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A mulher e o Direito: as relações de gênero nas carreiras jurídicas

A mulher e o Direito: as relações de gênero nas carreiras jurídicas

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Análise do papel da mulher diante das carreiras jurídicas, observando as diferenciações por gênero. Demonstra através de fatos históricos o estereótipo que as considera inferiores ou incapazes.

Resumo: Desde os primórdios as mulheres estiveram sujeitas ao ideal de servilismo e dominação, sejam por seus pais, irmãos, maridos ou pela sociedade machista que mitigava o acesso feminino aos diversos âmbitos sociais, entretanto, o papel da mulher transformou-se na história de acordo com as evoluções sociais. O presente trabalho tem por objetivo analisar, através de pesquisas bibliográficas, o papel da mulher diante das carreiras jurídicas, observando as diferenciações por gênero. Demonstra através de fatos históricos o estereótipo construído, considerando-as sempre frágeis, inferiores ou incapazes. Procura explicitar as relações sociais estabelecidas diante das conquistas nos mais distintos cargos do judiciário e as dificuldades enfrentadas pelas mulheres nos diversos tempos e âmbitos sociais. Relata a evolução do papel feminino perante o universo jurídico, as objeções enfrentadas pelas primeiras desbravadoras do direito brasileiro e os obstáculos que tiveram que ultrapassar para chegarem aos mais importantes postos do judiciário. Dessa maneira, seja por revoluções ativas ou silenciosas, as mulheres conquistam a cada dia o seu espaço dentro da sociedade brasileira, marcada pelo machismo e patriarcalismo, passam da subordinação à liderança. Todavia, este é um processo incompleto e com enormes lacunas, sendo inegável o reconhecimento de que ainda convivemos com padrões de desigualdade e dominação por gênero, inclusive no âmbito jurídico.

PALAVRAS-CHAVE: Mulher, diferenciação por gênero, carreiras jurídicas.


1.Introdução

Desde os primórdios da humanidade as mulheres estiveram sujeitas ao ideal de servilismo e dominação, sejam por seus pais, irmãos, maridos ou a sociedade machista que não permitia o livre acesso feminino aos diversos âmbitos sociais.

A diferenciação por gênero era algo intrínseco ao convívio social, que pregava a ideia de subordinação, fragilidade e incapacidade feminina de conquistar os ambientes até então dominados pelos homens. Como leciona Davidoff (2001), as mulheres eram consideradas inferiores no aspecto intelectual, na força física, nas relações econômicas, políticas e interpessoais.

Dessa maneira torna-se imperioso compreender a diferenciação existente entre homens e mulheres, mas não apenas sob um aspecto biológico. Gênero pode ser entendido, como elenca Scoot (1995) como as relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e o poder; é sobretudo, reconhecer e celebrar as diferenças existentes, não subjugando de maneira alguma um indivíduo em discrepância ao outro.

A concepção de gênero mitiga o entendimento simplista de que as diferenças existentes entre homens e mulheres são apenas existente no âmbito biológico, como na maioria dos ideais de diversidade que emergem daqueles que subjugam o diferente; no âmbito das diferenças inerentes aos gêneros não é diferente. Apesar da evolução do pensamento social, ainda existem indivíduos que estabelecem relações pautadas por construções sociais que desvalorizam características femininas em favor das masculinas, relegando à mulher uma posição de subordinação. O direito, como fenômeno social que é, não foge às influências oriundas dessas representações sociais, entretanto como nas mais distintas áreas sociais as mulheres estão modificando essa realidade fatual.

Assim, seja por revoluções ativas ou silenciosas, a mulher transpôs barreiras, modificou a realidade a ela imposta e a cada dia vem conquistando o seu espaço e os seus direitos na sociedade, sejam eles: direito a educação, a realização de importantes atividades intelectuais, direito ao trabalho remunerado, direito a participação política ativa, direito a escolha das relações interpessoais, direito ao próprio corpo e a liberdade sexual, o simples direito de decisão e de ter seus direitos.

