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A outorga conjugal nos atos de alienação ou oneração de bens imóveis

A outorga conjugal nos atos de alienação ou oneração de bens imóveis

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Uma das inovações advindas da vigência do Código Civil de 2002 reside na dispensa da outorga conjugal quando da alienação ou constituição de ônus reais sobre imóveis, desde que o regime seja o da separação absoluta (art. 1.647, inciso I). De plano duas indagações surgem para o operador do direito, especialmente da área notarial, quais sejam: - o regime da separação "absoluta" é o convencional, o obrigatório ou ambos? - os casamentos anteriores ao código estarão abrangidos pelo dispositivo tendo em vista o que preceitua o art. 2039, do CCB?

No diploma maior do direito privado de 1916 (art. 235, I) qualquer que fosse o regime de bens entre os cônjuges era mister que na alienação ou oneração de bens imóveis houvesse a anuência do outro. Nesse sentido, embora o outro cônjuge não comparecesse ao ato como vendedor ou outorgante, era necessária a sua comparência para expressar a outorga uxória ou marital, conforme o caso.

Com a vigência do novo Código, a exemplo do anterior, existem dois tipos de separação de bens no casamento, quais sejam: o convencional, como o próprio nome diz, resultante da convenção entre os nubentes, através de pacto antenupcial, regrado pelos artigos 1687 e 1688 do CCB; e o obrigatório, resultante do casamento onde certas circunstâncias previstas em lei impõem que o mesmo seja celebrado exclusivamente com adoção do regime de separação legal obrigatória (art. 1641). Acontece que o artigo 1647 depõe no sentido de que no regime da separação absoluta não é necessário o comparecimento do outro cônjuge nos atos jurídicos delineados em seus incisos.

Segundo Venosa (Direito Civil, vol VI) "... o novo diploma aboliu a restrição quando o regime de bens entre os cônjuges é o da separação absoluta. Quando não se comunicam de forma alguma os bens de cada consorte..." (1). Diante desta assertiva podemos intuir que o regime de separação absoluta a que o artigo se refere é o da separação convencional. Entretanto, dito doutrinador, mais adiante, ao comentar a exceção legal ao princípio de livre escolha do regime patrimonial entre os nubentes, ou seja, o regime da separação legal obrigatória, qualifica-o como "separação absoluta de bens" (2). É notória a confusão doutrinária que se pode estabelecer em relação ao tema. Por isso a decisão de enfrentá-lo.

Para maior esclarecimento da questão entendemos necessária uma reflexão a respeito dos efeitos que cada um dos regimes operava na codificação anterior, bem como o tratamento doutrinário e jurisprudencial que lhes foi emprestado até então, não deixando de lado, por necessário à perfeita aplicação do direito hoje codificado, verificar o que atualmente o Código Civil disciplina.

O artigo 259 do Código Civil de 1916 estabeleceu um "celeuma doutrinário e jurisprudencial" ao prever que embora o regime de bens não fosse o da comunhão universal, no silêncio do contrato (o grifo é nosso) prevalecem os princípios dela quanto aos bens havidos durante o casamento. Com relação ao regime de separação convencional (através de pacto antenupcial = contrato) é pacífica a aplicação do dispositivo quando houvesse omissão no ajuste preliminar no que diz respeito à questão. Quanto ao regime obrigatório a resolução se deu através da súmula 377 do STF que determina a comunicação dos aqüestos no regime da separação legal de bens (obrigatória).

O artigo referido não foi recepcionado pelo Código Civil vigente. Assim, entendemos que o único regime onde não existe possibilidade de comunicarem-se os bens é o da separação expressamente convencionada através de pacto antenupcial, o que nos leva a concluir que o legislador a qualifica como absoluta. No que diz respeito a separação obrigatória (legal) entende-se aplicável, ainda, a súmula referida, havendo assim possibilidade de comunicarem-se os bens adquiridos durante o casamento, motivo pelo qual desqualifica-se a mesma como absoluta. Podemos concluir, então, que em relação ao primeiro problema formulado em nosso estudo, a outorga uxória ou marital somente é dispensada nos casos arrolados nos incisos do artigo 1647 quando o regime de bens for o da separação convencional.

Com mais propriedade ainda podemos ratificar o que acima foi dito baseado no que dispõe o artigo 1687 do Código Civil que possibilita a cada um dos cônjuges alienar ou gravar livremente os bens quando a separação de bens for "estipulada".

