Nos tempos atuais, apesar dos avanços angariados na legislação brasileira no que tange à garantia dos direitos fundamentais, como também a evolução do posicionamento das mulheres frente às questões sociais, econômicas, culturais, entre outras, elas ainda continuam sendo vítimas de seus maridos, ex-maridos, companheiros, ex-companheiros, namorados e ex-namorados.

Cabe enfatizar que, como consequência do elevado número de crimes, aumentou-se consideravelmente a condenação dos homicidas passionais pelo Tribunal do Júri, sendo, na maioria das vezes, o réu condenado por homicídio qualificado, e deixando um pouco de lado a condenação na modalidade privilegiada.

Num contexto geral, o crime passional qualificado, passou a receber pena mais severa, desse modo o homicida não pode desfrutar da anistia, graça, indulto, fiança, liberdade provisória e progressão no regime prisional, sendo que a sua condenação em reclusão deverá ser cumprida em regime plenamente fechado.

No ano de 1994 a Lei nº 8.072/90 conhecida como Lei dos Crimes Hediondos foi alterada em virtude do movimento coordenado pela autora Glória Perez em decorrência do assassinato de sua filha Daniella Perez, morta por 18 golpes de tesoura, por seu colega de novela, o também ator Guilherme de Pádua em conjunto com sua esposa Paula Thomaz. A partir de então, o homicídio qualificado passou a fazer parte do rol de crimes hediondos. Dessa maneira, por ser o crime passional na maioria das vezes, cometido por um motivo torpe e, portanto, qualificado, passou em grande parte ser considerado um crime hediondo.

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Visando a elucidar o entendimento aqui abordado, cuja doutrina majoritária defende o crime passional como qualificado, Eluf (2007, p.11), afirma que:

É importante mostrar que o homicídio passional, em regra, é qualificado, não privilegiado. Qualificado pelo motivo que é torpe (vingança), pelo uso de recurso que dificulta ou impede a defesa da vítima (surpresa), pelo emprego de meio cruel (vários tiros ou facadas no rosto, no abdome, na virilha). Não é privilegiado porque, na grande maioria dos casos, o agente não se encontra sob o domínio de violenta emoção logo em seguida a injusta provocação da vítima.

Ribeiro (2004, p.45) discute o homicídio passional apresentando reflexões sobre o amor. É o que se vê no texto abaixo:

[...] quando se fala em homicídio passional, entende-se significar o homicídio por amor. Mas, será que o amor, esse nobre sentimento humano, que se entristece de fantasia e sonho, de ternura êxtase, de suaves emoções e íntimos enlevos, e que nos purifica de nosso próprio egoísmo e maldade, para incutir-nos o espírito da renuncia e do perdão, será, então que o amor possa deturpar-se num assomo de cólera vingadora e tomar de empréstimo o punhal do assassino? Não. O verdadeiro amor é timidez e mansuetude, é resignação é conformidade com o insucesso, é santidade, é a autossacrifício: não se alia jamais ao crime. O amor que mata, o amor açougueiro, é uma contrafação monstruosa do amor, é o animalesco egoísmo da posse carnal, é o despeito do macho preterido e a vaidade da fêmea abandonada [...] o passionalismo que vai até o crime muito pouco tem haver com o amor.[...].

Conforme explanado anteriormente é certo que a paixão é o sentimento que por vezes pode derivar no ódio, obsessão, desejo de vingança e uma série de sentimentos que tem o desejo de posse como norte. Eluf ensina que a paixão sozinha não é motivo suficiente para concretização do delito:

A paixão não basta para produzir o crime. Esse sentimento é comum aos seres humanos, que, em variáveis medidas, já o sentiram ou sentirão em suas vidas. Nem por isso praticaram a violência ou suprimiram a existência de outra pessoa.  A paixão não pode ser usada para perdoar o assassinato, senão para explicá-lo. É possível entrever os motivos que levam um ser dominado por emoções violentas e contraditórias a matar alguém, destruindo não apenas a vida da vítima mas, muitas vezes, sua própria vida, no sentido físico ou psicológico. Sua conduta, porém, não perde a característica criminosa e abjeta, não recebe a aceitação social  (Eluf, 2007, p. 157).

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Sobre os autores
Eujecio Coutrim Lima Filho

Delegado de Polícia Civil no Estado de Minas Gerais. Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA, RJ). Mestre em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (UNESA, RJ). Especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Estado da Bahia (UFBA, BA). Graduado em Direito pelo IESUS (BA). Professor de Direito Processual Penal na UNIFG (BA) e na FAVENORTE (MG). Professor nos cursos de pós-graduação da UNIFG/UNIGRAD (BA) e da ACADEPOL (MG). Ex-Advogado. Ex-Juiz Leigo do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Autor de obras jurídicas. Colunista do Canal Ciências Criminais.

Tuana Ranielli Fernandes Cotrim

Bacharel em Direito. Faculdade Guanambi-FG/CESG.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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