Ao longo do presente trabalho, pretende-se analisar a evolução da influência feminina na história mundial, suas conquistas perante a legislação e explicitar as suas vitórias perante o universo do direito, buscando compreender as relações de gênero vigentes nas carreiras jurídicas.


2.A diferenciação por gênero

Desde os primórdios as relações existentes entre os sexos são pautadas por construções sociais que geralmente desvalorizam o feminino em favor do masculino, colocando a mulher numa posição de submissão em relação ao homem. Provavelmente, a ideia de que o sexo masculino seria biologicamente superior data do período pré-histórico, em que o homem teria o porte físico superior ao feminino, portanto, deveria cassar e a mulher cuidar dos filhos e da casa. Apesar de a suposta explicação biológica ser relativamente recente, embasada nas interpretações distorcidas da teoria evolucionista de Charles Darwin (1809 -1882), ela apenas comprova que a mulher sempre foi colocada em segundo plano, coadjuvante em todos os aspectos da história mundial, sofrendo com a estigmatização de pertencer a um sexo inferior. Nesse sentido, Viana e Ridenti (1998, p. 97), esclarecem que:

“o determinismo biológico seria o definidor das desigualdades entre mulheres e homens, tendo a medicina e as ciências biológicas como importante aliada que, durante muito tempo, subsidiavam as normas sociais quanto às relações de gênero”

Ao falar do termo gênero, podemos nos referir à representação simbólica da sociedade de homem e mulher, masculino e feminino. Todavia, categoriza-lo partindo apenas do pressuposto sexual é reduzir as inerentes características da dominação por gênero. Desta forma, a construção social daquilo que seja específico do homem ou da mulher, tal como do sexo, varia de acordo com os mais diversos fatores, sendo a compreensão do conceito “gênero” influenciada, pelas emoções e sentimento de aceitação e pela cultura, no que diz respeito à interação e reprodução social. Nesse sentido, a cultura tem caráter libertador, como dispõe Alves (2010. p, 344) “a cultura possui caráter libertador, implica em sentido de aprendizagem e apreensões do que é ser homem e do que é ser mulher”, o ser mulher é algo apreendido não restrito a concepção biológica Beauvoir ( 2004 ) elenca que não se nasce mulher: torna-se.

Se o termo “sexo” remete, essencialmente, às características físicas, anatômicas e biológicas do ser humano, o termo gênero “remete a articulação e elaboração simbólicas e culturalmente específicas destas mesmas diferenças e categorias, nomeadamente no âmbito da sexualidade ou práticas sexuais, que acarretam consigo expectativas sociais”. De maneira elucidativa elenca Scott (1995) que gênero pode ser caracterizado como:

“Gênero constitui uma categoria de análise histórica de um núcleo de definições das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e nas relações de poder. Além disso, estudar os comportamentos construídos socialmente como de homens e de mulheres a partir de uma perspectiva das relações de Gênero é, sobretudo, reconhecer e celebrar as diferenças. Isso porque homens e mulheres são dotados de masculinidade e feminilidade, entretanto, a sociedade tende a definir os papéis sociais considerados como masculinos e femininos. ”

A desigualdade de gênero nasceu nas diferenças socialmente construídas entre feminino e masculino, baseadas inicialmente em aspectos biológicos, pois homens e mulheres são diferentes em diversos aspectos. Desde os tempos primórdios essa diferenciação é difundida. No período neolítico da humanidade, os homens cassavam e as mulheres cuidavam dos filhos, assim foram construídas as relações sociais estabelecidas através da desigualdade entre os dois sexos.