Quanto ao segundo enfoque deste ensaio, ao vislumbrarmos o que preceitua o art. 2039, do Código Civil, assombra-nos a seguinte dúvida: a dispensa da outorga somente é aplicável para os casamentos efetuados após a vigência do Código Civil ou também para os anteriores?

Para melhor podermos colocar o problema trazemos a lição histórica contida nos comentários ao Novo Código Civil, entabuladas sob a coordenação do relator final Deputado Ricardo Fiuza, quando expressa: "O Texto original do projeto proposto à Câmara dos Deputados consignava a seguinte redação: "O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916 é o por ele estabelecido, mas se rege pelas disposições do presente código". Durante a passagem do projeto pelo Senado Federal emenda do Senador Josaphat Marinho deu ao dispositivo a redação atual. Segundo o Senador "houve necessidade de se promover a modificação porque se, como dito na parte inicial do dispositivo, ‘o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916 é o por este estabelecido’, não se regerá pelo novo. Dúvida que porventura surja, será apreciada em cada caso". (3)

Para possibilitar a interpretação que nos parece mais adequada neste momento nada melhor do que a palavra do legislador. Ora, se o legislador suprimiu a expressão "mas rege pelas disposições do presente código" foi exatamente para extirpar qualquer tipo de dúvida: fez permanecer tão somente o mandamento segundo o qual o regime é o estabelecido pelo Código de 1916, devendo aplicar-se as disposições do mesmo aos casamentos celebrados na sua vigência.

Reforça esta tese a doutrina contida na obra em comento, assinada por Maria Helena Diniz, quando expressa: "Regime de bens de casamento celebrado sob a égide do Código Civil de 1916: As relações econômicas entre os cônjuges regem-se pelas normas vigentes por ocasião das nupcias. Se assim é, o Código Civil de 1916, art. 256 a 314, por força da CF/88, art. 5°, XXXVI, e da LICC, art. 6°, irradiará seus efeitos, aplicando-se ao regime matrimonial de bens dos casamentos celebrados durante sua vigência, inclusive na vacatio legis, respeitanto, dessa forma, as situações jurídicas definitivamente constituídas". (4)

Nesse sentido, se o cônjuge ao casar-se sob o regime da separação de bens, na vigência do Código anterior, esperava que os efeitos se produzissem conforme a Lei, ou mais especificamente, que no caso de venda ou oneração de imóveis por seu consorte seria indispensável sua presença no ato jurídico para expressar a sua anuência, estes efeitos devem permanecer mesmo com a vigência de um novo ordenamento.

Reforça a posição acima a anotação feito por Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, em seu Novo Código Civil e legislação extravagante anotados, quando depõem: "O sistema do novo Código, quanto ao regime de bens, principia por fixar regra absolutamente distinta da que existe para os casamentos celebrados sob a vigência do CC/1916. Para os casamentos celebrados antes da vigência do novo Código prevalece a regra do CC/1916". (5)

Neste momento não encontramos vozes discordantes na doutrina em relação ao tema proposto o que, sem sobra de dúvidas deverá ocorrer pois, como bem disso o Senador que alterou o dispositivo: "Dúvida que porventura surja, será apreciada em cada caso". Como os notários e aplicadores do direito em geral devem zelar pela validade dos negócios jurídicos em que intervém como agentes da paz social e no sentido da purificação dos mesmos, qualificando-os como "biologicamente normais", entendemos que deverá ser solicitada a anuência do outro cônjuge nos casos previstos nos incisos do artigo 235 do Código Civil de 1916, notadamente nas alienações e onerações de bens imóveis, em respeito ao que estabelece o artigo 2039 do Código Civil de 2002, aplicando-se o artigo 1647 somente para os casamentos celebrados pelo regime da separação convencional de bens, na vigência do Código de 2002.


Notas

1. Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família – 3ª Ed. – São Paulo: Atlas, v. 1., p. 1251.

2. Ibid. p. 174

(3) Novo Código Civil Comentado/ Coordenador: Ricardo Fiuza. – São Paulo: Saraiva, 2002, p. 1858

(4) Ibid., p. 1838

(5) Nery Junior, Nelson. Novo Código Civil e legislação extravagante anotados: atualizado até 15.03.2002/ Nelson Nery Junior, Rosa Maria de Andrade Nery. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 657


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KOLLET, Ricardo Guimarães. A outorga conjugal nos atos de alienação ou oneração de bens imóveis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 136, 19 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4502. Acesso em: 25 abr. 2024.