 Assim, a condição feminina sempre foi estabelecida como ser inferior perpetuada nos mais diversos lugares e em distintos tempos, interferindo nas esferas públicas e privadas da convivência social. A mulher se distingue do homem em diversos aspectos, nesse sentido buscam pelo respeito a essas diferenças, visando o tratamento semelhante, não igual visto que mulheres e homens possuem características inerentes que os distinguem e isso deve ser respeitado. Assim, maior busca do direito em nosso século é o respeito pelas diferenças sejam elas de raça, etnia, cultural, sexual e de gênero.


3.A mulher diante da história mundial.

Na antiguidade clássica, Aristóteles (384-322 a.C) afirmou que “a fêmea é fêmea em virtude de certas faltas de qualidade”; Platão (428-347 a.C) dizia que “os homens covardes que foram injustos durante sua vida, serão provavelmente transformados em mulheres quando reencarnarem”. Na Idade Média, Tomaz de Aquino; sistematizou o pensamento sobre o papel feminino na sociedade da época como “um ser acidental e falho, e que seu destino é o de viver sob a tutela de um homem, por natureza é inferior em força e dignidade”. Na Idade Moderna, Schopenhauer (1788-1860) caracterizava essas “pobres criaturas”, como de “cabelos longos e inteligência curta”; Kant (1724-1804) as considera como "pouco dotada intelectualmente, caprichosa indiscreta e moralmente fraca", já Nietzsche (1844-1900) afirmou que “o homem deve ser educado para a guerra a mulher para a recreação do guerreiro”, desde os tempos mas remotos é possível identificar o caráter machista vigente na sociedade, entretanto, as mulheres não ficaram apáticas diante de tal situação.

Frente às mudanças sociais, as mulheres não ficaram inertes, almejando superar a cultura patriarcal, marital e androcêntrica, seja de forma individual ou coletiva, inúmeras figuras femininas se destacaram na batalha pela conquista de seus direitos numa sociedade maculada pelo machismo irracional. A mulher perante a história mundial teve caráter decisivo em diversas situações, o que proporcionou a sua maior autonomia e libertação dos grilhões que por séculos as prendiam.

Durante as Revoluções Burguesas (Revolução Inglesa, Revolução Americana e a Revolução Francesa), o papel feminino foi de suma importância, visto que por muitos séculos elas foram reprimidas e a participação feminina na política era vista como uma grande ofensa perante a sociedade machista que vigorava. Destaca-se a marcha feminina com cerca de sete mil mulheres que forçou o rei deixar o palácio de Versalhes, no período da Revolução Francesa.  Como afirma a Morin (2010,  p. 56.) :       

“As mulheres fundaram clubes políticos, discursaram na Assembleia Nacional, participaram das jornadas revolucionárias. Mas, acima de tudo, foi um grupo de sete mil mulheres do povo que marchou 14 quilômetros de Paris a Versalhes, sob chuva, para protestar contra a escassez de pão, gritando: "Vamos buscar o padeiro (o rei), a padeira (a rainha) e o padeirinho (o príncipe delfim)". A Marcha das Mulheres alcançou o objetivo de trazer o rei Luís XVI e sua família para Paris. Poucos dias depois, a Assembleia Nacional também se mudou para a capital. Esse período de ativismo político foi pouco estudado até os anos 1980, quando as comemorações do bicentenário da Revolução Francesa impulsionaram as pesquisas sobre o tema e fizeram justiça à ação pioneira das cidadãs revolucionárias francesas.” [2] 

Outro aspecto importante na história da libertação feminina foi o advento da Revolução Industrial e da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Os homens válidos, aptos aos trabalhos nas fábricas e essências para o advento capitalista, partiram como soldados para a Segunda Grande Guerra Mundial. Ficaram as mulheres na retaguarda, dispostas a exercerem as funções desses homens nas fábricas, nos escritórios, nas universidades e nos mais distintos ofícios em que fossem necessárias. Assim, como elenca Leon (1997) elas eram rápidas no aprendizado e estimuladas pelo novo mundo que se revelava a elas, assumiram os mais sofisticados ofícios, apesar dos preconceitos e das desconfianças.

Outro marco histórico na luta feminina pelos seus direitos, ocorreu no dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte americana de Nova Iorque, fizeram uma grande greve. Nesse sentido aduz Perrot (1990) que as mulheres ocuparam a fábrica e começaram a reivindicar melhores condições de trabalho, tais como, redução na carga diária de trabalho para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. A manifestação foi reprimida com total violência. As mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas. Esse episódio que sustenta, hoje, a existência do “Dia Internacional da Mulher” exemplifica as conquistas de direitos pelas mulheres são produtos de intensas lutas sociais, e não meros desdobramentos de um processo civilizatório modernizante.

Diante da quebra desses paradigmas sociais e da ascensão da mulher ao âmbito público, surge com força total no século XX o movimento feminista. Inspirado pelas obras como Le Deuxième Sexe (1949; O segundo sexo), da francesa Simone de Beauvoir, e The Feminine Mystique (1963; A mística feminina), da americana Betty Friedan. A mulher buscava não apenas conquistar direitos civis queria também uma libertação que levasse em questão os aspectos da condição de oprimida pela cultura masculina, uma liberação integral que incluísse também o corpo e os desejos.

Segundo Toscano (1992) o feminismo ocidental é sociologicamente dividido em três grandes “ondas”: A primeira onda do feminismo refere-se a um período extenso de atividade feminista ocorrido durante o século XIX e início do século XX, no Reino Unido e nos Estados Unidos, que tinha, originalmente, o foco da promoção de igualdade nos direitos contratuais e de propriedade para homens e mulheres, e na oposição de casamentos arranjados. No entanto, no fim do século XIX, o ativismo passou a se focar principalmente na conquista de poder político, especialmente, o direito ao sufrágio por parte das mulheres. A segunda onda do feminismo representa o período da atividade feminista que teria começado no início da década de 1960 e durado até o fim da década de 1980, com o  Women’s Liberation Front (Frente de Liberação das Mulheres), a queima de sutiãs e os protestos por liberação sexual. A terceira onda do feminismo começou no início da década de 1990, com uma interpretação antropológica pós-estruturalista do gênero e da sexualidade, enfatizando-se a "micropolítica", e procurando negociar um espaço dentro da esfera feminista para a consideração de subjetividades relacionadas a outras demandas sociais, como questões raciais, religiosas e de opção sexual/afetiva.

A ascensão feminina no mercado de trabalho, nos ambientes escolares e universitários e na ciência, levou a mulher que outrora era oprimida a buscar também o direito à liberdade política. Apesar, de a formalização da cidadania através do voto tenha sido conquistada pelas mulheres brasileiras em 1932, a sua presença como sujeito político, que lutava por anseios de igualdade sem diferenciação por gênero, só emergiu com o surgimento de movimentos com caráter feminista partir dos anos 1970, que ocorreu em meio ao processo internacional de mudanças na área de trabalho, na educação, no direito à liberdade sexual e corporal e por enormes mudanças sociais e culturais, a mulher passou a ser influente perante a política e a democracia. O Brito (2010, p. 8), explica bem tal evento:

“ As décadas de 1970 e 1980 representaram um período também de crescimento maciço na participação política das mulheres. A presença em movimentos sociais ativos, respondendo às novas demandas surgidas em particular nas grandes concentrações urbanas, introduziu novas formas de sociabilidade e oportunidades para as mulheres fora do âmbito familiar. Nos movimentos populares urbanos a presença marcante das mulheres é significativamente maior do que no movimento sindical e nos espaços da política partidária, mais marcadamente masculinas, é grande o crescimento de sua participação. ”

Com esse intuito a luta feminina, trata-se de uma luta por serem reconhecidas como seres humanos, como sujeitos, e não apenas como objetos. Nesse sentido elenca Khel     ( 2008 ,p. 37) :

“O que é específico no caso das mulheres, tanto em sua posição subjetiva quanto em sua condição social, é a dificuldade que enfrentam em deixar de ser objetos de uma produção de saberes de grande consistência imaginária, a partir da qual se foi estabelecendo a verdade sobre sua ´natureza`. Não foi possível àquelas mulheres tomar consciência de que aquela era a verdade do desejo de alguns homens, sujeitos do discurso médico e filosófico que participaram das formações ideológicas modernas. A esta produção de pensamentos foi se contrapondo uma grande produção literária ao público feminino, expressão imaginária dos anseios reprimidos de grande parte das mulheres que sonhavam viver, a seu modo, ´a grande aventura burguesa`, para além do papel honroso que lhes era concedido, de mães virtuosas e rainhas do lar. ”

Assim, a mulher conquistou o seu espaço na sociedade, transpôs barreiras e se impôs diante da vida seja a pública ou a privada, do aspecto econômico ao político, do social ao cultural; a mulher adentrou com todas as forças em todas as esferas representativas da sociedade.


4.As relação de gênero e seus reflexos no direito

O estudo complexo e histórico do direito deve se aliar à necessidade de substituir o tratamento universal e abstrato por um tratamento apto a perceber as especificidades concretas entre os diversos sujeitos sociais envolvidos. Bobbio (2004) relaciona à questão feminina ao processo de especificação dos direitos, salientando que essa especificação se deu também em relação ao gênero.

O conceito de gênero é uma construção social, não se apresentando, pois, de maneira uniforme em todas as épocas e lugares. Assim, depende da cultura, dos costumes e das criações oriundas da experiências humanas, tais como as leis, as religiões e a vida política. Ademais, dentro de uma mesma sociedade encontramos variantes que influem diretamente nesse conceito, tais como a idade, a raça e a classe social.

Como é fruto de uma dinâmica social, é latente o reflexo do conceito de gênero dentro do mundo jurídico. É o que observamos no momento da construção das normas jurídicas, no momento da interpretação e, por último, no momento crucial de sua aplicação.

Vale salientar a ascensão de alguns marcos jurídicos, como: a conquistas do direito ao voto feminino, que no Brasil ocorreu em 1932 com o decreto 21.076 de 1932, durante o governo de Getúlio Vargas, malgrado a mulher casada ainda fosse considerada incapaz. Outro fator marcante, como dispõe Brandão (2010) “foi a entrada em vigor da Lei nº 660 de 1927, do Estado do Rio Grande do Norte, que possibilitou o alistamento eleitoral da natalense Celina Guimarães, primeira mulher da América do Sul a votar”.

A Constituição Federal de 1988 internaliza as principais diretrizes pertinentes aos direitos humanos das mulheres em voga no âmbito internacional, reconhecendo pela primeira vez, em seu Art. 5°, que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” vedando a discriminação por sexo e instituindo a igualdade entre ambos, dispositivo esse que ensejou na modificação e evolução de inúmeros aspectos normativos. 

Apesar da evolução legislativa quanto as relações de gênero, não adianta apenas normas isentas das mazelas oriundas do machismo, pois essa divergência de valores se revela também no ato de interpretar e aplicar a norma jurídica. Lamentavelmente, muitos dos operadores do direito, influenciados pela sociedade, não despertaram para os novos paradigmas da ciência jurídica e continuam a barrar a evolução e a concretização dos direitos femininos por seus preconceitos em relação ao gênero. Sob essa visão como nos ensina Toscano (1992) várias pesquisas científicas apontam um perfil conservador dos operadores do direito, reforçado pela falta de uma perspectiva de gênero no ensino e na doutrina jurídica, bem como pela própria ordem jurídica, integrada por um complexo sistema normativo que permite a convivência de instrumentos jurídicos contemporâneos (como a Constituição Federal de 1998 e os Tratados Internacionais) ao lado de sistemas legais ultrapassados, como o Código Penal de 1940.              

Grandes foram os avanços no âmbito social e legal, sendo necessário quase 462 anos para a mulher casada deixar de ser considerada relativamente incapaz “pela lei brasileira (Estatuto da Mulher Casada) e mais 26 anos para a Constituição Federal consagrar a igualdade de direitos e deveres na família.”[3]


5.A mulher diante das carreiras jurídicas.

As relações entre os sexos ainda são pautadas por construções sociais que geralmente valorizam de maneira exacerbada o masculino mitigando a influência do feminino nos diversos âmbitos sociais, relegando à mulher uma posição de submissão em relação ao homem. E não é por menos que observamos normas positivas que refletem esse padrão de desequilíbrio, uma vez que o direito, como fenômeno social que é, não foge às influências oriundas dessas representações sociais e segue uma ordem “natural” de valores que não atende às necessidades femininas.

 Da mesma forma que a mulher conseguiu o seu espaço nas mais distintas esferas da sociedade, ela também se destacou diante das carreiras jurídicas, deixando de ser objeto de sanções e passando a ter participação ativa diante do direito.

No Brasil, até meados de 1902, nenhuma mulher havia feito curso de graduação na área do direito. A percussora a transpor essa barreira foi Maria Augusta Saraiva, que ingressou na Faculdade do Largo São Francisco. Ela também foi a primeira figura feminina a atuar no Tribunal do Júri.

Só no ano de 1954, que uma mulher veio a se tornar magistrada, Tereza Grizola Tang, em entrevista à revista Veja afirmou que “quando as mulheres faziam inscrição para concorrer ao cargo de juízas eram automaticamente dispensadas apenas por serem mulheres”[4], confirmando dessa maneira o caráter preconceituoso e a estigmatizante advindo do gênero que permeava as carreiras jurídicas, visto que o simples fato de pertencer ao sexo feminino já era quesito para a reprovação no concurso de magistratura.

Apenas no ano de 1998, que uma mulher foi admitida como desembargadora, nesse sentido Dias afirma que, “até 1973, quase todas as inscrições feitas por mulheres eram previamente negadas”, afirma ainda que “na minha época, tivemos que brigar para que as provas não fossem identificadas. Na entrevista de admissão, o desembargador chegou a perguntar se eu era virgem”, explicitando assim, as dificuldades enfrentadas no âmbito jurídico.

A primeira ministra a ocupar o posto no Superior Tribunal Federal foi Ellen Gracie, que em entrevista também revela “que quando se formou pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1970, não podia nem se inscrever em concursos para a magistratura”. Outro fato que marcou a mulher diante das carreiras jurídicas foi ascensão da Ministra Carmem Lúcia na liderança de um tribunal superior, o Superior Tribunal Eleitoral, que ocorreu no ano de 2012.

 Apesar dos inúmeros avanços femininos diante dos diversos postos do direito, as mulheres ainda não estão livres do preconceito. A ministra Carmem Lucia não escondeu sua experiência pessoal durante o julgamento da Lei Maria da Penha: “Às vezes acham que juíza desse tribunal não sofre preconceito. Mentira, sofre! Há os que acham que isso aqui não é lugar de mulher, como uma vez me disse uma determinada pessoa sem saber que eu era uma dessas”[5].

Diante do exposto, é possível perceber que mesmo com o passar do tempo, com a modificação da influência feminina na sociedade, a sua ascensão nos mais distintos postos das mais diversas profissões e funções, sejam elas na esfera pública ou privada, ainda prevalece a diferenciação por gênero, sobretudo no âmbito jurídico que deveria ser um ambiente de libertação, desmitificação de preconceitos, de quebra de paradigmas e de ascensão daqueles que de alguma forma são subjugados pela sua diversidade. 


6.Conclusão.

No decorrer da história da humanidade constatamos que as mulheres permaneciam sempre omissas, enclausuradas, como seres afastados das esferas públicas e de direitos restritos no âmbito privado, sempre consideradas como objetos de subordinação ao universo até então dominado pela figura masculina. Todavia isso vem mudando de forma gradual. É fato que tal processo é inacabado e com enormes lacunas, sendo inegável o reconhecimento de que convivemos com padrões de desigualdade e dominação de gênero.

Ainda que a dinâmica das lutas sociais, principalmente, durante o século XX, tenha alçado êxito no que tange a positivação jurídica de garantias formais, como a conquista do direito ao voto em 1932, os aspectos elencados na Constituição de 1988 e as convenções internacionais, ainda persiste a cultura de relações intersubjetivas que colocam as mulheres em patamares de inferioridade.

A visão androcêntrica do mundo ainda é presente, mesmo diante da pós modernidade, dessa maneira a mulher busca maior dignidade em suas relações nos mais distintos âmbitos: seja na esfera pública ou privada, no exercício da cidadania, na política, na economia, no desenvolvimento da dignidade da vida cotidiana, no direito à educação, saúde, segurança, no convívio familiar, no direito ao corpo e liberdade sexual e no próprio direito a ter direitos.

Seja por revoluções ativas ou silenciosas, as mulheres conquistam a cada dia o seu espaço dentro da sociedade brasileira, marcada pelo machismo e patriarcalismo, passam da subordinação à liderança. Todavia, este é um processo incompleto e com enormes lacunas, sendo inegável o reconhecimento que ainda convivemos com padrões de desigualdade e dominação por gênero.

Para que o Direito possa apreender a perspectiva de justiça é necessário compreender a subjetividade feminina. É preciso desfazer a confusão de que a igualdade “é possível sem considerar que o campo da objetividade perpassa pelas subjetividades masculina e feminina”[6]


Referências bibliográficas.

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BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. v. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

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BRANDAO, Delano Câncio. Relações de gênero: Análise história e jurídica das relações de gênero. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 77, jun 2010. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7945>. Acesso em out 2014.

BRITO, Maria Inês do Rosário. O processo histórico da participação da mulher no processo político. Disponível em: http://ceres.facer.edu.br/revista/index.php/refacer/article/download/25/21. Acesso dia 28 de outubro de 2014.

DAVIDOFF, Linda L. Introdução à psicologia. 3 ed. São Paulo: Makron Books, 2001. 

DIAS, Maria Berenice. O direito e a mulher. Acedido em: 02, junho, 2012, em: http://www.mariaberenice.com.br/uploads/23_-_a_mulher_e_o_direito.pdf .

LEÓN, Vicki.  Mulheres Audaciosas da Antiguidade.  Trad. de Miriam Groeger.  Rio de Janeiro: Record, 1997 .

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KHEL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino. Rio de Janeiro: Imago, 2008.

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ZIMERMAN, David; COLTRO, Antônio Carlos Mathias. Aspectos psicológicos na prática jurídica. 3 ed. São Paulo: Millennium, 2010.


Notas

[2] Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-01022010-165929/pt-br.php acessado dia 26 de outubro de 2014.

[3] Disponível em  http://www.mariaberenice.com.br/uploads/23_-_a_mulher_e_o_direito.pdf acessado dia 24 de outubro de 2014.

[4] Disponível em http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/o-judiciario-de-saia-%E2%80%93-ou-melhor-de-calca ; acessado em 23 de junho de 2014.

[5] Disponível em http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Noticias/NoticiaMostra.aspx?idItem=38878&idPagina=3355 acessado dia 23 de outubro de 2014.

[6] Disponível em  http://www.mariaberenice.com.br/uploads/23_-_a_mulher_e_o_direito.pdf acessado dia 4 de junho; ás 13h22min.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES, Betânia Gusmão. A mulher e o Direito: as relações de gênero nas carreiras jurídicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4691, 5 maio 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45524. Acesso em: 10 maio 2024.